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INSTITUTO ELPÍDIO DONIZETTI - IED

Thiago César Carvalho dos Santos

LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO STF NA INTERVENÇÃO EM


POLÍTICAS PÚBLICAS: ANÁLISE A PARTIR DOS CASOS DE DECLARAÇÃO
DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL NA JURISPRUDÊNCIA

Belo Horizonte
2019
Thiago César Carvalho dos Santos

LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO STF NA INTERVENÇÃO EM


POLÍTICAS PÚBLICAS: ANÁLISE A PARTIR DOS CASOS DE DECLARAÇÃO
DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL NA JURISPRUDÊNCIA

Artigo apresentada junto ao Curso de Pós-


Graduação em Direito Constitucional do Instituto
Elpídio Donizetti, como requisito parcial para
obtenção de especialista em Direito
Constitucional.

Belo Horizonte
2019
RESUMO

Após a declaração do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) pelo STF em sede de


liminar na ADPF 347/DF, esse órgão foi alvos de diversas críticas no tocante ao potencial
risco de ofensa ao princípio da separação dos poderes e de ausência de legitimidade
democrática do Poder Judiciário para por em ato o projeto de intervenção que se pretende.
Esse artigo se debruçar sobre as recentes discussões acerca da legitimidade política e
institucional do Poder Judiciário, mais especificamente o STF, diante da construção de
diretrizes para políticas públicas. A metodologia utilizada foi a de investigação crítico-
dialética, realizando-se uma pesquisa qualitativa dos pontos chave das discussões para a
construção do argumento teórico. Conclui-se pela notável legitimidade não só constitucional
mas política do STF para coordenar essa intervenção nas políticas públicas, quando
identificada uma realidade estrutural de violação massiva dos direitos fundamentais previstos
na Constituição e patente omissão dos demais poderes na elaboração de propostas eficientes
para solucioná-la. Esse salto no ativismo judicial se mostra legítimo essencialmente em razão
da função contramajoritária do Poder Judiciário, especialmente se considerando a
impopularidade e sub-representação parlamentar dos encarcerados, tido como uma minoria
socialmente desprezada.

Palavras-chave: Ativismo judicial. Legitimidade. Poder Judiciário. Estado de Coisas


Inconstitucional. Desafio contramajoritário.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 4

2 JUDICIALIZAÇÃO E ATIVISMO JUDICIAL EM VOGA ............................................ 6

3 LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICO-CONSTITUCIONAL DO PODER


JUDICIÁRIO INTERVENCIONISTA .................................................................................. 8

4 INTERVENÇÃO ESTRUTURAL DO STF NO SISTEMA CARCERÁRIO


BRASILEIRO ......................................................................................................................... 11

5 CONCLUSÃO...................................................................................................................... 13

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 15
4

1 INTRODUÇÃO

Em 2015 o Supremo Tribunal Federal (STF) se viu interpelado a se manifestar acerca


da realidade de patente falência do sistema prisional brasileiro, o qual sofre com reiteradas
ofensas à dignidade e aos direitos humanos dos encarcerados. A Ação de Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347/DF, proposta perante o STF pelo Partido
Socialismo e Liberdade (PSOL) aponta as uma multiplicidade de ações e omissões dos
Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal no tocante ao sistema carcerário
do país.
Já em 1997, relatório da Comissão Interamericana de Direito Humanos (CIDH) acerca
da situação dos direitos humanos no Brasil já apontava um panorama de extrema falência do
sistema penitenciário do país, com o desrespeito à dignidade dos encarcerados. Dentre os
déficits apresentados, o principal fator crítico em relação ao cenário é a superpopulação
carcerária. São acrescentadas, ainda, as seguintes falhas: condições higiênicas precárias e
deficientes; condições materiais precárias e deficientes de higiene, saúde, alimentação,
vestuário e acomodações; falta de assistência jurídica, médica e religiosa; lentidão da
tramitação dos benefícios legais e complexidade dos processos judiciais para alcançá-los;
restrições ao exercício do direito de visitas de cônjuges ou familiares; ausência de
implementação de oportunidade de reabilitação, como trabalho e recreação; falta de estrutura
interna nos presídios para a divisão dos presos de acordo com a natureza do delito cometido e
com a idade; utilização de “celas fortes” ou “solitárias” como meio de punição por faltas
disciplinares; tratamentos cruéis, desumanos e prepotentes por parte dos agentes
penitenciários, que se traduzem em torturas e corrupção, dentre outras violações (COMISSÃO
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1997).
De acordo com os dados divulgados pelo Departamento Penitenciário Nacional em
2016, com o total de 600 mil encarcerados no ano de 20141, a população carcerária do Brasil é
a quarta maior do mundo em valores absolutos, ficando atrás apenas dos EUA, China e
Rússia. Proporcionalmente, o Brasil se encontra em sexto lugar dentre os países com maior
população carcerária por 100 mil habitantes (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Departamento
Penitenciário Nacional, 2016). A taxa mundial de encarceramento é de 144 presos para cada
grupo de 100 mil habitantes, enquanto a brasileira é de 306 presos (MINISTÉRIO DA
JUSTIÇA. Departamento Penitenciário Nacional, 2016).
O discurso político defende que as condições precárias das prisões são reflexos do
elevado crescimento da populacional nas últimas décadas, em especial dos presos provisórios
e das prisões relacionadas ao tráfico de drogas. O relatório Inforpen menciona que a
superlotação dos estabelecimentos prisionais “afeta diretamente a possibilidade de
implementação de políticas adequadas” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Departamento
Penitenciário Nacional, 2016, p. 16). Assim, a taxa de ocupação prisional no Brasil – ou seja,
a porcentagem de presos pelo número de vagas disponíveis – é computada em 167% no mês
de dezembro de 2014. Para se atingir um nível de normalidade seria, então, necessário
aumentar em mais de 50% o número de vagas existentes, o que em números absolutos
significaria construir 250.318 novas vagas, valores que correspondem, aproximadamente, ao
número de presos provisórios hoje no país.
A superlotação dos espaços, tida como principal causa das condições degradantes e
subumanas das prisões e penitenciárias do país, é evidenciada constantemente na mídia em

1
Insta apontar que esses foram os últimos relatórios divulgados pelo Ministério da Justiça, tendo como base
dados decolhidos no sistema penitenciário do país no ano de 2014 apenas. Mais recentemente, o Conselho
Nacional de Justica (CNJ) apresentou uma nova versão do Banco Nacional de Monitoramento de Presos (BNMP
2.0), o qual aponta, em dados parciais que em 2018 existiam 602.217 presos no Brasil, dentre os quais, 95% são
homens e 5% são mulheres. (CNJ..., 2018).
5

especial nas divulgações dos resultados de rebeliões violentas, como foi o caso das revoltas da
Penitenciária de Alcaçuz (RN), Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (RR) e em várias
unidades prisionais de Manaus (AM) no início do ano de 2017. Tais circunstâncias concretas,
evidenciadas reiteradamente no sistema carcerário nacional, revelam um painel de violação
massiva e persistente de direitos fundamentais dentro das penitenciárias e prisões brasileiras.
Assim, o PSOL ajuizou no dia 27/05/2015 a ADPF que recebeu o número 347/DF,
mediante representação dos advogados integrantes da Clínica de Direitos Fundamentais da
UERJ – Clínica UERJ Direitos – e distribuída à relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello,
pugnando o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) do sistema prisional
do país e a adoção de providências estruturais em face de lesões a preceitos fundamentais dos
presos.
O ECI trata-se de uma tese constitucional desenvolvida e aplicada pela Corte
Constitucional da Colômbia como instrumento jurídico de correção de reiteradas violações
aos direitos fundamentais constitucionais, decorrente de atos comissivos e omissivos
praticados por diferentes autoridades públicas, agravado pela inércia continuada dessas para a
solução dos problemas sociais.
A declaração do ECI abre espaço para intervenção judicial, por parte da Corte
Constitucional ou no caso brasileiro o STF, nos procedimentos de elaboração e
implementação de políticas públicas, face um quadro de violações generalizadas, contínuas e
sistemáticas de direitos humanos fundamentais. Ou seja, o judiciário passa a ser coordenador
de um plano de ação para correção das falhas estruturais e falências das políticas já existentes,
importando em medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária.
Trata-se de uma tutela estrutural, conforme explica Carlos Alexandre de Azevedo Campos
(2015c).
Em sede de decisão liminar na ADPF 347/DF, o Supremo Tribunal Federal
efetivamente declarou o ECI do sistema penitenciário brasileiro, determinado dentre as
medidas cautelares: para os juízes e tribunais realizarem audiências de custódia no prazo
máximo de 24 horas após a prisão em flagrante; e para a União liberar as verbas do Fundo
Penitenciário Nacional (FUPEN), abstendo-se de realizar novos contingenciamentos. Ainda,
foi concedida cautelar de ofício, por maioria, proposta pelo Ministro Roberto Barroso, para
determinar à União e aos Estados, e especificamente ao Estado de São Paulo, que
encaminhem ao STF informações sobre seus respectivos sistemas penitenciários.
É consenso que nos últimos anos, o STF vem desempenhando um papel cada vez mais
ativo na vida institucional brasileira, atuando cada vez mais de modo proativo e específico na
interpretação constitucional e atingindo um patamar de poder político (BARROSO, 2012).
Desde os instrumentos de controle de constitucionalidade até a imposição de condutas e/ou
abstenções ao poder público acerca de políticas públicas, o Poder Judiciário tem tomado
frente como protagonista na busca pela efetivação dos preceitos constitucionais e dos direitos
fundamentais.
Diante de um conceito jurídico tão aberto, quanto o Estado de Coisas Inconstitucional,
começa-se a discutir os limites de legitimidade dessa nova e mais abrangente forma de
ativismo jurisdicional. A intervenção do Poder Judiciário de forma tão extensa gera tensões
para com os Poderes Legislativo e Executivo. Seria o Poder Judiciário habilitado e legítimo
para interferir e determinar a atuação dos demais poderes laureados pela supremacia do voto
popular? Não estaria o STF indo de encontro com o princípio da separação dos poderes?
Nesse sentido, o presente artigo se debruça sobre a discussão sobre a legitimidade
política e institucional do Poder Judiciário, mais especificamente o STF, diante da construção
de diretrizes para políticas públicas após a declaração do ECI. Utilizou-se de uma
metodologia de investigação crítico-dialética, por meio de uma pesquisa qualitativa dos
6

pontos por meio de uma coleta de dados bibliográficos e a partir da análise destes, a
construção do argumento teórico.
Foram desenvolvidas as análises teóricas a partir dos eixos da realidade do ativismo
judicial no país e do fundamento da legitimidade do Judiciário, em especial na sua
intervenção nos atos dos demais poderes. Por fim, analisa-se como a atuação constitucional
desse Poder pode ser verificada no recente caso de declaração do Estado de Coisas
Inconstitucional pelo STF.

2 JUDICIALIZAÇÃO E ATIVISMO JUDICIAL EM VOGA

O final da Segunda Guerra Mundial marca o início de um movimento que


reconfigurou os paradigmas do direito constitucional, denominado neoconstitucionalismo.
Foram instituídos novos marcos teóricos como “a supremacia e a força normativa da
Constituição, a expansão da jurisdição constitucional, a dogmática interpretativa a partir dos
princípios e os métodos de ponderação e argumentação para solucionar a colisão de normas
fundamentais”. (FONSECA; MARCHESI, 2014).
Essa mudança de paradigma implicou em um avanço da justiça constitucional em
detrimento da política chamada majoritária, exercida pelos Poderes Legislativo e Executivo.
Assim, o Judiciário acabou por absorver um número significativo de demandas, assumindo
assim um papel político na formação do Estado Democrático de Direito (EDD). Esse
fenômeno, chamado judicialização, trata de “desembocar no Judiciário, em maior medida do
que já se havia constatado em momento anterior, de questões da vida social dos cidadãos, da
vida política da nação, de relevância religiosa, científica, moral, etc.” (FERNANDES, 2010).
Paralelamente, uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização
dos valores e fins constitucionais, implicou em um segundo fenômeno, verificado a partir de
uma maior interferência desse Poder na atuação dos demais poderes, denominado ativismo
judicial. (BARROSO, 2012).
Assim, o ativismo judicial se difere da judicialização, sendo que esta dá conta da
transferência de poder para as instâncias judiciais, em prejuízo das instâncias políticas
tradicionais (FERNANDES, 2010). Por sua vez, o ativismo implica na prática de
interpretação e aplicação da Constituição de maneira expandida e com maiores efeitos na vida
social por meio Judiciário (BARROSO, 2012).
O ministro do STF Luís Roberto Barroso (2012) aponta três motivos que implicaram
do fenômeno da judicialização no Brasil. O primeiro seria a redemocratização pós Ditadura
militar, que culminou com a promulgação da Constituição de 1988, com a restituição das
garantias da magistratura. Assim, o Poder Judiciário perdeu seu caráter de um departamento
técnico-especializado, que atuava apenas como “a boca da lei”, para assumir um papel de
poder político. Esse movimento, além de garantir uma expansão da função jurisdicional
inclusive em confronto com os outros poderes, também aumentou a demanda por Justiça no
país.
A segunda causa apontada por Barroso (2012) seria a constitucionalização abrangente.
A Constituição de 1988 tem caráter analítico, dogmático, programático, dirigente e de rigidez,
em desconfiança para com o Legislativo. Ela trás para si diversas matérias que outrora
ficavam a cargo do processo político majoritário e da legislação ordinária. Nesse sentido, o
Judiciário como detentor do poder de interpretar e aplicar a Constituição acaba recepcionando
demandas com conteúdos mais complexos, permitindo maior atuação concreta e intervenção
em políticas públicas, de modo a assegurar os direitos constitucionais previstos.
Por fim, aponta-se a implementação de sistema brasileiro de controle de
constitucionalidade, considerado um dos mais abrangentes do mundo. O modelo brasileiro é
7

considerado eclético, eis que permite uma atuação de controle de constitucionalidade por
parte do judiciário de maneira difusa ou concentrada. O controle difuso, ou incidental,
corresponde à possibilidade de análise de aderência constitucional de um ato do poder público
em um caso concreto. Assim, qualquer juiz ou tribunal pode deixar de aplicar determinado
dispositivo ou invalidar dado ato considerado inconstitucional. Por outro lado, o controle por
ação direta, concentrado, é exercido por um tribunal constitucional, no nosso caso o STF,
mediante a submissão de determinadas matérias ao crivo interpretativo da constituição. A
Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental é um dos exemplos de exercício do
controle de constitucionalidade concentrado.
Assim, o desenho institucional vigente no país garante ao Poder Judiciário um papel
mais ativo por meio da sua incumbência de garantir a aplicação e sustentação da ordem
constitucional. Deste modo, tem-se que “a judicialização não decorre da vontade do
Judiciário, mas sim do constituinte” (BARROSO, 2012).
Outrossim, temos a evidência do chamado ativismo judicial, a partir de “uma
participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins
constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois poderes”
(BARROSO, 2012). Nesse sentido, com o objetivo de garantir maior efetivação dos preceitos
constitucionais, o Poder Judiciário toma uma postura mais intervencionista e atuante na
realidade concreta, para além da legalidade estrita.
Barroso aponta que uma postura ativista envolvem diversas condutas, das quais cita:

(i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas


em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a
declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com
base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da
Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público,
notadamente em matéria de políticas públicas. (BARROSO, 2012).

O ativismo se opõe à uma contuda de autocontenção judicial, percebida como


estratégias de redução e freamento pelo próprio Judiciário de sua intervenção nos atos dos
demais Poderes. Nessa pespectiva, o Judiciário atua em uma interpretação mais restritiva dos
direitos constitucionais e do seu âmbito de atuação, de modo a garantir o preceito da
separação de poderes e a definição de competências no Estado de Direito, enquanto no
ativismo, busca-se extrair ao máximo o potencial do texto constitucional, sem contudo
ultrapassar o limite da criação livre do Direito.
É nesse diapasão que sugem as inúmeras críticas contra essa postura do Judiciário ao
sanar uma omissão legislativa, invalidar uma lei inconstitucional ou mesmo promover
efetividade de políticas públicas, como no caso de declaração do ECI pelo STF. Os debates,
que seram discutidos de forma mais detida no próximo tópico, apontam tais atitudes como
verdadeiros riscos à legitimidade democrática e de politização da justiça, eis que os juízes não
foram batizados pela soberania da vontade popular. Basta dizer que essa suposta ofensa ao
princípio da separação dos poderes por parte de um Judiciário mais proativo nada mais é que
a evidência da chamada dificuldade contramajoritária. O Poder Judiciário assume a
incumbência de garantia da postura majoritária, contra as minorias, de modo a assegurar a
supremazia dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais.
Deste modo, “o ativismo judicial não pode ser considerado antidemocrático apenas por
ser contramajoritário, pois os Tribunais podem dar voz às minorias ou solucionar graves
problemas decorrentes da ausência de consenso político do governo” (LUCAS apud
FONSECA; MARCHESI, 2014).
8

3 LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICO-CONSTITUCIONAL DO PODER


JUDICIÁRIO INTERVENCIONISTA

Especialmente quando se encontra diante de um caso de declaração de


inconstitucionalidade de uma lei, ou quando cassa ou impede a realização de um determinado
ato do Poder Público, o Poder Judiciário se vê como alvo de críticas acerca de um déficit de
legitimação democrática da jurisdição. A Constituição brasileira prevê um sistema de
recrutamento da magistratura a partir de concurso público ou pela nomeação do chefe do
Poder Executivo com participação do Legislativo, de modo que seus membros não se tornam
representantes a partir do sufrágio universal. Argumenta-se que os juízes, não eleitos
diretamente pelo povo, não seriam portadores de legitimidade para revisar os atos daqueles
Poderes investidos pela soberania popular.
O artigo 1º da Constituição Federal estabelece, como princípio fundamental do EDD, a
soberania popular, prevendo em seu parágrafo primeiro: “Todo o poder emana do povo, que o
exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Sendo assim, dentro da democracia participativa instituída, o poder emana do povo, que o
exerce por meio do voto ou pela via direta. Este princípio se faz claramente efetivo no âmbito
dos Poderes Executivo e Legislativo. No entanto, importa desde já esclarecer que, ainda que
seus representantes não sejam eleitos, o Poder Judiciário não é desprovido de legitimidade
democrática para exercer o poder investido por ele.
Assim, são vários os argumentos teóricos acerca da legitimidade deste poder estatal. O
primeiro e mais simplista dos argumentos seria com base na simples previsão constitucional
para a investidura no cargo de magistratura através de concurso publico de provas e títulos.
Isso implica que o constituinte, independente e expressivo máximo da soberania popular, ao
prever a forma de ingresso no cargo da magistratura, conferir-lhe-ia legitimação democrática
(CAJAEIRAS; PEREIRA; SILVA, 2009). Contudo, este argumento é facilmente rebatido por
Marques de Lima, citado por Machado Júnior (2006): "Dizer que o fundamento é a CF não
justifica plenamente a legitimidade. Pois se bastasse ela, qualquer órgão ou governo
(despótico, democrático, autocrático, tirano), a quem atribuíra poderes constitucionais, seria
legítimo".
Outra tese é a do juiz paulista Luiz Flávio Gomes, na qual a legitimidade dentro de um
Estado Democrático de Direito não se assenta apenas sob voto popular, eis que esse não se
reduz à democracia representativa. Assim, tem-se duas formas de legitimação democrática
dentro do estado moderno: a democrática representativa e a legal ou formal.

O Poder Constituinte (soberano) concebeu duas formas de legitimação: a


representativa (típica dos altos cargos políticos) e a legal (inerente à função
jurisdicional). A legitimação democrática legal, racional ou formal dos juízes,
portanto, em nada se confunde com a legitimação democrática representativa.
Aquela reside na vinculação do juiz à lei e à Constituição, que são elaboradas pelo
Poder Político. Esta reside na eleição direta pelo povo dos seus representantes, que
ocuparão os principais postos políticos. Os juízes, portanto, de acordo com o sistema
adotado pelos Constituintes, não só não serão eleitos diretamente pelo povo, senão
que estão proibidos de exercer qualquer atividade político-partidária, o que significa
que não podem sequer desejar eleição direta (GOMES apud DENZ, 2011).

Isto é, será legítimo o exercício do poder pelo Estado quando for considerado válido
pelo titular do poder político – o povo. A partir deste entendimento, estaria o juiz restrito à
legalidade do processo, a uma atuação conforme a lei e à Constituição. Desta forma, estaria o
juiz atuando de forma desinteressada, imparcial e superior entre as partes.
9

Outra forte premissa é desenvolvida por Farrajoli, citado por Cláudia Barbosa (2006),
adverte que a legitimidade dos membros da magistratura se firma no seu papel de garantir os
direitos fundamentais constitucionalmente previstos:

É nessa sujeição do juiz à constituição, e portanto no seu papel de garantir os


direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos, que reside o principal
fundamento atual da legitimação da jurisdição e da independência do Poder
Judiciário frente aos Poderes Legislativo e Executivo. (FARRAJOLI, 1997 apud
BARBOSA, 2002b, p. 7).

Sobre a missão constitucional do Poder Judiciário, pondera Machado Júnior:

Importante aqui destacar a missão constitucional do Poder Judiciário em


implementar os direitos fundamentais, especialmente os de segunda dimensão
(direitos econômicos, sociais e culturais), atuando nestes casos como agente
transformador da realidade, forçando o Estado a agir como provedor das
necessidades básicas e essenciais da coletividade.
Outrossim, será legítima a decisão judicial e por sua vez a própria existência do
Poder Judiciário, na medida em que sejam assegurados os direitos subjetivos e a
eficácia constitucional. (MACHADO JÚNIOR, 2006).

Deste modo, os juízes e Tribunais não se limitam a resolver conflitos subjetivos, mas
assumem a função de preservar a eficácia e a supremacia constitucional, especialmente
quando da solução dos confrontos entre atos infraconstitucionais e a Constituição. Nas
palavras de Roberto Ferraz, a “solução para o aparente conflito veio da conscientização de
que a Constituição de um País se encontra acima dos três poderes, cabendo, porém, ao
Judiciário a função de, com independência e autonomia, explicitar a vontade constitucional”
(FERRAZ, 2004).
Outro importante argumento seria a legitimidade do exercício da função jurisdicional a
partir da participação efetiva do jurisdicionado na construção das decisões. A moderna
concepção do contraditório e da ampla defesa, garante ao jurisdicionado papel central no
provimento final jurisdicional, qual seja, a sentença. Assim, garantindo a atuação direta e
influente das partes na construção da decisão judicial, esta passa a ser imposta pela
legitimidade e não pela autoridade.2
É o que expõe Machado Júnior:

O Estado assumiu para si a tarefa de solução dos conflitos sociais, concedendo aos
litigantes o direito e poder de provocar e participar do exercício tal função, mediante
o direito de ação (art.5º, XXXV, da CF/88), através de uma forma previamente
estabelecida (devido processo legal – art.5º, LIV, da CF/88).
Aqui, importa esclarecer que, quanto maior for a participação do jurisdicionado no
processo de formulação da decisão jurisdicional, mais legítima esta será, daí serem
inafastáveis o contraditório e a ampla defesa, com todos os recursos a ela inerentes
(art.5º, LV, da CF/88). (MACHADO JÚNIOR, 2006).

2
Não é intenção deste artigo entrar em pormenores da teoria do contraditório participativo. Mas merece as
considerações de Marcelo Pereira de Almeida (2012, p. 487-488). “Na atualidade, o princípio do contraditório
vai além da mera ciência dos atos processuais para manifestação e possibilidade de impugnar eficazmente o que
foi apresentado pela parte contrária. A visão de contraditório deve permitir a participação dos interessados na
construção da decisão judicial. Esse contraditório participativo se caracteriza pela possibilidade dos interessados
efetuarem intervenções eficientes no processo e exercer amplamente as prerrogativas inerentes ao direito de
defesa e que preservem o direito de discutir os efeitos da sentença que tenha sido produzida sem sua plena
participação. Assim, o princípio do contraditório adquiriu um caráter humanístico muito acentuado, sendo,
provavelmente, o princípio mais importante do processo, pois impõe que as partes sejam postas em condições de,
efetivamente, influenciar as decisões judiciais.”
10

Nesse sentido, dentro da dimensão fundante do poder, entende-se que a participação


popular ser de extrema necessidade dentro de um contexto evoluído de democracia. Deste
modo, o Judiciário seria, por excelência, um meio de participação popular, e por meio do
contraditório, dentro da perspectiva de um processo constitucional. Essa é uma função de
extrema importancia dentro de uma democracia, vez que tem papel central na efetivação do
direito e da justiça.
Por fim, o principal critério de legitimação do poder exercido pelo Judiciário que
importa a esse estudo é o caráter contramajoritário da atividade jurisdicional. E para entendê-
lo, é necessário voltarmos ao conceito de Estado Democrático de Direito (EDD).
O EDD é composto por dois ideais: o constitucionalismo, e a democracia. Conforme
explica Barroso (2012): “Constitucionalismo significa poder limitado e respeito aos direitos
fundamentais. O Estado de direito como expressão da razão. Já democracia signfica soberania
popular, governo do povo. O poder fundado na vontade da maioria.”.
Se levassemos a legitimidade do exercício do poder pelo Estado apenas a partir da
noção de democracia – uma democracia representativa, no Estado moderno-contemporâneo –
isso implicaria na imposição de um governo das maiorias.

Não se pode conceber a democracia unicamente como vontade da maioria. O


conceito que predomina atualmente é o de pluralismo, não um unitarismo da
maioria. Com base nessa falsa premissa, propaga-se a idéia, que quase chega a ser
considerada por muitos como um dogma, de que a impugnação de atos do Poder
Público por um único cidadão é ilegítima e não corresponde ao conceito de
democracia. O que essa tese preconiza é exatamente a submissão à vontade da
maioria. Eis aqui ao que se pretende reduzir a democracia: “maioria” (DENZ, 2011).

Sendo assim, o constitucionalismo surge como mecanismo de garantia dos direitos das
minorias, sendo o Judiciário o titular por excelência da função de assegurar a efetividade de
tais direitos.

Na democracia, governam as maiorias. Elas fazem as leis, elas escolhem os


governantes. Estes são comprometidos com as maiorias que os elegeram e as elas
devem agradar. As minorias não têm força. Não fazem leis nem designam agentes
públicos, políticos ou administrativos. Sua única proteção está no Judiciário. Este
não tem compromisso com a maioria. Não precisa agradá-la, nem cortejá-la. Os
membros do Judiciário não são eleitos pelo povo. Não são transitórios, não são
periódicos. Sua investidura é vitalícia. Os magistrados não representam a maioria.
São a expressão da consciência jurídica nacional. Seu único compromisso é com o
direito, com a Constituição e as leis; com os princípios jurídicos encampados pela
Constituição, e os por ela repelidos. São dotados de condições objetivas de
independência, para serem imparciais; quer dizer: para não serem levados a decidir a
favor da parte mais forte, num determinado litígio. Assim é em todos os países
democráticos, que podem ser qualificados como estados de direito. (ATALIBA apud
TAGATA; CARRATO, 2008).

Isso sugere que submeter os detentores do poder jurisdicional ao crivo da maioria por
meio de eleições implicaria em grandes riscos ao cumprimento do Estado de Direito e à
efetivação dos direitos fundamentais e das minorias, podendo levar a uma ditadura da maioria,
com diversos excessos e abusos dos poderes eleitos.
Ressalta-se que o sistema constitucional democrático, a partir do sistema de checks
and balances, impõe paralelamente à noção de separação dos poderes a necessidade de
controle recíproco das atividadas dos demais poderes. Isso implica que é dever dos Poderes
exercerem limites à atuação dos demais poderes. Rodolfo Viana Pereira (2011) afirma que a
função de controle é merecedora de uma centralidade e onipresença dentro do modelo
11

democrático do estado, no sentido de mitigar o arbítrio que é ínsito de toda atividade de poder
(PEREIRA, 2011). “Constituição e democracia devem dirigir não apenas o modo pelo qual o
ordenamento constitucional regula a formação legítima do poder, mas sobretudo a maneira
pela qual as técnicas de controle asseguram a adequação constitucional do exercício desse
mesmo poder.” (PEREIRA, 2011, p. 29).
Desse modo, é consenso teórico contemporâneo de que a cortes judiciárias seriam as
instituições mais qualificadas para a execução do controle de constitucionalidade, de forma a
garantir um bom funcionamento do processo democrático, conforme afirma John Hart Ely,
citado por Rodolfo Pereira (2011, p. 66). O Poder Judiciário, como salvaguarda e intérprete da
Constituição por excelência, desponta como protagonista na atuação de garantia e controle da
manutenção dos parâmetros constitucionais e garantia da democracia contra as ingerências
dos poderes eleitos.
Importante citar, por fim, que essa função do Judiciário de interferir os atos dos
demais poderes deve ser utilizada com a devida cautela, de modo que esse não tome caminhos
políticos autônomos. O exercício do chamado “poder político dos juízes” impõe-lhes certos
limites e uma submissão aos parâmetros constitucionais. Isso significa que a decisão do
Judiciário, nesse sentido, não é jamais autônoma, e deve corresponder aos ensejos e aos
valores políticos previstos na Constituição.
Tais limites igualmente implicam que não se pode inovar no mundo jurídico a
pretexto, por exemplo, de exercer controle de constitucionalidade, de modo que somente pode
atuar como legislador negativo. A intervenção do Judiciário nos demais atos dos poderes
eleitos deve se restringir ao mínimo, em razão da presunção de constitucionalidade desses
atos.

(...) essa atitude, coerente com a função institucional do Judiciário não corresponde a
uma acomodação e falta de empenho em resolver os reclamos sociais, mas numa
lúcida (e incômoda) atuação dentro dos limites da missão assumida. Pretender atuar
além desses limites equivaleria a autorizar toda e qualquer exorbitância de poderes,
de qualquer pessoa, estivessem no exercício de funções públicas ou privadas.
(FERRAZ, 2004).

4 INTERVENÇÃO ESTRUTURAL DO STF NO SISTEMA CARCERÁRIO


BRASILEIRO

Como já atestado, o Supremo Tribunal Federal declarou, em decisão liminar na ADPF


347/DF, o ECI do sistema penitenciário brasileiro, determinando uma série de medidas
cautelares para mínima efetivação do Estado Democrático de Direito, da Dignidade Humana e
à situação de tortura verificada nos presídios em todos os presídios do Brasil. A declaração do
ECI como modelo de intervenção jurisdicional exportado da jurisprudência colombiana
garante à corte constitucional, no caso o STF, o poder de intervir na estrutura da máquina
pública, de maneira a compor e direcionar um projeto de implementação de políticas públicas
eficazes à solução da situação de inconstitucionalidade.
Dentre as omissões relatadas na impetração e acatadas pelo STF, são mencionadas:

Consoante assevera, os órgãos administrativos olvidam preceitos constitucionais e


legais ao não criarem o número de vagas prisionais suficiente ao tamanho da
população carcerária, de modo a viabilizar condições adequadas ao encarceramento,
à segurança física dos presos, à saúde, à alimentação, à educação, ao trabalho, à
assistência social, ao acesso à jurisdição. A União estaria contingenciando recursos
do Fundo Penitenciário – FUNPEN, deixando de repassá-los aos Estados, apesar de
encontrarem-se disponíveis e serem necessários à melhoria do quadro. O Poder
Judiciário, conforme aduz, não observa os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e
Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, nos quais é
12

previsto o direito à audiência de custódia. Alega que o procedimento poderia reduzir


a superlotação prisional. Sustenta a sistemática ausência de imposição, sem a devida
motivação, de medidas cautelares alternativas à prisão, assim como a definição e
execução da pena sem serem consideradas as condições degradantes das
penitenciárias brasileiras. O Poder Legislativo estaria, influenciado pela mídia e pela
opinião pública, estabelecendo políticas criminais insensíveis ao cenário carcerário,
contribuindo para a superlotação dos presídios e para a falta de segurança na
sociedade. Faz referência à produção de “legislação simbólica”, expressão de
populismo penal. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2016).

É, então, evidenciado o nível estrutural da questão abordada, o qual exige a tomada de


soluções coordenadas por uma corte constitucional, eis que os demais poderes públicos não
conseguiram alcançar por si a elaboração e a implementação de políticas públicas capazes de
modificar o estado de violação de direitos nesses espaços. Exige-se, assim, um ativismo
judicial estrutural por parte do juízo constitucional.
A partir dessa compreensão, segue-se na análise da legitimidade democrático-
constitucional de uma intervenção de tal magnitude no âmbito da atuação tanto do Poder
Executivo, Legislativo e mesmo Judiciário, por parte do STF, a partir dos critérios
anteriormente levantados.
De plano, verifica-se que a atuação do STF se insere dentro da necessidade de fazer-se
cumprir os preceitos constitucionais, de modo que esse age conforme e em atenção à sua
missão de garantir os direitos fundamentais constitucionalmente previstos. As condições em
que são submetidos os presos dentro das penitenciárias e prisões do país, revela uma
suspensão sistêmica do estatuto jurídico do preso enquanto cidadão e a neutralização de seus
direitos básicos e fundamentais representa a própria negação da alteridade no e pelo direito. A
APDF 347/DF, assim elenca uma série de direitos violados cotidianamente dentro desses
estabelecimentos:

[...] o cenário implica a violação de diversos preceitos fundamentais da Constituição


de 1988: o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), a
proibição da tortura, do tratamento desumano ou degradante (artigo 5º, inciso III) e
das sanções cruéis (artigo 5º, inciso XLVII, alínea “e”), assim como o dispositivo
que impõe o cumprimento da pena em estabelecimentos distintos, de acordo com a
natureza do delito, a idade e sexo do apenado (artigo 5º, inciso XLVIII), o que
assegura aos presos o respeito à integridade física e moral (artigo 5º, inciso XLIX) e
o que prevê a presunção de não culpabilidade (artigo 5º, inciso LVII), os direitos
fundamentais à saúde, educação, alimentação apropriada e acesso à Justiça. Articula
com a inobservância de tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados
pelo país – Pacto dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e
outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção
Interamericana de Direitos Humanos. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2016).

Desta forma, nos vemos diante de um painel de violação massiva e persistente de


direitos fundamentais dentro das penitenciárias e prisões brasileiras, sendo esse, inclusive, um
dos pressupostos para aplicação do ECI. Assim, o STF estaria atuando a partir do seu dever de
garantir a efetivação e mitigar as violações direitos fundamentais dos encarcerados, estando
atendo à vontade constitucional.
Por sua vez, estaria o STF agindo legitimamente dentro da ADPF 347/DF e ao
declarar o ECI, uma vez que essa demanda surgir a partir da reivindicação social, aqui
representada pela figura do PSOL como entidade com legitimidade ativa para a propositura de
ação constitucional. O próprio desenvolvimento teórico base para a propositura da ADPF foi
construído a partir dos estudos do professor Carlos Alexandre de Azevedo Campos,
responsável pelo desenvolvimento dos fundamentos do instituto de modo a ser aplicado do
direito brasileiro.
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Ainda, considerando que a ação encontra-se em curso segundo o procedimento legal,


ao final o provimento jurisdicional, o qual implica na elaboração de um plano de ação
coordenado para superar os vícios do sistema carcerário nacional, será construído a partir da
participação efetiva dos cidadãos na sua construção. Um dos importantes institutos utilizados
em ações de controle de constitucionalidade para perfazer a participação popular é o “amicus
curiae”.
Por ora a ADPF 347/DF conta com os citados órgãos e entidades atuando como
amicus curiae do julgamento: a Defensoria Pública da União; as Defensorias Públicas dos
Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Norte e Paraná; o Instituto de Defesa do
Direito de Defesa; a Associação Nacional de Defensores Públicos (ANADEP); o Instituto Pro
Bono, a Fundação de Apoio ao Egresso do Sistema Penitenciário (Faesp); o Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais; e o Conectas Direitos Humanos.
E finalmente, verifica-se o caráter mais que evidente de exercício do critério
contramajoritário dentro dessa intervenção estrutural do STF. Durante o julgamento da
liminar na ADPF em estudo, é ressaltada a impopularidade e sub-representação parlamentar
dos encarcerados, sendo eles uma minoria socialmente desprezada. Desta forma, evidencia a
função contramajoritária do Tribunal Constitucional, neste caso o STF, a qual legitima,
precipuamente, a proteção das minorias e dos grupos vulneráveis.
Quando nos colocamos diante dessa latente omissão reiterada e persistente das
autoridades públicas no cumprimento de suas obrigações de defesa e promoção dos direitos
fundamentais dentro dos presídios e cadeias, abre-se o dever do Judiciário de coordenar uma
série de medidas complexa dirigidas a diversas entidades públicas de modo a promover a
solução do problema que se instaura.
Pelo exposto, mostra-se não só legítima, como acertada a decisão do STF, em sede
liminar, que declarou o Estado de Coisas Inconstitucional, propondo-se a se debruçar sobre o
problema estrutural das inúmeras violações dos direitos fundamentais dentro do sistema
penitenciário nacional. O STF, assim, construirá o plano de ação de modo corresponder aos
ensejos e aos valores políticos previstos na Constituição, garantindo a efetividade dos direitos
fundamentais dos encarcerados.

5 CONCLUSÃO

Diante da realidade de patente falência do sistema prisional brasileiro, com reiteradas


ofensas à dignidade e aos direitos humanos dos encarcerados. Esse quadro de
inconstitucionalidade aponta por uma situação decorrente de inúmeras falhas estruturais e
falência/ausência de políticas públicas capazes de reverter tal situação. É nesse diapasão que
insurge a ADPF 347/DF proposta perante o STF, com o objetivo de declarar o Estado de
Coisas Inconstitucional do sistema carcerário do país.
A partir do fenômeno da judicialização, passa-se a depositar no Poder Judiciário todos
os anseios de realização da democracia social prevista na Constituição, em detrimento dos
demais poderes, ou em razão da crise de representatividade instaurada. Assim, os juízes
passam a assumir uma postura mais intensa na concretização dos valores e fins
constitucionais, o denominado ativismo judicial, tomando-se de uma maior interferência a
seara de atuação dos Poderes Legislativo e Executivo.
Ainda que não munido de legitimação a partir do voto popular, a atuação mais
intervencionista desse Poder é garantido a partir de outros critérios de legitimidade
democrático-constitucional. No tocante ao tema, o critério legitimador mais relevante
encontra-se na função contramajoritária do Poder Judiciário, ou seja, de fazer valer e garantir
os direitos das minorias diante dos abusos e das omissões dos demais poderes.
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A desprezabilidade social dos encarcerados os colocam em uma posição de


invisibilidade diante dos olhos públicos e da política representativa, especialmente
considerando que perdem o direito de voto. Deste modo, não haveria outra maneira de
assegurar qualquer mudança estrutural sem a recepção dessa demanda pelo Poder Judiciário.
Importa apenas se atentar pelas críticas feitas aos riscos de extrema abertura que o
conceito de ECI trás para a jurisprudência nacional, conforme aponta Streck (2015). Primeiro,
o risco de uma enchurrada de ações, eis que estado de coisas inconstitucionais existem aos
montes. Inclusive, o própro caráter programático da Constituição de 1988 impõe a
confirmação de que a realidade, a qual se pretente mudar, está evaida de
inconstitucionalidades. Por sua vez, deve-se ter cuidado para que o Poder Judiciário não
ultrapasse os limites de sua competência e enfraqueça o direito em sua autonomia.
É necessário compreender que a atuação do STF em casos como esse deve ser pautada
por certos critérios de autocontenção judicial, em que seja reconhecido os limites de alcançe
do Judiciário e se evite que estejamos diante da própria discricionariedade dos magistrados. A
supremacia da Constituição ainda direciona os atos do poder Judiciário, bem como a
fundamentação de suas decisões, de modo que, ainda que sob a análise de política públicas, a
arbitrariedade esteja afastada.
15

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