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AS TRÊS ONDAS DA MODERNIDADE

Leo Strauss

Perto do fim da Primeira Guerra Mundial veio a lume um livro com o ominoso título de O
1
Declínio, ou Ocaso, do Ocidente . Spengler entendia por Ocidente não aquilo que temos o
hábito de chamar de civilização ocidental, a civilização que tem início na Grécia, mas uma

cultura que surgiu por volta do ano Mil na Europa setentrional; a sua noção inclui, sobretudo, a
moderna cultura ocidental. De modo que o que ele predisse foi o declínio, ou ocaso, da
modernidade. O seu livro é um poderoso documento sobre a crise da modernidade. Que essa
crise está aí é algo óbvio mesmo para as menores inteligências. Para entender a crise
devemos, primeiro, entender o caráter da modernidade.

A crise da modernidade se revela no fato, ou consiste no fato, de que o moderno homem


ocidental não sabe mais o que quer – de que ele não mais acredita poder saber o que é bom
ou mau, o que é certo ou errado. Até há poucas gerações atrás, era geralmente tido como
evidente que o homem podia saber o que é certo e errado, o que é a ordem social justa ou boa
ou melhor – numa palavra, que a filosofia política é possível e necessária. Em nosso tempo
essa fé perdeu o seu poder. De acordo com a visão predominante, a filosofia política é
impossível: ela foi um sonho, quiçá um sonho nobre, mas de todo modo um sonho. Embora se
verifique um amplo acordo nesse ponto, as opiniões diferem sobre a razão pela qual a filosofia
política estaria baseada num erro fundamental. Segundo a visão mais difundida, todo
conhecimento digno desse nome é conhecimento científico; mas o conhecimento científico
não pode validar juízos de valor; ele está limitado a juízos factuais; e, não obstante, a filosofia
política pressupõe que juízos de valor podem ser validados racionalmente. Segundo uma visão
menos difundida, mas mais sofisticada, a separação predominante entre fatos e valores não se
sustenta: as categorias de entendimento teórico de alguma forma implicam princípios de
avaliação; mas esses princípios de avaliação, assim como as categorias do entendimento,
variam historicamente; mudam de época para época; logo, é impossível responder à questão
sobre o certo e errado, ou sobre a melhor ordem social, de maneira validamente universal, de
maneira válida para todas as épocas históricas, como a filosofia política exige.

A crise da modernidade é, portanto, primariamente a crise da filosofia política moderna. Isso


pode parecer estranho: por que a crise de uma cultura equivaleria à crise de uma disciplina
acadêmica entre tantas outras? Mas a filosofia política não é essencialmente uma disciplina
acadêmica: a maioria dos grandes filósofos políticos não foram professores universitários.
Acima de tudo, como é geralmente admitido a cultura moderna é enfaticamente racionalista,
ela acredita no poder da razão; de modo que se tal cultura perde a fé na capacidade da razão
validar as suas metas mais altas, ela decerto está em crise.

Qual é, então, a peculiaridade da modernidade? De acordo com uma noção deveras comum, a
modernidade é a fé bíblica secularizada; a fé bíblica ultramundana tornou-se radicalmente
mundana. Colocando as coisas de forma mais simples: não esperar pela vida no paraíso, mas

1
Der Untergang des Abendlandes, obra em dois volumes (respectivamente 1918 e 1922) do filósofo e
historiador alemão Oswald Spengler (1880-1936). (N.T.)

1
constituir o paraíso na terra através de meios puramente humanos. Mas isso é exatamente o
que Platão pretende fazer na sua República: operar a cessação de todo mal na Terra por meios
puramente humanos. E é claro que não se pode dizer que Platão tenha secularizado a fé
bíblica. Se a intenção é falar de secularização da fé bíblica é preciso ser bastante mais
específico do que isso. Por exemplo, pode-se afirmar que o espírito do capitalismo moderno é
de srcem puritana. Ou, para dar outro exemplo, Hobbes concebe o homem em termos de
uma polaridade fundamental entre orgulho maligno e medo salutar da morte violenta; é
aparente que se trata de uma versão secularizada da polaridade bíblica entre o pecado do

orgulho e o temor salutar do Senhor. Secularização significa, portanto, a preservação de


pensamentos, sentimentos ou hábitos de srcem bíblica que se segue à perda ou atrofia da fé
bíblica. Mas essa definição nada nos diz a respeito do tipo de ingrediente que é preservado na
secularização. Sobretudo, ela não nos diz o que é a secularização, a não ser negativamente: a
perda ou atrofia da fé bíblica. No entanto, o homem moderno guiou-se srcinalmente por um
projeto positivo. Talvez esse projeto positivo não pudesse ter sido concebido sem a ajuda de
ingredientes remanescentes da fé bíblica; mas se esse é de fato o caso, é algo que não pode
ser decidido antes que se tenha entendido o próprio projeto em si.

Mas é possível falar num projeto único? Nada é mais característico da modernidade que a
imensa variedade e a freqüência da mudança radical em seu interior. A variedade é tão grande
que é inclusive possível duvidar de que se possa falar em modernidade como algo único. A
mera cronologia não estabelece uma unidade significativa: pode haver pensadores nos tempos
modernos que não pensam de maneira moderna. Como, então, podemos escapar à
arbitrariedade ou ao subjetivismo? Por modernidade entendemos uma modificação radical da
filosofia política pré-moderna – uma modificação que aparece primeiro como uma rejeição da
filosofia política pré-moderna. Se a filosofia política pré-moderna possui uma unidade
fundamental, uma fisionomia própria, a filosofia política moderna, sua oponente, terá a
mesma distinção pelo menos por reflexo. Seremos levados a ver que este é, com efeito, o
caso, depois que tenhamos fixado o início da modernidade por meio de um critério não-
arbitrário. Se a modernidade emergiu por um rompimento com o pensamento pré-moderno,
as grandes mentes que realizaram esse rompimento deviam ter consciência do que estavam
fazendo. Qual foi, então, o primeiro filósofo político a rejeitar explicitamente toda filosofia
política anterior como fundamentalmente insuficiente e mesmo má? Não há qualquer
dificuldade em responder a essa pergunta: o homem em questão foi Hobbes. Não obstante,
um estudo mais detido mostra que o rompimento radical de Hobbes com a tradição da
filosofia política apenas continua, mesmo que de maneira bastante srcinal, o que foi feito
primeiro por Maquiavel. De fato, Maquiavel questionou não menos radicalmente do que
Hobbes o valor da filosofia política tradicional; de fato, ele sustentou, não menos claramente
do que Hobbes, que a verdadeira filosofia política começava com ele, embora tenha
asseverado a sua pretensão numa linguagem bastante mais discreta em comparação com o
que Hobbes iria fazer.

Duas posições de Maquiavel indicam a sua intenção com a maior clareza possível. A primeira
diz o seguinte: Maquiavel se encontra em profundo desacordo com a visão disseminada a
respeito de como um príncipe deve se conduzir em relação aos seus súditos e amigos; a razão
dessa discordância é que ele está preocupado com a verdade factual, prática, e não com
devaneios; muitos imaginaram repúblicas e principados que jamais existiram, porque olharam

2
para como o homem deve viver em vez de como ele de fato vive. Maquiavel opõe ao idealismo
da filosofia política tradicional uma abordagem realista das coisas políticas. Mas essa é apenas
a metade da verdade (ou, em outras palavras, seu realismo é de um tipo peculiar)2. A outra
metade é afirmada por Maquiavel nos seguintes termos: a fortuna é uma mulher que pode ser
controlada pelo uso da força3. Para entender o significado dessas posições é preciso lembrar-
se do fato de que a filosofia política clássica era uma busca da ordem política melhor, ou do
melhor regime enquanto o regime mais conducente à prática da virtude, ou de como o
homem deve viver, e que de acordo com a filosofia política clássica o estabelecimento do

melhor regime depende necessariamente da enganosa e incontrolável fortuna ou acaso. Na


República de Platão, por exemplo, o estabelecimento do melhor regime depende da
coincidência, da convergência improvável entre filosofia e poder político. Aristóteles, com o
seu assim chamado realismo, concorda com Platão nesses dois aspectos mais importantes: o
melhor regime é a ordem mais conducente à prática da virtude e a atualização do melhor
regime depende do acaso. Pois, de acordo com Aristóteles, o melhor regime não pode ser
estabelecido se a matéria apropriada não estiver disponível, quer dizer, se a natureza do
território e do povo disponíveis não for apta ao melhor regime; o fato dessa matéria estar ou
não disponível em nada depende da arte do fundador, mas do acaso. Maquiavel parece
concordar com Aristóteles ao dizer que não se pode estabelecer a ordem política desejável se
a matéria for corrupta, isto é, se o povo for corrupto; mas aquilo que para Aristóteles era uma
impossibilidade é para Maquiavel apenas uma dificuldade muito grande: a dificuldade pode
ser vencida por um homem extraordinário que usa meios extraordinários para transformar

uma matéria corrupta em boa matéria; esse obstáculo ao estabelecimento do melhor regime,
que é o homem enquanto matéria, o material humano, pode ser vencido porque essa matéria
que é o homem pode ser transformada.

O que Maquiavel chama de as repúblicas imaginárias dos escritores mais antigos está baseado
num entendimento específico da natureza que ele rejeita, ao menos implicitamente. De
acordo com esse entendimento, todos os seres naturais, pelo menos todos os seres vivos, são
dirigidos para um fim, uma perfeição pela qual anseiam; há uma perfeição específica para cada
natureza específica; há, especialmente, uma perfeição do homem que é determinada pela
natureza do homem como animal racional e social. A natureza determina a medida, uma
medida completamente independente da vontade do homem; isso implica que a natureza é
boa. O homem tem um espaço definido no interior do todo, um lugar bastante exaltado; pode-
se dizer que o homem é a medida de todas as coisas ou que ele é o microcosmo, mas ele
ocupa esse lugar por natureza; o homem tem seu lugar numa ordem que ele não criou. “O
homem é a medida de todas as coisas” é o exato oposto de “o homem é o mestre de todas as
coisas”. O homem tem um lugar dentro do todo: seu poder é limitado; o homem não pode
vencer as limitações da sua natureza. Nossa natureza é escrava de muitos modos (Aristóteles)
ou, em outras palavras, somos os títeres dos deuses (Platão). Essa limitação se mostra em
particular no poder inelutável do acaso. A vida boa é a vida de acordo com a natureza, o que
significa permanecer dentro de determinados limites; virtude é essencialmente moderação.
Não há diferença a esse respeito entre a filosofia política clássica e o hedonismo clássico, que

2
Cf. O Príncipe, cap. XV (N. T.).
3
Ibid. cap. XXV (N.T.).

3
não é político: não o máximo de prazeres, mas os prazeres mais puros são o desejável; a
felicidade depende decisivamente da limitação dos nossos desejos.

Para julgar apropriadamente a doutrina de Maquiavel devemos considerar que, no aspecto


crucial, há um acordo entre a filosofia clássica e a Bíblia, entre Atenas e Jerusalém, apesar da
profunda diferença e mesmo antagonismo entre as duas. De acordo com a Bíblia o homem é
criado à imagem de Deus; a ele é dado dominar todas as criaturas terrestres: a ele não é dado
o governo sobre o todo; ele foi posto num jardim para cultivá-lo e guardá-lo; a ele foi dado um
lugar; a justiça é obediência à ordem divinamente estabelecida, exatamente como no
pensamento clássico a justiça é a conformidade com a ordem natural; ao reconhecimento do
enganoso acaso corresponde o reconhecimento da providência inescrutável.

Maquiavel rejeita toda a tradição filosófica e teológica. Podemos apresentar seu raciocínio
como se segue. As posições tradicionais ou levam à conseqüência de que as coisas políticas
não devem ser levadas a sério (Epicurismo) ou de que elas devem ser entendidas à luz de uma
perfeição imaginária – das repúblicas e principados imaginários, o mais famoso deles sendo o
reino de Deus. Deve-se partir de como os homens vivem; é preciso rebaixar o olhar. O
corolário imediato dessa postura é a reinterpretação da virtude: a virtude não deve ser
entendida como aquilo em cujo nome a república existe, mas a virtude existe exclusivamente
em nome da república; a vida política propriamente dita não está sujeita à moralidade; a
moralidade não é possível fora da sociedade política; ela pressupõe a sociedade política; a
sociedade política não pode ser estabelecida e conservada dentro dos limites da moralidade
pela simples razão de que o efeito ou o condicionado não pode preceder a causa ou condição.
Além disso, o estabelecimento da sociedade política, e mesmo da sociedade política mais
desejável, não depende do acaso, pois o acaso pode ser vencido ou a matéria corrupta
transformada em matéria incorrupta. Há uma garantia para a solução do problema político
porque a) a meta é mais baixa, estando em harmonia com o que a maioria dos homens deseja
e b) o acaso pode ser conquistado. O problema político se transforma num problema técnico.
Como diz Hobbes, “quando as repúblicas vêm a ser dissolvidas pela desordem intestina, a
4
culpa não é dos homens enquanto matéria, mas enquanto produtores delas” . A matéria não é
corrupta ou viciosa; não há mal no homem que não possa ser controlado; o que se requer não
é a graça divina, a moralidade ou a formação do caráter, mas instituições que tenham dentes.
Ou, citando Kant, o estabelecimento da ordem social justa não requer, como se tem o hábito
de dizer, uma nação de anjos: “duro como possa parecer, o problema do estabelecimento do
Estado [i.e, do Estado justo] é solúvel mesmo para uma nação de demônios, contanto que eles
tenham bom senso”, isto é, contanto que o seu egoísmo seja esclarecido; o problema político
fundamental é simplesm ente o de “uma boa organização do Estado da qual o homem é, com
5
efeito, capaz”.

Para fazer justiça à mudança operada por Maquiavel deve-se considerar duas grandes
mudanças ocorridas depois do seu tempo que, no entanto, estavam em harmonia com o seu
espírito. A primeira é a revolução na ciência natural, ou seja, a emergência da moderna ciência
natural. A rejeição das causas finais (e, com elas, também do conceito de acaso) destruiu a
base teórica da filosofia política clássica. A nova ciência natural diferencia-se de todas as

4
Leviatã, II, 29 (N.T.).
5
A Paz Perpétua, Primeiro Suplemento, § 1. (N.T.)

4
variadas formas da ciência antiga não apenas por causa do seu novo entendimento da
natureza, mas também e especialmente por conta do seu novo entendimento da ciência: o
conhecimento não é mais entendido como fundamentalmente receptivo; a iniciativa de
entender é do homem, não da ordem cósmica; ao buscar conhecimento o homem traz a
natureza perante o tribunal da sua razão; ele “põe a natureza em questão” (Bacon); o saber é
uma espécie de fazer; o entendimento humano prescreve suas leis à natureza; o poder do
homem é infinitamente maior do que antes se acreditava; não somente o homem é capaz de
transformar a matéria humana corrupta em matéria humana incorrupta, ou vencer o acaso –

mas também toda verdade e sentido têm sua srcem nele; a verdade e o sentido não são
inerentes a uma ordem cósmica que existe independentemente da atividade do homem. Da
mesma forma, a poesia passa a não ser mais entendida como a imitação ou reprodução
inspirada, mas como criatividade. O propósito da ciência é reinterpretado: propter potentiam6,
voltada ao alívio da condição do homem 7, à conquista da natureza, ao controle máximo, ao
controle sistemático das condições naturais da vida humana. A conquista da natureza implica
que a natureza é o inimigo, um caos que deve ser reduzido à ordem; tudo que é bom se deve
ao trabalho do homem, não é um dom da natureza: a natureza fornece apenas os materiais
quase sem valor8. Em conseqüência, a sociedade política não é de modo algum natural: o
Estado é simplesmente um artefato, o fruto de um pacto; a perfeição do homem não é seu fim
natural, mas um ideal livremente formado pelo próprio homem.

A segunda mudança pós-maquiavélica que se encontra em harmonia com o seu espírito tem
que ver exclusivamente com a filosofia política ou moral. Maquiavel havia cortado
completamente a conexão entre a política e a lei ou direito natural, vale dizer, a conexão da
política com a justiça entendida como algo independente do arbítrio humano. A revolução
maquiaveliana chegou à sua força plena apenas quando essa conexão foi restaurada: quando a
justiça, ou o direito natural, foi reinterpretada no espírito de Maquiavel. Essa restauração foi
principalmente obra de Hobbes. Pode-se descrever a mudança operada por Hobbes do
seguinte modo: enquanto antes dele a lei natural era entendida à luz de uma hierarquia dos
fins do homem na qual a autopreservação ocupava o lugar mais baixo, Hobbes entendeu a lei
natural exclusivamente em termos de autopreservação; em conexão com isso, a lei natural
veio a ser entendida primariamente em termos do direito de autopreservação enquanto
oposto a toda obrigação ou dever – um desenvolvimento que culmina na substituição da lei
natural pelos direitos do homem (com “natureza” dando lugar a “homem” e “lei” sendo
substituída por “direitos”). Já no próprio Hobbes o direito natural à autopreservação inclui o
direito à “liberdade corporal” e a uma condição na qual o homem não esteja insatisfeito com a
vida: ele se aproxima do direito à autopreservação confortável que está na base da doutrina
de Locke. Aqui tudo o que posso fazer é apontar para o fato de que a ênfase cada vez maior na
economia é uma conseqüência disso. No fim do processo advém a visão de que a afluência
universal e a paz são as condições necessárias e suficientes da justiça perfeita.

6
Scientia propter potentiam: “saber” ou “ciência” para o poder ou “em nome do poder”, um saber que
tem o poder – e não o saber por si mesmo - como fim (N.T)
7
The relief of Man’s State: expressão baconiana usada para indicar o reino das ciências e a sua
finalidade (N.T.).
8
Almost worthless materials: expressão usada por Locke em contexto similar, em seu Segundo Tratado
do Governo Civil, para indicar o que a natureza oferece ao homem no estado de natureza definido como
um estado de escassez e penúria material (N.T.).

5
A segunda onda da modernidade tem início com Rousseau. Rousseau transformou o clima
moral do Ocidente tão profundamente quanto Maquiavel. Exatamente como fiz no caso do
seu predecessor, vou tentar descrever o caráter do pensamento de Rousseau comentando
uma ou duas das suas afirmações. As características da primeira onda da modernidade foram a
redução do problema político e moral a um problema técnico, e o entendimento de que o
conceito de natureza precisava ser revestido pela civilização entendida como um mero
artefato. Ambas as características se tornaram alvo da crítica de Rousseau. Quanto à primeira,
“os políticos antigos falavam sem cessar de costumes e virtude; os nossos só falam de
9
comércio e de dinheiro”. Rousseau lançou o seu protesto em nome da virtude, da virtude
genuína e não utilitária das repúblicas clássicas, contra as doutrinas degradantes e enervantes
dos seus predecessores; ele se opôs tanto ao espírito sufocante da monarquia absoluta quanto
o comercialismo mais ou menos cínico das repúblicas modernas. Não obstante, Rousseau não
foi capaz de restaurar o conceito clássico de virtude como o fim natural do homem, como a
perfeição da natureza do homem; ele foi forçado a reinterpretar a virtude em razão de ter-se
apropriado do moderno conceito de estado de natureza como o estado no qual o homem se
acha no princípio. Ele não se apropriou simplesmente desse conceito estabelecido por Hobbes
e desenvolvido por seus sucessores; ele o pensou até o fim: “os filósofos que examinaram os
fundamentos da sociedade sentiram todos a necessidade de remontar ao estado de natureza,
10
mas nenhum deles chegou até lá”. Rousseau chegou porque viu que o homem no estado de
natureza é um homem desprovido de tudo o que veio a adquirir por seus próprios esforços. O
homem no estado de natureza é subhumano ou pré-humano; a sua humanidade e

racionalidade foram adquiridas por meio de um longo processo. Em linguagem pós-


rousseauniana, a humanidade do homem é devida não à natureza, mas à história, ao processo
histórico, um processo singular ou único que não é teleológico: o fim do processo ou o seu
ápice não foi previsto e não era previsível, mas tornou-se visível apenas com a aproximação da
possibilidade de tornar plenamente atual a racionalidade e a humanidade do homem. O
conceito de história, isto é, do processo histórico como um processo único no qual o homem
se torna humano sem pretendê-lo, é uma conseqüência da radicalização rousseauniana do
conceito hobbesiano do estado de natureza.

Contudo, como podemos saber que um determinado estágio do desenvolvimento do homem é


o seu ápice? Ou, mais geralmente, como podemos distinguir o bem do mal se o homem é por
natureza subhumano, se o estado de natureza é subhumano? Cabe-nos repetir: ao homem
natural de Rousseau falta não apenas, como acontece com o homem natural de Hobbes, a vida
social, mas também a racionalidade; ele não é o animal racional, mas o animal que é um
agente livre ou, mais precisamente, que possui uma perfectibilidade ou maleabilidade quase
ilimitada. Mas como ele deve ser moldado ou moldar-se a si mesmo? A natureza do homem
parece ser inteiramente insuficiente para fornecer-lhe uma orientação. A orientação que ela
dá a ele está limitada ao seguinte: sob determinadas condições, isto é, num determinado
estágio do seu desenvolvimento, o homem é incapaz de preservar a si mesmo a não ser pelo
estabelecimento da sociedade civil; no entanto, ele colocaria em risco a sua autopreservação
se não garantisse para a sociedade civil uma estrutura de certo tipo, uma estrutura
conducente à sua autopreservação: o homem deve obter no interior da sociedade o

9
Primeiro Discurso (Discurso sobre as ciências e as Artes), Segunda Parte (N.T.)
10
Segundo Discurso, “Introdução” (N.T.).

6
equivalente pleno da liberdade que possuía no estado de natureza; os membros da sociedade
devem ser igualmente sujeitos e inteiramente sujeitos às leis para cuja produção todos devem
ser capazes de contribuir; não deve haver possibilidade de apelar das leis positivas a uma lei
mais alta, a uma lei natural, pois tal apelo colocaria em risco o império das leis. A fonte da lei
positiva, e de nada mais que a lei positiva, é a vontade geral; uma vontade inerente ou
imanente à sociedade adequadamente constituída toma o lugar da lei natural transcendente.
A modernidade partiu da insatisfação com o abismo entre o ser e o dever ser, o atual e o ideal;
a solução sugerida na primeira onda foi aproximar o dever ser do ser rebaixando o dever ser,

concebendo o dever ser de maneira a não fazer exigências altas demais aos homens, ou como
estando de acordo com a paixão mais poderosa e mais comum do homem; a despeito desse
rebaixamento, a diferença fundamental entre ser e dever ser permaneceu; mesmo Hobbes
não foi capaz de simplesmente negar a legitimidade da remissão, a partir do ser, da ordem
estabelecida ao dever ser, à lei natural ou moral. O conceito rousseauísta da vontade geral
que, enquanto tal, é infalível – ao meramente ser a vontade geral é o que deve ser – mostrou
como a separação entre o ser e o dever ser podia ser vencida. Em sentido estrito, Rousseau
operou essa demonstração apenas com a condição de que a sua doutrina da vontade geral, a
sua doutrina política propriamente dita, fosse ligada à sua doutrina do processo histórico, e
essa ligação foi obra de seus grandes sucessores, Kant e Hegel, e não do próprio Rousseau. De
acordo com essa visão, a sociedade justa ou racional, a sociedade caracterizada pela existência
de uma vontade geral conhecida como sendo a vontade geral, numa palavra, a sociedade ideal
é necessariamente atualizada pelo processo histórico sem que o homem tenha a intenção de

atualizá-la.
Por que a vontade geral é infalível? Por que a vontade geral é necessariamente boa? A
resposta é: ela é boa porque é racional, e ela é racional porque é geral; ela surge através da
generalização da vontade particular, da vontade que enquanto tal não é boa. O que Rousseau
tem em mente é a necessidade, numa sociedade republicana, de que todos dêem aos seus
desejos, ao que demandam dos seus compatriotas, a forma de leis; o cidadão não pode
simplesmente dizer: “eu não desejo pagar impostos”; ele deve propor uma lei abolindo os
impostos; ao transformar seu desejo numa possível lei o cidadão se dá conta da insensatez da
sua vontade primária ou particular. É, assim, a mera generalidade de uma vontade que garante
a sua bondade; não é necessário recorrer a quaisquer considerações substantivas, a quaisquer
considerações a respeito do que a natureza do homem, ou a sua perfeição natural, requer.
Esse pensamento epocal atingiu a plena claridade na doutrina moral de Kant: o teste suficiente
para a bondade de uma máxima da ação é a sua susceptibilidade de tornar-se princípio de
legislação universal; a mera forma da racionalidade, vale dizer a universalidade, garante a
bondade do conteúdo. Portanto, as leis morais, enquanto leis da liberdade, não são mais
entendidas como leis naturais. Os ideais morais e políticos são estabelecidos sem referência à
natureza do homem: o homem é radicalmente liberado da tutela da natureza. Argumentos
contra o ideal tirados da natureza do homem, conhecidos a partir da incontestável experiência
das eras, perdem a importância: o que é chamado de natureza do homem é meramente o
resultado do desenvolvimento do homem até agora; é simplesmente o passado humano, que
não pode fornecer orientação alguma para o futuro possível do homem; a única orientação a
respeito do futuro, a respeito do que os homens devem fazer ou aspirar, é fornecida pela

7
razão. A razão toma o lugar da natureza. Esse é o significado da afirmação de que o dever ser
não tem qualquer base no ser.

Isso é tudo sobre aquela parte do pensamento de Rousseau que inspirou Kant e a filosofia
idealista alemã, a filosofia da liberdade. Mas há outro pensamento fundamental de Rousseau,
não menos importante do que o que acabamos de discutir, que, com efeito, foi abandonado
por Kant e seus sucessores, mas que deu frutos em outra parte do globo moderno. O idealismo
alemão aceitou e radicalizou a noção de vontade geral e as implicações desse conceito. Ele
abandonou as reservas de Rousseau sobre essa linha de raciocino: “O homem nasceu livre mas
em toda parte está a ferros. Como essa mudança ocorreu? Ignoro-o. O que pode torná-la
legítima? Creio poder resolver essa questão”11. Quer dizer, a sociedade livre, a sociedade
caracterizada pela existência da vontade geral em seu interior, se distingue da sociedade
governada despoticamente ao configurar-se como servidão legítima em contraste com a
servidão ilegítima; ela mesma é servidão. O homem não encontra a sua liberdade em
sociedade alguma; ele pode encontrá-la somente retornando da sociedade, não importa quão
boa ou legítima, para a natureza. Em outras palavras, a autopreservação, o conteúdo do
direito natural fundamental do qual o contrato social é derivado, não é o fato fundamental; a
autopreservação não seria boa se a mera vida, a mera existência, não fosse boa. A bondade da
mera existência é experimentada no sentimento da (própria) existência. É esse sentimento que
dá ensejo à preocupação com a preservação da existência, a toda atividade humana; mas essa
mesma preocupação impede o gozo fundamental e torna o homem triste. Apenas retornando
à experiência fundamental o homem pode ser feliz; apenas uns poucos homens são capazes de
fazer isso, ao passo que todos os homens são capazes de agir em conformidade com o direito
derivado da autopreservação, isto é, viver como cidadãos. Do cidadão se exige que cumpra o
seu dever; o cidadão deve ser virtuoso. Mas virtude não é bondade. Bondade (sensibilidade,
compaixão) sem sentido de dever ou obrigação, sem esforço – não há virtude sem esforço – é
o apanágio do homem natural, do homem que vive nas fronteiras da sociedade sem fazer
parte dela. Há uma distância intransponível entre o mundo da virtude, da razão, da liberdade
moral e da história, de um lado, e a natureza, a liberdade natural e a bondade, do outro.

Nesse ponto, uma observação geral sobre a noção de modernidade parece apropriada. A
modernidade foi entendida desde o princípio por oposição com a Antiguidade: a modernidade
podia incluir, portanto, o mundo medieval. A diferença entre o moderno e o medieval, de um
lado, e a Antiguidade, do outro, foi reinterpretada por volta de 1800 como a diferença entre o
romântico e o clássico. No sentido mais restrito, o romantismo foi o movimento de
pensamento e sentimento iniciado por Rousseau. Decerto o romantismo é mais claramente
moderno que o classicismo em qualquer de suas formas. Talvez o maior documento do fértil
conflito entre modernidade e Antiguidade entendido como o conflito entre o romântico e o
clássico seja o Fausto de Goethe. Fausto é chamado pelo próprio Deus de “um homem bom”.
Esse bom homem comete crimes atrozes, tanto privados quanto públicos. Não discorrerei aqui
sobre o fato de que ele encontra a sua redenção realizando uma ação pública salutar, uma
ação que lhe permite viver numa terra livre entre um povo livre, e que essa ação política
salutar não é criminosa ou revolucionária, mas estritamente legítima: o que a torna possível é
a concessão de um feudo pelo imperador da Alemanha. Limitar-me-ei a sublinhar o fato de

11
Do Contrato Social, I, 1 (N.T.).

8
que a bondade de Fausto decididamente não é virtude – quer dizer, que o horizonte moral da
obra mais célebre de Goethe foi inaugurado por Rousseau. É verdade que a bondade de Fausto
não é idêntica à bondade no sentido de Rousseau. Enquanto a bondade de Rousseau tem que
ver com abster-se da ação, com uma espécie de repouso, a bondade de Fausto é inquieta, uma
luta infinita, uma insatisfação com tudo o que é finito, acabado, completo, “clássico”. O
significado do Fausto para a modernidade, para a maneira com que o homem moderno
entende a si mesmo como homem moderno, foi devidamente compreendido por Spengler,
que chamou o homem moderno de homem fáustico. Podemos dizer que Spengler substituiu
“romântico” por “faustico” ao descrever o caráter da modernidade.

Da mesma forma que a segunda onda da modernidade está relacionada à Rousseau, a terceira
se relaciona com Nietzsche. Rousseau nos coloca frente a frente com a antinomia entre
natureza, de um lado, e sociedade civil, razão, moralidade e história, do outro, de tal modo
que o fenômeno fundamental se torna o sentimento beatífico da existência – de união e
comunhão com a natureza – que pertence inteiramente à dimensão da natureza enquanto
distinta da razão e da sociedade. A terceira onda pode ser descrita como constituída por um
novo entendimento do sentimento da existência: esse sentimento é a experiência do terror e
da angústia em vez da harmonia e da paz, e é o sentimento da existência histórica como
necessariamente trágica; o problema humano é, com efeito, insolúvel enquanto problema
social, como disse Rousseau, mas não há fuga do humano para o natural; não há possibilidade
de felicidade genuína, ou o mais alto de que o homem é capaz não tem nenhuma relação com
a felicidade.

A propósito eu c ito Nietzsche: “todos os filósofos têm o defeito comum de partir do homem
atual e acreditar que podem atingir a sua meta por meio de uma análise do homem atual. A
ausência de sentido histórico é o defeito congênito de todos os filósofos”12. A crítica de
Nietzsche a todos os filósofos anteriores é uma reelaboração da crítica de Rousseau a todos os
filósofos anteriores. Mas o que faz bastante sentido em Rousseau é bastante estranho em
Nietzsche; pois entre Rousseau e Nietzsche deu-se a descoberta da história; o século que vai
de Rousseau a Nietzsche é o século do sentido histórico. Nietzsche sugere que, até ele, a
essência da história havia sido mal compreendida. O mais poderoso filósofo da história foi
Hegel. Para Hegel o processo histórico era um processo racional e razoável, um progresso que
culminava no Estado racional, o Estado pós-revolucionário. O cristianismo é a religião
verdadeira ou absoluta; mas o cristianismo, para Hegel, consiste na reconciliação da religião
cristã com o mundo, com o saeculum, na sua completa secularização, um processo iniciado
com a Reforma, continuado pela Ilustração e finalizado no Estado pós-revolucionário, que é o
primeiro Estado baseado no reconhecimento dos direitos do homem. No caso de Hegel,
somos, com efeito, compelidos a dizer que a essência da modernidade é o cristianismo
secularizado, porquanto a secularização é a intenção consciente e explícita de Hegel. De
acordo com ele, há um ápice e um fim da história, o que lhe possibilita reconciliar a ideia da
verdade filosófica com o fato de que todo filósofo é filho de seu tempo: a filosofia verdadeira e
final pertence ao momento absoluto na história, ao ápice da história. O pensamento pós-
hegeliano rejeitou a noção de que pode haver um fim ou ápice da história, entendendo o
processo histórico como não acabado ou inacabável, embora retendo a crença, agora sem

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Humano, Demasiado Humano, I (“Das coisas primeiras e últimas”), 2 (N.T.).

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fundamento, na racionalidade ou no caráter progressivo do processo histórico. Nietzsche foi o
primeiro a encarar essa situação. O insight de que os princípios do pensamento e da ação são
históricos não pode ser atenuado pela esperança sem fundamento de que a seqüência
histórica desses princípios tenha um sentido intrínseco, uma orientação intrínseca. Todos os
ideais são resultado de atos da criação humana, de livres projetos humanos que formam o
horizonte dentro do qual as culturas específicas são possíveis; eles não se ordenam num
sistema; e não há possibilidade de chegar a uma síntese genuína deles. Mas, não obstante,
todos os ideais conhecidos alegaram ter um fundamento objetivo: na natureza ou em Deus ou

na razão. O insight sobre a história destrói essa alegação e, com ela, todos os ideais
conhecidos. Mas é precisamente a percepção da verdadeira srcem de todos os ideais – nas
criações ou projetos humanos – que torna possível um tipo radicalmente novo de projeto, a
transvaloração de todos os valores, um projeto que está de acordo com o novo insight embora
não possa ser deduzido dele (pois se assim fosse ele não seria devido a um ato criador).

Mas tudo isso não implica que a verdade foi finalmente descoberta – a verdade sobre todos os
princípios possíveis de pensamento e ação? Nietzsche parece hesitar entre admitir isso e
apresentar o seu entendimento da verdade como o seu projeto ou a sua interpretação. Mas,
de fato, ele escolheu a primeira alternativa; ele acreditou ter descoberto a unidade
fundamental entre a criatividade do homem e todos os seres: “onde quer que eu tenha achado
vida, achei também vontade de poder”13. A transvaloração de todos os valores que Nietzsche
tenta realizar é em última instância justificada pelo fato de que a sua raiz é a mais alta vontade
de poder – uma vontade de poder mais alta do que aquela que fez surgir todos os valores
anteriores. Não o homem como ele foi até então, mesmo nos exemplos mais elevados, mas
apenas o Super-homem será capaz de viver de acordo com a transvaloração de todos os
valores. O insight final sobre o ser conduz ao ideal final. Ao contrário de Hegel, Nietzsche não
diz que o insight final sucede à atualização do ideal final, mas antes que o insight final abre o
caminho para a atualização do ideal final. Nesse sentido a posição de Nietzsche se assemelha à
posição de Marx. Mas há esta diferença fundamental entre Nietzsche e Marx: para Marx o
advento da sociedade sem classes é necessário, ao passo que para Nietzsche o surgimento do
Super-homem depende da livre escolha do homem. Apenas uma coisa é certa para Nietzsche a
respeito do futuro: o fim chegou para o homem como ele foi até então; agora o que virá ou é o
Superhomem ou o Último homem. O último homem, o homem mais baixo e decadente, o
homem-rebanho sem ideais e aspirações, mas bem alimentado, bem agasalhado, bem
abrigado e bem medicado pelos médicos ordinários e pelos psiquiatras é o homem do futuro
de Marx visto de um ponto de vista anti-marxista. Ainda assim, a despeito da oposição radical
entre Marx e Nietzsche, o estado final ou o ápice é caracterizado aos olhos de ambos pelo fato
de que ele marca o fim do reino do acaso: pela primeira vez o homem será o mestre do seu
destino.

Há uma dificuldade que é peculiar a Nietzsche. Para ele toda vida genuinamente humana, toda
alta cultura tem necessariamente um caráter hierárquico e aristocrático; a mais alta cultura do
futuro deve estar de acordo com a ordem natural de posições entre os homens, uma ordem
que Nietzsche, em princípio, entende em termos platônicos. No entanto, como pode haver
essa ordem natural de posições dado o, por assim dizer, poder infinito do Super-homem? Para

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Assim Falou Zaratrusta, XXXIV (N.T.).

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Nietzsche o fato de que quase todos os homens são defeituosos e fragmentários não pode ser
devido a um suposto ditame da natureza; mas apenas a uma herança do passado ou da
história tal como ela desenvolveu-se até então. Para evitar essa dificuldade, isto é, para evitar
o anseio pela igualdade de todos os homens exatamente quando o homem se encontra no
ápice do seu poder, Nietzsche precisa da natureza ou do passado como fontes de autoridade
ou ao menos como algo inescapável. Contudo, uma vez que essa autoridade não é mais para
ele um fato inegável, ele deve querê-la, vale dizer, postulá-la. Esse é todo o sentido da sua
doutrina do Eterno Retorno. O retorno do passado, de todo o passado, tem de ser objeto da

vontade se o Super-homem deve ser possível.


Com certeza a natureza do homem é vontade de poder e isso significa, no nível primário, a
vontade de sobrepujar os outros; o homem não quer por natureza a igualdade. O homem
deriva seu gozo de subjugar os outros assim como a si mesmo. Enquanto o homem natural de
Rousseau é compassivo, o homem natural de Nietzsche é cruel.

O que Nietzsche diz a respeito da ação política é muito mais indefinido e vago do que o que diz
Marx. Em certo sentido, todo uso político de Nietzsche é uma perversão do seu ensinamento.
Não obstante, o que ele disse foi lido por homens políticos e os inspirou. Ele é tão pouco
responsável pelo fascismo quanto Rousseau foi responsável pelo jacobinismo. Isso quer dizer,
entretanto, que ele é tão responsável pelo fascismo quanto Rousseau o foi pelo jacobinismo.

A mim toca tirar uma conclusão política das observações precedentes. A teoria da democracia

liberal, assim como a do comunismo, teve a sua srcem na primeira e segunda ondas da
modernidade; a implicação política da terceira onda provou ser o fascismo. No entanto, esse
fato inegável não nos autoriza a retornar às formas mais antigas do pensamento moderno: a
crítica nietzscheana do racionalismo moderno ou da moderna crença na razão não pode ser
desprezada ou esquecida. E essa é a razão mais profunda para a crise da democracia liberal. A
crise teórica não leva necessariamente a uma crise prática, pois a superioridade da democracia
liberal em relação ao comunismo, stalinista ou pós-stalininista, é suficientemente óbvia. E,
acima de tudo, a democracia liberal, à diferença do comunismo e do fascismo, encontra um
apoio poderoso em um modo de pensar que não pode de modo algum ser chamado de
moderno: o pensamento pré-moderno da nossa tradição ocidental.

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