O corpo se apresentando
Uma teoria completa do olhar (sua origem, sua atividade, seus limites, sua
dialética) poderá coincidir com uma teoria do conhecimento e com uma teoria da
expressão. Entretanto, até mesmo uma filosofia drasticamente empirista sabe que
a coincidência de olhar e conhecer não pode ser absoluta, porque o ser humano
dispõe de outros sentidos além da visão: o ouvido, o paladar e o olfato também
recebem informações que o sistema nervoso central analisa e interpreta. O vínculo
da percepção visual com os estímulos captados pelos outros sentidos é um dos
temas fundantes de uma fenomenologia do corpo. O olhar não está isolado, o
olhar está enraizado na corporeidade, enquanto sensibilidade e enquanto
motricidade. Mais tarde retomo essas notações, porque são elas que fazem a
ponte entre uma teoria perceptual e uma teoria expressiva do olhar. (p.66)
Não nos cativa o olhar racional, aquele que é mestre em comparar, aquele que
busca a perfeição do esquadrinhar, medir, analisar e separar para depois compor. Essa é
a visão do corpo-objeto, não do corpo-sujeito. Olhar a corporeidade do sujeito é buscar a
expressão, é buscar o desejo, pois o olhar conhece sentindo e sente conhecendo. Daí a
tentativa de interpretar o corpo presente que pressente através do ato de olhar que
conhece.
Para habitarmos o fenômeno corporeidade é necessário um ensaio de
prospecção, como revela mais uma vez Bosi (1988):
A corporeidade, imanente na expressão do olhar, busca e acha suas metáforas no
ser vivo, não excluindo nossos parentes mais próximos, os animais. Corporeidade
que, embora sendo pré-categorial, é irracional, pois dispõe de razões profundas
que informam o olhar do homem em situação. As várias imagens com que a
antropologia popular descreve modos-de-ser, mediante modos-de-olhar;
relativizam toda noção a priori de olhar como espelho de uma percepção isenta.
Relativizar, aqui, é descobrir as relações, tantas vezes obscuras, entre o ponto de
vista e os processos intra e intersubjetivos nos quais o olhar se forma e se move.
(p.79)
Assim, vamos em busca da apropriação do corpo na sua história, através do olhar
que conhece e que produz conhecimento.
Ainda um esclarecimento faz-se necessário. Em virtude de estarmos associando
neste texto a expressão educação física ora à motricidade humana ora à educação
motora, convém assinalar que educação física, sinônimo de motricidade humana, refere-
se à área de conhecimento de uma possível ciência que se preocupa com o movimento
hominal e humano. Já educação física, sinônimo de educação motora, destina-se ao ramo
pedagógico da possível área científica mencionada anteriormente, inclusive na forma de
uma disciplina curricular no interior da escola. Voltemos ao nosso olhar presente no corpo
que pressente.
As metáforas do corpo
Preencha, o máximo possível, o tempo do seu dia com tarefas em que impere a
leitura da vida através da lógica racional.
Não dedique tempo, sob o pretexto de prioridades, para conversar com corpos que
estão ao seu lado, em especial com aqueles que estão na sua intimidade. Um
exemplo: substitua a conversa em casa pela adoração à tela mágica.
Cada vez mais deixe de se movimentar na direção do outro, na arte do encontro,
apesar de tantos desencontros, como falava Vinícius de Moraes. Isole-se na sua
segurança inexpugnável.
Creia que olhar o entardecer, brincar com crianças, andar descalço, comungar com
outros corpos sem motivo aparente são atitudes que se desrespeitam o ser
humano por não significar produção. Negue o ócio, nesta sociedade do negócio.
Recuse, em nome dos dogmas institucionalizados e da moral vigente, viver suas
paixões ou seus amores. Tenha reações previsíveis, sempre.
Nosso escrito remete-nos a uma última metáfora, perseguida por nós a partir de
agora, que é a do corpo presente - pressente, através da qual nossa ação na motricidade
humana e na educação motora deverá sofrer modificações pelo estabelecimento de
novos pressupostos.
Respeitar o corpo presente - pressente na produção epistemológica em
motricidade é lembrar: que o acesso a uma concepção global do homem só se dará por
meio do corpo, pois este possui uma expressão que dialoga e faz comunicar-se com
outros corpos; que o corpo revela uma personalidade há ao mesmo tempo uma cultura
que se entrelaçam no estabelecimento de uma sociedade; que o corpo não pode
continuar sendo encarado como simples habitação do espírito, pois sem ele o espírito não
se concebe; que as atividades corporais, por meio do jogo e do esporte, devem exercitar
a criatividade, a liberdade, a alegria e o bem-estar.
Respeitar o corpo presente - pressente é trabalhar o dia-a-dia da educação
motora no interior da escola, dando oportunidade ao aluno para refletir sobre seu corpo,
sobre a relação de seu corpo com outros corpos e com o meio ambiente; é favorecer o
surgimento de uma cultura corporal, na qual se têm respeitadas e analisadas as questões
das necessidades e dos desejos do corpo que é que intui; é assumir uma postura
profissional em defesa do lúdico, do prazer, da participação, como atributos sempre
presentes no nosso fazer pedagógico.
Assumir o corpo presente - pressente é comprometer-se com a motricidade e com
a educação motora, questionando os atuais paradigmas em ciência e em educação,
ousando ir à frente, trilhando incertezas, mas seguro no caminhar calçado pelo ato de
refletir criticamente.
Como caminhar na direção do corpo presente - pressente? Tarefa complexa,
principalmente pela nossa falta de hábito nessa empreitada, mas possível se, por
exemplo, dermos atenção ao nosso mundo da percepção, em que chamamos de mundo o
que se percebe e de pessoa aquilo que se ama; percepção esta que se realiza no fundo
de minha subjetividade, quando vejo aparecer uma outra subjetividade investida de
direitos iguais porque no meu campo perceptivo esboça-se a conduta do outro. Ou
melhor, dizendo, nas palavras de Merleau-Ponty (1990):
Do mesmo modo que meu corpo, como sistema de minhas abordagens sobre o
mundo, funda a unidade dos objetivos que eu percebo, do mesmo modo o corpo
do outro, como portador das condutas simbólicas e da conduta do verdadeiro,
afasta-se da condição de um de meus fenômenos, propõe-me a tarefa de uma
verdadeira comunicação e confere a meus objetos a dimensão do ser
intersubjetivo de uma descrição do mundo percebido. (p.51)
Como se vê, são metáforas presentes que nos levam a considerar o fenômeno
corporeidade com uma outra abordagem, através de nossas ações como professores, em
que é fundamental recuperar no ato educativo o valor do humano no homem.
Corpo e educação
Este texto, bem como esta publicação por inteiro, tem por finalidade alertar os
educadores, em especial os que militam na motricidade humana (educação física), para
reconsiderarem a ação profissional no contato com o fenômeno corporeidade. Por essa
razão, duas hipóteses iniciais são básicas: primeira, ninguém escapa à ação educativa;
segunda, a educação processa-se no corpo todo e não apenas na cabeça dos alunos.
Assim, advogamos o princípio de que a educação é muito mais um fenômeno
humano, uma experiência profundamente humana do que um ato pedagógico na
transmissão de um determinado conteúdo programático. Melhor dizendo, nas palavras de
Rezende (1990):
Todos os indivíduos como os grupos, a família e a sociedade, a história e o
mundo, estão implicados na estrutura do fenômeno educacional (...).
Ora, assim como o homem não é só animal nem só razão, ele não é, tampouco,
nem só individual sem só social. Como dissemos, a estrutura é a noção-chave de
que a fenomenologia lança mão para mostrar a complexidade semântica do
fenômeno humano com o qual se relaciona o da aprendizagem. Para a
fenomenologia, não há aprendizagem humana enquanto esta é reduzida em
função do paradigma proposto, animal, mecânico, sociológico, econômico,
ideológico. E se falamos de reducionismo é exatamente para dizer que, embora
todas essas abordagens possam ter uma importante contribuição a dar, esta
última é modificada de modo profundo quando se integra na estrutura global do
fenômeno humano (p.50).
O corpo se despedindo
Nosso trabalho não se esgota no processo; ele remete a projetos. Ele possui um
caráter intrínseco de apontar pistas de como fazer, por que fazer, mas também se
preocupa com a dimensão extrínseca do para que fazer, do para quem fazer.
A proposta é tópica quando a preocupação volta-se para a análise da coerência
interna, no rigor do processo, e é ao mesmo tempo utópica quando olhar-conhecer centra
seu foco no projeto, nas interfaces da estrutura do fenômeno humano.
O olhar panorâmico do corpo presente - pressente deve produzir conhecimentos
aplicáveis no processo e, dialeticamente, deve ser modificado pelos projetos de vida do
ser-corpo-que-olha.
Uma última justificativa faz-se necessária: por que privilegiamos, ao analisar o
corpo, o ato de ver, de olhar? Respondemos recorrendo a Teilhard de Chardin (1988)
que, de forma mais adequada, já justificou isso:
Ver. Poder-se-ia-dizer que toda a Vida consiste nisso – se não finalmente, ao
menos essencialmente. Ser mais é unir-se cada vez mais: tais serão o resumo e a
própria conclusão desta obra. Mas, como teremos oportunidade de constatar, a
unidade só aumenta sustentada por um crescimento de consciência, isto é, de
visão. Eis por que, indubitavelmente, a história do mundo vivo se resume na
elaboração de olhos cada vez mais perfeitos no seio de um Cosmo, onde é
possível discernir cada vez mais. (p.25)
O corpo que é e que esteve presente na produção deste escrito agora se retira,
na sua existencialidade, para outro lugar no tempo e no espaço, ao mesmo tempo em que
permanece no sensível da escrita grafada no papel e nas possíveis tatuagens que esta
realizará nos corpos leitores.
Puro mistério, envolto pela complexidade de ser possível apenas na condição de
sermos corpos e estarmos vivos.
Vivas à vida do homem na busca de sua humanização!
Bibliografia
BOSI, Alfredo. “Fenomenologia do olhar”. In: Adauto Novaes et al. O olhar. São Paulo, Companhia
das Letras, 1988.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: História das violências nas prisões. Petrópolis, Vozes, 1977.
FREIRE, João B. “Rumo ao universo...do corpo”. In: Vitor M. Oliveira. Fundamentos pedagógicos
da educação física 2. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1987.
MORAIS, J.F. Regis de. “Consciência corporal e dimensionamento do futuro” In: W.W. Moreira.
Educação física e esportes: Perspectivas para o século XXI. Campinas, Papirus, 1993.