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CORPO PRESENTE NUM OLHAR PANORÂMICO

Wagner Wey Moreira

O corpo se apresentando

Desvendar os olhos para olhar atentamente o fenômeno corporeidade é adestrar


o domínio do impreciso, do complexo, das imperfeições e da desordem do mundo real,
razão pela qual este texto não pretende iluminar o visível, mas apenas e tão-somente
excitar o invisível, ou melhor, revelar as possibilidades do sensível, que normalmente está
no outro lado do corpo.
Por essa razão, preferimos deixar de lado nesta escrito alguns conceitos da
ciência clássica, como por exemplo, que pensar é se pôr à distância do fenômeno
pensado, ou ainda, que pensar é unicamente construir conceitos. Em nosso estudo, ver é
pensar, é mergulhar na corporeidade e tomar o corpo como fundamento primeiro, é
combater os tipos de positivismo existentes, é enfim, “o sentir que se sente, o ver que se
vê não o pensamento de ver ou de sentir, mas visão, sentir, experiência muda de um
sentido mudo” (Marleau-Ponty).
E por que nos propusemos a olhar o fenômeno corporeidade? A resposta é
simples e em dois tempos: primeiro, o homem é hoje um ser predominantemente visual;
segundo, porque o ato de olhar exige a direção da mente para um foco de significação.
Olhar é conhecer, mesmo de forma relativa. Conhecer é ser impregnado e
habitado pelas imagens errantes de um cosmos luminoso. Uma teoria do olhar pode
coincidir com uma teoria do conhecimento, ou melhor, na afirmação de Bosi (1988):

Uma teoria completa do olhar (sua origem, sua atividade, seus limites, sua
dialética) poderá coincidir com uma teoria do conhecimento e com uma teoria da
expressão. Entretanto, até mesmo uma filosofia drasticamente empirista sabe que
a coincidência de olhar e conhecer não pode ser absoluta, porque o ser humano
dispõe de outros sentidos além da visão: o ouvido, o paladar e o olfato também
recebem informações que o sistema nervoso central analisa e interpreta. O vínculo
da percepção visual com os estímulos captados pelos outros sentidos é um dos
temas fundantes de uma fenomenologia do corpo. O olhar não está isolado, o
olhar está enraizado na corporeidade, enquanto sensibilidade e enquanto
motricidade. Mais tarde retomo essas notações, porque são elas que fazem a
ponte entre uma teoria perceptual e uma teoria expressiva do olhar. (p.66)

Não nos cativa o olhar racional, aquele que é mestre em comparar, aquele que
busca a perfeição do esquadrinhar, medir, analisar e separar para depois compor. Essa é
a visão do corpo-objeto, não do corpo-sujeito. Olhar a corporeidade do sujeito é buscar a
expressão, é buscar o desejo, pois o olhar conhece sentindo e sente conhecendo. Daí a
tentativa de interpretar o corpo presente que pressente através do ato de olhar que
conhece.
Para habitarmos o fenômeno corporeidade é necessário um ensaio de
prospecção, como revela mais uma vez Bosi (1988):
A corporeidade, imanente na expressão do olhar, busca e acha suas metáforas no
ser vivo, não excluindo nossos parentes mais próximos, os animais. Corporeidade
que, embora sendo pré-categorial, é irracional, pois dispõe de razões profundas
que informam o olhar do homem em situação. As várias imagens com que a
antropologia popular descreve modos-de-ser, mediante modos-de-olhar;
relativizam toda noção a priori de olhar como espelho de uma percepção isenta.
Relativizar, aqui, é descobrir as relações, tantas vezes obscuras, entre o ponto de
vista e os processos intra e intersubjetivos nos quais o olhar se forma e se move.
(p.79)
Assim, vamos em busca da apropriação do corpo na sua história, através do olhar
que conhece e que produz conhecimento.
Ainda um esclarecimento faz-se necessário. Em virtude de estarmos associando
neste texto a expressão educação física ora à motricidade humana ora à educação
motora, convém assinalar que educação física, sinônimo de motricidade humana, refere-
se à área de conhecimento de uma possível ciência que se preocupa com o movimento
hominal e humano. Já educação física, sinônimo de educação motora, destina-se ao ramo
pedagógico da possível área científica mencionada anteriormente, inclusive na forma de
uma disciplina curricular no interior da escola. Voltemos ao nosso olhar presente no corpo
que pressente.

As metáforas do corpo

Nossa viagem panorâmica sobre o fenômeno corporeidade não irá ficar


aprisionada pelo relato cronológico, onde estipulada pela forma positivista de ler a
história. Iremos, isto sim, em movimento de idas e vindas, salientar em que procuraremos
mergulhar.
Como metáfora marcante ao longo do tempo vivido corpos, temos os corpos
dóceis, nos quais, em diferentes séculos, vemos as tatuagens do poder impregnadas.
Assim, Foucault (1977) revela que já na época clássica houve a descoberta do
corpo como o objeto e como alvo do poder. Objeto do poder porque ele poderia ser
manipulado, modelado, treinado; e alvo porque ele poderia se tornar hábil, economizando
forças para o trabalho necessário. Não é por mero acaso que o protótipo do homem
cartesiano poderia ser enquadrado como homem-máquina, descrito anatomicamente em
seus mínimos detalhes e controlado técnicas e politicamente por um número interminável
de regulamentos que padronizam a ação desses corpos.
Os corpos dóceis recebiam com naturalidade a disciplina, que se constituía de
métodos que permitiam o controle minucioso das ações corpóreas, através da delimitação
de espaço, controle do tempo e do movimento. Tudo isso em nome da utilidade e do
progresso.
Nosso olhar identifica a docilidade mencionada por Foucault lá no século XVII, ao
mesmo tempo em que a encontra nos dias de hoje, quando os corpos são excitados,
submissos e dóceis. Para isso, basta ler, por exemplo, os regulamentos escolares, onde
encontraremos todas as restrições possíveis sobre a corporeidade, desde os tempos
destinados às tarefas e às aulas, até como deverão ser o comportamento e a posição
espacial na classe.
Outra forma de domesticação corpórea foi por nós observada durante a
elaboração de nossa tese de doutorado, ao constatarmos as ações dos professores de
educação física no interior da escola. Ao publicarmos os resultados (Moreira 1992),
deparamos com a exigência de ritmo padronizado, com a visão de corpo útil e disciplinado
no cumprimento de ordens, com a idéia de levar vantagem mesmo que para isso fosse
necessário o menosprezo do corpo do outro, bem como a ausência de ludicidade e a
exacerbação do individualismo.
Só um corpo dócil pode sujeitar-se a uma educação fragmentada: ecoa um sinal e
somos cognição em matemática; ecoa outro sinal e somos cognição em ciências; ainda
outro sinal faz-se ouvir e somos motricidade em aulas de educação física; outro sinal mais
e somos criatividade em educação artística. Mas este absurdo já delatado por muitos
educadores permanece intacto porque, afinal, a educação está em ordem e os corpos
respondem segundo o padrão exigido para a manutenção do poder.
O que Foucault (1977) escreveu para o século XVII pode ser reeditado hoje sem
alterações:
A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A
disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e
diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma
palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma
“capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a
potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se
a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a
coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão
aumentada e uma dominação acentuada. (p.127)

Ao olharmos mais detalhadamente nossa área de ação profissional, a motricidade


humana (a educação física), vemos o quanto disciplinamos os corpos em nome da
aptidão aumentada ou do rendimento exigido. Estivemos, por muito tempo, treinando
corpos dóceis, aprimorando-os para vencer a qualquer custo, mesmo que o preço pago
fosse o do desprezo dos outros corpos ou a maior submissão deles.
Olhar sensivelmente os corpos e nos corpos que passam pela aula de educação
motora é ir buscar não mais a disciplina, mas a consciência corporal, mesmo porque o ato
de conhecer não é mental; ele é, antes de tudo, corpóreo.
Olhar os corpos, na perspectiva fenomenológica, em uma aula de educação
motora, é habitar aqueles corpos, sentir suas necessidades, seus anseios, seus projetos,
e aí definir rumos curriculares.
Mas que outras metáforas podemos encontrar em relação ao corpo? Assmann
(1993) já se inquietava com esta questão, indagando quantos corpos já tivemos ao longo
da história humana. Afirmava esse autor, com o qual concordamos que temos dificuldade
em sermos corpos porque já nos convenceram de mil maneiras, que temos tal ou qual
corpo. As ideologias sempre conseguem inventar um corpo humano adequado para o
cumprimento das ordens necessárias.
Seguindo a pista deixada por Assmann (1993), vemos o corpo jardim fechado,
aquele que é sacralizado, que tem sua existência separada de sua essência, pois vive em
função do desenvolvimento do espírito. É um corpo que não pode possuir desejos, pois
estes dificultam a caminhada da sanificação espiritual. Esse corpo é sinônimo de templo,
de morada, de casa da qual o espírito se torna, por um tempo, inquilino, e no vencimento
do contrato essa casa é desativada ou derrubada. Corpo sagrado, deificado e não
humano, que abre mão do viver o hoje em nome de uma vida melhor no além.
Essa é a mensagem do cristianismo tradicional. Herda-se do judaísmo o sacrifício
dos corpos para a manutenção da vida eterna. Não foi sem razão que o poder central da
Igreja institucionalizada reagiu com força contra a Teologia da Libertação, pois esta, além
de ter surgido no Terceiro Mundo, reivindicam a participação do corpo no processo de
sanificação desde o momento presente.
Grande é o dilema que precisa ser explicado pelos teólogos que ainda exigem o
corpo jardim fechado. O supremo sacrifício corporal já não foi feito por Cristo? A salvação
não é graça de Deus, por intermédio de Cristo? Se há a continuidade da exigência de
sacrifícios corporais, posso concluir que o supremo sacrifício de Cristo não foi suficiente.
Nos tempos modernos encontramos outra metáfora em relação ao corpo, a do
corpo ajustável ao que se precisa, segundo Assmann (1993), um corpo dotado de
plasticidade, moldeabilidade, elasticidade. Esse corpo, já há algum tempo, preta-se ao
serviço e é força de trabalho, é um corpo útil que se destina a cumprir funções regulares
no mercado de trabalho. Corpos professores, corpos estivadores, corpos executivos,
corpos operários, corpos camponeses, corpos burocratas do poder, enfim, corpo-capital
humano ou corpo-relação mercantil.
Na área de esportes, nossa tão conhecida, temos como principal representante
deste corpo ajustável ao que se precisa o corpo atleta, muitas vezes até invadido em sua
intimidade e degradado em sua essência para manter o rendimento ou a performance.
Quantas histórias conhecemos de dopping, de utilização de anabolizantes, de privações a
que estes corpos forma submetidos para se conseguir uma medalha ou para subir a um
pódio. Se é necessário vencer, ajustemos o corpo para isto, mesmo impondo-lhe
sacrifícios visíveis hoje e irreversíveis amanhã.
Não queremos, com esta constatação, cometer o mesmo erro de alguns discurso
recentes que pregavam a separação do esporte da área da motricidade humana, em
especial como conteúdo pedagógico na escola. Pensar que o esporte traz em si a marca
do pecado é ingenuidade, que no caso de profissionais da área pode ser considerado
irresponsabilidade. O questionamento dos valores atuais do esporte, que são valores
presentes na macroestrutura social, deve ser fonte de permanente análise das instituições
acadêmicas que trabalham com esse fenômeno, na busca da superação e não da
negação do quadro atual.
Uma outra metáfora que gostaríamos de mencionar aqui, por sinal a que mais nos
assusta nos dias de hoje, é a do corpo asceta-indiferente, em que as relações corporais,
por não apresentarem significado, perdem significância. Num mundo onde o consumo
substitui a ação de movimentar-se na direção de superações, corremos o risco de
substituir paixão pela vida por indiferença emocional.
Nossa produção científica, de certa forma, confirma essa preocupação. Freire
(1987) lembra que hoje somos competentes em mandar nossas naves espaciais aos mais
diferentes planetas, mas somos incapazes de descortinar os mistérios de nossos próprios
corpos. Abrimos constantemente janelas para fora, para o longe, onde o olhar-
conhecimento viaja à velocidade da luz e, no entanto, deixamos fechadas as janelas para
dentro, não conseguindo identificar as necessidades e os desejos do próprio corpo e dos
corpos que estão ao nosso lado.
Abrir janelas para fora é incentivado, mas ver o corpo e no corpo, em sua
intimidade, isto o poder não permite. Consequência prática da vivência desses valores
indiferentes, onde a máxima preocupação é com a própria sobrevivência.
Adentramos mais uma vez a área esportiva para relatarmos os vieses em nosso
olhar-conhecer corpos, o que produzirá a metáfora de corpos indiferentes. Quantos de
nós temos expressado nossas preocupações com atletas que já encerraram suas
carreiras e, hoje, por não mais renderem o necessário em sua arte, passam
necessidades? Esses corpos, muitas vezes em miséria, não nos comovem. Mas se o
corpo atleta-herói desaparece no auge da fama, quanta consternação! Não há erro em
reverenciar heróis, principalmente aqueles que venceram por seus méritos legítimos. O
erro está em desprezar os corpos anônimos que estão hoje ao nosso lado ou não lhes dar
atenção.
Queremos bons métodos de treinamento para o desenvolvimento de corpos
ascetas-indiferentes? Eis alguns ingredientes para uma boa receita:

 Preencha, o máximo possível, o tempo do seu dia com tarefas em que impere a
leitura da vida através da lógica racional.
 Não dedique tempo, sob o pretexto de prioridades, para conversar com corpos que
estão ao seu lado, em especial com aqueles que estão na sua intimidade. Um
exemplo: substitua a conversa em casa pela adoração à tela mágica.
 Cada vez mais deixe de se movimentar na direção do outro, na arte do encontro,
apesar de tantos desencontros, como falava Vinícius de Moraes. Isole-se na sua
segurança inexpugnável.
 Creia que olhar o entardecer, brincar com crianças, andar descalço, comungar com
outros corpos sem motivo aparente são atitudes que se desrespeitam o ser
humano por não significar produção. Negue o ócio, nesta sociedade do negócio.
 Recuse, em nome dos dogmas institucionalizados e da moral vigente, viver suas
paixões ou seus amores. Tenha reações previsíveis, sempre.
Nosso escrito remete-nos a uma última metáfora, perseguida por nós a partir de
agora, que é a do corpo presente - pressente, através da qual nossa ação na motricidade
humana e na educação motora deverá sofrer modificações pelo estabelecimento de
novos pressupostos.
Respeitar o corpo presente - pressente na produção epistemológica em
motricidade é lembrar: que o acesso a uma concepção global do homem só se dará por
meio do corpo, pois este possui uma expressão que dialoga e faz comunicar-se com
outros corpos; que o corpo revela uma personalidade há ao mesmo tempo uma cultura
que se entrelaçam no estabelecimento de uma sociedade; que o corpo não pode
continuar sendo encarado como simples habitação do espírito, pois sem ele o espírito não
se concebe; que as atividades corporais, por meio do jogo e do esporte, devem exercitar
a criatividade, a liberdade, a alegria e o bem-estar.
Respeitar o corpo presente - pressente é trabalhar o dia-a-dia da educação
motora no interior da escola, dando oportunidade ao aluno para refletir sobre seu corpo,
sobre a relação de seu corpo com outros corpos e com o meio ambiente; é favorecer o
surgimento de uma cultura corporal, na qual se têm respeitadas e analisadas as questões
das necessidades e dos desejos do corpo que é que intui; é assumir uma postura
profissional em defesa do lúdico, do prazer, da participação, como atributos sempre
presentes no nosso fazer pedagógico.
Assumir o corpo presente - pressente é comprometer-se com a motricidade e com
a educação motora, questionando os atuais paradigmas em ciência e em educação,
ousando ir à frente, trilhando incertezas, mas seguro no caminhar calçado pelo ato de
refletir criticamente.
Como caminhar na direção do corpo presente - pressente? Tarefa complexa,
principalmente pela nossa falta de hábito nessa empreitada, mas possível se, por
exemplo, dermos atenção ao nosso mundo da percepção, em que chamamos de mundo o
que se percebe e de pessoa aquilo que se ama; percepção esta que se realiza no fundo
de minha subjetividade, quando vejo aparecer uma outra subjetividade investida de
direitos iguais porque no meu campo perceptivo esboça-se a conduta do outro. Ou
melhor, dizendo, nas palavras de Merleau-Ponty (1990):

Do mesmo modo que meu corpo, como sistema de minhas abordagens sobre o
mundo, funda a unidade dos objetivos que eu percebo, do mesmo modo o corpo
do outro, como portador das condutas simbólicas e da conduta do verdadeiro,
afasta-se da condição de um de meus fenômenos, propõe-me a tarefa de uma
verdadeira comunicação e confere a meus objetos a dimensão do ser
intersubjetivo de uma descrição do mundo percebido. (p.51)

Como se vê, são metáforas presentes que nos levam a considerar o fenômeno
corporeidade com uma outra abordagem, através de nossas ações como professores, em
que é fundamental recuperar no ato educativo o valor do humano no homem.

Corpo e educação

Este texto, bem como esta publicação por inteiro, tem por finalidade alertar os
educadores, em especial os que militam na motricidade humana (educação física), para
reconsiderarem a ação profissional no contato com o fenômeno corporeidade. Por essa
razão, duas hipóteses iniciais são básicas: primeira, ninguém escapa à ação educativa;
segunda, a educação processa-se no corpo todo e não apenas na cabeça dos alunos.
Assim, advogamos o princípio de que a educação é muito mais um fenômeno
humano, uma experiência profundamente humana do que um ato pedagógico na
transmissão de um determinado conteúdo programático. Melhor dizendo, nas palavras de
Rezende (1990):
Todos os indivíduos como os grupos, a família e a sociedade, a história e o
mundo, estão implicados na estrutura do fenômeno educacional (...).

E a educação nos parece, desde logo, como sendo o fenômeno da aprendizagem


da cultura. (p.46)

A tradição educativa positivista, hegemônica ainda hoje em nossas escolas,


advoga uma educação racional, abstrata, individualizante, em que os educandos evoluem
por suas próprias potencialidades. Entenda-se ainda potencialidade como capacidade de
memorização dos conteúdos já ministrados e definidos, numa ênfase à idéia, ao privilégio
cognitivo, em detrimento do corpo como um todo. Esse modelo favorece a perpetuação
dos corpos indiferentes analisados anteriormente.
Advogar uma educação corporal é lutar pelo princípio de uma aprendizagem
humana e humanizante, em que, em sua complexidade estrutural, o homem pode ser
fisiológico, biológico, psicológico e antropológico. Só que o corpo do homem não é um
simples corpo, mas necessariamente um corpo humano, que só é compreensível através
de sua integração na estrutura social. Daí a importância do alerta de Rezende (1990) em
sua crítica tanto ás teorias liberais (as comportamentalistas que reduzem o educando a
menos que homem, e as tecnocráticas, que o reduzem a super-homem) quanto às teorias
sociológicas e economicistas da aprendizagem, por insistirem na dimensão
socioeconômica dos indivíduos, mas sem evitar o reducionismo sociológico e o
economicismo.
É necessária uma visão estrutural do complexo educativo na relação de
aprendizagem. Daí nossa opção pela leitura fenomenológica do ato educativo, por
entendermos ser a mais adequada. Argumentando melhor, nas palavras de Rezende
(1990):

Ora, assim como o homem não é só animal nem só razão, ele não é, tampouco,
nem só individual sem só social. Como dissemos, a estrutura é a noção-chave de
que a fenomenologia lança mão para mostrar a complexidade semântica do
fenômeno humano com o qual se relaciona o da aprendizagem. Para a
fenomenologia, não há aprendizagem humana enquanto esta é reduzida em
função do paradigma proposto, animal, mecânico, sociológico, econômico,
ideológico. E se falamos de reducionismo é exatamente para dizer que, embora
todas essas abordagens possam ter uma importante contribuição a dar, esta
última é modificada de modo profundo quando se integra na estrutura global do
fenômeno humano (p.50).

Reivindicar a leitura fenomenológica para a educação do fenômeno corpo é falar


de uma aprendizagem humana, é aprender de maneira humana a ser homem, a existir
como homem. Aí estaremos falando de uma aprendizagem significativa. Mas, como o
sentido das palavras não está nas palavras, mas sim nas pessoas, o que seria uma
aprendizagem significativa?
A aprendizagem significativa, na relação-interação professor-aluno, supõe um
discurso pedagógico que busca a constatação, a compreensão, a interpretação e a
projeção da realidade. Sempre é oportuno lembrar que na constatação o desvelamento
nunca é total, e que na projeção está implícita a resposta de questões tipo: Para que
fazer? Para quem fazer? A aprendizagem significativa, assim encarada, supera o conceito
de educação apenas como processo, como nos alerta Rezende (1990):

A ênfase no processo, na educação como processo tão-somente, já significa uma


passagem da teoria à práxis, e o reconhecimento de que há sentido na ação. No
entanto, a redução da história e da educação a um simples processo pode traduzir
tão-somente uma atitude pragmática, isto é, uma concessão ao pragmatismo. (...)
Ver apenas como as coisas procedem pode ser uma maneira insuficiente e
inadequada de compreender a gênese do sentido. (p.55)

A corporeidade é, existe, e através da cultura ela possui significado. Daí a


constatação de que a relação corpo-educação, por meio da aprendizagem, significa
aprendizagem da cultura – dando ênfase aos sentidos dos acontecimentos -, e
aprendizagem da história – enfatizando aqui a relevância das ações humanas. Corpo que
se educa é corpo humano que aprende a fazer a história fazendo cultura.
A conscientização corporal, visada pela educação na proposta de uma atitude
fenomenológica, é ao mesmo tempo pessoal, política, cultural e histórica, pois essas
dimensões representam a estrutura do fenômeno humano sem reduzi-lo a nenhum de
seus elementos.

Corpo e educação motora

Estamos desde o início de nosso trabalho, propondo alterações no olhar e no


conhecer corporeidade. Em todos os momentos, deixamos claro que o problema não é
mudar nomes, e sim mudar atitudes em relação ao trabalho corporal. Mas a mudança de
atitude exige o grafar de palavras que revelam o comprometimento da força dos novos
conceitos.
Nesse sentido, a primeira batalha a ser enfrentada é a substituição do nome da
tradicional disciplina educação física na escola, por educação motora. Por que essa
proposta? Quais as consequências da mudança?
A educação física, tradicional disciplina curricular nas escolas, revela uma
concepção de homem dualista, e sua função deveria se esgotar no trato do corpo-objeto,
melhorando seu rendimento, disciplinando seus gestos, adestrando suas ações,
contribuindo para a eficiência da mecânica do movimento. Portanto, há um
comprometimento com a visão clássica dicotômica entre espírito e matéria, traduzida na
escola de hoje entre mente e corpo, entre cognição e motor.
A educação física, assim concebida, revela toda a sua tradição cultural, carrega
todos os signos tatuados em sua trajetória história, estando, portanto, com seu corpo
atravessado por marcas, por estigmas que deverão ser removidos na transcendência
epistemológica de novos olhares-conhecimentos. Não há como compatibilizar substâncias
diferentes. Na caminhada para novos paradigmas, os paradigmas anteriores deixam de
ter valor hegemônico.
Insistimos: não há a necessidade de negarmos a educação física até aqui
vivenciada; somos impelidos, entre outras razões, pelos argumentos apresentados nos
itens anteriores, a transcender o conceito de educação física; daí a adoção de uma escrita
comprometida com o novo olhar-conhecer.
Já o termo educação motora, como está sendo vivenciado em algumas
universidades brasileiras, e em especial no Departamento de Educação Motora da
Faculdade de Educação Física (que futuramente poderá ser identificada, por exemplo,
como Instituto das Ciências da Motricidade Humana) da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), carrega significados que nos remetem à dimensão total do homem,
com a preocupação centrada na corporeidade do corpo-sujeito.
Educação motora seria, então, o ramo pedagógico das ciências motricidade
humana que se preocuparia em educar aquilo que se faz mover, educar a motricidade,
educar a corporeidade, nomes todos diferentes pela nossa história classificatória e
definitória; educar, em última análise, o próprio homem.
Como isso seria feito? Mediante a ação de ensinar, como disciplina curricular no
ensino formal, ou mesmo como relações corporais de aprendizagem, independentes da
institucionalização formal do Estado.
Como impulso inicial para essa transformação, valem as dicas de Regis de Morais
(1993) aos colegas profissionais que militam com o fenômeno corporeidade.
Em primeiro lugar, diante dos profissionais da corporeidade, descortina-se a
alternativa do trabalho corporal como simples coisa bruta que se adestra, simplificando
possíveis problemas que possam ocorrer no desenvolvimento motor. Essa ideia de corpo
complicado que deve ser simplificado para um estudo detalhado faz parte da tradição da
educação física escolar.
Em segundo lugar, é possível observar, por meio de um olhar-conhecer atento,
sinais evidentes do conceito de sermos um corpo como forma de estar-no-mundo sensível
e inteligentemente, donde a necessidade do início de um diálogo de aprendizagem com o
corpo próprio e o alheio. Aqui se insere a proposta da educação motora.
A educação motora, ora proposta, não nega a educação física no interior da
escola, nem suas vitórias ou suas derrotas, seus avanços ou retrocessos. Seu objetivo é
transcender o já conquistado.
Aplicando-se o conceito de educação motora como o ramo pedagógico das
ciências da motricidade humana, visto anteriormente, ao profissional da área convém
relembrar Regis de Morais (1993):
O estudioso da corporeidade tem que se interessar, em primeiro lugar, pelo corpo-
objeto que interessa a anatomistas, fisiologistas e médicos. É esse corpo, objeto
de conhecimento (corpo-problema), que se revela a nossos sentidos em sua
globalidade; todavia, “a posição absoluta de um só objeto é a morte da
consciência”, no sentido de paralisação de tudo o que o envolve, a ele se liga,
explica-o e ultrapassa-o. Eis por que a nossa reflexão tem que se aprofundar na
direção do corpo-sujeito (vivido, existencializado de forma individual e subjetiva);
isto é: o corpo que sou é minha realidade radical porque coincide comigo mesmo;
existencializo-o como uma aventura que sou e que é não repetível; mas um corpo
que observo em mim (ou tenho como corpo-objeto), este é uma realidade radicada
em aparências, dados e situações, tanto quanto os corpos alheios que observo ou
estudo. (p.86)

Corpo educação motora, a possível contribuição pedagógica consistente desse


binômio à conscientização corporal na estrutura do fenômeno humano, mais uma vez
lembrada como sendo, ao mesmo tempo, pessoal, política, cultural e histórica.

O corpo se despedindo

Nosso trabalho não se esgota no processo; ele remete a projetos. Ele possui um
caráter intrínseco de apontar pistas de como fazer, por que fazer, mas também se
preocupa com a dimensão extrínseca do para que fazer, do para quem fazer.
A proposta é tópica quando a preocupação volta-se para a análise da coerência
interna, no rigor do processo, e é ao mesmo tempo utópica quando olhar-conhecer centra
seu foco no projeto, nas interfaces da estrutura do fenômeno humano.
O olhar panorâmico do corpo presente - pressente deve produzir conhecimentos
aplicáveis no processo e, dialeticamente, deve ser modificado pelos projetos de vida do
ser-corpo-que-olha.
Uma última justificativa faz-se necessária: por que privilegiamos, ao analisar o
corpo, o ato de ver, de olhar? Respondemos recorrendo a Teilhard de Chardin (1988)
que, de forma mais adequada, já justificou isso:
Ver. Poder-se-ia-dizer que toda a Vida consiste nisso – se não finalmente, ao
menos essencialmente. Ser mais é unir-se cada vez mais: tais serão o resumo e a
própria conclusão desta obra. Mas, como teremos oportunidade de constatar, a
unidade só aumenta sustentada por um crescimento de consciência, isto é, de
visão. Eis por que, indubitavelmente, a história do mundo vivo se resume na
elaboração de olhos cada vez mais perfeitos no seio de um Cosmo, onde é
possível discernir cada vez mais. (p.25)

O corpo que é e que esteve presente na produção deste escrito agora se retira,
na sua existencialidade, para outro lugar no tempo e no espaço, ao mesmo tempo em que
permanece no sensível da escrita grafada no papel e nas possíveis tatuagens que esta
realizará nos corpos leitores.
Puro mistério, envolto pela complexidade de ser possível apenas na condição de
sermos corpos e estarmos vivos.
Vivas à vida do homem na busca de sua humanização!

Bibliografia

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CHARDIN, Teilhard de. O fenômeno humano. São Paulo, Cultrix, 1988.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: História das violências nas prisões. Petrópolis, Vozes, 1977.

FREIRE, João B. “Rumo ao universo...do corpo”. In: Vitor M. Oliveira. Fundamentos pedagógicos
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