Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
II
III
Proust, diz Walter Benjamin, “se encontra permeado pela verdade de que não
temos tempo de viver os verdadeiros dramas da existência que nos é destinada.
É isso que faz envelhecer, e nada mais. As rugas e dobras do rosto são as
inscrições deixadas pelas grandes paixões, pelos vícios, pelos conhecimentos
que nos falaram — enquanto nós, os proprietários, não estávamos em casa.” [1]
As rugas, nessa luminosa imagem construída por Benjamin, não são a marca da
experiência que de fato vivemos, o acúmulo de experiência ou conhecimento,
mas justamente a inscrição sorrateira dos verdadeiros dramas que nos são
destinados, mas que não pudemos viver. Quanto mais se vive, quanto mais
tempo de vida se têm, mais fundo a vida a qual estamos destinados imprime
suas marcas no nosso rosto, abrindo fissuras e relevos cada vez mais espessos.
É a vida que nos escapa. Tal descoberta chega tarde demais. Isso vale também
para a história. A escrita são nossas rugas. “Quando escrevemos”, diz Jeanne
Marie Gagnebin, “lembramos que morremos”.
VI
Cada geração carrega uma dívida – ética, literária, histórica –, com aqueles que
os precederam. Nascer numa cultura é herdar essa dívida. A escrita da história,
se há algum sentido na história, é reconhecer isto.
VII
VIII
IX
Não é por acaso que o surgimento da escrita é por vezes assumido como o
começo da história. De certo tipo de história, pelo menos: a história linear, da
linha do tempo. A escrita (porque é sempre uma palavra depois da outra,
avançando num único sentido), é a base do pensamento linear, da causa e do
efeito. Não há voltas, curvas, avanços e recuos no encadeamento de palavras.
O leitor é obrigado a ler, olhar, seguir as palavras num único sentido. A fotografia,
a imagem – essa tese é de Vilém Flusser – opera de outra forma. A
temporalidade da fotografia não é a temporalidade da escrita, da causa e do
efeito, da linearidade. O tempo da fotografia é o tempo do círculo, que avança e
volta ao mesmo ponto: o tempo do ritual, da magia.
______________________
Marcos Vinícius Almeida é escritor e jornalista. Mestre em Literatura e Crítica
Literária pela PUCSP, é autor do volume de contos Paisagem interior (Penalux,
2017).