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Um Brasil [quase] esquecido.

A caligrafia como
comprovação da intelectualidade
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comprovacao-da-intelectualidade

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30 de Maio de 2019
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Publicado por Sérgio Henrique da Silva Pereira


há 3 anos
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Caros leitores, mais uma vez presenciei resquícios de um Brasil [quase] esquecido. Em
pleno século XXI, o Brasil ainda teima — como em muitas outras exigências de “superior”,
ou o mínimo de “intelectualidade” — em ler cartilhas normativas de bom comportamento,
como se trajar direito, como falar direito, como escrever [caligrafia direito], como a mulher
deve se vestir adequadamente — para não ser estuprada —, e muitos outros assuntos
chancelados de “corretos”.

Claro que, o mínimo de regra deve existir nos símbolos humanos, como na escrita, na fala
etc. Para que a humanidade não viva numa Torre de Babel. Neste artigo, o caso da “letra
feia”. Assisti [26/12/15, domingo] uma reportagem, no Jornal Nacional, à qual mostrou às
consequências de ter uma caligrafia feia, isto é, incompreensível. Bom, para muitos, a tal da
caligrafia feia, soa como falta de estudos, ou seja, o cidadão é analfabeto — e, diga-se de
passagem, funcional.

Pois bem. Alguns casos para enriquecer este artigo. Transcreverei alguns cabeçalhos
interessantes. Vamos lá:

“Médico xinga farmacêutico de imbecil e analfabeto no Maranhão Farmacêuticos falam que são
raras receitas com letra legível. Receitas com ‘garranchos’ são proibidos há 35 anos no país”.

“Candidatos fazem aulas de caligrafia para passar em concurso e vestibular Escrita à mão requer
muito treino, diz professor de escola especializada. Professor dá dicas de como obter uma letra
bonita”.

Afinal, o que é erro ao bom português e o que é erro na caligrafia?

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Escrever certo, falar corretamente, eis a situação intrigante. Várias mudanças ortográficas
aconteceram no país. “A pharmácia sómente deve ter remédios. Mas, é possível ver pé-de-
moleque sendo vendido”. Nossa, de onde saiu está frase? Sim, não se escreve mais farmácia
com “PH”, não há acento agudo no o do “somente”, não há mais hifens em “pé de moleque”.
Escrita é um símbolo, como a ideográfica dos chineses. E símbolos mudam, ao decorrer do
tempo humano: o que é certo ou errado?

Lembro-me que, e o tempo voa, eu e demais alunos, todos tínhamos que treinar os
símbolos em cadernos de caligrafia, ou seja, treinar a mão para escrever “bonito”, como
mandava a cartilha da padronização no Brasil. Querendo, ou não, se formou um status
social diferenciador. Mesmo que o indivíduo escrevesse conforme a gramática normativa,
porém com caligrafia “preguiçosa”, “desleixada”, “feia”, ainda assim existia, e existe,
preconceito. Afinal, o cidadão superior é “perfeito”, em tudo o que faz. E se escrevesse bem
— ótima caligrafia —, e em gramática normativa, era considerado um indivíduo com maior a
escolarização. Logo, era considerado um ser “grandioso” pela conquista alcançada através
do próprio esforço pessoal. Desculpem-me, mas médicos são considerados “analfabetos”,
“imperfeitos” ou “burros”?

Num país de estrema miséria — quando se compara as potencialidades econômicas versus


os milhões de brasileiros que ganham Bolsa Família, e se analisa os privilégios e regalias dos
agentes políticos — o narcisismo é fruto desta desconexa vida brasileira. Não obstante, o
Brasil foi construído sobre dois pilares: darwinismo social, do século XIX, e a eugenia, do
século XX. A eugenia foi institucionalizada no Brasil através da CONSTITUIÇÃO DA
REPUBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL (DE 16 DE JULHO DE 1934):

“Art. 138 - Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas:

b) estimular a educação eugênica”.

No livro Preconceito linguístico o que é, como se faz, de Marcos Bagno, mais evidente fica a
apartheid Made in Brazil. Ora, há casos em que o sujeito “ignorante” é estigmatizado de
“retardado”, “preguiçoso” etc. Continuando no livro de Marcos Bagno, não posso deixar de
transcrever alguns parágrafos importantes:

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“Carlos Drummond de Andrade (preciso de adjetivos para qualificá-lo?), no poema ‘Aula de
Português’ também dá testemunho de sua perturbação diante do ‘mistério’ das ‘figuras de
gramática, esquipáticas’, que compõem ‘o amazonas de minha ignorância’. Drummond ignorante?

E o que dizer de Machado de Assis que, ao abrir a gramática de um sobrinho, se espantou com sua
própria ‘ignorância’ por ‘não ter entendido nada’? Esse e outros casos são citados por Celso Pedro
Luft em Língua e liberdade (pp. 23-25). E esse mesmo autor nos diz:

Um ensino gramaticalista abafa justamente os talentos naturais, incute insegurança na linguagem,


gera aversão ao estudo do idioma, medo à expressão livre e autêntica de si mesmo”.

(...)

“O que aconteceu, ao longo do tempo, foi uma inversão da realidade histórica. As gramáticas foram
escritas precisamente para descrever e fixar como ‘regras’ e ‘padrões’ as manifestações linguísticas
usadas espontaneamente pelos escritores considerados dignos de admiração, modelos a ser
imitados. Ou seja, a gramática normativa é decorrência da língua, é subordinada a ela, dependente
dela. Como a gramática, porém, passou a ser um instrumento de poder e de controle, surgiu essa
concepção de que os falantes e escritores da língua é que precisam da gramática, como se ela fosse
uma espécie de fonte mística invisível da qual emana a língua ‘bonita’, ‘correta’ e ‘pur’. A língua
passou a ser subordinada e dependente da gramática. O que não está na gramática normativa ‘não é
português’. E os compêndios gramaticais se transformaram em livros sagrados, cujos dogmas e
cânones têm de ser obedecidos à risca para não se cometer nenhuma ‘heresia’”.

A riquíssima informação não deixa qualquer dúvida sobre os preconceitos e a formação do


narcisismo. Certa vez fiz uma pesquisa, em 2009, em quatro bairros próximos do meu. Sei
que os dados são poucos, mas diante dos ataques racistas às celebridades negras brasileira,
e recentemente ao filme Guerra Nas Estrelas, por ter um negro protagonista, não é difícil
mensurar a importância de minha pesquisa. Pedi uma médica que escrevesse — como
tivesse normalmente atendendo os pacientes — um pequeno texto. Depois percorri os
bairros abordando os pedestres.

1) Senhora, branca, de classe média:

“Que caligrafia horrível. Deve ser um analfabeto. Aposto que jamais quis ‘queimar as pestanas’”.

“Não senhora, é letra de médica”!

“Ah! Atende muitos pacientes, por isso tem que escrever rápido”!

2) Homem branco, 72 anos de idade e professor aposentado:

“Um analfabeto e preguiçoso que sobrevive de Bolsa Família”!

— E se o cidadão fosse médico? — perguntei-lhe.


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“Por isso as cotas raciais representam uma vergonha para o país. Formam analfabetos. Imagine
operando uma pessoa”?

3) Rapaz branco, 21 anos de idade e estudante universitário:

“Não vi nenhum erro gramatical. Parece que escreveu rápido... Mas afinal, existe uma padronização
para se escrever”?

4) Mulher negra, formada em engenharia mecânica — não perguntei idade por educação:

“Infelizmente vivemos numa país de analfabetos. A culpa é dos governantes. Essa pessoa deve
sofrer muitos preconceitos. Coitada”!

PS: infelizmente, só tenho estes relatos. Não sei o porquê de o arquivo não abrir totalmente.
O que abriu - os outros apareceram com caracteres irreconhecíveis pelo Word - tive que
copiá-los e colar em novo documento do Word.

EUA e Finlândia contra as regras seculares


Enquanto no Brasil, e em muitos outros países, se exige a “sagrada” caligrafia, nas
instituições de ensino e até para as entrevistas de emprego, nos EUA e na Finlândia há uma
“conspiração” se formando. Nos dois países não se exigem mais a escrita à letra cursiva, e os
professores são desencorajados. Os teclados, sim, são exigidos na nova educação. Num
planeta cada vez mais tecnológico — até as crianças sabem usar melhor do que eu as
tecnologias digitais; é só ver os invasores de sites etc. — a letra cursiva não possui tanta
preeminência. Alguém escreve alguma carta e a coloca nas caixas dos Correios? Acredito
que sim, pois o Brasil ainda é atrasado no quesito globalização da internet dentro do
próprio território. Contudo, até por força externa quanto à materialização da liberdade de
expressão e de pensamento, o acesso à rede mundial de computadores deve, a cada
década, ser priorizado no Brasil.

A tendência mundial, pelo visto, é cada vez mais a letra cursiva ser menos usual. Pensando
no Brasil, a letra cursiva é sinônimo de “segregação”. Outro dia, acreditem, escutei de uma
educadora dizer que “Agora tudo é dislexia!”, como justificar o injustificável, de que as
crianças brasileiras são aprovadas sem o devido conhecimento, como ocorreu, e ainda
ocorrem, de forma velada, as aprovações automáticas. Concordo com a educadora, até
certo momento. Existem crianças dislexias, mas muitas não são diagnosticadas por
precariedade — infraestrutura física e material — nas instituições de ensino. Ainda há
professores sem um mínimo de conhecimento sobre transtornos específicos de
aprendizagem (TEA). Infraestrutura precária, como cadeiras quebradas etc., salas de aulas
superlotadas, salários que ferem a dignidade humana dos professores, violência dentro e
fora das instituições de ensino, o caos é o ar sorvido pelos alunos e professores.

Além disso, profissionais da área das Ciências Humanas — psicólogos, psiquiatras,


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pedagogos — são unânimes quanto às exigências do mundo moderno: cobranças aquém
dos limites das crianças e dos adolescentes; o que dirá aos adultos, e tome muito
ansiolíticos. Os genitores, por pressão social, exigem demasiadamente de suas proles a
“excelência” e “perfeição” no que fazem. Muitos genitores transferem para suas proles os
seus fracassos pessoais, as suas dúvidas agoniantes, incertezas etc. Os filhos devem ser o
que os pais acham correto. Não há nada demais ensinar às proles a conduta humanística, o
escolher da alimentação correta, sem ser os alimentos industrializados, o equilíbrio entre
sedentarismo e práticas esportivas, e também o equilíbrio entre estudos e lazer.
Infelizmente, a Era do Super-Homem está mais do que presente neste século.

Tempos Moderno, de Charles Chaplin, continua contemporâneo. Cada vez mais o ser
humano é escravizado pelas políticas de desenvolvimento tecnológico e econômico
[consumismo]. O consumismo perverso faz com que as pessoas vivam mais pelos prazeres,
como no filme Matrix. E sair dessa hipnótica situação causa neuroses. O jeito é manter-se
no torpor da zona de conforto. Ora, o American way of life — livre mercado e competição
sem limites — se mostrou perigoso à humanidade e a própria Terra. Competição sem
limites [American way of life] implica numa ausência total do Estado nas relações entre
particulares. Em rápida explicação, imagine se o Estado brasileiro, por exemplo, não
defendesse os interesses dos consumidores. As concessionárias de serviços públicos,
principalmente, iriam enterrar, literalmente, os consumidores queixosos. E o que dizer dos
desastres ambientais? Samarco, sem a atuação do Estado [Ministério Público de Minas
Gerais], possivelmente deixaria as vitimas a deus-dará — e já as deixam, imagine sem o MP-
MG.

MEC ensina errado


O volume Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, foi repudiado na época por
ensinar os jovens como escrever e falar errado. Na época, os autores defenderam a “língua
viva”, isto é, o dia a dia dos brasileiros, e não a cartilha da norma culta. Ainda afirmaram que
a norma culta cria “preconceito linguístico”. Controverso e delicado o tema. Acredito que
uma padronização mínima no símbolo escrito deve existir para que as pessoas possam se
comunicar.

Por exemplo, na internet há símbolos totalmente diferentes do mundo não virtual. A pessoa
que ingressa, pela primeira vez, no mundo virtual, e numa sala de chat, com certeza, se não
familiarizado com os símbolos digitais, não entenderá nada. Será um analfabeto digital. Por
sua vez, o alfabetizado digital também será considerado um analfabeto quando fora do
mundo virtual. Eis o dilema.

Se analisarmos, por exemplo, o uso do Latim, quantos analfabetos existiam na Idade


Média? E o que dizer da década de 1980, no Brasil, onde minorias tinham conhecimento da
língua inglesa? Quem não sabia era considerado analfabeto, mesmo que soubesse escrever

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e falar o bom português [brasileiro]. Concordo com os autores sobre “preconceito
linguístico”. E o que dizer das gírias e sotaques comuns em cada região do Brasil? Afinal, o
falar corretamente deve subjugar as “línguas vivas” regionais? Não seria um tipo de
“genocídio” linguístico? E quem decretaria este genocídio? Por quê?

Padronização versus liberdade de expressão e de pensamento


Quando falei em padronização mínima no símbolo escrito, ou até digitado, não quis dizer
escolher única forma considerada “correta”, porque não existe uma correta. Símbolos
escritos existem pelo ânimo humano de cada época, conforme a sua capacidade de
interpretar sons, imagens. A evolução humana também tem a ver com o aperfeiçoamento
do aparelho fonador, cognitivo. Entretanto, estamos numa época em que a liberdade de
expressão e de pensamento não pode ser mais impedida por conceitos anacrônicos de
“superioridade” e “inferioridade”. A “língua viva” pertence a cada população, com suas
características culturais. Dizer que o Brasil possui somente única cultura é dizer que não
houve miscigenação.

Ainda vejo jovens, adultos e idosos rirem de outras pessoas que falam fora da norma culta.
Ora, o que soa feio, não pode ser justificado para calar a voz de outra pessoa sob
gravíssimas consequências para o conhecimento. Sem liberdade de expressão e de
pensamento, os conhecimentos se perdem no tempo. Dizer que um analfabeto não tem a
mínima condição de dialogar e transmitir conhecimentos é condizer com as concepções
teóricas anti-humanísticas. Antes da escrita, o conhecimento era transmitido oralmente. O
aprendizado não acontece, somente, entre as paredes das instituições de ensino, mas no
convívio social. Negar a “língua viva” é fazer os que os colonizadores darwinistas sociais
fizeram no passado: exterminaram pessoas e, em alguns casos, exterminaram
conhecimentos culturais de outros povos.

Quando falei em “padronização mínima” me referi, por exemplo, ao Esperanto. Esperanto


foi criado pelo médico e estudioso de línguas polonês Ludwig Lazar, como forma de se ter
uma língua universal a unir os povos. A ideia é boa, mas se verificarmos a tecnologia atual, e
a que virá, inevitavelmente, futuramente, qualquer padronização será dispendiosa demais
— e sem necessidade. Por exemplo, aplicativos de traduções nos celulares. Será necessário,
então, aprender alguma nova língua para poder se comunicar? Pelo visto, não. Nos sites de
pesquisas há mecanismos de traduções. Não são totalmente confiáveis, no entanto, têm
ajudado muitas pessoas — desde um estudante até um docente — a conhecerem culturas,
inovações tecnológicas etc.

Falando de tecnologia e desenvolvimento humanístico

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Exatamente, a tecnologia está findando concepções teóricas anacrônicas de “reis e
plebeus”, “reis e servos”, no tocante à liberdade de expressão e de pensamento, apesar das
tentativas de cerceá-la. Infaustamente, o progresso tecnológico, em outros segmentos da
humanidade, não tem servido para a diminuição das desigualdades sociais, para alicerçar a
dignidade da pessoa humano, para o desenvolvimento sustentável. Revolução Industrial,
Primeira e Segunda Guerras Mundiais, Crise de 1929 e a Bolha Imobiliária de 2008, nos EUA,
alguns exemplos de que a tecnologia não tem sido empregada para melhorias na qualidade
de vida de todos os seres humanos.

A globalização tem servido para expansão de interesses econômicos dos próprios países,
não um bem comum à humanidade. Transnacionais se instalam, preferencialmente, em
países cujas leis internas favorecem a violação dos Direitos Humanos. Por exemplo, o caso
do menino indonésio que fumava 40 (quarenta) cigarros por dia. A indonésia é uma
potência manufatureira de tabaco, graças à complacência do Estado, isto é, dos governantes
com os lobistas do tabaco. A concupiscência, com toda certeza, dos governantes é tamanha
que em 2009 o lobby do tabaco conseguiu mudar a Lei de Saúde: tabaco não faz mal à
saúde. [1]

O lobby das bebidas alcoólicas é outro que causa horrores sociais e econômicos. No Brasil,
por exemplo — as publicidades são criadas a partir do pensar e comportamento cultural de
cada país:

As mulheres não passam de objetos sexuais — explica-se pelo seguinte motivo: o


Brasil ainda é machista;
Beber é para “adultos”, numa conotação de liberdade, ousadia, determinação;
Quem consome bebida alcoólica é “superestrela”.

E o dizer quando das publicidades de cervejas às quais colocaram animaizinhos


engraçados? O público? As crianças.

Dizer que o Estado não deve agir [acepção negativa] nas relações entre particulares é
perigosíssimo. A ganância não tem limites, mesmo que custem vidas humanas. Alguém tem
dúvidas da Operação Lava Jato?

Nota:
[1] — Pouco controle faz nº de fumantes na Indonésia subir anualmente. Disponível em:
http://noticias.terra.com.br/mundo/asia/pouco-controle-faznde-fumantes-na-indonesia-
subir-anualmen...

Referência:
BARNHILL, John W. Casos clínicos do DSM-5. Editora: Artmed. Ano: 2015.
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Disponível em: https://sergiohenriquepereira.jusbrasil.com.br/artigos/281516658/um-
brasil-quase-esquecido-a-caligrafia-como-comprovacao-da-intelectualidade

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