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Por Marcos Vinícius Almeida

Quando as tropas da República exterminaram os rebeldes de Canudos, em


1897, Antônio Conselheiro já estava morto e enterrado. Mas isso não foi
suficiente. Mandaram desenterrar o corpo e lhe cortaram a cabeça. Registraram
tudo numa ata. Assinada e lavrada. Enviaram a coisa sem corpo para um
laboratório da Faculdade de Medicina de Salvador. Numa sala sem luz natural,
cheirando a formol – cloro, ferrugem e azedo –, uma junta de cientistas,
aprisionados na bolha do seu tempo, esperava encontrar todas as respostas.
Incapazes de perceber que suas perguntas estavam erradas, mediram o
diâmetro do crânio com uma fita, contaram as dobras do cérebro com uma pinça,
estudaram o desenho do nariz com um esquadro e a geometria das pálpebras
com uma régua. Estava tudo ali. Com a certeza de um velho eremita remexendo
nas vísceras de um sapo, ou uma cigana estudando a borra de café no fundo de
uma xícara, os homens do laboratório puderam ler – de verdade –, nas formas
de uma cabeça morta, a melodia do delírio: ângulo curvo, fosso no crânio, queixo
pontudo. Eram os rastros materiais da fé jagunça. Desobediente, irredutível,
solar. Um estorvo a estremecer a jovem República.

II

Não se deve confiar excessivamente nas tendências da época. A familiaridade


e a estranheza trocam de máscara mais rápido que um ator sozinho,
interpretando dois personagens num palco. Quanto mais adequada ao seu
tempo é uma narrativa, mais rápido ela incorpora a estranheza, até se esfumaçar
em pura ininteligibilidade.

III

O avanço da ciência se alimenta do fracasso da ciência. A experimentação com


novas formas narrativas surge dos escombros das velhas formas narrativas.
Formas arruinadas, que não respondem mais aos problemas do nosso tempo. A
ruína é o método. Previsões apocalípticas, como o fim do romance tradicional e
a morte da narrativa, não devem ser ignoradas, tampouco interpretadas ao pé
da letra. Nada desaparece por completo, tudo retorna. É das ruínas, dos
escombros e dos cacos da experiência inarticulada que reaparecem hoje os
experimentos mais interessantes.
IV

Na história, o sentido – que sempre será um campo de disputas, e nunca


está acabado –, só vem a posteriori. O conhecimento chega tarde demais. É
sempre reconhecimento, uma palavra que, não por acaso, habita o campo
semântico da derrota: reconheço. Nenhuma geração é capaz de entender seu
próprio tempo. Morremos sempre balbuciando, diz Michelet. Nenhuma pessoa
apreende o arco narrativo da própria vida: apenas se fizesse terapia no túmulo.
Seria como reler um romance, pela segunda, terceira vez. Observar o estranho
assumir a máscara do familiar, e o familiar se tornar estranho outra vez.

Proust, diz Walter Benjamin, “se encontra permeado pela verdade de que não
temos tempo de viver os verdadeiros dramas da existência que nos é destinada.
É isso que faz envelhecer, e nada mais. As rugas e dobras do rosto são as
inscrições deixadas pelas grandes paixões, pelos vícios, pelos conhecimentos
que nos falaram — enquanto nós, os proprietários, não estávamos em casa.” [1]

As rugas, nessa luminosa imagem construída por Benjamin, não são a marca da
experiência que de fato vivemos, o acúmulo de experiência ou conhecimento,
mas justamente a inscrição sorrateira dos verdadeiros dramas que nos são
destinados, mas que não pudemos viver. Quanto mais se vive, quanto mais
tempo de vida se têm, mais fundo a vida a qual estamos destinados imprime
suas marcas no nosso rosto, abrindo fissuras e relevos cada vez mais espessos.
É a vida que nos escapa. Tal descoberta chega tarde demais. Isso vale também
para a história. A escrita são nossas rugas. “Quando escrevemos”, diz Jeanne
Marie Gagnebin, “lembramos que morremos”.

VI

Cada geração carrega uma dívida – ética, literária, histórica –, com aqueles que
os precederam. Nascer numa cultura é herdar essa dívida. A escrita da história,
se há algum sentido na história, é reconhecer isto.

VII

Em 14 de dezembro de 1890, o então ministro da Fazenda, Ruy Barbosa assinou


um ofício determinando o aniquilamento de todos os documentos referentes à
memória da escravidão. O despacho exigia que os arquivos fossem enviados
para a capital, onde se providenciaria a “queima e destruição imediata deles”.

No bairro da Liberdade, palco histórico de enforcamento, tortura e execução de


negros escravizados, prédios e lojas praticamente soterraram a Capela dos
Aflitos. Segundo os moradores, o lugar é assombrado.

VIII

Engolida pela construção de um açude, em tempos de seca, as ruínas da velha


capela de Canudos reaparecem. Em 1997, construíram um parque, para
preservar a memória do local. Há poucos anos, o fotógrafo Claude Santos,
especialista no assunto, fez uma intervenção artística nesse parque.
Gigantescas placas de vidro, com retratos e imagens das personagens
históricas, ressurgiram na caatinga. Jagunços, soldados, o povo descalço e
faminto. Numa dessas placas transparentes, quase invisível sob o sol forte,
reaparece o velho Conselheiro. Um ser espectral, plainando com seu cajado, a
meio palmo do chão.

IX

Não é por acaso que o surgimento da escrita é por vezes assumido como o
começo da história. De certo tipo de história, pelo menos: a história linear, da
linha do tempo. A escrita (porque é sempre uma palavra depois da outra,
avançando num único sentido), é a base do pensamento linear, da causa e do
efeito. Não há voltas, curvas, avanços e recuos no encadeamento de palavras.
O leitor é obrigado a ler, olhar, seguir as palavras num único sentido. A fotografia,
a imagem – essa tese é de Vilém Flusser – opera de outra forma. A
temporalidade da fotografia não é a temporalidade da escrita, da causa e do
efeito, da linearidade. O tempo da fotografia é o tempo do círculo, que avança e
volta ao mesmo ponto: o tempo do ritual, da magia.

Nos romances de W. G. Sebald, a fotografia, os recortes e as imagens aparecem


como um mecanismo que interrompe violentamente o fluxo linear. O leitor
é obrigado a escapar da lógica de uma palavra depois da outra – a despeito dos
cortes, digressões, voltas e desvios de um enredo – e ler de outro jeito. Não são
ilustrações, tampouco complementos. Funcionam como ruínas do real,
escombros da realidade, resíduos recolhidos pela ficção. O jogo entre imagem e
texto funciona como uma espécie de imagem da sua filosofia da história, uma
história que se afasta do determinismo, da linha reta, do progresso: uma história
descontínua, múltipla e fragmentada. Os narradores de Sebald estão sempre
falando dos mortos, caminhando entre ruínas, túmulos, ouvindo histórias.
Tentando narrar aquilo que é impossível narrar. Tentando resgatar aquilo que é
impossível de ser resgatado. Reconhecendo.

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Marcos Vinícius Almeida é escritor e jornalista. Mestre em Literatura e Crítica
Literária pela PUCSP, é autor do volume de contos Paisagem interior (Penalux,
2017).

:: [1] BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust In: Obras escolhidas I — Magia e


técnica, arte e política. 2012, p. 47.

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