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Introdução:
Jean-Marc Besse inicia o capítulo com o seguinte questionamento:
- O que é a “paisagem” nas culturas espaciais modernas e contemporâneas? Qual
“realidade” é indicada com esse nome, quais são as práticas e os valores que
correspondam a esse nome e quais são os objetos que resultam dele? (BESSE,
2014, p.11).
Besse afirma que hoje é possível perceber cinco problemáticas paisagísticas que
coexistem no pensamento contemporâneo e que podem aparecer articuladas
umas às outras que seriam a paisagem como: representação cultural; território
produzido pelas sociedades na sua história; complexo sistêmico; espaço de
experiências sensíveis; local ou contexto de projeto.
Besse pontua ainda que a abordagem iconográfica da paisagem vale tanto como
uma concepção estética da representação quanto uma concepção cultural mais
abrangente. Ele compara a paisagem a um texto humano a ser decifrado. Besse
cita David Lowenthal, para quem a paisagem é um lugar presente, mas também
de memórias, o que justificaria como legítima uma abordagem hermenêutica da
paisagem. (p.22)
Segundo Besse, muitos artistas como Michael Heizer, Robert Smithson, Richard
Long, Christo e Jeanne-Claude, Andy Goldsworthy têm procurado ultrapassar o
tradicional do campo artístico para interrogar, de forma ampla, as relações que a
obra mantém com o real, o espaço, o tempo, a matéria e ainda os quadros
perceptivos e simbólicos da experiência do mundo. Assim, muitos deixam o
universo restrito da galeria para instalar suas obras nos territórios abertos da
cidade e da natureza. Dessa forma, a arte ganhou uma dimensão paisagística
transformando o próprio espaço num campo de experimentação artística que
além de integrar as formas, passou a agregar atitudes, situações e dados usuais
da experiência do mundo o que levou à necessidade de se repensar a noção de
uma artialização paisagística (p.23-24)
De acordo com essa nova abordagem, a paisagem pode ser definida como um
território produzido e praticado pelas sociedades humanas, por motivos
econômicos, políticos e culturais, ao mesmo tempo. Assim atenua-se a distinção
entre país e paisagem, já que o valor paisagístico de um lugar é considerado em
relação com a soma das experimentações, dos costumes e das práticas
desenvolvidas pelo homem nesse lugar.
Nesse viés, é lícito afirmar que a paisagem não é a natureza, mas o mundo
humano, após se inscrever na natureza e transformá-lo. Seria um mundo híbrido,
composto por uma natureza humanizada e pela humanidade naturalizada.
Entretanto, é necessário ressaltar as diferenças de potências e orientações que
intervêm na relação entre os homens e o “material” terrestre, pois a aparência da
paisagem traduz a atitude variável da humanidade em relação aos meios
naturais, que pode oscilar do toque a uma transformação radical. Besse aponta
ainda outra consequência relativa ao sentido da paisagem que expressa uma
indagação a respeito da “boa convivência” das comunidades bem como dos
valores e quadro espacial e material real relativos a esse convívio. Tal premissa
corrobora a afirmativa na qual as paisagens foram formadas a partir da
organização das pessoas no local e pelo desenvolvimento de espaços a serviço
da comunidade (p.35).
Besse finaliza essa segunda porta reafirmando a necessidade de se achar novos
critérios para avaliar as paisagens existentes ou futuras, ressaltando a
importância de se questionar sobre o interesse que o ser humano teria de viver
nessas paisagens. Pontua-se ainda que se o projeto de paisagem tem um sentido,
é porque o desafio é tornar o mundo habitável para o homem. Assim elabora a
seguinte definição: a paisagem é a expressão de um esforço humano, sempre
frágil e a ser recomeçado para habitar o mundo. (p.37).
O autor aponta ainda que na paisagem, a vida subjetiva se desenrola à beira das
coisas, pois à desobjetivação responde uma dessubjetivação, uma vez que se há
experiência, há exposição da subjetividade a algo como um “fora” que a conduz
para fora de seus limites. Assim, a experiência da paisagem é um sujeito fora e um
fora sem objeto, uma derrota comum a ambos. Assim, o estranhamento é a
condição da paisagem, o que impede de classificá-la como um lugar, já que é no
escape que se encontra sua razão de ser. (p.49).
Tal Coat percebe-se em troca permanente com o mundo. O mundo não é uma
simples moldura. Não está apenas em torno dele como Umwelt, está nele
como tensão polar. O homem no mundo não é um império dentro de um
império. É um reino, se tanto. E em que sentido? _Quando estou na presença
de uma paisagem, não estou, na realidade, diante dela. Há atrás de mim, em
volta de mim, a presença de todos os horizontes. Todos os distantes estão
integrados no meu próximo. Tudo que percebemos, percebo sobre fundo de
mundo. E em vez de fundo, deveria falar de meio. Mesmo dando as costas à
montanha da Sainte-Victoire, seu signo está presente na minha visão. Sou a
cabeça dessa recapitulação. Nesse sentido, sou um centro de universo. Mas,
por um movimento totalmente contrário, à medida que o universo em volta
de mim realiza sua presença, sinto necessidade de habitar meus distantes,
arrancar-me à minha inércia de placa de sinalização. Ser coextensivo ao
próprio mundo, entrar na sua ressonância universal, assumir o seu ritmo
(MALDINEY apud BESSE, 2014, p.51-52).
O solo, nessa perspectiva, é o efeito de uma construção histórica, mas que traz
uma superposição de passados, o que leva à constatação de que o espaço não é uma
tela em branco, mas sim um palimpsesto. Assim, o solo representa um conjunto
mais ou menos denso de marcas, pegadas, dobras e resistências que a ação humana
deve levar em conta, pois, os locais têm memória. (p.58).
Besse pontua que cada uma das direções apresentadas suscita interrogações,
polêmicas e esclarecimentos, contudo, é importante considerar que a problemática
paisagística contribui para mudar os questionamentos sobre a identidade dos
territórios e seu porvir. Sendo assim, cabe ao paisagista intervir em espaços que
estão em jogo questões de limites, bordas, limiares, passagens, intervalos, o
encontro entre urbano e não urbano, fechado e aberto, mundo humano e natural e,
de forma mais radical, a oposição entre o “dentro” e o “fora”. (p.59)
O autor cita como exemplo Jean-Luc Godard em seu filme Lettre à Freddy
Buache, cujo movimento de câmera faz o olho deslizar entre o verde do campo, o
cinza da cidade e o azul da água, permitindo que esses elementos se juntem em um
mesmo pensamento. Nesse viés, a problemática paisagística permite recosturar
ligações entre a cidade e sua localização, a cidade e seu território e entre a cidade e
seu meio natural. Assim, o pensamento da paisagem para o paisagista é um
pensamento do possível, ou seja, a busca dos possíveis contidos no real. (p.60)
O projeto de paisagem seria criar algo que já estava aí, o que coloca o paisagista
em uma situação paradoxal: fabricar, elaborar o que já está presente e que não se
vê. Em outras palavras, o projeto inventa um território ao representá-lo e ao
descrevê-lo, contudo, o que é inventado já está, ao mesmo tempo, presente no
território, mas como não visto e não sabido até então. Besse chama a atenção para o
fato de que o conceito de “projeto de paisagem” possa estar contido na noção de
“pensamento latente”, algo que ficaria atrás das formas visíveis, como uma espécie
de onda que se desenvolve ao longo de toda a extensão, conferindo-lhe um sentido.
Assim, o projeto seria a cartografia de uma onda invisível, desse “centro virtual”
dos movimentos do espaço. (p.63).
Conclusão
Na primeira porta de entrada para a paisagem encontram-se como guardiões os
historiadores e teóricos da arte e da literatura, enquanto os ecólogos tendem a
adotar a terceira, já os paisagistas e arquitetos têm como direção a última. No
entanto, é preciso enfatizar que essas diferentes abordagens podem se encontrar e
até se sobrepor, num mesmo autor ou paisagista. A questão da paisagem envolve a
problemática da coexistência de racionalidades paisagísticas diferentes e ainda a
rearticulação de suas funções frente aos desafios impostos pela modernidade. Dessa
forma, o autor propõe que aceitemos o deslocamento entre os vários discursos e
pontos de vista e nos convida a passar por todas as portas da paisagem. (p.64-65).