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8 de março de 2019
A chegada de um bebê é sempre acompanhada de algo que não se espera. Essa surpresa, por
vezes, pode se apresentar como um enorme susto, uma perda das bordas e do rumo. Não
deveria comparecer, ali, a mãe para receber em seus braços o bebê tão esperado? Não
deveria lhe envolver um amor incondicional e um saber se virar com colos, choros e
afagos? Eis que nasce o bebê, mas – surpresa difícil – sua chegada não coincide
necessariamente com a da mãe.
No consultório dos analistas, na conversa entre amigas, nos relatos das redes sociais, cada
vez mais encontramos mulheres em busca de palavras que possam vir a significar a
experiência da chegada de uma criança em suas vidas. Para algumas, a chegada do bebê
coincide com a de um abismo sob seus pés. Não apenas se dão conta de que tudo se coloca
diferente do que havia sido sonhado, como também constatam que não encontram mais a
mulher que sonhara isso tudo. Nem o sonho se apresenta, nem o sujeito que o havia
sonhado pode agora comparecer.
Não é evidente – e muito menos natural –
a operação que irá possibilitar que, onde os
contornos se desfizeram, se apresente alguém a ocupar o lugar materno. A construção da
maternidade exige que uma mulher se desloque, ela mesma, do lugar de “objeto devorado”
para alçar o bebê ao lugar de “objeto fálico” – expressão bastante conhecida entre leitores
de Freud, que faz menção a um lugar muito especial do bebê na cadeia simbólica materna,
localizando, entre mãe e bebê, algo relativo ao que não se encaixa e não se encerra nessa
relação.
À sensação de perda das bordas, de apagamento dos contornos, de abismo sob os pés, a
psicanálise lacaniana nomeia “gozo feminino” (ou “gozo nãotodo”). O “gozo”, conceito tão
fundamental aos lacanianos, é marcado pelo encontro da linguagem com o corpo. Refere-se
aos excessos de prazer e desprazer tão únicos a cada um, a algo que experimentamos
singularmente como um profundo estranhamento.
Em seu seminário de número 20, Lacan nos apresenta uma fórmula com dois tipos de gozo,
o “fálico” e o “feminino” (ou o gozo “todo” e o “nãotodo”). Para nossa abordagem, é
suficiente situarmos que o gozo feminino se refere a algo que não faz conjunto, não é
compartilhável, não faz unidade, não tem bordas, não se permite delimitar ou definir; é um
gozo líquido e não sólido, um acontecimento de corpo, impossível de ser todo capturado
pelo universo das palavras, uma experiência nãotoda significável, nãotoda contável, nãotoda
passível de ser enlaçada pelo universo significante, por contos e enredos. Está em oposição
ao gozo fálico, que seria, por sua vez, um gozo enlaçado aos enredos da vida e referido a
uma “unidade corporal”, mesmo que este lhe seja estranho, que a atravesse ou que a
redefina. A esses dois tipos de gozo, somos todos suscetíveis.
Quando o gozo nãotodo vem se situar de modo avassalador, na experiência entre mãe e
filho, nomeamos essa vivência de devastação, “devastação materna”. Nessa experiência, nas
palavras da psicanalista Esthela Solano-Suárez (no capítulo “Maternidade blues” do livro
Ser mãe – Mulheres psicanalistas falam de maternidade, vários autores), uma mulher,
“longe de encontrar uma satisfação apaziguada em sua relação com o filho, objeto de seu
desejo, pode, inversamente, passar pela experiência da devastação, sendo engolfada,
deportada dela mesma por um gozo louco, enigmático, fora do sentido”.
A clínica psicanalítica tem nos mostrado que a experiência de devastação materna não é
uma rara exceção destinada a algumas poucas mulheres não afeitas ao mundo materno. Não
tem sido incomum ouvir que, algumas, na tentativa de se extraírem dessa inundação, se
colocam infinitas imposições, tarefas e medidas protetivas para a criança, num esforço
exaustivo de controle e de “tomar as rédeas” da situação por meio de um cuidado metódico
(excesso de higiene, de horários, de regras, de uma alimentação “perfeita” etc.). A cadeia de
cuidados não tem fim, o que pode fazer com que, dentro desse contexto, torne-se uma
metonímia infinita superegoica: mais e mais e mais…
Nesse movimento, o que vemos é que, no esforço de voltar a consistir e a dar contornos
para ela e para o filho, delimitando um e outro, uma mulher pode vir a tomar o bebê como
objeto de cuidados, mas isso não coincide necessariamente com poder tomá-lo como objeto
exterior (e irrecuperável) a ela própria.
Mais do que a figura materna ser o que se apresenta entre dois extremos – o da devoração e
o dos cuidados –, esses dois extremos não estão em lados opostos, mas são, pelo contrário,
um o avesso do outro, revirando-se. “Não existiria, desde Freud, portanto, uma escolha
entre devoração e cuidados, uma vez que os cuidados seriam uma face da devoração e vice-
versa. Seria inútil uma divisão em extremos quando os dois elementos estão em
movimento.” – afirma Barros.
Positivação e negativação
“Nesse sentido, podemos situar a castração da mãe como necessária a que ela faça das suas
crianças objeto „a‟, ou seja, para que as crianças passem de objetos que faltam a objetos
presentes fora da mãe, o que representa uma “positivação”, conclui o mesmo autor. A
“positivação” da criança como exterior à mãe se dá por meio da operação da castração
materna, que compreendemos como a “negativação” de um ponto específico, aquele que
permite à mulher reenlaçar-se, por um lado, ao feminino e, por outro, ao desejo materno.
Dentro da perspectiva que tomamos, podemos afirmar que a operação possível na passagem
da devastação para o desejo materno é tributária, portanto, da inclusão de um limite na série
infinita de cuidados superegoicos que ali se colocaram inicialmente como uma tentativa de
separação entre mãe e filho.
Há uma especificidade muito delicada (e clinicamente valiosa) em relação a esse limite. Ele
não se dá exatamente pela inclusão de um ponto a mais, um ponto de basta, mas pela
inclusão de um ponto a menos, um furo.
A riqueza da operação materna a ser realizada nesse processo é a de fazer o ponto de horror,
que inunda a relação entre mãe e bebê, revirar-se em ponto de alívio. O alívio será
decorrente de, justamente onde consiste o ponto de horror, um furo vir a dar lugar à
ilimitação do gozo feminino.
https://revistacult.uol.com.br/home/a-invencao-da-maternidade/