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Ecos do Atlantico Sul Representagdes sobre o terceiro império portugués Omar Ribeiro Thomaz Editora UFRJ . Fapesp 2002 Capitulo 4. A festa da de romance, Orsenna, nem mesmo de novelas, sou escritor de poucas palavras. “Um caos sabiamente ordenado de plantas, de animais e de seres humanos.” Diga com franqueza, Orsenina, nio é exatamente isso uma exposigo colonial? |.) Li estava todo o império, sim, o império sem seus inconvenientes. Sem seu cima, por exemplo, Com as cabanas, os templos, oexército, as grandes arvores. (Orsenna, 1990, p. 308-318) 0 Estado Novo, em meados da década de 1930, parecia garantir nio apenas a familia, a ordem eo império: para alguns dos seus entusiastas, tais como Henrique Galvao e Anténio Ferro, também os desejos de modernizacao da metrépole ¢ dos territérios ultramarinos dever- se-iam projetar no regime personificado por Salazar. Esta efémera “eletrizagdo” de homens do mundo da cultura teria como resultado grandes realizagdes que aproximariam Portugal das demais metrépoles coloniais. 0 filme Feitico do império (1940), de Anténio Lopes Ribeiro, ilustra nao so a adesio de determinados nticleos intelectuais em torno do regime e a afirmagao de uma certa mexitalidade imperial, mas a disponibilidade de meios e recursos para realizagoes até entdo consideradas dispendiosas para um pequeno pais como Portugal. Com efeito, a glorificagéo da nagao como espao pluricontinental no cinema ficcional teve pouco eco no Portugal do Estado Novo. Apenas dois filmes foram realizados, o jd citado Feitico do imperio Chaimite, de 1953. Nao foram, contudo, de pouca importincia, tendo em vista 0 elevado custo de uma produgao “imperial” ¢, ainda, o seu grande impacto junto 20 piblico, sobretudo no caso de Feitiga, idealizado no ambito da imensa influéncia cultural de Anténio Ferro ¢ das celebragdes centenarias de 1940.’ Se nao podemos afirmar que o cinema portugués tenha sofride o mesmo grau de instru- mentalizagao ¢ interferéncia do ditador que as cinematografias de outros paises submetidos a regimes autoritdrios ou totalitarios (Alemanha, Unido Sovieética, Itilia ou Espanha), a definigao de “salazarista” para um determinado tipo de cinematografia nao é de todo equivocada. Efeti- vamente, um regime que se manteve por tanto tempo nao poderia deixar de marcar profunda- 1 Chaimitefot dirigido por Jorge Brum de Canto e, como salienta Jorge Leitéo Ramos (1993, p. 198), é essencialmente, dda mesma indole de Feitipo. Narrando a saga de Mouzinho de Albuquerque e Paiva Couceiro, contém grandes virtudes Dlisticas, tais como as qualidades formais no campo da movimentacio das massas ou encenagies bélicas; seu interesse atval resid, sobretudo, na personagem de Gugunhana: “o ator indigena chamado a representar Gugunhana esmaga com um olhar onde passam séculos de humilhagdo recalcada o retrico ator teatral - Jacinto Ramos ~ que fez © papel de Mouzinho* (Bénard da Costa apud Ramos, J. L, 1993, p. 398) Cartar do filme Feitico do Império, wm dos grandes sucessos de piblico do cinema portugués; na imagem a sintese ‘da aventura romantica, do exotismo ¢ do cosmopolitismo do Império, mente a produgao cinematogrifica, de forma que o cinema foi veiculo privilegiado para a difu sao de um ideal de familia, religiosidade ou cultura popular. Nao podemos esquecer ainda que, ho auge de sua producao (década de 1940), o cinema portugués glorificou na comédia uma visio feliz do Portugal salazarista. Feliz porque simples, com personagens nem muito ricos nem muito pobres, que tratavam de levar a vida como podiam, regados pelo bom vinho, co- mendo bacalhau ou sardinha assada ao som do fado. Cinema de “escapismo", a comédia, que se propunha “retratar” a vivencia pequeno-burguesa de Lisboa ou do P ‘orto, as traquinices dos A festa estudantes de Coimbra ou as virtudes da vida campestre, em muito distava da realidade coti- diana das aldeias, bairros proletérios ou das “furnas de Monsanto"? Sabemos que, par a par com a trilogia “Deus, Patria e familia", da famosa lico de Salazar,’ © “império” surgia como pilar ideoldgico de um regime que se estruturava na afirmagdo de uma rigida moral catélica, no controle dos costumes ¢, sobretudo, na consolidago da hierarq hierarquia revelada na relacao do “pai” (Salazar) com os seus “filhos” (os portugueses), na rela~ Gio do pater familias com as mulheres € os filhos, na relagio da metrépole com as colénias. E se © regime surge nos filmes de propaganda e a trilogia nos enredos da comédia portuguesa, 0 império nao poderia escapar do cinema. A agdo colonial portuguesa ou 0 exotismo dos povos ultramarinos jt tinham aparecido na grande tela num pequeno documentario realizado por ocasiao da Grande Exposigao Industrial Portuguesa de 1932 (quando se filmou o dia-a-dia de uma “aldeia da Guiné” no curta Africa em Lisboa), ou no média-metragem Exposi¢ao histérica da ocupacdo, de Lopes Ribeiro (1937). Este mesmo diretor integrou, como diretor artistico, a Missio Cinegrifica as Colénias de Africa (criada pelo Ministério das Colénias), chefiada pelo militar, colonialista, escritor e dramaturgo Carlos Selvagem (Ramos, J. L, 1993, p. 396).' Esta embaixada cinematografica recolheu ima- gens na Madeira, Cabo Verde, Guiné, Sao Tomé e Principe, Angola e Mocambique com o abje- ‘0 claro de aciimulo de material para a realizacao de um grande filme “imperial” (Ribeiro, M., 1983, p. 410). E no dia 23 de maio de 1940 estreou, no Eden Teatro em Lisboa, o Feitica do 2 Nao se trata de cobrar aqui um cinema ‘neo-realista” portugués ~ embora o Aniki-Bobs (1942), de Manuel de Oliveira, antecipasse muitas de suas questdes nas imagens maravilhosas dos meninos na beira do Douro -, mas simplesmente de chamar a atengdo para o “escapismo” da comédia num pais onde a expectativa média de vida era fm 1940, de 47 anos para os homens 51 anos para as mulheres, a mortalidade infantil era de 126] 1.000 ¢ 809% da populagio vivia nas areas rurais (Rosas, 1994, p. 23-27). Sobre as condigdes de vida dos bairros operarios, ver Rosas (1994, p. 99). 3 Para uma analise detida da ideologia e mentalidade do salazarismo a partir da “ligho de Salazar’, ver Medina (1993, v.13, p. 15-48), 4 Lopes Ribeiro converter-se-ia no “cineasta oficial” do salazarismo; escreveu, junto com Anténio Ferro, 0 Kevolupo de Maio (realizado pelo priprio Ribeiro), que estreou em 1937, ¢ seria o realizador, a cargo do Servico Nacional de Propaganda, dos filmes oficials As festas do duplo centendrio e A Exposiedo do Mundo Portugués. No imbito da propaganda, realizaria ainda A inauguraco do Estédio Nacional (1944), A manifestagdo a Carmona e Salazar pela ‘paz portuguesa 1945), Quinze anos de obras publicas (1948), Uma revolucdo na paz\(1948), Jubilew a Salazar(\953), Trinta anos de Salazar(1957), Salazar e a nacdo (1958), além de documentérios sobre 2s viagens do chefe de Estado 4 coldnias ou de altos designatarios a Portugal. Jé na agonia do regime, Antonio Lopes Ribeiro seri o encarregado do filme encomendado sobre as exéquias de Salazar: Portugal de uto na morte de Salazar(1970) (Ramos, J. L- 1993, p. 396-397), ‘Ao lado: A sido de Salazar: Casa do Povo; abaixo: A lipo de Salazar: Deus, Patcia e Familia (desenhos de Martins Barata, 1938; Medina, 1993). A Ligao de Salazar fol distribuida por todas as escolas do pais Um dos principios ‘que procurava difudir era o do Estado corporativo que teria superado 0s confitos socials. 0 periodo anterior ao Estado Novo € represeatado como pobre ¢ esorganizado; 0 Estado Novo instaur fordem e a limpeza. As casas do povo setiam o lugar “natural” para a solugo dos problemas da comunidad, Observe-se que o espago da rua é basicamente masculino. A ligdo de Salazarreproduzia enfim o ideal do lar e da familia, 196 A festa ‘império, contando com a presenga do general Carmona ¢ de Oliveira Salazar ~ algo raro, pois é sabido que o ditador odiava o cinema. Produzido pela Agéncia Geral das Colénias, o filme contava com quase duas horas © meia de duragdo e teve um custo sem paralelo se tivermos em conta 0s modestos recursos financeiros da comédia portuguesa (ibid., p. 413). A Missio Cinegrafica trouxera todo 0 material de exteriores necessirio para a realizagao do filme, e os interiores foram executados nos estiidios da Tobis, todos de autoria de Anténio Soares (pintor do seleto grupo composto por Almada Negreiros, Santa Rita Pintor, Mario Eloy, centre outros, responsiivel pela introdugio do modernismo na arte portuguesa). 0 elenco estava composto pelos grandes nomes da comédia lusitana de entdo, e a narrativa era, de certa forma, estranha aos tradicionais cdnones portugueses (com excecdo do Revolugdo de Maio e outros filmes de propaganda fascista). Agitado, o enredo se ambienta em distintos lugares. Francisco Morais, 0 “ricaco de Boston”, filho de uma préspera familia lusitana emigrada aos Estados Unidos, decide, contrariando seu pai, naturalizar-se norte-americano. Os pais, inconformados de ver o filho abrir mao da sua nacionalidade, convencem-no a viajar & Patria, por ndo acreditarem que um portugués, 20 en- trar em contato com realidade de seu pais, possa querer deixar de ser portugues. Em Lisboa, 0 herdi com tudo se aborrece: a modorra da capital lusa, o fado (que encontra por todas as partes), © radio, os restaurantes tipicos... Sua viagem no acaba, contudo, no pequeno Portugal metro- politano, ¢ Francisco viaja a Africa, atraido pela possibilidade da caca, atividade da qual ¢ entusiasta, E ¢ em Angola, diante da multirracialidade, da paz social, da imensa paisagem (e apaixonado por uma moga branca do sul da colénia) que o herdi se converte “portugalidade”: 0 luso-americano se rende ao feitigo do “viver portugués” € se recusa a abrir mao da nacionali- dade (Pina, 1986, p. 100). Feitico, para além de revelar ao publico as infinitas paisagens africanas, a fauna ¢ o exotismo das populagées nativas, procurava afirmar, numa Europa em guerra, a paz e a unidade de um Portugal espalhado pelos quatro cantos do mundo. Na Africa, Francisco se encontra com os colonos, imagem viva da historia de Portugal, e participa da recepgio apotedtica do general Carmona em Luanda. 0 filme se encerra com a seguinte afirmagdo: “Nés, os portugueses ¢ 0 mar, somos tu ca, tu li, E estar em Africa, ¢ como se estivéssemos na Beira ou no Alentejo. (...] Estar cd ou 14, € tudo a mesma coisa” (Ramos, J. L. 1993, p. 398). Feitico do império corresponde, de certa forma, a0 auge da ideologia imperial salazarista, agora exlbida para o grande puiblico que lota as salas de espeticulo de Lisboa, do Porto e de Coimbra. Para termos uma compreensio mais precisa do lugar de tal empreitada, & necessario observarmos que o filme teve sua estréia no ano de 1940 € foi um dos muitos eventos que congregaram 0 portugueses em torno das celebragdes centendrias, da nacao do império. 0 199 mais grandioso foi, com toda a certeza, a Exposi¢do do Mundo Portugués, que contou com uma primorosa Seco Colonial, para além dos muitos pavilhdes dedicados ao Portugal metropolita~ no € ao Brasil. A exposigio foi um palco onde se encenou o “drama” glorioso que seria a histéria de Portugal ¢ dos portuguescs nos quatro cantos do mundo. Um verdadeiro ritual de massa, con- cebido pelo ditador em conjunto com outras personalidades que, como Henrique Galvao, Antonio Ferro, 0 cardeal Cerejeira, entre outros, conclamavam todos os portugueses a ver ¢ sentir a sua historia e realidade presente, dela participando de perto. Tal como o cinema, a exposigio foi um fenémeno cultural ligado as grandes massas. E foi com as outras metropoles imperiais (ow nao tao imperiais) que dialogou a Exposigao do Mundo Portugués. Antes, entdo, de analisarmos os eventos de 1940, nos deteremos, brevemente, em rituais da mesma natureza que tiveram lugar em outras metropoles ¢, sobretudo, no seu “ensaio geral", a Exposigdo Colonial do Porto de 1934, Veremos, assim, que as exposiydes portuguesas faziam parte de uma tradigdo ocidental. Se nos capitulos anteriores sobre o saber e a literatura coloniais detive-me basicamente na forma e no conteiido que tais manifestages assumiram em Portugal, neste capitulo convém fazer uma breve descrigdo das exposigées realizadas nas ou- | tras metrdpoles coloniais. Dado que nem todos os portugueses podem viajar as coldnias c ter uma visio exata do seu lugar no mundo, os organizadores das exposigdes lusas ~ entre eles 0 nosso viajante e contador de histérias Henrique Galvao - se propuscram trazer 0 império, suas terras e suas gentes para 0 Porto ¢ para Lisboa, com a mesma promessa das exposigdes realizadas em Londres ou Paris, de proporcionar “a volta do mundo num dia” “A volta do mundo num di 0 Palacio de Cristal Em 1851 realizou-se, em Londres, a I Exposigao Universal, The Great Exhibition of the Works of Industry of All Nations, cujo simbolo, o Palacio de Cristal, marcou 0 imaginario de uma época. Projetado e construido pelo arquiteto Joseph Paxton, o Palacio de Cristal transfor- ‘mou-se rapidamente numa espécie de “catedral” onde se veneravam 0 progresso ¢ as glérias da Revolucéo Industrial. Construido apés 0 boom, na Gra-Bretanha, das ferrovias na década de 1840, 0 palicio foi visitado, ao longo dos seis meses que durou a I Exposigao Universal, por cerca de um quinto da populacao britdnica (Stocking, 1987). 198 A festa A grande exibicdo de 1851 inaugurava uma era em que as poténcias que se formavam encontraram um novo espaco de enfrentamento. Os progressos tecnolégicos das diferentes nagdes, as maquinarias em movimento ~ “mil monstros de ferro bufando © se movendo” (Stocking, 1987, p. 3) - ¢ 0 desenvolvimento das técnicas de construcio fascinavam a assistén- No interior desta grande estrutura, com sua alta nave central, suas galerias laterais e sua abébada em forma de cruz, Paxton € os engenheiros que com ele colaboraram criaram um novo tipo de espago arquiteténico. De grande volume, parecia ilimitado, definido unicamente por uma rede tridimensional de coordenadas composta por montantes e vigas de ferro distribuidas regularmente, Estes elementos, desenhados para produco em série de forma que pudessem ser desmontados to facilmente como se montavam, tinham uma inusitada elegancia mecdnica (Hitchcock, 1985, p. 199-200), Nao se tratou propriamente de uma nova técnica - 0 ferro, 0 vidro, conglomerados plasticos € o concreto jé haviam sido utilizados anteriormente -, mas da instauragao de um novo método de projeto ¢ realizado e do emprego de segmentos metilicos € chapas de vidro produzidos em série e levados a obra prontos para serem utilizados. A cons- trugio se reduzia, assim, 4 rapida montagem de pecas pré-fabricadas, e 0 material podia ser, Posteriormente, recuperado (Argan, 1984, p. 98-99). O desenho arquiteténico e a engenharia compartilhavam 0 resultado das transformagdes sofridas pela construgao nas décadas anterio- Tes. A substituicdo da lenha pelo carvao possibilitara a produgao de ferro em escala industrial, e © seu uso ao lado do cimento como material de construgao estava associado a seu baixo custo, 4 possibilidade de transporta-los de forma pré-fabricada da fibrica & obra, As suas qualidades como material de suporte que permitiam a cobertura de amplos espagos com um minimo de pontos de apoio e & formagao de instituigdes especializadas na formagtio de técnicos e enge- nheiros (ibid., p. 98). £ dificil imaginarmos 0 impacto do Palacio de Cristal na sociedade européia da época; 0 edificio passou a representar todas as conquistas da Revolucdo Industrial e, por si sé, era a tradugao do desenvolvimento da Gra-Bretanha, que, por um certo tempo, se esqueceu dos miseraveis suburbios de Londres ¢ Manchester.’ 0 entio secretério da Comissio Executiva da Exposigdo, Sir Matthew Digby Wyatt, manifestou no Official descriptive and illustrated catalo- gue sua admiragdo diante do potencial da Gra-Bretanha, expresso no palacio, ¢ afirmou que a presenga das demais nacdes com amostras de sua producdo nao faria mais do que confirmar a superioridade britanica (Klingender, 1983, p. 253-254) 5 Em Manchester, a expectativa de vida para “profissionais ¢ classes acomodadas” era de 38 anos, de 20 anos para (os comerciantes € de 17 anos para os trabalhadores, a0 passo que na zona rural de Rutlanshire para os mesmos ‘grupos era de 52, 41 e 38 anos respectivamente (KKingender, 1938, p. 257-259). 0 Palacio de Cristal simbolizou, nas palavras de Stocking (1987), um “precipicio no tem- po". A sua construgao veio acompanhada de uma série de transformacdes econdmicas, sociais € culturais que afetariam profundamente a vida da humanidade: um passo no tempo, sem volta atris. Com toda a certeza, as afirmagdes do secretirio da Comissio Executiva dizem muito do espirito da época. Nao obstante, a sensacio de “precipicio” foi vivida com temor e desesperan- 6a por muitos, como atesta 0 seguinte depoimento sobre o palacio: Eu estava preparado para um profundo desgosto, porém nao: algumas coisas me deleitaram e podia desculpar outras, embora globalmente devemos ponderd-Io ou as futuras geragdes dire: “Este era o seu grande palacio de que ‘anto falavam, pobres loucos!”. Quando tiverem construido uma erquitetura em uma boa pedra de sua época € tenham-na coberto com cores brilhantes, do terdo razdo para rir-se destas grandes hot-houses que hoje poeticamente chamamos Crystal Palaces. Tanto eu a admirava no seu gigantesco cansaco, na sua longitude de triste monotonia, ago e vidro, vidro e ago, fiaria mais e mais convencido da pobreza de tal material para levar a cabo uma arquitetura. Sé chama nossa atengdo por suas medidas, ndo pelos elementos que deveriam determina o seu verdadeiro principio de apreciagao, forma e cor: sua forma é necessariamente rigida € mecénica, sua cor simples transparéneia € um penoso reflexo deslumbrante: um adequado apartamento para arbustos arométicos, Fontes gotejantes [..) (Burne-Jones apud Freixa, 1982, p. 318-319)* Edward Burne-Jones percebe no Palacio de Cristal a arquitetura de uma nova época ¢ fala da nostalgica posigdo ditada pela irmandade pré-rafaelita, Certamente, pare este grupo de artis- tas, 0 palacio, € tudo o que o circundava, representava todos os males da sociedade industrial, 6 “Yo estaba preparado para disgustarme muchisimo; pero no, algunas cosas me complacieron y podia excusar otras, aunque globalmente debemos ponderario un poco o las futuras generaciones dirin: “Este cra su gran palacio del que tanto hablaban, pobres locos!’ Cuando ellos se hayan construido una arquitectura en buena piedra de su época, y la hayan eubierto con colores brillantes, entonces tendrin razén para reirse de estas fot-houses que hoy posticamente llamamos Crystal Palaces. Tanto yo la miraba en su gigantesco cansancio, en su longitud de triste monoton y cristal, cristal y acero, quedaria mis y mas convencido de la pobreza de tal material para llevar a c arquitectura. Sdlo lama nuestra atenciOn por sus medidas, no por elementos que deberian determinar su verdadero principio de apreciacion, forma y color: su forma es necesariamente rigita y mecénica, su color simple transparencia Yun penoso rel o deslumbrante: ¢s un adecuado apartamento para aromaticos arbustos, goteantes fuentes (..). 200 A festa 0s quais deveriam ser evitados a todo 0 custo a partir da busca dos motivos que teriam inspira- do os primitivos ¢ anénimos artistas europeus de momentos anteriores ao Renascimento (Gombrich, 1979, p. 431; Honour, 1981, cap. 4; Argan, 1984, v. 1, p. 218-225). Para os seus entusiastas, no entanto, 0 palacio representava, sobretudo, 0 cume do pro- Sresso da humanidade. A exposigdo criava nfo s6 um sistema classificatorio para os produtos igdo: procurava classificar as diferentes nagdes que dela participavam. Ao apresentar-se como um hino ao progresso tecnolégico, a exibigdo oferecia como ligdo mais ébvia o fato de que nem todos os homens tinham avangado os mesmos passos ou chegado ao mesmo ponto de desenvolvimento. As exposigédes universais vieram a ser, assim, a manifestagio cultural mais evidente da forma como os impérios passaram a se representar a si mesmos ¢ a representar 0s povos exéticos com os quais travavam contato, Eram grandes rituais de massa em que as po- ‘téncias clamavam 0 seu povo a observar os avangos tecnolégicos do Ocidente, 0 avango de suas fronteiras e da sua missao civilizatéria, Ao lado dos produtos industriais, os visitantes podiam contemplar a gigantesca e luxuosa estétua de um elefante, simbolo do exotismo das indias, objeto singular em meio as maquinas e aos produtos manufaturados expostos na primeira grande celebracao publica da sociedade in- dustrial. As colénias pareciam nao poder oferecer nada além de monumentos irrisérios, curiosi- dades do artesanato “indigena” ou simples matérias-primas (Hoider e Pierre, 1991, p. 15). Fundava-se, com a Exposigdo Universal, um paleo onde se ritualizavam nao apenas a hierarquia entre povos e nagdes, mas também as suas disputas. E se assumimos 0 Palicio de Cristal como simbolo nao apenas de uma nova era mas também da prépria Gri-Bretanha indus- trial, podemos contrapé-lo a outro monumento nao menos simbdlico, a torre de trezentos metros construida pelo engenheiro Gustave Eiffel para a Exposi¢ao Universal que se realizou em Paris no ano de 1889, quando se celebrava o centendrio da Revolugao Francesa. Formada por quatro ‘enormes pilares convergentes ligados entre si por meio de arcos, podemos afirmar que se tratou de uma sintese dos avangos técnicos do século XIX - algo explicitado na publicagdo “La tour de 300 metres", da Revue Técnique de 'Exposition Universelle, de 1889. A torre de trezentos metros, conhecida pelo nome de Torre Eiffel (nome que permanecerd), foi construida para servir de entrada monumental a0s diversos pakicios da Exposigio Universal de 1889, erigidos no campo de Marte. |... Hoje, qualquer polémica perdeu interesse. A obra segue em pé é considerada como um dos trabathos que mais honraram a arte das construgBes metilicas e que contribuiram, em grande medida, para o sucesso da exposigao ses uy Auantice Sul de 1889. Supera, tanto por sua altura sem precedentes quanto Pela rapidez da construgio e pela quartidade de metal empregado, 4 todas as construgtes existentes. Nio & como as pirimides do Egito e as catedrais da Idade Média, obias realizadas pacientemente Keragdo apés geracao. E, pelo contrério, uma obra impaciente, inclusive pode-se dizer que & um monumento de grandiosa concepcao ¢ de execucdo impressionante, tanto por sua valentia quanto pelas dificuldades apresentadas. (Apud Freixa, 1982, p. 3237 © texto prossegue enfatizando como a construgdo da torre foi acompanhada no seu dia-a- dia pela populagio de Paris e da Franga e mobilizou o debate de artisine « engenheiros, para Concluit: “A Torre Eiffel foi um sucesso para Paris, para a Franca, para a arte daa construcées metilicas, pois marca uma etapa no progresso do século XIX" (ibid. p.326)* De certa forma, a Torre Eiffel acabou por levar ao exiremo determinados elementos ja Presentes no Palicio de Cristal. Se o monumento briténico era um hino és modernas tecnologias 4 is hovas possibilidades do desenho arquiteténico, sua grande nave ndo deinou de ter fungao de receber ¢ ordenar as distintas segdes da Exposicao Universal de 1850 Ji a Torre Eiffel nao tinha por funcdo mais que tornar visiveis as préprias técnicas e materia is que a tornaram possi- ye! (Argan, 1984, v. 1, p. 101). 0 monumento francés nao apenas se traneformou nn simbolo de Paris ~ e assim permanece até os di : 's vanguardas artisticas. Para o que nos interes- estabeleceu entre as distintas capitais imperi- lumental € artistico as disputas que travavam ait re 200m, conoctda con el nombre de Tore Eiffel, nombre que permaneceri, Fu eonstruda para servir de Heads monumental a los diverses Palacios de la Exposicin Universal de 1869, ergiter enn Campo de Marte...) Fae, uraierpolémica ha perdido su interés. La obra sigue en pe y esd considerate somo ene eye trabajos que eee eaeon a arte dels constrcciones metlicas y que contibuyeron en gran parte dente ae Exposicidn de cp atta Por Su altars sin precedents como por la rapier de construclony gor le ete ‘metal Medi obra ates ls consruccones ya exstentes. Noes como las primdes de Eqipto sts exces Edad Meila, obras reallzadas pacientemente generacidn tras generacién. Es, por clonic aes impaciente, incluso Dees dccise que es un monumento de grandiosa concepelén,cuya elecucidn esimprediecane ‘anto porsu valentia ‘como por las dificultades que presenté, 218 Toe Eifel fue un éxito para Paris, para Franca, para cl arte de las consrucciones metlicas, ya que marca una etapa en el progreso del siglo XIX.~ A festa nos foruns ¢ arbitragens internacionais ¢ em longinquas fronteiras da Africa, Asia ¢ Oceania, que, finalmente, desembocariam nos grandes conflitos mundiais. Devemos ter presente, ainda, o impacto de uma exposicéo universal ou feira mundial na vida de uma cidade. As exposigdes acabavam por mobilizar artistes, arquitetos, urbanistas ¢ Politicos, que procuravam preparar a cidade para bem receber os visitantes assim como apro- veitar 0 evento para promover intervencdes ou reestruturacdes urbanisticas. Apesar da dimen- sio efémera das exposigdes - afinal, grande parte dos pavilhdes era em seguida desmontado -, estas deixaram marcas indeléveis em determinadas cidades, além de simbolos e monumentos que, como a Torre Eiffel, permaneceram. Um bom exemplo é Barcelona. Longe de ser uma “capital imperial” - nem mesmo alberga- va o poder politico central -, Barcelona foi sede de duas exposigdes universais, a de 1888 ¢ a de 1929. Em ambos os eventos (em contextos absolutamente diversos), a capital catala explicitou © desejo de seus habitantes de, no espago da cidade, ritualizar e perpetuar as marcas de sua identidade e, assim, distanciar-se das diretrizes de Madri. Centro industrial de maior importén- cia da Espanha, Barcelona encontrou nas exposigdes 0 mote necessério para alargar suas fron- teiras, dar continuidade a planos urbanisticos de grande importincia (como nos casos do Par- que da Ciutadella, em 1888, ¢ do Montjuic, em 1929) e, sobretudo, situar a capital catala no mapa da Europa industrial e moderna. Nas exposigdes, grupos econdmicos, politicos e culturais se afirmavam diante do poder central de Madr, salientavam diferengas e refaziam aliangas. Ao que parece, a Exposigao Universal de Barcelona de 1888 deixou grandes dividas para a cidade (Arranz, 1988, p. 11; Hughes, 1995, p. 400) - 0 que, alids, talvez com a excecao de grandes capitais como Londres, Paris ou Chicago, foi a tOnica das exposigdes universais ou feiras mun- diais -, mas contou com uma entusiéstica participagao de amplos setores da sociedade catalé ¢ entrou para a memoria da cidade, Ora, como interpretar este elemento aparentemente “irraci nal” de um espetdculo que se queria sobretudo “moderno"? Robert Hughes refere-se a este periodo como uma época em que “o puiblico europeu americano passara a acreditar que poderio de uma cidade devia ser medido por esses extrava- Bantes potlatchs" (1995, p. 391). Também Burton Benedict, numa “antropologia das feiras mun- diais”, propugna o cardter ritual das exposigdes (1983, p. 6-12) ¢ as define como potlach, no sentido empregado por Marcel Mauss (1988): uma competigio ritualizada, cujo objetivo pri- meiro € 0 prestigio € a garantia da continuidade de um ciclo de reciprocidade entre diferentes grupos. Benedict langa mao das clissicas teorias do ritual, tais como as de Durkheim, Max Gluckman € Abner Cohen, para chegar a uma primeira conclusto do sentido das feiras mundiais: 20 Ecos do Atlantico Sul As feiras mundiais podem ser interpretadas como enormes rituais nos quais todos 0s tipos de relagdes de poder (os existentes ¢ os desejados) encontram lugar de expressio. Sio competicbes nas quais os concorrentes esto disputando vantagens nos mundos do ‘comércio e da politica. Nesta competigao, todos os tipas de simbolos sto utilizados e ha esforgos explicitos na fabricasao de tradicies para, assim, alcancar legitimidade. As feiras mundiais sao barulhentas, caras e requerem imensos esforcos. (Benedict, 1983, pe? E esclarecedora a anilise das feiras ¢ exposigdes como fato social total, seguindo, justa- mente, a conceituacdo de Marcel Mauss. Com efeito, tratava-se de grandes rituais de presta- ges © contraprestagdes que envolviam aspectos econdmicos, politicos, sociais ¢ estéticos ¢ que regulavam as relagées entre grupos rivais ~ no caso, os impérios, nagdzs e grandes cidades. Cada pais procurava, assim, mostrar sua produgio (industrial ou nao) ¢ seu potencial comercial, que estavam diretamente relacionados a0 dominio de terras ¢ gentes exéticas, e suas realiza- des situavam-no mais ou menos distante dos patamares maximos de civilizagao expressos na produgio material e tecnolégica mas também nos costumes e nas “belas-artes”. E mais: a reali- zagdo de uma exposigao envolvia distintos setores da sociedade da cidade organizadora que procurava dar e representar 0 melhor de si. Devemos ter em conta ainda que a organizacao dos pavilhoes estrangeiros era precedida por acalorados debates nos paises de origem: qual a me- Ihor “face” a se mostrar numa exposigéo universal? Que elementos definem uma personalidade nacional? Que produtos enviar que sejam representativos da realidade econdmica, do esforgo ou da identidade nacionais? Questdes como estas envolviam governos, intelectuais, politicos ¢ distintos setores sociais dos paises participants. Grande palco ritual para o enfrentamento das nagdes ocidentais, as exposicdes univers: foram, sobretudo, a afirmagdo dos grandes impérios que se formaram na segunda metade do século XIX e de paises que nao desejavam deixar de participar do palco no qual o Ocidente representava, ritualizava e glorificava a missdo civilizatéria auto-atribuida: “Feiras mundiais tomaram-se, rapidamente, insepardveis do imperialismo e nacionalismo” (Corbey, 1993, p. 339)."° 9 “A world’s fair can be seen as one of a series of mammoth rituals in which all sorts af power relations, both ‘existing and wished for, are being expressed. Its a contest in which the contestants are jockeying for advantage in the worlds of both commerce and politics. In this contest all sorts of symbols are employed, and there are blatant efforts to manufacture tradition, to impose legitimacy. A world’s fair is noisy and expensive and requires immense lfort 204 A exposigao colonial Ao lado das exposicdes universais e das feiras mundiais, € como parte constitutiva delas, estavam as mostras etnogrificas © as exibigdes e exposigdes coloniais. Muitas delas deram origem aos *museus coloniais’, transformados posteriormente em museus de antropologia ow etnografia. Estes alcangariam seu apogeu entre as tiltimas décadas do século XIX ¢ a Primeira Guerra Mundial ¢ vieram a constituir as instituigdes mais evidentes do esforgo de classificagao ¢ ordenaao do mundo nao-ocidental."" Verdadeiros “templos do império” ~ na feliz definigio de Annie Coombes (1994, p. 109 € s.) -, os museus etnogrificos foram cenirio de debates € disputas entre antropélogos ¢ etnégrafos que tinham como propésito educar e informar o pui- blico ocidental. Estes profissionais acabaram por estabelecer correspondéncias entre teorias cientificas ¢ populares acerca de nogdes como “raga”, “cultura” e “civilizagao” e fixar, no espa- go do museu, os *tipos" humanos nos distintos estagios de desenvolvimento a partir de sua producdo material € tecnolégica. Acabaram, assim, por “inventar” a Africa e os africanos, 0 Oriente e os orientais, etc. (ibid., p. 127)."* E se os museus eram “templos imperiais”, onde se entrava com respeito ¢, na sua atmosfera silenciosa, se observava a diversidade cultural apre- sentada ao mundo pela ciéncia ¢ pela expansdo dos impérios, as exposigdes coloniais teriam sido imensos e frenéticos rituais nos quais os impérios apareciam com toda a sua grandeza. 0 pressuposto do museu era escancarado na exposicio: a diversidade cultural organizada ¢ hierar- quizada pelo império, a agio do colonizador que, ao deparar-se com momentos do passado da prépria humanidade, encerrava suas possibilidades de futuro para além da marcha inevitavel da civilizagdo. 0 museu surgia para “preservar” o testemunho material de povos condenados pela uniformidade da experiéncia do género humano. Nos “templos imperiais" a diversidade era revelada, tipificada e fixada; definiam-se os distintos estigios do desenvolvimento humano, elaborados cientificamente por antropélogos € legitimados, diante do paiblico europeu, pela ciéncia e pela técnica. Nas exposigdes, cram os “tipos vivos” que compareciam ¢ que “representavam” os diferentes estagios preservados pelos museus. As diferentes poténcias coloniais traziam e expunham nas feiras mundiais, ao lado dos 10 “World fairs quickly became inseparable from imperialism and nationalism.” 11 0 Brasil ndo esteve ausente deste esforgo classificatério, ¢ no final do século XIX os museus brasllelros passam a fazer parte de uma ampla teia de relagdes que os punha em contato com instituigdes das mesmas caracteristicas da Europa e Estados Unidos (ver Schwarcz, 1993) 12 Nao me deteret numa deserigo mais detalhada dos “museus coloniais” ou do lugar do antropdlogo na constituigio deste tipo de instituigao. Remeto o leitor especialmente ao trabalho de Coombes (1994). 205 Ecos do Atlantico Sul avansos da maquinaria ocidental, produtos e individuos de terras exdticas. Procuravam, assim, dar a conhecer, ordenar e legitimar a sua agao colonial. Foi em Paris, na Exposigdo Universal de 1878, que, pela primeira vez, individuos proveni- entes dos distantes territérios coloniais foram exlbidos em pavilhdes especialmente construidos € nas villages indigénes (Corbey, 1993, p. 341). Quatrocentos nativos da Indochina, do Senegal ¢ do Taiti foram expostos na época, e 0 sucesso foi absoluto. Desde 1878, aldeias ¢ pavilhdes “nativos” ¢ “ruas orfentais” passaram a fazer parte indispensavel das grandes exposigdes uni- versais. 0 mesmo sucesso repetiu-se na Exposigdo Internacional Colonial de Amsterda, em 1883, com a exposigao de nativos das colénias holandesas da Indonésia ¢ do Caribe, assim como na Exposicdo Universal Colombina de Chicago, em 1893, com a exibigdo de individuos de Java, Samoa, Daomé, Egito « América do Norte. No caso dos Estados Unidos, que se firmavam no fim do século XIX como nova poténcia imperial, a exposigao de nativos do seu proprio territério em diferentes tipos de feiras era jé freqiiente. Com a vitdria sobre a Esoanha ¢ a compra do Alasca, nas feiras ¢ nos pavilhdes norte-americanos vieram a se somar aos indios os esquimds, 0s filipinos, os havaianos, além de serem representados os feitos dos Estados Unidos em terras latino-americanas, sobretudo em Porto Rico. A Gri-Bretanha nao poderia estar fora deste tipo de evento, e ne The Greater Britain Exhibition de 1899 foi incluido 0 “Kaffir Kral - a Vivid Representation of Life in the Wilds of the Dark Continent”, uma exibigdo de animais ¢ de 174 nativos de diferentes povos da Africa do Sul submetidos havia pouco tempo (ibid., p. 342) Outras poténcias realizavam este mesmo tipo de evento, ou dele participavam, como a Riissia ou Alemanha. O império dos czares trazia para as exposigdes os seus avancos na Asia Central © no Extremo-Oriente, ¢ em 1909 foi reproduzida, numa grande feira, uma vila nativa dos calmucos, grupo némade da Asia Central. Em 1896, a Alemanha havia exposto em Berlim cerea de cem natives de suas col6nias, procurando reproduzir o seu ambiente natural, exibigao esta que deu origem ao Deutsches Kolonialmuseum (ibid., p. 343). Tais exposigdes ¢ mostras coloniais acabariam por revelar a forma como os diferentes impérios se representavam e procuravam se contrapor. Corbey (1993) afirma haver mais aspectos €m comum entre as manifestagdes imperiais do que propriamente diferencas, embora ele proprio. reconhega especificidades. No entanto, parece-nos que, progressivamente, este tipo de exibigao foi ganhando particularidades ¢ as diferengas entre os distintos projetos coloniais se explicitaram cada vez mais. Se o exotismo € a alteridade representaram 0 aspecto central de todas as exibigdes, ‘no caso francés € também no caso norte-americano (e, como veremos, no caso portugués) pro- Curou-se, com 0 tempo, enfatizar a assimilagdo dos nativos. 0 sucesso da missto colonial fran- esa ¢ do colonialismo interno norte-americano estava diretamente relacionado & assimilagao 206 A festa cultural: expunham-se, nos pavilhdes, nativos vestidos & moda curopéia e com habitos ociden- tais, o que era motivo de estranheza para os visitantes britanicos. A leitura dos catdlogos das exposiges indica ainda que, ao lado dos pavilhdes etnogrificos que exibiam povos com costumes exéticos de territérios distantes, a propria diversidade oci- dental era exlbida, com a reprodugio de aldeias “folcléricas” européias ¢ seus habitantes osten- tando trajes e habitos “tipicos”. Assim, se paises como Suécia ou Grécia nio possuiam territérios coloniais, ¢ se o Império Austro-Hiingaro nao era pluricontinental, a diversidade cultural inter- na cra objeto de representacdo, Tratava-se do palco dos grandes impérios plurinacionais e multi- étnicos, mas também de pequenas nagdes que selecionavam os tragos que deveriam compor os signos de sua identidade. Os impérios se definiam pela diversidade, que encontrava no rempo sua explicagao - selvageria e barbarie, estigios anteriores do desenvolvimento humano -, ¢ as ages, por suas origens € manifestacdes culturais proprias. E se nem todas (ou a maioria delas) podiam oferecer uma imagem glorificadora dos seus avancos no dimbito da moderna tecnologia, podiam porém mostrar aquilo que caracterizaria o seu “espirito". Foram construidos, entio, pavilhdes que faziam referéncia & histéria das distintas nagdes ou mesmo reproduziam aldcias camponesas, depositirias das “auténticas” tradigdes nacionais. O visitante podia passar de “tumultuadas © exdticas ruas orientais" a misteriosas © ate- morizantes “tribos selvagens” ou a “pitorescas aldeias” povoadas por gentes com cabelos loiros € saudiveis bochechas rosadas, A diversidade cultural do mundo encontrou, assim, seu palco privilegiado, e encerraria apenas abundante riqueza se nao explicitasse também, e sobretudo, poder © desigualdade. As exposigdes materializaram ¢ tornavam apreensivel para o grande publico a escala evolutiva definida pela antropologia evolucionista: selvageria, barbarie, civilizagao, cada uma, Por sua vez, subdividida em distintos estgios. Com o espirito classificatério caracteristico do século XIX, os selvagens de terras distantes representavam a infancia da humanidade, momen- tos do nosso proprio passado. As exposigées criavam a ilusio de, autenticamente, representa- rem a diversidade cultural existente na Terra, A sua organizagdo denotava uma representagio do tempo € do espago: a diversidade dos diferentes povos da Terra encontrava a sua solugdo numa organizagao temporal. Como afirma Corbey (1993, p. 361), 0 “outro” era observado nao apenas como vindo de lugares distantes mas, fundamentalmente, como vindo de tempos dis- tantes. As aldeias dos “selvagens” da Africa ¢ da Oceania - “nisticas” e “simples” ~ eram seguidas pelas “ruas estrangeiras”, como a “rue du Caire”, da Exposi¢ao Universal de Paris de 1889 - com 23 casas de diferentes estilos arquitetonicos, abrigando artesios, comerciantes € os concorridos cafés maures -, ou a rue d‘Alger da Exposigio de 1900 - com apresentagdes da danga do ventre Ecos do Atlantico Sul € do sabre (Hoider e Pierre, 1991, p. 17). As “ruas do Oriente” passaram a fazer parte indispe sdvel das grandes mostras mundiais e coloniais: num estigio superior ac dos selvagens aftica~ nos, os orientais fascinavam pelo caos e pela sensualidade; as “ruas do Oriente” viriam a ser uma das manifestagdes materiais do orientalismo, entendido como a representagdo que o Ocidente vem construindo do Oriente ao longo dos séculos (ver Said, 1990). Podemos, a partir do exposto, tecer um modelo de exposicao colonial que se configurou no final do século XIX. A exposigdo proporcionava ao visitante 0 contato com os primérdios da humanidade: tribos selvagens, distantes no tempo e no espago, individuos seminus com estra~ nhos € primitivos costumes, Das aldeias selvagens da Africa ou da Oceania, o visitante passava entio as cadticas ¢ sensuais ruas do Oriente: edificios supostamente reproduziam templos orientais = como o Angkor Vat, templo indochinés reconstruido por ocasiéo da Exposigao Colonial de Marselha, em 1922, ¢ reconstruido em Paris em 1931 -, € os nativos destes “barbaros” (porém sofisticados) territérios fascinavam a assisténcia com dangas orientais que havia muito povoa- vam o imagindrio ocidental. Das ruas do Oriente, 0 publico passava aos pavilhdes que informa- vam sobre as obras de engenharia levadas a cabo nos territérios metropolitanos ¢ coloniais, sobre as escolas construidas ¢ sobre a obra missiondria, Os produtos vindos das colénias acaba- vam por fazer o visitante voltar a sua terra ~ da induistria e da atividade febril - que havia sido capaz de despertar os outros povos da sua letargia secular € explorar de forma racional os territérios distantes, A exposigio colonial cumpria 0 prometido no cartaz da Exposicao Internacional Colonial de Paris realizada em 1931: “Le tour du monde en un jour", Neste grande evento ~ a mais grandiosa exposicao colonial realizada - o visitante podia observar pavilhdes referentes ndo s6 ao império francés, mas também ao holandés, belga, portugues, dinamarqués € norte-america- no. A Inglaterra - tendo de arcar ainda com os gastos da exposicdo colonial de Wembley de 1924 ~ negou-se a participar com pavilhdes significativos."” Evidentemente, a “vedete” da primeira (e tiltima) Exposi¢ao Colonial Internacional france- sa era a obra colonial de Paris. Tratava-se ndo apenas de convencer o piblico de suas virtudes, mas sobretudo de transformar o francés comum num cidadao orgulhoso da Plus Grande France. Nao cabe aqui uma anilise detalhada do evento francés ou da ideologia colonial francesa (que podemos encontrar satisfatoriamente em outros autores)" mas chamar a atengéio para as pro- 13 Sobre a concepgto € elaboragto da exposiglo de 1931, os individuos que dela particioaram, assim como aqueles (que a ela se opuseram ~ numa ja organizada campanha anticolonial - ver Catherine Holder e Michel Pierre (1991) ¢ Charles-Robert Ageron (1984). 14 Para uma historia detalhada da ideologia colonial francesa, ver Girardet (1972). Sobre a Exposigdo de Paris, ver Ageron (1984); Hoider e Pierre (1991); Holder eta. (1993) 208 (Indochina). 0 templo foi reproduzido na Exposigdo Colonial de marselha (1922) € na exposicio Colonial Internacional de Paris (1991). Postal do templo de Angkor- postas gerais dos organizadores deste evento visitado por oito milhdes de pessoas. 0 conhecido colonialista Marechal Lyautey, comissirio geral da exposigao francesa, expressou cinco pontos que 0 moviam na realizagéo de tal empreendimento: convencer o cidadao comum de que 0 império era um territério necessério para que a Franca continuasse a ser uma grande poténcia mostrar a exceléncia ¢ a existéncia de um “método colonial francés”; provar que a patria dos direitos humanos levava aos indigenas a civilizagao e seus feitos e os educava para a emancipa~ cio futura; demonstrar que a contrapartida era o vigor econdmico frances; e, por fim, suscitar nos jovens a vocagéo colonial (Hoider et al., 1993, p. 129). A demonstragio do genie frangais cra reforgada ainda pela comparagdo entre os pavilhdes organizados pelo pais anfitriao ~ estra tegicamente centrais - € aqueles representantes de outros impérios coloniais, localizados na periferia (Itdlia, Holanda, Portugal). Um grande espago ficou vazio, explicitando assim a expec tativa de Lyautey de convencer o governo de Sua Majestade britanica a participar do evento até poucos meses antes de sua inauguracao. 209 bcos do Atlantico Sul 0 Bois de Vincennes foi ocupado assim por pavilhdes de distintos impérios e de longinquas regides da Africa ¢ do Oriente; da obra francesa de colonizagao Participavam nao sé a Repibli- ca, mas, ¢ com grande destaque, as missdes catdlicas ¢ protestantes. imagindrio europeu em tomo das colénias esparramou-se pelos diferentes médulos e pavilhics. Trata-se, contudo, de uma Repablica democritica, onde ha muito se faziam sentir vozes anticoloniais, fosse no Parlamento francés, fosse no seio da elite nativa das distintas regibes do império colonial."* E de destacar que observagées “cientificas” dos nativos presentes na expo- sigdo foram prolbidas pela organizagdo ~ atitude por muitos considerada “lamentavel” (0 Ins¢i- tuto de Antropologia da Universidade do Porto na Exposigéo Colonial, 1934, p. 7). Ja por Ocasido da Exposigto Colonial de Marselha (1922), Ho Chi Minh escrevera inflamados artigos nna imprensa francesa nos quais denunciava os gastos absurdos ¢ 0 luxo da exposigio, bem como a hipocrisia dos discursos de politicos colonialistas ~ como o ministro das Colénias - ou de militares como Lyautey (Minh, 1971). E se 0 anticolonialismo tem uma longa histéria na Franca ~ € ndo necessariamente progressista -, foi por ocasiio da exposigao de 1931 que comu- nistas, socialistas e surrealistas organizaram a Contra Expo, com o significativo titulo de La Verité sur les Colonies, ¢ redigiram 0 manifesto “Ne visitez pas Exposition Coloniale”, assina- ddo por personalidades como André Breton, Aragon ¢ Paul Eluard, entre outros (Ageron, 1984, p. 571; Hoider e Pierre, 1991, p. 111). No evento anticolonial organizou-se um pavilhdo dos sovietes ¢ foram expostas colegdes de fotografias sobre as guerras coloniais ¢ caricaturas. Graficos e tabelas procuravam ainda desmistificar os “ganhos” da empreitada colonial ou mesmo a alardeada missio civilizadora. Aragon expés ainda sua colegdo particular de arte africana, melanésia indiana, que contrastava com objetos de “mau gosto” ocidentais. Fotografias que procuravam atestar a felicidade dos povos asiticos “libertados” pela revolucdo scviética completavam a mini-exposigdo (Ageron, 1984, p. 571). Ao longo de toda a Contra Expo - visitada por cerca de cinco mil pessoas -, sucederam-se na imprensa francesa artigos que procuravam chamar a atengéo para a bestial exploragio e 0 trabalho forcado a que estariam submetidos os povos colonizados, ou para as falsas cifras com que se pretendia traduzir o esforgo colonial francés. Contudo, a idéia da Plus Grande France ~ {Go associada a guerra de 1914 - teve maior impacto junto ao piiblico do que a Contra Expo ¢, como afirma Ageron, nao cessaria de crescer, sobretudo apés a Segunda Grande Guerra (ibid., p. 585), Ao contrario de Portugal, na Franca havia a possibilidade de se questionar publicamente a agdo € 0 projeto colonial franceses. Os dilemas do colonialismo ganharam palco, contudo, na 15 Sobre o anticolonialismo na Franca, ver Biondi e Morin (1992). 210 Um dos cartazes da Exposicio Colonial Internacional de Paris (1931): énfase no cardter militar da empreitada colonial. Acima, tiquete de entrada da exposicio. propria exposicdo colonial: se a assimilagao € a “elevagdo" dos povos exéticos era um dos motores ideolégicos da aventura colonial, levaria, porém, ao fim do colonialismo, o qual era pautado pela existéncia da diferenca (¢ desigualdade) entre os grupos humanos. Podemos afirmar que a festa de Paris teve, entretanto, um profundo sucesso: 0 que ini mente se apresentava como algo caético e incompreensivel ~ povos, paisagens ¢ produtos exéticos ~ a exposicéo classificava e organizava, fixando-Ihe um lugar no tempo ¢ no espaco. que podia ser considerado uma empreitada perigosa e nem sempre atraente - a aventura colonial ~ a exposigao transformava num grande feito militar e herdico, numa missio civilizadora € num universo de imagens atraentes que tinham por base o exotismo e cosmopolitismo do império. A exposigio, enfim, mostrava a evolugio e a diferenca de forma légica ¢ equilibrada: a légica ¢ 0 equilibrio dos impérios coloniais, an Ecos do Atlantico Su As Exposigdes Coloniais foram freqientes nas primeiras décadas do século XX. No cartaz acima os seus Ingredientes bisicos: o exotismo das col6nias, o cosmopolitismo do império e a modernidade da metropole. (0 império no Porto” ou “vamos ver os pretos! Vieram a exposicdo mais de um milhdo de portugueses. Muitos ~ Possivelmente a maioria - vieram em at de festa, com o mesmo espirito que vio ao arraial e ao teatro, aos touros e ao futebol. Diziam alguns: “vamos ver os pretos!" [..] Eo “processus” espiritual ja se desenvolvendo... (Galvio, 1934, p. 28) Ninguém melhor do que o proprio Henrique Galvao para informar o sentido da I Exposigao Colonial Portuguesa: de um lado, proporcionar aos portugueses uma “viagem pelo império no Porto” ¢ assim promover a processo espiritual; de outro, provocar 0 alvoroco da populacao 212 A festa diante dos mais de trezentos “indigenas” expostos nos Jardins do Palacio de Cristal. A exposi Sto seria uma forma pedagogica de proporcionar aos portugueses, impossibilitados de viajar a viagem as col6nias seria, segundo Galvao, umta “licao total"), informagdes imagens sobre as ferras ¢ gentes distantes ¢, fundamentalmente, sobre a agdo portuguesa no além-mar; mas seria, sobretudo, um congragamento dos portugueses em torno do passado, presente € futuro da colonizagao. Se nao se tratava de um evento absolutamente inédito na sua forma, assim o era jas suas dimensdes: a 1 Exposiso Colonial Portuguesa teve profundo impacto na opiniio pii- blica portuguesa e, pela primeira vez, ofereceu ao piblico lusitano 0 “império” na forma de um grande “espeticulo”. Com efeito, Portugal ¢ suas coldnias jé haviam sido representados em eventos da mesma hatureza em outros paises ¢ uma aldeia da Guiné fora reproduzida por ocasiio da Exposigio Industrial de Lisboa de 1932." Portugal havie, ainda, aderido ao movimento das exposigdes desde 0 seu inicio, fosse enviando delegagdes € representagdes as exposigdes universais ou intenacionais, fosse organizando eventos similares, de Ambito internacional, nacional ou regio- nal/local."” Evidentemente, no que diz respeito quer & industria, quer aos feitos coloniais, os “mostrudrios” de Portugal eram menores do que os das demais poténcias. No devemos, contu- do, menosprezar a participagao lusa nas feiras, pois teve imenso impacto junto a importantes Setores da sociedade portuguesa, especialmente naqueles ligados & indistria e ao comércio que, 20 entrarem em contato com novas tecnologias, promoviam a sua (lenta) introdugdo no limita: do parque industrial portugués. A participacao do pais nos certames internacionais simbolizava ainda que Portugal nao estava disposto a ceder aqueles que pressionavam os scus territérios ultramarinos ¢ que se colocava, assim, no universo (desigual) dos impérios e nagoes ocidentais, 0 pavilhdo portugués da Feira Ibero-Americana de Sevilha de 1929-1930, com 0 “exético” 16 No curta-metragem Africa em Lisboa pode-se observar o culdado com que fol reproduzida uma aldeta da Guiné na Capital portuguesa. Num primeiro momento, o espectador tem a sensagao de que a filmagem realizou-se numa auténtica aldeta indigena: depara-se com 0 cotidiano de seus trabalhos, mulheres seminuas ¢ mesmo homens a zvalo com vestimentas orientais. Subitamente a cimara se fasta eo espectador percebe estar em Lishoa, spresentada como cidade frenética ¢ moderna (avenidas, automdveis ¢ multiddes); tratava-se, final, de uma Exposigie Industial Ver Atfica em Lisboa, de Raul Reis Dinis (1932, 11 minutos, 35mm). 17 Portugal se fez representar, entre outras, nas exposigBes de Pars (1655, 1867 € 1879), Londres (1862), Viena (1873) Filadefia (1876), Ainda no século XIX, organizar-se-iam exposicées no Porto (1861 ¢ 1855), Lisboa (1863 ¢ 1882), Coimbra (1869 ¢ 1864) ¢ Guimaraes (1884) (Mendes, 1993, 361), Nos eventos internacionais enacionais a incipiente] industria portuguesa procurava mostrar o3 seus avangos € produtos privilegiados (Ianificios, conservas, vinhos © Cortical, mas nao s6: desde o principio da participagio portuguesa nos certames oitocentistas, salientava-se 0 cariter Pluricontinental do pais, os dominios africanos e orientais, o potencil extrativista e comercial destasreyides elou cidades e a missao civilizadora de Portugal, Ecos do Atlantico Sul pavilho de Macau, consolidou a imagem de um império pluri- trey] continental senhor de “pérolas” orientais que, como a cidade sino- co. [RTP S-ie| lusitana, perpetuavam a “tradicao” colonial e imperial portuguesa. ojsecigeaiaaa Em 1931, Portugal atendeu prontamente ao convite para par- ticipar da grande festa colonial de Paris, e, apés concurso, foi de- signado para a realizagao do pavilhdo portugués o arquiteto por- tugués Raul Lino, que tratou de combinar sua visdo do “moderno ao “genuino”, ao “portugués” - postura que o distanciava de cor- rentes internacionalistas € mesmo fascistas da arquitetura lusitana (Franga, 1985, p. 226)."" A seco portuguesa em Vincennes foi composta por quatro palicios situados ao longo do caminho que circundava 0 lago ¢ de um pequeno pavilhao octogonal isolado. Tal como explicitado no catilogo oficial Exposition Coloniale Portugaise # Paris Commissariat Général du Portugal & Exposition Coloniale Internationale de Paris, 1931), a segao tinha como fun- damento expressar a relaco entre a obra colonial portuguesa e a historia das descobertas ¢ das grandes navegagdes. Das “reliquias” orientais do primeiro impé- rio, passava-se, assim, para o potencial futuro das grandes colénias de Angola e Mogambique. Podemos supor que o impacto da exposigao de Paris foi grande no Portugal da época, mobilizando razoaveis esforgos das instituicdes colonialistas, como a excursio dos estudantes da Escola Superior Colonial & capital francesa. Pelo menos dois cartazes foram oferecidos a0 publico portugués. O primeiro estampava em lingua portuguesa a promessa “A volta do mundo n’um dia” em torno da imagem que imortalizou a exposi¢ao de Paris. Dispostos em circulo, distintos tipos humans dao conta do espaco colonial formado ¢ protegido pela bandeira fran- cesa, hasteada num edificio supostamente “oriental”, Um “arabe”, um “ind’gena americano’, um “africano” um “oriental” - “tipos” que procuravam ilustrar a diversidade, 0 exotismo € 0 cosmopolitismo do império francés. O cartaz “Exposig#o Colonial Portuguesa em Paris", ja comentado na introdugdo deste trabalho, é, a um s6 tempo, mais bonito ¢ interessante: num rosto africano feminino revela-se a sintese do terceiro império portugués, “Africa”. O enigmatico rosto africano tem, no entanto, miiltiplas faces, apenas anunciadas no cartaz. De Fred Kadolfer, designer suigo radicado em 18 As propostas de Lino explicitam, de certa forma, as contraditérias relagdes dos modernistes portugueses com as Vanguardas intcrnacionais, a conseqdente insisténcla dos revivalse sua timidez formal (debates tolhidos, ainda, pelo fortalecimento das instituigbes ligadas ao Estado Novo). Para uma histéria da arte moderna ema Portugal, ver F (1985), De Fred Kadolfer, 0 cartaz do pavilhao portugués da Exposigo Colonial Internacional de Paris: considerado um dos tesouros da Biblioteca Nacional de Lisboa, Portugal desde 1927, 0 rosto decé com evidentes influéneias das primeiras vanguardas européias representa o desejo de dinamismo de uma geragao de modernistas portugueses, bem como sua propria timidez formal. Kadolfer foi © principal mestre dos grafistas portu gueses ao longo de boa parte do sécu- lo, participando ativamente de even- tos como 0 Salo dos Independentes de 1930 (Franca, 1985, p. 196) ou 2 Ex- posigao do Mundo Portugués (ibid., p. 224), e introduziu na propaganda ¢ no design em Portugal 0 gosto germanico pelo expressionismo geométrico ¢ os modismos gréficos e luxos mundanos da arte decé (ibid,, p. 116-117). Nao foi o modernismo, contudo, que informou a I Exposigdo Colonial Portuguesa. Promovida pelo Estado com o auxilio da poderosa burguesia mercantil da “capital do norte” ¢ da Igreja Catdlica, a exposi¢ao do Porto optou por imagens mais tradicionais ~ tais como as presentes no cartaz francés. Henrique Galvao era, ainda, arquiinimigo dos modernistas protegidos de Anténio Ferro (que encontrariam maior expressio na Exposigao Historica da Ocupacdo ¢ na Exposiggo do Mundo Portugués). Em 1934 brilhou o mediocre retratista Eduardo Malta, que, entretanto, procurou fixar nos murais que abriam o evento a imagem do cosmo- politismo do império. No primeiro, Malta retratou o império do Oriente, com os enigmaticos 215 Ecos do Atlantico Su Painéis de Eduardo Malta que procuravam representar a totaidade 440s povos do império. Exposicao Colonial do Porto de 1934, Tepresentantes do Estado da india, de Macau e do Timor. Dois homens de perfil representam a dignidade e a sofisticagdo das cidades indianas do império; a crianca apresenta um leve movi- mento, enquanto a mulher indiana nos mira, com o olhar tao vazio quanto o do macaense. E com altivez no gesto € no olhar nos ¢ apresentado o chefe do Timor, armado com uma langa ostentando os signos de sua identidade. Ao fundo, edificios caracteristicos da india, de Macau € uma aldeia timorense. O segundo painel retrata figuras das distintas coldnias continentais afticanas. Podemos supor ser a mulher da direita da Guiné, pois porta o saiote caracteristico do arquipélago das Bijagés. Com relagao segunda mulher, ao centro, também seminua, ndo podemos sugerir sua procedéncia, Saltam aos olhos, contudo, seus adommos, seu ventre tatuado ¢, sobretudo, 0 cru- Cifixo que leva ao pescogo, sinal inquestionavel do avanco da fe catdlica entre povos exéticos, Ao fundo, 0 retrato de dois guerreiros: o do centro ~ provavelmente da etnia caconda de Angola ~ Ros observa diretamente ¢ segura um artefato na sua mo esquerda, enquanto o da direita — 216 A festa certamente de Mogambique ~ é apresentado de perfil, ambos adornados para a guerra, Sentada no chao, direita, uma negra amamenta um bebé, muito provavelmente também de Mocambique, Ao centro, majestosamente, 0 régulo Mamadu Sissé, um dos 324 indigenas que vieram para a exposigdo. Sua vestimenta ricamente bordada e 0 barrete indicam a influéncia islamica na Guiné, Ao lado do exotismo das vestimentas, adornos e tatuagens africanas, 0 vigor viril expresso na musculatura dos guerreiros, a sensualidade e a maternidade das mulheres. Ambos os painéis foram pintados com cores intensas ¢ mesmo contrastantes, sem 0 aban- dono, contudo, da matriz “realista” e dos contomos claramente delineados. 0 fundo é incerto, podendo ser mengao a qualquer lugar do império - muito provavelmente trata-se do céu do Porto. A procedéncia © mesmo @ identidade das figuras sto de facil dedugdo nao por alguma referencia explicita, mas porque Malta simplesmente retratou literalmente os indigenas que vieram para a exposi¢ao, dos quais nos ficaram dezenas de fotografias cm albuns, postais (Alvao, 1934) ¢ jomais da época. Eduardo Malta foi, evidentemente, representante de uma faceta mediocre da arte moderna portuguesa, retratista de damas da alta sociedade e da aristocracia européia, mas procurou, ao mesmo tempo, figurar aspectos do império que se queria popularizar ~ diver. sidade, cosmopolitismo, exotismo ~ sem falsear o olhar ora enigmético, ora entediado dos indigenas presentes 4 exposigio. Nos painéis (e nos desenhos que reproduziu no catalogo oficial da exposigdo), Malta fixou as imagens que se queria consagrar do exotismo ¢ cosmopolitismo dos grandes impérios colo- niais. A exposigéo propunha ainda outras imagens - ¢ com clas, paradoxos ¢ projetos -, mas no se tratou de um universo s6 de imagens: os portugueses nio sé “viram", mas também “cheiraram” ¢ “escutaram”, “sentiram”, em suma, e, enquanto caminhavam por pavilhdes que faziam referéncia a sua historia (da qual seriam os protagonistas no presente) e mesmo a seus Projetos futuros, eram “observados” pelos 324 indigenas que vieram de todas as coldnias para serem expostos na I Exposicao Colonial Portuguesa. A exposigao: *renascimento colonial” portugués Se 0s propésitos e expectativas do ditedor se fariam sentir sobretudo na Exposigo do Mundo Portugués, ndo estavam ausentes na I Exposi¢ao Colonial Portuguesa. Um més ¢ meio antes da abertura da exposico, no dia 24 de abril de 1934, Oliveira Salazar salientava os ele- mentos que deveriam estar devidamente representados no evento: a histéria e a realidade pre- sente do império e a unidade territorial ¢ espiritual da metrépole com as suas coldnias, Dever- se-la incidir sobre a obra colonial portuguesa, nas palavras do ditador, “toda a luz", e assim iluminar os esquecidos ou ignorantes (Salazar, 1961, apud Salazar, 1989, p. 235) 217 Ecos do Atlantico Sul Na perspectiva de Salazar, Galvao ou Armindo Monteiro a exposigdo teria, fundamental- mente, o carater pedagégico ¢ proselitista de despertar vocagdes ¢ convencer os incrédulos; por seus altos designios e por seu carter “soberano”, cabia ao Estado o protagonismo na orguniza- Sao (Monteiro, 1934a, p. 10). Como ministro das Colénias, ha muito Armindo Monteiro vinha Propugnando um verdadeiro “renascimento imperial” portugués e assim o fizera em discurso Pronunciado na Sociedade de Geografia de Lisboa em 1932, advogando que, a par da extensao territorial, o império seria resultado duma “mentalidade particular” ¢ de um “espirito” corporificado elas col6nias (1934b, p. 167), palavras repetidas ad nauseam por Henrique Galvao ao longo do evento. A exposiczo viria a ser o momento privilegiado para congregar “todos os portugueses’ €m torno da entidade “espiritual” cuja traducao seria o projeto imperial do Estado Novo. Certamente nao era nem esperado nem desejado que o setor privado tomasse as iniciativas ha concepedo ¢ organizagio da I Exposicdo Colonial. Deve-se ter em conta ainda que, se num evento industrial um setor especifico representa ¢ expoe seus projetos, interesses ¢ realizagdcs, nio € assim numa exposigio colonial. Embora fossem evidentes os interesses de setores empre sariais e mercantis em bem explorar os territérios africanos - e para isto pressionavam o Estado ~ © Estado procurava 0 apoio dos que se mostravam desconfiados e temerosos diante de uma incerta aventura colonial. Todavia, 0 projeto colonial portugués era cido como de interesse “superior”, da Patria e da Igreja, e nas distintas partes que compunham a exposicao operou-se quase que @ materializacdo dos principios definidos no Ato Colonial e incorporados pela Cons- tituigdo do Estado Novo." ‘A"“legalidade” da nova ordem ditava a centralidade do Estado salazarista enquanto guardido € reprodutor do “espirito” © estincia reguladora dos distintos conflitos ¢ interesses tolerados elo autoritarismo. A Exposico Colonial do Porto correspondeu a uma iniciativa do Estado ¢ assim foi considerada. Fol criada a Sociedade Andnima da Exposi¢do Colonial (responsdvel pela arrecadacao de parte do investimento necessario), ¢ a comissio organizadora e a direcao efetiva dos trabalhos ficaram a cargo da Agencia Geral das Coldnias. Evidentemente, a exposigdo con- tou com 0 apoio de importantes setores da sociedade (empresirios, comerciantes ¢ intelectuais, especialmente nuicleos ligados & Universidade do Porto) ¢ da Igreja Catdlica, A escolha do Porto foi emblematica, pois a “capital do norte” se configurara como importante centro industrial 19 Segundo Henrique Galvlo, ‘Depois do Ato Colonfal ..] era realmente necessiia uma grande manifestagdo, clara « exuberante, que transmitindo & nagdo © conhecimento ¢ 0 amor das causas viesse a ofrecer 20 governs, stravén uma opinio ¢ dum pensamento coloniais formados, apoio consciente para a obra realirada c ara tudo que ainda fala alcangar” (Galvao, 1934, p. 2). mesmo pélo de iniciativas de um podero- so setor mercantil (sem, contudo, jamais ultrapassar a regido metropolitana de Lis- boa). Muito antes da sua inauguragao (a 1 Exposigdo Colonial Portuguesa ficou aberta de 16 de junho a 30 de setembro), pode- mos depreender da imprensa portuense ¢ lisboeta que a populagio seguia com curi- osidade e entusiasmo a remodelacao do Pakicio de Cristal do Porto, construido em 1862 na Quinta da Torre Maria e que ja ha- via sido sede de uma série de exposigées industriais nacionais ¢ intemacionais.® 0 Palacio de Cristal foi, na verdade, simbolo do projeto modernizador da cidade € um dos seus mais célebres monumentos industriais e de arquitetura do ferro (0 Porto viria a possuir ainda a ponte D. Maria Pia, do arquiteto Gustave Eiffel, edificada entre 1875 ¢ 1877)."' A escolha do Palacio ¢ do Porto para a realizacao da exposi¢ao teve um forte efeito simbélico, ao concentrar na “capital do norte” os ensejos de dinamismo € modernizagio do projeto colonial portugues. 0 edificio de ferro e vidro foi, entdo, completamente remodelado para albergar o Palacio das Colénias. Do lado direito, a escultura de um elefante materializava um dos elementos fortes do imagindrio colonial: em terras africanas ou orientais, a natureza configurava um dos princi pais atrativos, quer pela riqueza que anunciava, quer pelos seus mistérios. Nos dois lados da Porta principal, duas datas, 1415 ¢ 1934, marcos significativos da presenga portuguesa no mundo: a conquista de Ceuta e o renascimento colonial portugués, materializado na propria exposigio. Diante do palicio, a Praca do Império 0 Monumento ao Esforgo Colonizador Por- tugués: em volta de um padrao esguio, seis possantes figuras masculinas ¢ femininas com fei- Fachada principal do Palacio das Coldnias € Monumento ao EsfOrgo Colonizador Portugues. 20 De fato, 0 Palicio de Cristal do Porto fora construido para receber a Exposigio Industrial Internactonal de 1865 (Mendes, 1993, p, 362) 21 0 Palicio de Cristal do Porto foi inexplicavelmente demolido em 1951, perdendo a cidade este inestimave! monumento, No seu lugar foi construido um tenebroso Palicio dos Esportes. 22 "Em setembro de 61 [1861], com efeito, langou-se a primeira pedra do Palacio de Cristal, que na Capital do Norte seria marco de progresso, simultaneamente ao nivel da construsdo e da utilizagdo social. 0 Porto estava riquissimo’ disse Camilo, ‘dai-me dinheiro e eu cristalizarei 0 Porto’ (Franga, 1966, p. 342) Ecos do Atlantico Sul o lado: nave central do Palicio das Colénias (Alvao, 1934); abatxo: Monumen:o aos Mortos da Colonizacio, ses “*mussolinianas”, das quais apare ema parte superior do corpo € os pés, sendo os troncos substituidos por pilares facetados (Saial, 1991, p. 220). Nos jardins do Palicio de Cristal, foi erigido ainda 0 Monumento ‘a0 Mortos da Colonizagio Portuguesa ~ I brando o heroismo da obra colonial ~ e foram reconstruidos edificios que recordavam a passagem dos portugueses por territorios distantes, tais como o farol da Guia ea gru- ta de CamBes, em Macau, € 0 arco dos Vick reis, na India. Foram ainda dispostas no jar- dim a estétua de Dom Afonso de Albuquer- que € 0 padrao auténtico de Diogo Cio, am- bos herdis da expansao lusitana, Entretanto, 0 que mais chamava a atengio da populagdo era a chegada dos nativos das diversas coldnias. Passando por Lisboa antes de chegarem ao Porto, nativos das coldnias insulates e continentais africa- nas, do Estado da india Portuguesa, de Macau e do distante Timor provocaram co- A festa mogio na populacéo da capital. Jomais do Porto ¢ de Lisboa anunciavam cotidianamente a chegada dos “indigenas", suas caracteristicas e, sobretudo, seu fascinio por Portugal. Cada c 'onia parecia ter algo a oferecer com as suas gentes, ao mesmo tempo portadoras dos signos da sua identidade particular € membros de uma patria comum. De alguns enfatizavam o bem-falar © portugués ou o amor que nutriam pela Patria-mae (cabo-verdianos e timorenses); de outros, sua sensualidade ou seu vigor para o trabalho (africanas e africanos); outros ainda seriam carac. terizados por autoridade e sofisticagao (indianos ¢ macaenses). Antes mesmo da inauguracéo da exposigao, os jomnais noticiavam ainda a presenga dos indigenas nas atividades frenéticas da edificagao da seco colonial, que trabalharam na cons- trugdo de suas “aldeias” e pavilhdes tipicos. Sabemos também, tal como indicou Mendes Corré que os 324 nativos, entre adultos e criangas, foram cuidadosamente observados ¢ analisados Por professores ¢ estudantes da Universidade do Porto desde 0 momento em que chegaram a Cidade. A partir de “observacées sistematicas”, os cientistas do Porto chegariam a conclusdes com respeito a sua maior ou menor aptidao ao trabalho manual, sua capacidade intelectual, “usos € costumes", etc.” Os nativos eram, entretanto, entrevistados por jornalistas que comentavam suas particula- ridades e “pelo telefone” comunicavam a Lisboa a festa que se preparava no Porto. Diferente mente de um museu, a exposicdo colonial era um mundo de cheiros, sons e imagens em movi mento, a partir do qual se procurava sintetizar, no universo dos sentidos, o terceiro império colonial portugues. Ja se ouve o “batuque” no Palacio de Cristal. De dia e de noite, o “tam-tam” ecoa.[..] Ea algazarra do dialeto que ninguém entende, as risadas sonoras, e o cheiro pronunciado do sertao, e aqueles corpos negros, nus ¢ besuntados, que se agitam como se aguele fosse o seu verdadeiro meio, dao, a quem olhar a cena ea considerar, atentamente, a sugestio, forte, dominadora, da Africa. (Correfo do Porto, 10 maio 1934) 23 Segundo a publicagio 0 Instituto de Antropologia da Universidade do Porto e a favestigagdo clentifica colonial (1934, p. 15), foram realizadas observagdes de caracteres descritivos, antropométricos, fisiologicos ¢ psicoldgicos, ‘Srupos sanguineas ¢ metabolism basal do total dos 305 indigenas adultos ¢ 19 eriangas presentes na exposig20. Dos adultos, vieram 32 bijagés, 21 balantas €7 mandingas, seruds e manjacos da Guin¢; 19 cabo-verdianos; 14 bimbundos, 5 quiocos, 41 entre bienos, ganguelas e quipungos e 4 bacancalas (pigmeus) de Angola; 64 landins, 61 bachopes, 6 bitongas, 2 quelimanes e 6 senas de Mogambique; 8 indianos, 6 macaenses ¢ 9 timorense. oy Ecos do Atlintico Sul Portugal no tempo AI Exposicdo Colonial Portuguesa estava dividida em duas segSes principais, uma oficial € outra privada, distribuidas entre o Palicio das Coldnias - 0 Palicio de Cristal remodelado - ¢ @ imenso Jardim. Um pavilhdo dedicado & “Historia” iniciava a seco oficial, na qual, a partir da exposigao de documentos, mapas ¢ iconografia do Arquivo Histérico Colonial, bem como de uma cuidadosa cronologia, procurava-se evocar e representar a atividade descobridora ¢ colo. nizadora dos portugueses desde 1415. 0 visitante era sugestivamente guiado por frases emblematicas de Camdes, 0 poeta-simbolo da nacionalidade portuguesa: “Por mares nunca dantes navegados"; “Se mais mundos houvera li chegara”. Num dos mapas, chamava-se a aten. So para a antigilidade do colonialismo portugues: “Em oito séculos de histéria, cinco de colo. nizagio”. Do pavilhao histérico, saia-se com a nitida sensagdo da existéncia de um espago criado Por Portugal que se repunha continuamente no tempo, Pouco importava a data dos aconteci mentos: “hé muito tempo", num vago periodo denominado o das “grandes navegacdes", Portu- gal alargara as fronteiras do mundo conhecido e a persisténcia, em pleno século XX, de sua Presenga pelos quatros cantos do planeta testemunhava este feito. Em um segundo pavilhdo, ocupando a nave central do Palacio das Colonias, fez-se repre- Sentar a obra colonial portuguesa da primeira metade do século XX. Diferentes médulos procu- rayam informar sobre 0 povoamento europeu nas colonias, a fundacao de vilas e cidades, a io € 0 cultivo da terra, a instrugdo nas coldnias, a assisténcia médica ¢ espiritual, as instituigdes de crédito, os caminhos de ferro € as estradas, etc. A colonizagdo portuguesa seria tributiria de uma experiéneia historica e, em pleno século XX, informada pelo mesmo “espiri to" dos primeiros conquistadores; deveria, contudo, seguir 0 ritmo éo ocupagao do espaco € no controle dos corpos e almas, Ganhou destaque, aqui, a politica para os indigenas ~ considerada tinica se comparada & politica praticada pelas outras poténcias coloniais. O seu fim ultimo seria a incorporagéo plena dos “portugueses” de todas as “racas” a um patrimOnio cultural comum caracterizado pela com- Preensio da lingua ¢ pela f€ catdlica. A obra das missOes foi assim ilustrada por manequins em cenas € momentos considerados marcantes e virtuosos do processo de colonizacao: num dos modulos, uma irma missiondria de Maria ensinava “uma pretinha a coser a maquina” (subtitulo tempos modernos na 24 A sesio particular era composta basicamente de mostruirios industriais © comerciais, com a exposigio de Produtos industriais portugueses de maior interesse no mercado colonial e dos produtes colonials mais intereseantes Para o mercado metropolitano. Participaram cerca de 60O expositore em 650 mostruiriosdistibuides no imerion de Palacio das Coldnias ¢ nos Jardins anexos (ver Galvio, 1934), 222 A festa do cartdo-postal da exposigao); noutro podia-se obser- var “um missiondrio celebrando a missa, administran. do o batismo a um preto adulto” (ibid); dois outros médulos informavam sobre a obra assistencial das mis sdes: “uma aluna das Irmas na Escola, ¢ varias outras na oficina de lavanderia e tratando da criagio e em varios servigos domésticos” (ibid) A colonizacao adquire aqui um sentido moral ele- vado: trata-se da salvagdo das almas, fim s6 possivel 2 partir da transformacao do colonizado num portugués, Como ja apontamos, nas primeiras décadas do salaza- rismo procurava-se enaltecer este aspecto da coloniza~ so como o sentido central da presenga portuguesa em territérios exdticos, ¢ nos discursos politicos de Salazar, bem como nas falas de intelectuais e funcionarios de- dicados aos assuntos coloniais, este elemento ganhava destaque. Aos portugueses caberia, sobretudo, elevar o negro € o timorense, racial ¢ culturalmente inferiores, Por meio do trabalho, do aprendizado da lingua e da cultura portuguesas ¢ da adogao da fé em Cristo, 20 nivel da civilizagéo. Quanto aos indianos e chineses, os enclaves seriam resultado da historia de Portugal, as Cidades ali existentes, importantes centros luso-orien- tais a permanéncia da bandeira portuguesa nestas pa. agens, fruto do “desejo” de suas populagoes. Na nave central foi organizada uma cuidadosa Se- do de Antropologia Colonial. Réplicas de "cabegas de Pretos” ¢ “rostos orientais”, bem como crinios de dife- Tentes tamanhos, procuravam representar os diferentes tipos étnicos do império. Numa das naves laterais foi alocada uma Seco de Arte Indigena: curiosidades das vis (Goa); abaixo: reprodugio do Farol da Guia (Alva, 1934), cima: reprodugdo do Arco dos Vice Ecos do Atlantico Su! mais diferentes partes do império, como as magnificas “cabegas de Benin”. A arte afri- cana, que até entdo, com raras excegdes,* no tinha causado impacto junto a intelec- tualidade ow nos artistas portugueses, a nhou um espago privilegiado na exposicao, sinalizando uma das diretrizes do Estadc Novo, que encontrava na “arte negra” um dos elementos privilegiados de propaganda imperial (Franga, 1985, p. 218). Neste pavi- Iho, as Secdes de Antropologia Colonial ¢ de Arte Indigena procuravam dar a conhe- cer a diversidade racial e cultural do impé- tio. A classificagao dos grupos obedecia aos esquemas evolucionistas fixados no século XIX: 05 rostos ¢ os cranios, bem como suas manifestagdes culturais, “risticas” e “simples”, eram apresentados como estigios anteriores do desenvolvimento bioldgico e cultural da civilizagao, Ganhavam assim inteligibilidade os distintos ¢empos de Portugal e da propria civilizagao ocidental. A colonizagéo portuguesa foi apresentada como um processo continuo e ininterrupio, que teria tido inicio no periodo das grandes navegagdes ¢, na expansio da fé e do império (lingua ¢ cultura), apresentara ao mundo novos mundos, diferentes € desiguais, incorporados a civilizagdo ocidental pela marcha da historia de Portug E se Portugal e o império ganhavam inteligibilidade a partir do encadeamento temporal, a realidade da época se revelava numa diversidade espalhada pelos quatro cantos do mundo, Para Fepresenta-la, nada melhor que as embaixadas das colénias que, em 1934, se encontravam sob a soberania portuguesa, Um dos mapas da Exposigio Colonial: @ frase de Cam salientava a antigidade do império portugués (Alvao, 1934 25 Lembremos que, administrativamente ligado a Sto Tomé e Principe, Portugal poss Jodo Batista de Ajuda, no Benin. 26 Em 1929 uma exposigao de “arte negra” tha sido organizada pela Sociedade de Geografia de Lisboa, di {rande indiferenga do publico. Diogo de Macedo, escultor com pretenso conhecimento sobre “arte negra”, procurou \demonstrar em uma série de artigos de @ Mundo Portugués - reunidos em 1934 em wm livia de nome Ate indigena portuguesa - que, por detris de risticos objetos, havia uma concepglo estética fo mundo, e chamava © extravagante forte de S20 ede ~ primiiva ~ ® atengdo para o quio atrasados estariam os intelectuais portugueses no que se refere aos trabalhs sobre a arte das colénias (Franga, 1985, p. 218) 2204 ‘Uma Irma Missionéria de Maria ensina Pretinha 2 coser Principals maquetes do Pavilh ensinando um preto na oficina de carpinteiro, Ecos do Atlantico Sul Portugal no espaco 0 pavilhao central da exposigdo, que recebia a maior aten- 40 dos visitantes, era dedicado & representagao etnogratica. Os nativos de cada uma das colénias foram alojados em aldeias € habitagdes tipicas cuidadosamente construidas no parque anexo ao Palacio das Colénias. Expostos, os indigenas deveriam continuar sua vida, “usos € costumes", propiciando ao olhar curioso e atento do piblico um “retrato vivo” do cotidiano de suas existéncias no além-mar. Foram reconstruidas “tabancas” ¢“senzalas” da Guiné, Angola e Moambique, onde ficaram alo- Jados homens, mulheres e criangas de diferentes grupos étn os; uma aldeia para a “reliquia da Oceania’, o Timor; casas tipicas para os nativos de Cabo Verde e Sio Tomé e Principe; € “pavilhdes orientais” para os representantes do Estado da in- dia e de Macau. Afirmavam-se assim a hierarquia e a complexidade do império nos grupos que o compunham e nas distintas relagdes que estes mantinham com a metrépole. Na base, os nativos da Guiné, Angola Mocambique, representando 0 estigio inferior do desenvolvimento, quase que “radicalmente outros", Entre cles, contudo, se anunciava a inevitabilidade da incorporacao lena nas figuras de Mamadu Sissé e Abdulai Sissé. O primeiro, um régulo que colaborara com os portugueses nas guerras de ocupacao; a dignidade estava expressa nas marcas da sua di- ferenca, roupas, aderegos ¢ olhar altivo. Abdulai, seu filho, apre- sentava-se 4 exposicao vestido “a ocidental” ¢ expressando -se perfeitamente em portugués ~ representante da assimila- sao plena, destino de todos os indigenas portugueses. *Colabo- Tagio” e “assimilagio", duas das facetas do império portugués que se queria ressaltar . Esperava-se a “colaboracao” de todos, Pois todos seriam verdadeiros portugueses (embora muitas vezes 0s proprios interessados nao tivessem clareza disso), e 0 Portugal do Estado Novo procurava, em nome da nacéo, supe- rar tendéncias ¢ ideologias. Na metrépole, tal principio se expli- 0 régulo MamadaSissé - indigenas dda Guiné." (Alvao, 1934) Homem bilanta (Abdulai Sissé) indigenas da coldnia da Gine. Alvao, 1924) A festa citava nas corporacdes ¢ cémaras corporativas, que procuravam institucionalizar a superacio dos conflitos de classe ¢ interesses; nas col6nias, 0 mesmo principio se aplicaria as “ragas”, € 10, fas deveriam *colaborar’, nos seus “usos ¢ costumes", portanto na sua diversidade, para o born funcionamento do corpo politico do império, Abdulai Sissé era quase que o retrato do future de todos, ¢ representava a assimilagdo, 0 gradualismo presente no Ato Colonial, destino de todos os indigenas do império. Os habitantes de Cabo Verde constituiam a sintese feliz de portugueses ¢ africans. A imprensa portuguesa os descrevia como portadores de tragos ¢ costumes mais finos que os dos afficanos continentais. Mesticos na sua grande maioria, expressar-se-iam corretamente em por. tugués, manifestando grande gosto no “trato com os brancos”. Luiz Fernandes Rendall, farcle ro na ilha de Sao Vicente, afirmou 20 Didrio de Lisboa: Todos nés, nativos de Cabo Verde, temos um conhecimento, se ndo perfeito, pelo menos elementar do nosso pais. Sabemos 0 que Portugal tem feito pelas suas coldnias ¢ pelos seus respectivos indigenas. Avaliamos esse esforgo € reconhecemo-lo porque 0 temos sentido junto de nés. 0 nosso orgulho maximo & sermos portugueses. (Didrio de Lisboa, 23 jun. 1934, p. 7) Ao lado dos indigenas seminus da Guiné, Angola ¢ Mogambique, dos “assimilados” e dos estos “vestidos & portuguesa” dos arquipélagos atlanticos, os indianas e macaenses se apre- Sentavam com seus trajes sofisticados em pavilhdes representativos das turbulentas cidades orientais. Encantadores de serpentes e dancarinas do Estado da india foram alojados num pavi- Indo que procurava reconstituir os estilos arquitet6nicos indiano e portugués que se mesclavan gm Goa; ao lado de lojas e tendas, um pequeno palicio serviu de residéncia para Assam Bin Xeque Ismael xeque de Goa. Os misicos de Macau, sob a diregdo de Lu-Fu, foram, junto com a sua delegagdo, alojados no pavilhdo chinés, ricamente decorado e sofisticado, De Macau Vieram clegantes mogas chinesas que, a0 lado dos indianos, observavam com profundo despre 9 08 representantes afticanos do império (tal como nos indica a imprensa portuguesa). Ao lado ddos batuques africanos e das flautas indianas, a orquestra chinesa de Macau faseinou » piiblico Portugués. Os pavilhdes do Oriente eram, ainda, a encarnacio de momentos esplendorusos do Primeiro império e de estagios superiores de desenvolvimento. O Timor fez-se representar por duas familias de antigos régulos, apresentados como “au- {Gnticos portugueses” © “bravos soldados de Portugal” (Comércio do Porta, 1* jul. 1934), A “cubata’ foi construida, tal como um “ninho de éguias", no topo de um rochedo do jardim, e suas casas se assentavam em pilastras slidas “Iembrando, no tosco da sua talha, casebres primi- 2a Ecos do Atlaatico Su tivos de primitivas aldeias lacustres do Oriente"; como afirmou o matutino portuense, é 0 “Timor que temos a vista e que jamais haviamos sonhado visitar” (Ibid). 0 objetivo do pavilhao era “proporcionar uma viagem pelo império no Porto”. E para circular neste intrincado labirinto o “viajante” podia subir no “comboio colonial”: o ritmo lento ¢ as constan- (es paradas permitiam ao espectador observar cal- mamente as populagdes que habitavam estes dis- tantes territérios “portugueses”; os seus estra- nhos costumes provocavam ora riso, ora espanto, avilhio da Coldnia de Macau.” (Alvto, 193 ora admiracao. As sucessivas aldeias, palacios ¢ Tuas do pavilhio etogrifico, a possibilidade de admirar 0 seu conjunto davam a sensa uma continuidade espacial entre todos os territérios de além-mar, Assim, a viagem pelas terras 10 globo, era representado imaginar coloniais se fazia num espaco que, embora disperso p mente como continuo. Mas ao colocar em um mesmo pavilhao territérios tao distantes, cada uum associado a um momento especifico da histéria portuguesa, 0 vajante no espaco viajava também entre diferentes tempos. Com efeito, na perspectiva dos organizadores da exposigio e no seniso comum da epoca, os nativos ¢ os seus costumes, embora “verdadeiros portugueses” encontravam-se, em sua grande maioria, em estigios anteriores de desenvolvimento, em mo. mentos do passado do préprio Ocidente, obra incompleta de civilizagdo que, por sua missio ¢ 40, Portugal tinha o dever de continuar. To- davia, cada um dos grupos indigenas presentes na exposicdo fazia referéncia a distintos momentos da prépria histéria de Portugal; pela mao da po- téncia colonizadora entraram para a marcha da ae nela deveriam continuar. Um grande mapa contribuia para a sensagao de grandiosidade e continuidade na extensio do império. Com o titulo “Portugal no é um pais pe queno", a superficie do império colonial portugu- é5 era sobreposta ao mapa da Europa. Na compa- racdo, 0 Portugal imperial emergia como uma ex- tensio territorial maior do que a dos grandes pai- Comboio colonial." (Alvao, 1934) 228 AS PEQUENO” Pe He i = fina A: : “pn ideal it en | Painel exposto na primeira Exposigo Colonial Portuguesa (1934) ses europeus. E curioso o fato de que a comparagio era feita entre a totalidade do império Portugués € as metrépoles de outros impérios, excluindo pois da medida as extensdes dos territérios francés, britanico, belga ou holandes. Ora, no caso dos territérios sob dominio fran- és ¢ britanico, a superficie superava, em muito, a extensio dos territérios portugueses do ultramar. Essa aparente falta de realismo na comparagdo, que se fazia com medidas tao desi- Buais, no deve ser tomada como um “truque” para aumentar a importincia de Portugal. Essa singular “cartografla” revelava, em sua prépria operagio, que Portugal concebia sua unidade territorial como distinta, em sua prépria natureza, das demais nagées imperiais. Ao contririo das outras metrépoles que viam suas coldnias como territérios estrangeiros subjugados - atitu- de evidente pelo menos no caso britinico -, a nagio portuguesa se estendia pelo mundo, Era essa particularidade que a tornava uma grande nagio. 229 Ecos do Atlantica Sul 0 lema “Portugal ado & um pais pequeno” fo corrente no Portugal salazarista, A imagem das colénias e da merépole sobreposta a0 mapi europeu ow norte americano publicada em livros escolares e vendida em cartdes postais BRIS | contribuia para popularizar a idéia de grandeza Imagens: exotismo e identidade A exposigio era, antes de tudo, uma festa. Na exclamagdo “vamos ver os pretos!" temos a afirmagdo do exotismo que atrafa o visitante, que, além dos “pretos", podia contemplar os “orientais" (sem falarmos do zoolégico montado nos jardins do Palacio das Colénias). Nesta festa se representavam nao apenas o exotismo ¢ 0 cosmopolitismo do império, mas a historia ¢ @ ago colonial presente ¢ futura, que pregava uma incorporagéo plena na patria lusitana de individuos ja portugueses por opgdo ou espirito. Exotismo e identidade: tais eram os principios continuamente veiculados pela imprensa ¢ pelos organizadores da exposicao, Nas falas de Henrique Galvao, nos artigos de jornais e na forma que adquiria a exposi © império surgia como realizagao plena e thtima da “nacdo". A *identidade” entre os seus dife- Tentes membros no tinha como pressuposto, contudo, qualquer tipo de “igualdade”: a hierar- quia do império, normatizada pelo Ato Colonial e ritualizada na exposicZo, era continuamente afirmada, a0 mesmo tempo em que se confirmava serem “todos portugueses”. A idéia de “na- sao" no Portugal da década de 1930 parecia poder comportar a grande diversidade das “racas” do império. caso da morte e do enterro de Papé ilustra a mancira como as idéias de “exotismo” ¢ “identidade” eram constantemente veiculadas pela imprensa ¢ pela intelligentsia do periodo: 230 A festa Fora, na rua da Liberdade, juntara-se compacta multidao: “E 0 enterro do preto! Coitadinho! Diz que era tao forte!” E estas exclamagées outras exclamagdes crepitavam nos labios do povo, As mulheres, sobretudo, sentiam, com uma ternura funda, Portuguesissima, a morte daquele homem que nao tinha histéra daquele homem que nao era da sua cor, que nao era da sua raga Estavam presentes representantes dos nativos de quase todas as colénias. E todos mostravam, nas fisionomias, na atitude, um respeito profundo, em face do portugués negro que morrera subitamente [J Cinco automéveis se puseram em marcha, seguindo 0 coche funerario. O que conduzia o jornalista levava, também, estdicos, os bijagés a cuja aldeia o pobre negro pertencia Aleta perfeito, Pape era, sem diivida, 0 negro mais alentado e Vigoroso, de mais hércules plastica que a Guiné mandou & exposigio. [..] Papé impunha-se, destacava-se, era quase, um simbolo magnifico da forca selvagem que certas gravuras e certas, descrigdes do sertio nos mostram. [.] Na aldeia lacustrc, toda a tarde se batucou, anteontem, em som de tuto, Um ou outro lamento rompia, por vezes, a melopéia barbara €-vinha dizer-nos que a meméria de Pape bailava, funcbremente, melancolicamente, junto dos homens de sua cor e de sua raga. {.] O enterro de Papé foi outra pagina de grandeza. [..] Em nome de Mamadu Sissé, seu filho Abdulai disse, em duas palavras, que os portugueses nativos da Guiné nio esqueciam a forma carinhosa, fraternal, exemplar por que os portugueses da metrépole, os brancos que a mesma bandeira verde ¢ vermelha cobre, haviam dado sepultura 20 pobre Papé. (..] Uma linda rapariga, loita como uma inglesa de raga, curvou-se, entio. Apanhou um punhado de terra. Elangou-o, eélere, para a cova poeirenta, entre o ranger das correntes que se soltavam do caixdo, jé poisando, Os negros, um por um, langaram terra para a cova, beljando-a primeiramente,[.] 0 sol dardejava sobre as cabecas cobertas. Da multidao, agora em debandada lenta, subia o clamor vago da comiseragdo. “Coita- dinho!” £ 96 um garotinho que rabiava por entre 6 povo, ansioso do espeticulo, pds a nota da irreveréncia, naquele ato solene, an Ecos do Atlantico Sul simples ¢ tocante, grulhando: “Nem perecia 0 enterro dum preto!” E nao. Em verdade, fora o enterro dum portugués. (Comércio do Porto, 19 set. 1934) Nao sabemos como ou de que morreu Papé, “o preto atlético dos Bijagés".” Podemos imaginar que as stbitas mudancas de temperatura, freqiientes na cidade do Porto mesmo nos meses de verdo, mas sobretudo na meia-estagio (Papé morreu em setembro), tenham sido uma causa possivel. Numa pequena nota do Didrio de Lisboa do dia 27 de maio de 1934, antes Portanto da inauguracdo da exposigao, a diregao do evento se defendew de “pessoas mal: cionadas” que teriam propalado a morte de indigenas, e afirmava estarem eles sendo muito bem tratados € assistidos.” Papé morreu meses depois, e o fato foi anunciado nas primeiras paginas dos didrios de Lisboa e do Porto. A noticia que transerevemos do Comsrcio do Porto nao deixa diivida quanto ao clima que se quis imprimir ao enterro de Papé: a populagao do Porto chorou a morte sibita de um “portugués negro", de um homem “sem histéria” que entrou para a histé- ria pela graga de Portugal (c da I Exposi¢ao Colonial); as mulheres sentiram profundo pesar pela morte de alguém que “do era da sua cor’ - embora fosse, sem diivida, um portugues. O inespe- rado acontecimento, que poderia inclusive ter atrapalhado os planos da exposigéo, na verdade foi plenamente absorvido ao ser transformado numa “pagina de grandeza” da historia de Portu- fal - ¢ dos portugueses de todas as racas. O texto do Comércio do Porto enfatizou, para além de um principio de nacionalidade - que comportaria todos os nativos do império -, 0 exotismo de Papé: preto, forte, atlético, um “Hercules, simbolo magnifico da forca selvagem” dos povos africanos; na aldeia bijago se batu- cou toda a tarde, pois nos “usos e costumes” nativos a “memdria” de Papé bailava junto com os homens € mulheres de sua “cor ¢ raga", Do cortejo na rua da Liberdade participaram todos, Pretos e brancos, homens e mulheres. Ao longo da tarde, os indigenas haviam estado retirados na sua aldeia batucando chorando a morte do seu companheiro. Abudulai, guineense assimi- lado, num breve discurso, deu mostras da gratiddo dos indigenas diante da forma como haviam sido recebidos pelos “portugueses da metropole”. E se o exotismo cra continuamente afirmado, e estava no fundamento da estrutura do império, a nacionalidade plena se realizaria na constante antropofagia a que estariam submeti dos individuos onde os principios de identidade nao eram visiveis, mas continuamente anun- ciados. Uma nacionalidade definida pelo seu movimento temporal ¢ espacial e, sobretudo, pela 27 Parcce que a morte de individuos trazidos para mostras ¢ exposigdes era bastante freqitente (Corbey, 1993). 28 Procuramos deniincias na imprensa portuguesa, mas no encontramos. Ao que parece, a direcdo da exposico tstava se defendendo de “boatos”, Mulher Balanta (Rosita), indigenas da coldnia da Guiné.”(Alvlo, 1934) incorporagio constante de gentes exéticas. A possibilidade da existéncia da nagdo estaria na sua expansio constante em territérios longinquos no espago mas também no tempo portugues: °s “usos ¢ costumes” dos nativos transformar-se-iam em riqueza do império que, pouco a pou- Co, tenderia a desaparecer, dada a capacidade e necessidade do “portugués” de se plasmar e se fundir continuamente no exético. Assimilagao € colaboragio entre os exdticos ¢ primitivos habitantes das coldnias continentais africanas; mestigagem entre os nativos dos arquipélagos atlanticos, fundamentalmente Cabo Verde; simbiose nas sofisticadas e antigas cidades portu- guesas do Oriente Exotismo € identidade: tais eram os principios enunciados pela I Exposigao Colonial Por- luguesa. E se a descrigéo do preto F é dava mostras da apreciagto do vigor fisico de sua P preciag 23 Ecos do Atlantico Sul "a celebracto ao longo da exposigao da beleza de suas mulheres, em especial da “Vénus negra” Rosita - de etnia balanta, também da Guiné -, indicava outro dos atrativos do evento: a beleza ¢ sensualidade das “mulheres africanas”, A atragio pelo exotismo ¢ a afirmagao da identidade nao possuiam, contudo, sentido de mio unica, € se 0 publico péde “ver”, “sentir", “escutar” e “cheirar” gentes remotas, que se afirmaya serem, na sua diferenca, portugueses, este mesmo piiblico era “visto” e “sentido” por africanos ¢ asiiticos presentes 4 exposigao. Na verdade, pouco sabemos sobre o que pensaram € sentiram os nativos das distintas colonias. Suas declaragdes aos jomalistas afirmavam conti- nuamente seu amor ¢ admiragao pela metrépole, € se ndo podemos colecé-las totalmente em diivida - afinal, 0 que dizer? -, podemos supor que no disseram tudo 0 que pensavam, ou que nem tudo 0 que disseram foi publicado por uma imprensa vigiada pela censura, Néo consegui- mos ter acesso a nenhum diario que tivesse sido escrito por algum dos natives presentes na exposicéo; podemos supor, contudo, que os chineses de Macau dificilmente se sentiriam inferiorizados ou admirados diante dos portugueses, e mesmo que os indigenas analisados observados cuidadosamente pelos cientistas da Universidade do Porto se ressentiriam diante da violéncia a que foram expostos. Resta-nos ainda outro recurso para captarmos algo do que sentiran os indigenas: 0 seu olhar absolutamente entediado e, as vezes, amedrontado e triste, registrado pelo fotdgrafo Domingos Alvao (1934) e pelos jornalistas que compareceram a exposigao. Avidos por captar 0 exotismo dos indigenas ¢ fixar scus “usos € costumes, apreenderam também 0 cansativo que foi a exposigio ao longo de meses diante de um pilico alvorocado, provinciano e, muitas vezes, inconveniente. A inconveniéncia ficou registrada na propria preocupagao dos organizadores do evento diante dos excessos do ptiblico Conforme previramos, a grande atragao do certame tém sido as aldeias indigenas que se conservam consiantemente rodeadas de centenas de curiosos. Dentro de suas senzalas, os pretos organizam batuques e fazem varias exibigdes, que so acompanhadas com interesse espantoso pela multidao, Por vezes até cometem-se excessos que hi todo o interesse em reprimir. A tal ponto, que a entrada do Palacio foi afixado um pedido & direcao, a fim dos visitantes nc praticarem atos que os diminuam aos othos dos indigenas ou Ihes meregam reparos, para que o gentio leve para as suas terras uma impressio que dignifique a soberania portuguesa. 24 A festa Esse pedido € tanto mais justo quanto é certo que a curiosidade dos visitantes pela populacao indigena da exposicao tem sido um Pouco exagerada, tanto por parte dos homens bocais, que se intrometem com as pretas, como até - 0 que é mais espantoso - de mulheres que rodeiam os pretos com uma atengao excessiva ¢ eprimente para a raga branca. (Diério de Lisboa, 19 jun. 1934) 0 “olhar” indigena expressava, portanto, capacidade de juizo diante da Teaco do piiblico Portugués, 0 que preacupava os organizadores do evento diante de sua Proposta de bem re- ainoe see Virtudes da metrépole e de suas gentes. E se havia preocupagao em modelar ng império seria lograda na medida em que a superioridade do elemento metropolitano fosse plena- oe rade ubecida, tanto de um ponto de vista material quanto mora “Meter-se com az pretas” ou “rodear os pretos” nublava as préprias fronteiras que existiam entre os diferentes membros de um império colonial que se queria orginico e, mais do que isto, fazia que 0 nativo langasse tum olbar de divida ao colonizador que exibia continuamente sua suposta superioridade, gm Janeiro de 1994, de entrevistar Dudu (Maria Eduarda), octogenaiia luso-africane nascida em Angola (Mogamedes) que, em 1934, era professora priméria no Porto ¢ teve possibilidade de visitar a I Exposigao Colonial e a Exposicéo do Mundo Portugués, Aliss, segundo Dudu, o cer time de 1934 fora um “ensaio geral” do que se realizaria em Lisboa em 1940, Mas que mais chamou a atengéo de Dudu ~ comunista e seguidora de Alvaro Cunhal - fol » “fracasso eviden- te” dos 500 anos de colonizasdo portuguesa: “A Exposigio Colonial do Porto foi, para mim, a brova evidente do fracasso da colonizagdo portuguesa: os pretos estavam nus. Nae haviam, Portanto, aprendido nada. Nao haviamos ensinado nada” (Dudu, jan. 1994), A relacdo entre exotismo e identidade entre império e naga ¢ contraditéria, e nos eventos ane explicitam 0 auge da idéia de império em Portugal se anunciam tensdes conflitos em clhares que se opdem ¢ se intercruzam. Os indigenes sio fotografaddos como “tipo”, “Fungo” ou ‘testemunho’ Os cabo-verdianos aparecem com roupas portuguesas junto a extitea de Afonso de Albuquerque: mesticos, a pose ao lado do insigne representanie da historia de Portugal Verde cus ede € amor & nago que os inventou e thes deu nome. A foto dos indigenas de Capo Verde ¢ as imagens de Abdulai e Mamadu Sissé sio testemunho da invengio, da ass da colaboragao. “Tipo” e “funao” se sobrepdem nas imagens dos indigenas das col6i Ecos do Atlantico Sul nentais africanas: os bijagés na sua piroga, o teceldo, o escultor de marfim ¢ os “marimbeiros” de Mocambique. A dignidade dos “usos ¢ costumes” dos nativos se expressa no “velho quipungo", nos “homens caconda” de Angola € nos “guerreiros” de Mocambique: imagens do passado, quando o poder dos régulos e da ordem interna nativa era quase que infinito. A Africa agora esté pacificada, ¢ chefes ¢ guerreiros so mostrados numa exposigio colonial, As mulheres bijagés aparecem de tanga ¢ com os seios & mostra. A “mulher balanta Rosita", Paparicada pela imprensa portuguesa como “verdadeiro tipo de beleza", “Venus negra” e “miss exposigao”, € fotografada de perfil com evidente expressio de tédio e mesmo mau-humor. Podemos imaginar a reagdo de um piiblico reprimido pelos rigidos “usos ¢ costumes” impostos Pela Estado Novo e pela Igreja no Portugal de entdo diante de homens e mulheres seminus. E 0 {édio se esparrama na imagem do *homem bijags”, dos “indigenas da colonia de Mocambique’ Numa destas imagens, temos a sensacao de que a mulheres no querem se deixar ver. Mas nao 6 tédio e timidez surgem das imagens africanas de Alvao, e no rosto da “rapariga quipungo" de Angola temos uma evidente expressio de medo. A India se apresenta entre “domesticadores de serpentes” ¢ “misicos ¢ bailadeiras"; uma foto capta apenas uma “cabeca de velho” e outra, um indigena que representa a simbiose entre Portugueses ¢ indianos, sintetizada na imagem de um homem com turbante, terno ¢ gravata Nao se trata, porém, como Abdulai, de um “assimilado”, pois se reconhece a superioridade dos nativos da India com relagao aos indigenas afticanos, ¢ a assimilagdo se daria num proceso simbiético de mao dupla, no interior do qual se conservariam elementos asidticos e metropoli- tanos. Algo que deveria ocorrer também em relago a Macau, reproduzida fotograficamente num pavilhao oriental € numa orquestra de misicos da coléni E significativa a fotografia da “aldeia do Timor": em meio a vegetagio exuberante dos Jardins do Palacio das Colonias ~ exuberincia celebrada nos catalogos ¢ na imprensa como pro- videncial, pois garantiria mais um ingrediente basico ao evento o coletivo timorense surge dis~ tante, no cimo de um morro, quase que inacessivel, como a prépria colénia o era na realidade. Além de proporcionar uma viagem pelo imperio no Porto, a | Exposicao Colonial Portugue- sa oferecia albuns e fotos como /embrancas e criava, assim, meméria como se realmente de uma viagem as coldnias tivesse se tratado. Da exposicdo, o visitante saia com a sensacao de haver conhecido verdadeiros “pedacos de Portugal” espalhados pelo mundo, imagens, cheiros e sons que diziam respeito a uma realidade ao mesmo tempo distante e exética mas profundamente portuguesa. Podia sair, contudo, com diividas quanto a este estranho Portugal de além-mar, diividas estas que podiam se manifestar entre os proprios nativos. Uma intensa programacio de eventos, sempre procurando exaltar 0 espitito colonial ¢ naraonal, foi organizada ao longo dos quase quatro meses da exposigdos ceriménias de abertura ccs encerramento com a presenga das autoridades, comemoragao do aniversirig tx tomada de Ceuta perante o monumento do Infante D. Henrique, varias cerimonias de homenagem e exaltagio Brtritica diante do Monumento ao Esforgo Colonial Portugués, dias especifcos para celebrar a obra portuguesa em cada uma das colénias ~ “Dia do Timor”, "Dia de Macnee =, congressos que versavam sobre assuntos coloniais, etc. No dia 30 de setembro, um cortejo colonial encerrou a I Exposigio Colonial Portuguesa: elas ruas do Porto desfilaram carros aleyéricos alusivos aos diferentes momentos da obra rjr2atéria, ¢ soldados vestidos com figurinos militares antigos representevnrs 08 exércitos {usitanos que pelejaram com os mouros na conquista de Ceuta. Ao Inia dos monumentos celebrativos, desfilaram os exércitos coloniais, os soldados negros de Mogambique ¢ a banda angolana. Em seguida, vinham os indigenas dos distantes territories: o xeque gots seguido dos cncantadores de serpente; os muisicos de Macau; os régulos afticanos seguidos dos seus sidi- tos. Nessa alegre procissao, que celebrou o fim da I Exposigio Colonial Portuguesa, “o passado, orn eet Combinaram-se expressivamente” (Comércio do Porta, |" out 1934), (Com efeito, nesse cortejo era o império que desfilava: diferentes momenvs a historia PonuGuesa, povos de terras distantes, e exéticas, apresentados como lsitanos, Un espeticulo pelos cine Sucantar 0 olhar curioso do piiblico portugués com imagens que o cone iciam, Pelos cinco sentidos, da grandeza do império, A Exposigio do Mundo Portugués Pela primeira vez na historia de Portugal se registra um fato verdadeiramente extraordinario: os portugueses estio todos de acordo relativamente & Exposicao do Mundo Portugués. (Sempre Fixe, 1940, apud Saial, 1991, p. 208) A afirmacto do jomal satitico portugués ¢ significativa do lugar que, até os dias atuais, a PePesicdo do Mundo Portugués ocupa na historia cultural de Portugal. No momenta evn que a Fspanha sala de uma das maiores guerras civis jamais registradas (e a “pax franquista” parecia Fe Manda ailidade peninsular) e tinham inicio na Europa os duros anos da Segunds Guer. a izavam na celebragao do duplo centenirio da fundagao e da independéncia (1140 e 1640), organizando congressos ¢ realizando uma grande exposigao his- ‘6rica. Portugal era como um “odsis de paz", e Saint-Exupéry, ao viitar a exposigao’ nae dele 237 “Homem bijagé - indigenas da coldnia da Guiné (Alvio, 1934) “Indigenas da colbnia de Mocambique.”(Alvao, 1934) igenas da jue em trajes| w "Velho quipungo - Indigenas da coldnia de Angols.” (Aivao, 1934) “Escultor de marfim - indigenas da colénia de Mogambique.” (Alvao, 1934) Ecos do Atlantico Su CCebega de velho - indigenas do estado da india.” (Alvio, 1934) ‘Mulheres bijagés - indigenas da coldnia da Guiné."(Alvo, 1934) ‘Indigenas do estado da india (alvao, 1934) ores de serpentes estado da india, (Alvao, 1934) Ecos do Atlantico Sul “Orquestra de da coldnla de (Alvio, 1934) “Aldeia de Timor.” (Alva, 1934) A festa de manifestar estranheza ao ver o pais “agarrar-se desesperadamente a ilusio da sua felicidade” numa cidade que era “uma espécie de paraiso claro e triste” ("Lettre a un otage”, apud Franca, 1980, p. 34). Distintas personalidades ¢ setores da sociedade portuguesa concordariam com relagao a importancia das festividades de 1940. Tal como indicam os trabalhos de José-Augusto Franga (1980; 1983; 1985), entre outros, a Exposi¢ao do Mundo Portugués reuniria distintas geragdes € correntes artisticas em torno de uma idéia de “Portugal” que parecia poder superar tendéncias ¢ ideologias. Almada Negreiros assinalou irénica ¢ melancolicamente, em forma de poema, 0 “espirito” que se queria impor ao mundo da cultura e & politica em Portugal e que predominou a0 longo das celebragdes de 1940: Foi substituido Portugal pelo nacionalismo que é a maneira de acabar com os partidos de ficar talvez o partido de Portugal ‘mas nfo ainda talvez Portugal! Portugal fica para depois € 0s portugueses também como tu, (Ode a Fernando Pessoa”, Almada Negreiros, 1935, apud Franca, 1983, p. 318)" E se Almada queria distanciar-se da “politica do espirito” de Anténio Ferro, nao se negou a participar junto com outros artistas da primeira geragdo modernista portuguesa da Exposi do Mundo Portugués. Nao se trata, nos limites deste trabalho, de recuperar na sua totalidade 0 debate travado no interior do mundo das artes em Portugal de meados dos século XX, debate este, alids, investigado minuciosamente pelo socidlogo ¢ historiador José-Augusto Franga. As polémicas entre diferentes grupos e geracdes de artistas ¢ intelectuais ligados ou no ao Estado foram reveladoras, contudo, de um conjunto de concepgdes que nortearam a organizagao da Exposi¢ao do Mundo Portugués.» Um bom exemplo deste fato ¢ 0 caso da exclusio dos artistas alinhados as correntes naturalistas oitocentistas de muitos dos pavilhdes da exposicao, em virtude da clara opgio modernista de Antonio Ferro, que, desde a participagio portuguesa na Exposicao Universal de Paris de 1937, chamara a atencao para a necessidade de “anular o cliché perigoso" que havia caracterizado as manifestagdes anteriores quando Portugal aparecia “vest 29 A “Ode a Fernando Pessoa” foi certamente escrita em data préxima & morte do poeta (Franca, 1983, p. 318). 207 Ecos do Atlantico Sul do de época” (Franga, 1985, p. 219). A Exposigao do Mundo Portugués significava, portanto, um desafio: combinar 0 modemo ~ cosmopolita - a0 nacional e nacionalista? Nos anos anteriores, como jé salientamos, Por al havia participado ativamente de exposigdes na ty cionais ¢ internacionais, o que sempre provocara aca, lorados debates entre intelectuais, artistas € arquite- tos. Nas exposigdes de Sevilha (1929) e do Porto (1934), predominaram estilos mais propriamente vin culados as tradigdes eclética (arquitetura) e realista (pintura), predominantes nos ambientes académicos portugueses. Na festa colonial de Paris de 1931, se 0 projeto arquiteténico de Lino apresentou novamente um Portugal “vestido de época”, o cartaz de Kadolfer anunciou a incorporagao por parte do regime de for: mas artisticas até entéo bastante marginalizadas pe- Jas instituigdes oficiais. Neste proceso, foi fundamen tal 0 papel desempenhado por Anténio Ferro, jorna- lista e escritor, admirador de lideres autoritarios como Mussolini ¢ de correntes artisticas que, como o futu- Cortejo colonial - acima: grupo de irmas das Missdes Religiosas do Ultramar; meio: carro da industria; abaixo: grupo regional da metrépole (Alvio, 1934). 30 As idas e vindas form as primeiras geragdes de modernistas portugueses sio reveladoras ainda dos proprios entraves da sociedade portuguesa. O enraizamento de concepcdes academicistas em determinados meios politicos, atisticos e intelectuais com grande forca junto a insttuigdes como as escolas de bela tes, otradicionalisino do publico © da imprensa, e fato de os “modernos” se protegerem num Estado autoritario que rapidamente se ‘manifestou absolutamente conservador foram elementos decisivos na trajetéria acideatada de geragdes de artistas portuguese. 31 Anténio Ferro teve um grande poder em impor os “modernos” que o proprio regime olhava com sconfianga; em determinadas segées e pavilhdes predominou, contudo, a tradigho, como nos casos da Seco Colonial, coordenada por Henrique Galvlo, ¢ do pavilhao do Brasil, realizado por Raul Lin. 248 A festa iismo de Marinett, pregavam dinamismo e mudanga. Ferro viria @ ocupar as fungdes de diretor do Secretariado Nacional de Propaganda quando da sua fundacéo em 1933, ¢ © sea poder crrscente Junto ao mundo da cultura garantiu uma guinada na politica cultural oficial com fetacdo aos modernistas, que teriam presenga marcante nas exposigdes intemacionais de Prec (1937), Nova York ¢ Sdo Francisco (1939), na Exposigao Historica da Ocupagao em Lisboa (1937) na Exposigéio do Mundo Portugués. “Anténio Ferro nao centralizou, contudo, a organizagao dos eventos de 1940, Outras per- sonalidades, tais como Cottinelli Telmo, Duarte Pacheco, o cardeal Cerejeira ¢ Henrique Galvao, tiveram importante protagonismo na concepcdo e realizagao da Exposigio do Mundo Ports, Suds. Mas se devemos apontar o personagem central que, de certa forma, ditou os Propésitos ¢ a forma que deveria assumir o evento, este foi o préprio ditador. Personagens No dia 27 de margo de 1938, a imprensa portuguesa publicou uma longa nota assinada por Oliveira Salazar, na qual se langavam as bases das celebragdes do oitavo centenario da fuser sie de Portugal ¢ do terceiro da recuperagao da independéncia. O propésito de tais celebragdes ra, conforme a nota publicada, “dar ao povo portugues um tonico de alegria ¢ confianga em si Proprio, através da evolugao de oito séculos da sua historia”2 bem como conseguir, “pela preset do (reduzido) tempo ¢ pelo entusiasmo criador, levar os servigos puiblicos e particularcs a acelerar 0 ritmo da sua atividade, com o intuito de firmar a capacidade realizadora de Poms: Sal” (apud Sajal, 1991, p. 224-226) Longe, porém, de tratar-se de uma simples nota, o texto, como assinalam todos os comentadores, praticamente tudo previu acerca das celebragbes. Definiu-se o local privilegiado do evento, os pavilhdes € as segBes da exposicdo e, sobretudo, o “tom” que deveris prevalecer ho conjunto das celebracdes. Haveria pavilhes histicos, de arte portuguesa (prvileglando-se 0s “primitives”, podendo haver obras modemas na “decoracdo"), de etnografia [com reprodu- S20 da arquitetura de cada uma das 21 provincias de aquém c além-mar, com habitatee de jndumentiria propria") ¢ obras do Estado Novo; também se realizariam cortejos (o do Munda Portugués, em Lisboa, 0 do Trabalho, no Porto, entre outros). As diretrizes do ditader pareciam Prever @ propria guerra, e Salazar afirmara nao desejar “multiddes de estrangeiros", segundo dees ns gtzaresperava que, dominados por ti alta ebela ida’ que Ihes propunha, os portuguesesexpulsariam Ie epi detristezae do mal que apés tntos anos de Estado Novo ainda, estranhamerte, peter ha los..." (Franga, 1980, p, 36) Ecos do Atlantico Sul Franga, num *receio oculto de criticas que sé com convidados esco- Ihidos se evitariam” (Franga, 1980, p. 36). Cam efeito, a guerra evi- tou a vinda de muitos potenciais visitantes, e possibilitou ainda que fosse encarado positivamente 0 regime que parecia garantir uma posigdo neutra diante das forgas beligerantes. Com temor as criti- cas, Salazar ordenou um conirole ferrenho da mendicdncia que as- solava as ruas da capital” e antecipou ainda o lema que apregoou nos seus anos finais como presidente do Conselho: “orgulhosamen- te 6s” Salientava-se ainda o cariter “tinico” da Exposigao do Mundo Portugués, pois se, desde a realizagio em Londres da I Exposigdo Universal haviam sido organizados eventos de natureza industrial, Selo comemorativo da Comercial e colonial, Portugal preparava a “primeira” grande “expo- Exposigio do Mundo _—_—si¢o histérica”. 0 evento diferenciava-se, zinda, daquele realizado Portugues. no Porto anos antes, pois nao se tratava de uma exposigao colonial, mas de algo mais grandioso, que procurava exaltar um mundo por- tugués que, no tempo € no espaco, sobrepujava o proprio territé: rio colonial. Nao faziam parte do mundo portugués os milhdes de emigrantes portugueses que se espalhavam pelo mundo e espe- ravam ansiosamente os sinais da Emissora Nacional? E os territ6- rios outrora pertencentes a Portugal nao seriam também teste- munho da obra de Portugal? E, num mundo portugués nio atre- lado a rigidas fronteiras politicas, nao encontrariamos 0 Brasil? | Novamente, 0 que informava a exposi¢ao portuguesa cram | Seaeee amber ] as distintas épocas do pasado histérico portugués ¢ seu espago _Selocomemorativo da Exposigdo imperial. No ano em que se assinavam a Concordata e 0 Acordo do Mundo Portugués Missionario com o Vaticano, a Igreja nao sé estava presente ( ja estivera anteriormente), como saudava a exposi¢ao como um “ato magnifico de fé", de “devogao" e “exaltagio” E se ao longo de todas as celebragdes foram constantes missas, cortejos religiosos e te-déuns, é na voz do cardeal Cerejeira, patriarca de Lisboa, que encontraremos a visdo que tinha a Igreja deste mun- do portugués encenado na exposigio. 33 A mendicdncia parecia ser endémica na capital ¢ em varios centros urbanos entre finais dos anos 1930 ¢ inicio ‘dos anos 1940, quando terriveis condigdes de vida dominavam as vilas, os bairos proleiiris, as barracas € as Furnas ‘do Monsanto (Rosas, 1994, p. 99). A crise do trigo e de abastecimento provocara uma miséria crescente no campo € A festa Com efeito, ao longo de todos os anos que ocupou esta posigdo proeminente na hierarquia da Igreja em Portugal, Cerejeira reiterou continuamente seu apoio incondicional & causa de Salazar no “mundo”, que traduziria plenamente os propésitos humanistas da expansio da fé cristi. A Exposiggo do Mundo Portugués foi, para Cerejeira, a possibilidade de consagracio de todos os portugueses da metrépole, da emigracao ¢ do ultramar num ato de fé e nacionalismo. Foi ainda a materializagdo de uma alianga firmada pela Concordata e pelo Acordo Missiondrio que poria fim aos conflitos entre Estado e Igreja desde a proclamagio da Republica em 1910. Um reencontro, enfim, de Portugal consigo mesmo, Nas falas de Cerejeira, a partir de 1940, temos quase que uma total concordancia com os principios ditados pela exposigdo: 0 Estado Novo corresponderia a um momento no qual se trataria de reatar o fio perdido da histéria; todo portugues seria portador de um “espirito” ¢ de um “genio” que traduziria a grandeza da “raga” ‘em todos os tempos e espagos; Portugal seria resultado de um ato de fé e o Brasil, sua grande realizagao no mundo ¢ prova, no presente, do futuro da Africa portuguesa (ver Cerejeira, 1928- 1970; 1942; 1943; 1971). Mas se 0s elementos messianico e tradicional estao presentes nas falas de Cerejeira e Salazar, a Exposigo do Mundo Portugués contaria com a participagtio de personagens dindmicos que viam no Estado Novo nio apenas a tradugdo do passado, mas também a possibilidade de um futuro que trouxesse para a “modernidade” aquilo que seria “genuino” ¢ “portugués”. Destaca~ se Ant6nio Ferro, ligado ao Servigo Nacional de Propaganda, apregoador da “politica do espiri- to" e chamado jocosamente de “Goebbels portugués” (Baptista, 1993, p. 66). Com toda a certeza, a comparacéo entre Goebbels ¢ Ferro ndo procede, da mesma forma que nao procederia uma aproximagio radical entre Hitler e Salazar; 0 certo é que Anténio Ferro serviu aos propésitos de propaganda do ditador, e viu na Exposigao do Mundo Portugués a possibilidade de encenar o dinamismo que desejava para Portugal. Desfrutando de relagbes privilegiadas (¢ mesmo conflitantes) com grupos das primeiras geracdes de modernistas portu- gueses, 0 jornalista conseguiu trazer para os trabalhos da exposicao personagens de inegavel valor, como Almada Negreiros e Cottinelli Telmo. E a grande festa de 1940 seria 0 auge (e © comego do fim) de sua “politica do espirito” (e do proprio modernismo portugués), que se propunha elevar “Portugal” por cima das ideologias politicas do passado - algo sé possivel com um grande lider ~ ¢ anunciar o fim da tristeza e do imobilismo que teriam caracterizado longos periodos da histria do pais.”*O evento, para o secretirio-geral das Comemoracdes Centendrias, nio pretendia apenas rememorar o passado, e Ferro proclamou numa “Carta Aberta aos Portu- gueses de 1940" que a exposigdo dizia respeito “nao apenas [ao] Portugal de ontem mas [ao] de hoje’, o Portugal “de Carmona ¢ Salazar” (apud Franca, 1985, p. 219). 251 Ecos do Atlantic Sul Um dos personagens que melhor personificaram ¢ concretizaram os desejos de mudanga foi Duarte Pacheco, engenheiro e insigne representante das primeiras geragdes do Instituto Técnico Superior. Coordenador de grandes obras urbanisticas e de engenharia, hd muito que Duarte Pacheco, do seu lugar de presidente da Camara de Lisboa, se propunha revolucionar a cidade e transforméd-la definitivamente na “capital do império” (transformagio pratica ¢ simbé- lica). 0 ano de 1940 era visto por Duarte Pacheco como 0 momento adequado para perpetuar no espago os seus projetos urbanisticos e, a diferenga de Salazar (tao resistente as mudangas), levar a cabo uma verdadeira revolugo urbanistica na cidade.” A transformacao de Lisboa na “capital imperial” o levaria a adotar “conceitos-vetores constituidos em torno da exibigio de poder, da ordem, do equilibrio classico ¢ estatista, da hierarquia e segregagio das tipologias funcionais ¢ sociais” (Fagundes, 1993, p. 381), alids, totalmente adotados por Cottinelli Telmo, arquiteto chefe da Exposicao do Mundo Portugués: na sua “cidade cenografica” assumiu-se 0 monu- mentalismo classico ¢ colossal como forma de expresso do poder. Como conseqiiéncia, Telmo afastaria dos trabalhos da exposigo arquitetos que, como Raul Lino, estariam mais ligados & idéia de uma “casa portuguesa” (Lino acabaria, como veremos, encarregado do pavilhio do Brasil) ¢ reservaria para si o projeto de pavilhdes monumentais, tais como os dos “Portugueses no Mundo”. O local escothido para a exposigdo foi a esplanada de Belém, tendo o mosteiro dos Jerdnimos a0 fundo, ocupando um total de 560 mil metros quadrados. As construgdes provisérias e sua decoragdo mobilizaram mais de uma centena de arquitetos, engenheiros, pintores ¢ escultores, além de seis mil operarios, entre os quais mil modeladores estucadores (Saial, 1991, p. 226; Portela, 1987, p. 69}. Todo um exército de artistas portugueses ~ alguns dos quais grandes expoentes da arte lusitana - respondeu, ainda que ndo de um modo inteiramente acritico ou sem desconfianca, ao apelo de Anténio Ferro, que pregava uma envolvente mobilizagao em tomo da “politica do Espirito” (Franca, 1983, p. 319-320; 1985, p. 219). E a Exposigao do 34 “Mas que se faga uma politica do Espirito, inteligente, constante, consolidando : descoberta de Portugal pelos Portugueses!, dando-Ihe altura, significagio e eternidade [..). 0 Espirito, afinal, também € materia, uma preciosa matéria, a matéria-prima da alma dos homens ¢ da alma das povos..” (Anténio Ferro, apud Baptista, 1993, p. 71) 35 A visto de Duarte Pacheco a respeito do lugar de seus projetos no conjunto mais amplo das celebragies de 1940 podemos depreender na seguinte descrigio: “.. a bela avenida marginal de Lisboa a Cascais, maravilha no sentido atléntico, a moderna experiéncia duma ampla auto-estrada, 0 sonho realidade dum grandioso Estidio Nacional, a velhissima aspiracao da ponte de Alcantara, 0s magnificos trabalhos do Acroporto de Lisboa ¢ seus acessos, [.J, a ressurreigio do Teatro de S. Carlos, a Cidade-Nova iniciada com a Exposigo do Mundo Portugues, o Parque Florestal de Monsanto, o Plano de Radiodifusio Nacional ¢ tantas mais.” Pacheco apud Feira, V. 1987, p. 203-204). As Propostas de Pacheco estavam longe dos fins propagandisticos ¢ efemeros do ditador e foram Formuladas no interior ‘de um plano-diretor que transformaria definitivamente o plano sociourbanistico de Lisboa, 252 A festa ‘Mundo Portugués foi, assim, o auge prematuro de um regime autoritario que se prolongaria por mais trés décadas. Veremos que, se neste evento é possivel perceber os elementos que caracte- Fizam 0 apogeu da ordem e visio de mundo salazaristas, néio menos evidentes so os sinais de decrepitude que se anunciam, Principios da exposigao Em um dos catlogos da Exposigio do Mundo Portugués, pode-se ler: To extenso e fragmentado pelo mundo ¢ o territério portugues, tio misterioso e diverso o espirito da grande nagio atLintica, que se tor- rna sobremaneira dificil - se no impossivel ~ aprender rapida- mente o sentido profundo, a verdadeira expressio de Portugal 6 uma longa permanéncia no pais, servida por largas viagens através do Império, poderd esclarecer cabalmente quem quiser penetrar o mistério portugués - tZo apaixonante na evocagio do seu passado quase milagroso ¢ na projecdo do futuro brilhante que 0 seu presente de claridades anuncia. A existéncia de um resumo vivo de Portugal, sintese de sua historia e da sua etnografia, completo sem ser carregado, simples sem ser incorreto, impunha- se como uma necessidade de documentagio, nao s6 do que fomos ‘mas do que hoje valemos como povo trabalhador e como grande Império. (Comemoragées centendrias, Programa oficial, 1940) Tal era, pois, a proposta da Exposi¢ao do Mundo Portugués: apresentar um resumo vivo da historia e da realidade portuguesas de forma a constituir-se cm uma viagem capaz de dar aces- so, Aqueles que ndo podiam viajar, aos mistérios, tantas vezes aludidos, da nacionalidade lusi- tana, “Mistérios” revelados aqueles personagens de filmes como Feitico do império © dos 10- mances de Henrique Galvao. Nem todos podiam viajar as colénias e assim entrar em contato com a realizagio “suprema” de Portugal, nem tampouco podiam percorrer todas as “aldeias de Portugal” e assim observar a face mais pura do “milagre”. A exposigao tratava, assim, de repro- duzir em Lisboa uma encenagio deste grande “épico” que seria a reproducdo no tempo e no espaco do espirito e dos mistérios que a nacionalidade portuguesa carregaria.”* 36 A visio de Cerejcira contribuia absolutamente para o cariter que se queria imprimir as celebracdes de 1940: “Portugal esta em todo 0 mundo ¢ em sete séculos[..]. Todo o portugués ¢ o resumo da nagio. Nele se concentra © cexprime a vida secular da raga” (Cerejeira, 1943, p. 132). 253 Ecos do Atlantico Sul 0 ano de 1940 foi uma data emblematica. Correspondia ao duplo centendrio da indepen- déncia e da formagao da nacionalidade e da restauragdo. Foi a “nagéo” que se encenou ¢ afir- mou na Exposi¢lo do Mundo Portugues; uma “nacido” sui generis, pois, ao contrario do que podiam imaginar alguns, ndo se encerrava no pequenino espaco metrosolitano. E no “mundo portugués”, que extrapolava cm muito as fronteiras européias, que encontramos o retrato vivo da “nagdo", 0 “mundo portugués” tampouco se restringia aos espagos ¢ individuos que se en- contravam, em 1940, sob soberania portuguesa ~ a metrépole ¢ as colénias -, mas se espalhava por fodos os territérios que algum dia tivessem estado sob dominio portugues. Nao temos, portanto, uma concepcao politica do “mundo portugués”, mas antes “espiritual”, e momentos passados da histéria de Portugal (Malaca, Ceilo, Japao) e realidades presentes (0 Brasil e as inimeras colénias portuguesas existentes pelo mundo afora) passam ¢ integrar de fato ¢ de direito o “mundo portugués’ Henrique Galvao, responsivel no apenas pela Secdo Colonial, mas também pelo Congres so Colonial, Cortejo do Mundo Portugués, Celebracdes de Guimaraes e propaganda radiofénica dos centendrios, afirmou que “a Exposigio Nacional do Mundo Portugués deveria alcangar 0 nivel € 0 prestigio das exposicdes internacionais que por esse munda se tém erguido desde 1900 para ca” (Galvao, 1940a, p. 18), explicitando assim 0 modelo no qual se baseou a Exposi- do do Mundo Portugués. No entanto, se o modelo fora a tradigtio de exposicdes universais, feiras internacionais e exposigdes coloniais, havia uma clara consciéncia da especificidade do empreendimento lusitano que ja estava presente na Exposigao Colonial do Porto. Por um lado, “a fisionomia nacionalista da exposigio colocava o certame fora de toda competigio internacional” (ibid., p. 18); por outro, os recursos do Estado portugués, grande promotor do evento, eram escassos se comparados aos das outras poténcias. A escassez de recursos foi encarada por Henrique Galvao como uma limitagao de conseqiiéncias sabias: nao se tratava de competir materialmente com outros eventos da mesma natureza, mas de destacar-se quanto ao “engenho do espirito"” Para Galvdo, bastava “a vontade firme de [afastar-se] dos canones internacionais que comandam estas coisas € que se repetem ha duas dezenas de anos com sua fisionomia sem patria ¢ suas audacias sem espirito” (ibid., grifos meus). Patria e espirito pareceram guiar, pois, a Exposi¢do do Mundo Portugués. Tratava-se de celebrar a patria lusitana, de enaltecer ~ ¢ formar - 0 seu espirito. Como vimos, jé na I Exposi~ gio Colonial Portuguesa, realizada no Porto, a formacao de um verdadeiro espirito colonial portugués colocava-se como meta central para os organizadores do evento. Em 1940, enfatizava- se a existéncia material de um “mundo portugués” - que incluiria as colénias, o Brasil, tempos 37 E, novamente, a metifor da pobreza ¢ apresentada de forma edificante. 254 ——— Plano geral da Exposigo do Mundo Portugues. passados ¢ futuros de Portugal. A prépria razdo de ser de Portugal no presente, como se vé nestes discursos, seria sua historia de grandeza ¢ a possibilidade de manter o seu império no futuro, Uma anilise inicial da organizagao da exposigdo revela a existéncia de trés grandes blocos tematicos: 0 primeiro retoma a histéria da nacdo, desde o momento de sua fundacdo até o descobrimento do Brasil; 0 segundo procura retratar a diversidade cultural do mundo rural Portugués; o terceiro, a riqueza € variedade culturais dos diversos dominios do império. Nesse 255 Ecos do Atlantico Sul arranjo, a histéria portuguesa, que é de independéncia ¢ de conquista, parece demonstrar sua Brandeza a0 apresentar ao piblico seu mais precioso fruto: esta patria “velha de oito séculos” que se espalha pelo planeta. Vejamos pois, com mais vagar, os elementos que compéem cada um dos blocos tematicos. A idade de ouro: a fundacao Abrindo a Exposigdo, foi construida a Porta da Fundagao, elevando-se em quatro torres ma Jestosas sobre a avenida da india ¢ a linha de trem Lisboa-Cascais. Os primeiros pavilhdes eram de- dicados & “Histéria", contada em documentos, esculturas, pinturas e maquetas. No pavilhdo da Fundago, o objetivo era “reviver os primeiros tempos da nacionalidade através dos seus por- menores mais salientes {para ento sentir] a ener- gia ea forca da Epopéia do Comeco” (Comemo- a Tagdes centenérias, Programa oficial, 1940). Fo- 4 entrada da expesigto, de Cottinneli Telmo, ram ali alocadas a estitua do primeiro rei de Por- _‘explicta o carte: colossal que se queria dar tugal, obras de arte referentes a este primeiro pe- a0 evento. iodo (0s primitivos), o primeiro documento que d. Afonso assinou como rei ¢ a bula papal que © reconheceu, elementos que, para os promotores da exposicao, representavam “a sintese plis- tica de uma época que viu nascer a mais antiga nagdo da Europa” (ibid). Segundo eles, esses “bustos de guerreiros lusitanos e reproducdes de petroglifos lembrario que 0 nascimento de Portugal ndo foi criagdo artificial de homens de Estado, mas exteriorizagao consciente de um lento trabalho de individualizacdo que hé muito se descnvolvia na parte mais ocidental da Peninsula” (ibid.). Procurava-se assim, num procedimento semelhante a0 de outras realidades nacionais européias, enaltecer a “autenticidade” da € suas tradigdes. Neste primeiro blo- co, antes de “dar novos mundos 20 mundo’, era o pequeno Portugal que se mostrava ¢ se afirmava perante 0s reinos ibéricos e europeus. Do outro lado da avenida da india estava situado 0 Pavilhdo da Formagio e Conquista, no qual havia uma sala dedicada as ordens religiosas e outra onde se expunham um grande mapa de Portugal e painéis documentando as conquistas no territério portugués da Europa, a tradigZo do municipalismo, 0 povoamento interno, etc. A festa Neste mesmo lado, ainda, um pavilhdo foi dedicado a Independéncia. E aqui aparece um dos aspectos mais relevantes da histéria do Portugal moderno € contemporineo: o constante temor da perda da independéncia, sobretudo para a sua vizinha peninsular Espanha. Retomava- se assim um tema de profundo apelo junto & populagao e que, como ja vimos, estava longe de ser fruto de uma “parandia nacionalista” (embora os tristes tempos anunciados pela Espanha franquista diluissem os temores de uma nova expansio ibérica). Como se pode ver no texto de um dos catélogos, o “génio da independéncia nacional” estaria sempre ameagad ‘Aluta pela independéncia estende-se langamente por toda a historia de Portugal e toda a Exposigao Histrica do Mundo Portugués constitui uma exaltago do génio da independéncia nacional. Mas, no correr dos séculos, momentos houve em que nossa existéncia perigou fortemente e em que se exacerbaram as capacidades de reacio dos portugueses. (Comemoracies centendrias, Programa oficial, 1940), Ja A beira do Tejo, ergucu-se o Pavilhio dos Descobrimentos, onde se procurou resumir a agdo portuguesa quanto aos conhecimentos das terras ¢ dos mares, continuando assim a de- monstragdo que estava posta nos documentos dos primeiros pavilhdes. Nas salas desse pavi- Ihao expunham-se as figuras do Infante, de d. Joao Il, d. Joao Ill, Camées, dos navegadores ¢ cronistas que contaram a “lenda do Mar Tenebroso € as viagens que a destruiram” (ibid.) Os organizadores expuseram com orgulhio a Nau Portugal ~ onde “o visitante terd a sensa~ ‘glo de se encontrar a boro, no convés de uma dessas embareagdes que foram o instrumento da maravilhosa aventura” - e a grande esfera giratéria “em que as rotas dos descobrimentos apare~ cero tragadas em cores luminescentes” (Comemoragdes centenitias, Programa oficial, 1940). Mas a descoberta de novas terras € mares implicava, como era de se esperar, colonizagao. Nao por acaso, 0 pavilhdo seguinte procurava recuperar a historia da agao colonizadora portu- guesa. Mapas, quadros, vitrais, tapecarias, aftescos, trabalhos em ferro forjado, biombos, “to- dos os meios de interpretagao plastica de que foi possivel langar mao contardo a histéria do nosso Império em Africa, na América, no Oriente, sem esquecer a nossa vocag4o missiondriae 0 papel inigualavel que Portugal desempenhou na expansdo da Fé, levando a todo 0 Mundo a luz da civilizagao crista” (Comemora dirias, Programa oficial, 1940, grifos meus). A consagragio da histéria portuguesa de colonizagio assomava nos dois pavilhdes se- guintes: 0 dos Portugueses no Mundo e o do Brasil. No primeiro, procurava-se lembrar a passa~ gem dos lusitanos pela Abissinia, Japo, Canadé, Extremo Ocidente e Extremo Oriente. No se- 257 Ecos do Atlantico Sul gundo, o Brasil, Unico pais estrangeiro com pavilhao proprio, histéricos e espirituais que o uniam a Portugal. Antes de tratarmos do Pavilhao do Brasil, vale a pena reproduzir uma passagem da andlise de José-Augusto Franga do conjunto da exposigao (que exclui o Pavilhao do Brasil): ressaltado em face dos lagos O principio estético dos pavilhdes era unico: havia de adaptar estruturas modernas, de linhas simplificadas, a um espiritotradi- cionalizante que Ihe sobrepunha os seus sinais ideologicos. Uma decoragao de “pontas de diamante” ou de grilhagem manuelina (uu, ow de brasées da nobreza em agdo ultramarina [..J, ou de sugestBes medievais ¢ herdldicas (cruzes, bandeiras, arcos ogi so outras tantas situagdes propostas com variada inte- iia e diverso brilho. (Franca, 1980, p. 43) A grandiosidade da cidade cenogréfica de Cottinelli Telmo era pontilhada, assim, com motivos decorativos, simbolos e emblemas que diziam respeito as momentos gloriosos da historia de Portugal. Entre escudos e motivos manuelinos, o visitante mergulhava no tempo € passava de um pavilhao a outro como quem passasse de um momento a outro da histéria dos seus antepassados, dos quais era ilustre representante no presente. Brasil: suprema criagdo de Portugal “Brasil: gloria de sua energia e do seu génio politico” ~ assim foi definida por Salazar em uum discurso proferido em Guimaraes aquela que seria a maior realizagio dos portugueses. Por ordem do entio presidente Getilio Vargas foi criada a Comissio Brasileira dos Centendrios, responsavel pela construco de um pomposo edificio para albergar o Pavilhao do Brasil na Exposicao, com 0 objetivo de proporcionar ao povo portugués © cos milhares de visitantes estrangeiros “o perfeito conhecimento das possibilidades brasileiras, a sintese e a marcha da nossa civilizagdo” (Pavilhéo do Brasil na Exposigéo Histérica do Mundo Portugués, Catdlogo, 1940). Desde o século XIX 0 Brasil tinha dado imensa importancia a este tipo de evento, partici- pando com pavilhdes especiais de exposicdes universais ¢ feiras mundiais (ver Hardman, 1991). Tratava-se agora, contudo, de um evento de outra natureza, cujo tema central era a propria histéria da nacdo © ndo apenas produtos comerciais. A comisso do Brasil procurou, deste modo, construir um panorama da “civilizagao brasileira”, passando para segundo plano os obje- 258 A festa tivos comerciais ¢ encarando a exposic#o como um evento no qual o Estado Novo brasileiro devia exibir sua melhor face, seus projetos politicos, sociais e culturais, alguns dos quais bas- tante préximos aos do salazarismo.” O pavilhdo, entregue ao arquiteto portugués Raul Lino, escapou, como lembra Franca (1980, p. 43), a0 espirito da exposigio. Fechado sobre si mesmo, parecia néo dialogar com os outros pavilhdes, o que indica a propria desconfianga de Lino com relagdo aos rumos do projeto mais geral de Cottinelli Telmo, Os exteriores nao deixam diividas quanto ao carater cenogrifico do edificio “brasileiro”, € as paredes estilizadas imitavam troncos de palmeiras. 0s estandes do pavilhio indicam 0 critério adotado: “Livro’, “Imprensa”, “Educagio”, “Geo- Srafia", “Sauide e Assisténcia”, “Arte”, “Diorama da Cidade do Rio de Janeiro” ¢ “Viagio". No alto da galeria térrea, um trabalho de fotomontagem de quarenta metros de comprimento por quatro de altura procurava indicar 0 dinamismo do Brasil moderno. Um plano da cidade do Rio de Janeiro era exposto ao lado de uma exposigao fotografica de arquitetura brasileira desde os tempos coloniais até o século XX. Um mostrudrio de madeiras brasileiras, emoldurando vistas fotograficas do Pais, foi colocado nas paredes da escadaria. No vestibulo, uma fonte em moti- vos marajoaras indicava um dos elementos étnicos que atuaram na formagéo brasileira. A representacao histérica do Brasil procurou cobrir dois grandes periodos: 0 colonial ¢ 0 do Brasil independente. 0 primciro foi constituido por documentos e pegas do Museu Historico Nacional, expostos em oito salas do Pavilhio dos Portugueses no Mundo (de Cottinelli Telmo); © segundo foi representado em seu préprio pavilho. 0 diorama e o plano da cidade do Rio de Janeiro davam mostras da importincia simbélica, econémica ¢ politica da capital do Pais, ¢ foram, ao que tudo indica, um dos grandes atrativos do pavilhio. As palmeiras estilizadas de Lino € 05 motivos marajoaras indicam os elementos romanticos presentes no pavilhao: a natu- reza c os indios como que a definir a personalidade do jovem pais de raiz lusa. Além dos estandes citados acima, o Pavilhdo do Brasil contava ainda com o Departamento do Café e com uma exposigao de arte. A presenga do café na exposico (num estande em “estilo marajoara"), com fotos de plantagdes, dados e grificos sobre as exportagdes e saltio de degus- tagao, indica a centralidade do principal produto do grande pais sul-americano e, sobretudo, a terra como grande fonte de riqueza do Brasil. As belas-artes brasileiras estavam representadas pela pintura ¢ escultura, na sua grande maioria provenientes do Museu Nacional de Belas-Artes; contavam também com obras de alguns modernistas brasileiros, em especial Portinari. 0 seu célebre quadro 0 café sera recebido como algo subversivo e animari as novas geragbes de 38, aproximagao entre o Servigo de Propaganda Nacional (portugués) eo Departamento de Informagao e Propaganda (brasileiro) érealizada no trabalho de Paulo (1994). UNIFESP 259 eee Ecos do Atlantica Sul pintores portugueses, jé informados do movimento modernista brasileiro e do muralismo mexi- ano: uma centelha a iluminar novas geragdes de artistas portugueses que observam na Expo- sigdo do Mundo Portugués a agonia das propostas do primeiro modemnismo (Franca, 1980, p. 47) 0 Pavilhdo do Brasil, grosso modo, enfatizava a modernidade e o dinamismo da jovem nago; quando procurava dar conta da historia, nas salas dedicadas a0 Brasil do Pavilho dos Portugueses no Mundo, enaltecia as raizes lusas € a suprema sintese luso-indigena com referén- cias a poemas como 0 Caramuru e I Juca Pirama. No catélogo a que tivemos acesso nao ha qualquer referéncia & presenga africana no Brasil: tudo leva a crer que a sintese proposta por Gilberto Freire, na qual o elemento africano teria um papel fundamental, ainda nao fora plena- mente deglutida pelo Estado Novo de Getilio - quadro que se alteraria profundamente nos anos subseqitentes. No entanto, nos arquivos do Programa de Pés-graduac3o em Antropologia Social do Museu Nacional do Rio de Janeiro ~ este ultimo uma das instituigdes encarregadas da organizagio do acervo que seria exposto em Portugal ~ encontramos varias referencias a pegas de cultura material afro-brasileira, bonecas e bonecos com vestimentas de orixés que, ao que tudo indica, foram exlbidos, nos primeiros dias da exposigao, no Pavilhdo do Brasil, ao lado de pecas indigenas. A curadora desta parte do Pavilhao do Brasil, dona Heloisa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional, havia providenciado a organizagao da mostra afro-brasileira, assim como elementos da cultura material indigena. As bonecas de orixis foram, entretanto, recebidas com horror por parte da delegacao brasileira que, apés poucos dias de exibigdo, ordenou sua exclusio da mostra. Em todo 0 caso, a democracia social exaltada pelo Estado Novo de Getiilio, que enfatizava a colaboragao de brancos, indios € negros na construgéo do Brasil, se fazia presente na exposigio, € no deixaria de ter profundos efeitos junto ao piblico portugués.” No texto produzido pela Comissiio Nacional, enaltecia-se, no entanto, a heranga luso- indigena em uma clara referéncia a visdo formulada pelos escritores brasileiros do periodo ro- mantico que, como José de Alencar, foram recuperados pelo sistema ¢e ensino do Estado Novo. No entanto, a idéia do Brasil como sintese, resultado feliz do encontro das trés ragas, estava em curso, ¢ terd um profundo impacto na formulagdo salazarista de um Portugal imperial e coloni- zador. A nocao de uma democracia social que prescindiria de instituigdes politicas democriti- cas, a idéia de cofaboragdo entre os trés grupos étnicos formadores e mesmo o corporativismo brasileiro causariam grande impresséo junto & opinigo publica e mesmo junto & jatelligentsia portuguesa. 39 Sobre a idéia de democracia social do Estado Novo brasileiro, ver Gomes (1994, r. 182-185). 260 A festa Ambas as ditaduras pregavam haver superado divisdes ideologicas a partir de interesses que se pretendia nacionais. No caso do Brasil, a concepgao do trabalhismo era fundamental no projeto incorporador do Estado Novo de Getilio; em Portugal, a nocdo de corporaedo parecia superar diferencas ¢ acentuar a colaboragio. Estendida ao espaco imperial, os indigenas, nos scus “usos € costumes”, scriam como as corporagdes que deveriam contribuir para o bom cami- nhar do império. A sintese brasileira foi, a principio, bem recebida, por preservar de forma ade- quada nao apenas a matriz lusitana, como também a continuidade do elemento luso numa con- cepgao hierarquica do todo nacional. No entanto, a ideologia da mestigagem e mesmo 0 projeto incorporador do Brasil de Getilio acusam um dinamismo estranho is tradigdes paralisantes impulsionadas pelo salazarismo, e a inquietagdo provocada por O café de Portinari, que estava Jonge de uma representagao romintica e estatica da “vida campestre”, nao foi casual. E na idéia da “aldeia portuguesa” que encontraremos a antitese de qualquer tipo de movimento ou histdria A mais bela aldeia de Portugal: “usos ¢ costumes" do aldedo portugues Sob a responsabilidade do Secretariado da Propaganda Nacional, foram erguidos um Cen- ‘tro Regional e um conjunto de pequenos pavilhdes dedicado as aldeias portuguesas. Em sua visto de uma “patria velha de oito séculos € sempre nova de esperanga", os organizadores construiram uma longa seqiiéncia de pequenos pavilhdes em que se mostraram “as artes € industrias populares - pescaria, tecelagem, ourivesaria, transportes, padaria, pastoreio, olaria” (Comemoragées centendrias, Programa oficial, 1940). Além de reproduzir os diferentes estilos arquiteténicos das provincias do Portugal metropolitano e os desenhos especificos dos azulejos do norte ao sul do pais, os expositores trouxeram os camponeses ¢ os pastores, saloias e minhotas das aldeias portuguesas. Grupos folcléricos animaram a noite do Centro Regional. Nesta secao o visitante encontrava restaurantes ¢ pastelarias, onde podia saborear o peixe & moda de Nazaré, a sardinha na brasa, as migas alentejanas e as tripas do norte, Podia ainda saborear a - cantada ‘em verso € em prosa ~ pastelaria portuguesa: os mais diferentes doces de ovos ¢ améndoas, Ao sair do pavilhdo das aldeias, o visitante teria de sentir que conheceu algo de realmente auténti- co ¢ profundamente espiritual, A exposigdo da vida popular das aldeias afinava-se com a politica salazarista que visava, 20 promover as artes, os costumes populares, a azulejaria e o folclore, enaltecer o “espirito Portugués”. Antonio Ferro (1940) explicita claramente essa preocupagio no prefiicio ao livro Vida ¢ arte do povo portugués, publicado por ocasiio das celebragdes centendrias. Ali o autor escreve uma verdadeira ode ao povo portugués, procurando exaltar o aspecto aif das suas manifestagdes artisticas. Cereado por uma paisagem privilegiada, “um grande poeta que se 261 Ecos do chama ‘Povo Portugués’ trabalha, sof © € no povo que Ferro encontraré a alma da nago: *.. a nossa arte popular, si- multaneamente realista ¢ poética, ¢ a perma néncia da nossa Historia viva através dos sé- culos, 0 seu alfabeto de imagens” (Ferro, 1940), 0 livro citado, ricamente ilustrado, foi escrito por diversos autores," que, enfocando diferentes artes € oficios do povo portugués, em um tom apologético, procuravam enalte cer aquilo que havia de mais auténtico nas suas manifestagdes populares. Cabe lembrar que um dos concursos promovidos pelo Secretariado de Propagan- da e Turismo, sob a diregao de Antonio Fer ama Atlantico Sul 0 Pavilhio das Aldeias Portuguesas procurou fixar, nos ‘silos “tipicos” de cada regio do pais, 0 suposto bucolismo da vida rural to, tinha como propésito premiar a “mais bela aldeia de Portugal”, ou seja, a mais “portuguesa Fernando Rosas tem razio ao a pontar aqui uma das facetas mais perversas do projeto ideologi- co do Portugal salazarista, que exaltava, de forma absolutamente conservadora, o mundo rural € a vida camponesa (Rosas, 1994, p. 53). 0 Servigo Nacional de Propaganda se encarregara, desde a sua criagdo em 1933, de transformar a pobreza rural portuguesa em virtude inatacdvel, € Antnio Ferro transformou a “familia camponesa, 0 trabalho rural, a ‘casa portuguesa’ ¢ esse mundo de aldeias pobres, mas onde ‘ha sempre uma cédea ou um caldo’, no esteio e no simbolo da harmonia social, das virtudes patrias e da estabilidade do regime’ (ibid). A verdade & que a habitacdo rural portuguesa desconhecia - ¢ iria desconhecer ainda por muito tempo - 0 sanea- mento basico, a agua encanada e luz elétrica; as condigdes de vida eram absolutamente insa- lubres € de extrema miséria; o analfabetismo chegava a alcancar 80% da populago rural ¢ a mortalidade infantil, 0 indic de 150 a 160 para cada mil nascimentos (ibid., p. 59) ~ um quadro 40 0 trajar do povo {Luis Chaves), Teares ¢ tccedeiras (d. Sebastiao Pessanha), A arte dos namorados (Luis Chaves), Barcos de Portugal (Rocha Madahil), Arce popular (Lui Correia), A faina do campo (Guilherme Felgaciras), Pastoreia e arte pastoril Martel Patricio), 0 carro rural (Vergil is de Pinal, Bordadoras e rendilheiras(d. Maria Madalena de (Tude de Sousa), Lumindria popular (Cardoso Marta), Festa do calendério (padre Moreira das Neves), Dengas ¢ ‘cantigas (Armando Les (Santos Junior), Ourivesaria popular Luis Chaves) 0 fogo de vistas (Armando de Matos), Oleiros e olaria (Santos Junior, Bonecos de barra A festa bastante distinto do da bucélica “casa portuguesa” cantada por Amilia Rodrigues ¢ fixada nos “usos € costumes” que se queria imputar 20 miserdvel campesinato portugués. E eram os “usos € costumes” que indicavam a virtuosa falta de ambigéo do camponés, do saloio € do pescador que foram fixados no Pavilhao das Aldeias Portuguesas, cantados & noite nas festas do Centro Regional e contidos na Casa do Povo ou nas Casas do Pescador ~ criadas zelosamente pelo regime em cada aldeia e povoado de Portugal. 0 Pavilhio das Aldeias Portu- guesas cra a fixagio exética do “povo portugues’, premiado por sua simplicidade (¢ analfabe- tismo) ¢ oferecido pelo Servigo de Propaganda Nacional aos turistas europeus que, a partir das décadas seguintes, passaram a invadir Portugal em busca dos estranhos “usos € costumes” de seus habitantes. A Segao Colonial “usos ¢ costumes” dos indigenas do ultramar portugues Como na Exposicéo Colonial do Porto, Galvio procurou na sua concepgao da Segio Colo- nial alcangar as “almas” dos visitantes e fixar em “imagens”, “cheiros” ¢ “sons” os “usos € costumes” das principais populacdes do além-mar. Sem ignorar o papel pedagdgico da exposi- so, procurou apresentar as informagdes de uma forma simples ¢ direta, “substituindo certos elementos informativos de valor cultural mais do que precarios, como os grificos, as letras, os frascos com produtos, etc., por imagens, por reconstituigdes, por grandes ¢ claras sinteses” (Galvao, 1940a). Ao refazer em miniatura a vida do império, 0 organizador procura dar ao piblico a sensagzio de que esta vivendo a experiéncia real da vida no império. “Pretendemos que 0 povo se agrade das coisas de além-mar € fique com uma idéia geral sobre o que essas coisas sio” (Ibid.). E justifica: *.. uma rua de Macau, escrupulosamente reconstituida, docu- mentara muito melhor sobre a nossa velha cidade no Oriente do que uma série de salas cheia de grificos; o aspecto geral das coldnias, tomado em conjunto, dard aqueles que nao as conhecem uma idéia muito mais precisa do que uma série de saldes com documentos dos portos, das vias de comunicagao, da organizagao administrativa, etc.” (Galva, 1940a, p. 20). ‘Arua de Macau procurou reconstituir, com “toda a sua cor, as suas luzes, o seu pitoresco, uma das mais tipicas da cidade de Macau” (ibid., p. 22). Segundo 0 seu idealizador, “quem atravessar esta rua terd um momento a mesma impressio que sentiré o homem que de repente se vir langado numa das artérias antigas da velha cidade portuguesa do Oriente. Toda ela, no seu conjunto, como nos seus pormenores, é um documentario fiel da vida macaense” (ibid.). Nessa rua foram instalados varios estabelecimentos comerciais, uma casa de loteria (0 Jogo era ~ ¢ ainda ¢ - extremamente apreciado nesta col6nia), um templo (pagode) ¢ as moradias 263 Ecos do Atlantica Su dos naturais da coldnia trazidos a exposigao. Em uma ofi- cina tipica, artesios macaenses realizavam trabalhos em cedro € canfora, € na rua podiam ser vistos os tipicos riquichas conduzindo passageiros. Diferentemente da rua de Macau, a rua da india nao recriava fielmente nenhuma via de Goa; procurou, antes, reunir alguns edificios tipicos da india Portuguesa, desta~ cando sobretudo aquelas construcdes que representavam a amquitetura indo-lusitana. Com isso, pretendia-se repre- sentar as relagdes dos portugueses com as civilizagdes orientais como relagdes de simbiosc, além de destacar a antigtidade da presenga lusitana no Oriente, Nesse espa- 0 foram ainda reconstruidas a Igreja de Sdo Francisco Xavier, 0 Arco dos Condenados, o palacio do visconde de Bardim (onde se instalou o pavilhio documental da Colé- nia) € 0 Arco da Conceigo, "bem como recantos de mais sabor local onde, apesar de tudo, a influéncia portuguesa € sempre nitida” (Exposigéo do Mundo Portugués, 1940} As casas tipicas serviram ainda para albergar indianos en- _Por im, na exposigdo de 1940, os viados & exposigao. pomuguesespuderam caminhar por As ruas da india e de Macau, assim como todas as Terdadeias nas orentas Tepresentacdes do Oriente que se produziram em grande Parte das exposigdes universais e coloniais desde a Exposigéio de Paris de 1878, constituiram a caracterizagdo material mais evidente daquilo que Edward Said (1990) chama de orientalismo: a forma como, historicamente, 0 Ocidente ~ na literatura, nas ciéncias € nas artes - produziu e reproduziu uma representagio do Oriente. No caso portugués, o Oriente das exposigdes aque- le que comega a existir a partir do contato com os navegadores lusitanos. A diferenga da Africa ~ onde se tratava de “civilizar" os nativos -, as culturas orientais se prestavam melhor a forma sto de diferentes civilizagdes luso-orientais. Tanto num caso como em outro, a cultura portu- Buesa seria elemento mediador para a ascensio de povos exéticos 4 condigdo de civilizados, uma vez tendo se tomado membros do “mundo portugués” Além dos habitantes das colénias orientais, foram enviados para Portugal nativos da Afri- ca ¢ do Timor, albergados em casas ou em aldeias tipicas, repetindo 0 esquema da Exposigio Colonial do Porto. 0 objetivo era, segundo Galvao, fazer um documentario vivo dos scus “usos © costumes” 268 A festa Foram construidas entdo trés aldeias para os povos bijagés, fula ¢ mandinga, da Guiné. A aldeia dos bijagés foi construida numa ilha, localizada em um lago quase na entrada da exposi- gio. Ao lado do Pavilhiio dos Cafés Coloniais, foram construidas as aldeias fula ¢ mandinga. Cercando as miss6es, foram levantadas as aldeias para os “indigenas de Angola”, a cujo conjun- to pertencia, em lugar de relevo, a casa do rei do Congo, d. Pedro VI, tinico monarca africano com quem Portugal mantinha relagdes diplomaticas: 0 rei veio a Lisboa com sua esposa e filha, junto das quais permaneceu exposto na Sec4o Colonial do Mundo Portugués."' Foram edificadas ainda aldeias para os muchopes e macondes, de Mocambique, e para outros grupos indigenas provenientes dos territérios da Companhia de Mocambique. Casas tipicas para os nativos de Cabo Verde Sao Tomé e Principe e uma aldeia para os timorenses encerravam a Seco Colonial, que contava ainda com uma “Aldeia dos Muleques", junto ao pavilhdo de Angola e Mosambique, para o “recreio das criangas indigenas” ‘Assim, era a partir de experiéncias vivas - algumas contemporaneas ao publico, outras que faziam referéncia ao secular imagindrio portugués com relagio a Africa ¢ ao Oriente — que Henrique Galvéo pretendia formar os espirites e informar os individuos sobre as coisas colo- niais, A presenga dos indigenas de cada uma das colénias, além de remeter a distintos tempos da hhistéria de Portugal e da propria humanidade, estabelecia os “usos ¢ costumes” dos nativos, que, tal como afirmado no Ato Colonial, deveriam ser fixados ¢ mesmo preservados, para bem administrar a sua gradual incorporacao plena a lusa grei. ‘Ao lado dos pavilhdes tematicos, estavam aqueles dedicados a cada uma das colé: africanas e orientais, que reuniam informagées sobre os territérios de além-mar. A representa- ‘gdo etnografica, reunida, como na Exposicao Colonial Portuguesa de 1934, em aldeias ¢ ruas tipicas, transformava a Seco Colonial em uma das mais disputadas da Exposico do Mundo Portugués. Nos pavilhdes dedicados as colénias portuguesas foram feitos grandes mapas em relevo, iluminados ¢ ilustrados, com explicagées que procuravam sintetizar dados geograficos, sociais, politicos e econémicos. Cada um dos pavilhdes dedicados as coldnias reunia, portanto, as in- formagdes consideradas relevantes de seus respectivos territérios, apresentadas de forma sim- ples, com maior énfase nos mapas ilustrados e fotografias. Mas néo era apenas a arquitetura das aldeias afticanas que a exposicao reconstrufa. A propria natureza exética dos Trépicos precisa- va estar presente para que o espectador pudesse realmente sentir-se na Africa ou no Oriente. 441 Caberia destacar aqui que as supostas relagdes diplomiéticas que secularmente o Estado portugués manteria com ‘ Reino do Congo serviram, segundo Bender (1980), como argumento central entre os entusiastas do luso-tropicalismo fem Portugal. As relagdes com o Congo foram ainda um dos temas privilegiados da Exposigdo Histérica da Ocupagio (1937) Ecos do Atlantico Sul Nessa interago, a Seco Colonial ocupou um cenério privilegiado: o Jardim Colonial, situado Proximo aos Jerénimos, concebido como uma espécie de Jardim Betanico Tropical, que procu- ava reunir uma variedade significativa da exética flora dos grandes territérios coloniais. No que diz respeito & vida espiritual das colénias, um grande pavilhao foi dedicado as missdes catélicas. Também aqui procurava-se retratar a especificidade portuguesa, cuja misao nao serd igual a nenhuma ~ mas tem um pouco de todas” (Galvéo, 1940a, p. 21). O estilo Portugués” da casa missiondria se caracterizaria por saber adaptar-se & Africa: ele ¢ “simples ¢ econémico, recolhido e belo”, nos termos do seu idealizador. 0 propésito do pavilhio nao era pois o de retratar apenas uma possivel missio portuguesa do ultramar; pretendeu-se criar um estilo que pudesse servir de modelo a possiveis construgdes futuras. 0 Pavilhdo das Missdes ficou localizado entre as diferentes aldeias indigenas ali construidas ¢ foi, durante a exposicao, dirigido por missiondrios ¢ missiondrias, funcionando como uma missio viva. No dizer de Galvao, “freqlienti-la-do os indigenas da exposigio ¢ ter-se-4 reconstituido assim uma das mais espit tuais e tocantes cenas da nossa vida moderna de povo colonizador’ (ibid., p. 22). A simplicidade e pobreza marcaram o Pavilhdo das Missées, onde foi ainda construida uma igreja para a realizagio das missas. Foi também ocupada uma sala para homenagear a memoria dos missiondrios mortos nas colénias ¢ outra destinava-se a mostrar a expansio missionaria portuguesa no século XX. Retomou-se assim neste pavilhéo um tema fortemente presente na I Exposicéo Colonial Portuguesa, com uma particularidade: o Pavilhdo das Misses era celebrado agora no contexto do Acordo Missionério firmado entre 0 governo portugues ¢ a Santa Sé, que entregava, na pritica, a instrugdo basica dos nativos das coldnias afticanas ¢ do Timor & Igreja Catélica. Segundo Coquery-Vidrovitch ¢ Moniot (1985, p. 78), com raras exce- sdes (Senegal ¢ Tanganica alema), a formagio de uma elite nativa foi quase que inteiramente entregue aos missiondrios em toda a Africa. A tendéncia, contudo, foi de um avanco das inicia- tivas do Estado colonial a partir da década de 1940, 0 qual, como conseqiiéncia do Acordo Missionario, foi absolutamente retardado no caso das coldnias portuguesas. Fez-se sentir aqui © entusiasmo do cardeal Cerejeira, € 05 “usos ¢ costumes” dos missiondrios portugueses foram fixados na encenagdo cotidiana da obra de uma missdo colonial em pleno Jardim Botanico Tropical de Lisboa: o atendimento espiritual aos indigenas, a assistincia sanitiria, 0 controle dos excessos dos “muleques” e, sobretudo, a vigilancia moral - malgrado a nudez, para os africanos ¢ afticanas, fosse permitida na busca de um retrato fiel de suas vidas de além-mar. Além do Pavilhao das Missdes, 0 piblico podia ver dois outros, o de Caga e Turismo e o de Arte Indigena, que, como os demais, procuravam mostrar a paisagem ¢ a vida cultural nativas. No primeiro, instalado no antigo edificio do Museu Agricola Colonial, podiam-se ver grandes mapas para a localizacéo geogrifica das espécies ¢ imagens reconstituidas, em grandes repro 266 A festa dugdes, de matas e florestas. Enfatizavam-se elementos que nao poderiam estar ausentes da obra de colonizagio: a aventura e 0 contato com animais selvagens. No segundo, reuniram-se as melhores obras de arte - ¢ as mais representativas - dos povos nativos do império. Grande parte das obras expostas provinha da colegao da Sociedade de Geografia de Lisboa ¢ algumas da Agéncia Geral das Colénias. Este pavilhao foi dividido em duas galerias: uma destinada arte africana, outra a arte oriental. Junto ao pavilhao, “artistas indigenas [..] com as ferramentas simples do oficio, fornecem a imagem viva do trabalho que realiza as obras de arte expostas” (ibid). Finalmente, no poderiam faltar os monumentos celebrativos da gloria portuguesa no processo colonizador: Monumento Obra Portuguesa de Colonizagao no Mundo ~ “a vitdria da Raga em oito séculos, voando para os altos destinos", “grande muro simbélico ao centro do qual se ergue sobre coluna sdbria de granito a Vitoria dourada do nosso esforgo em cinco séculos de colonizacao” (ibid., p. 23); Monumento 4 Expansio Portuguesa no Mundo ~ “emer- gindo das aguas de um lago que recorda a vitdria portuguesa sobre 0 mar, um bloco iluminado suporta a esfera armilar, envolvida por oito colunas representando as oito coldnias do império, Sobre cada coluna um relégio marca a hora de cada colénia em relacio ao meio-dia de Lisboa 0 sol nunca se poe no Império Portugués” (Exposigiio do Mundo Portugués, 1940) Foi construido ainda, num dos pontos mais altos do terreno ¢ orientado na diregdo do caminho para a india, como a servir de miradouro, um elefante monumental, cépia de um bronze andnimo da Indochina. 0 miradouro - sobre 0 dorso do elefante ~ possibilitava uma ampla vista do conjunto da exposicao € do Tejo (Galvdo, 1940a; Exposigao do Mundo Portugu- és, 1940). Entre outras atracdes, havia ainda o restaurante colonial, o Pavilhdo dos Cafés Portu- gueses, 0 Pavilhao do Cha, as cervejarias africana e indiana, a tabacaria ¢ segdes de empresas particulares. acesso & Sego Colonial se fazia mediante uma imponente avenida, a Avenida da Etnografia Colonial, que ligava imaginariamente as “ragas portuguesas” do império. Para expressar essa unidade da nagdo na diversidade dos tipos fisicos, foram esculpidas, a partir de fotografias ¢ documentos antropoldgicos do Instituto de Antropologia do Porto, enormes cabegas represen- tando cada tribo do império. Chineses, indianos, africanos e timorenses contemplavam severa- ‘mente os passantes, como a dizer: “Veja, também eu sou portugués”, Mal sabiam os organizadores da exposigéo que essas gigantescas cabecas se tornariam um pobre testemunho esquecido nos Jardins que hoje conformam o Jardim Botanico Tropical de Lisboa, em Belém. Abandonadas, invadidas pela vegetagdo, so verdadeiros fantasmas remanescentes de um momento que se quis glorioso e de uma exposicao que pensava marcar o inicio de uma nova era em Portugal; no final das contas, cla configurou-se como um marco do inicio dos anos de decadéncia de um 267 Ecos do Atlantico Sul império que, naquele momento, ja apresentava sinais de morbidez. Talvez por esta mesma rac 240 as primeiras décadas do salazarismo representaram o periodo em que a idéia do império alcangou 0 seu apogeu. © “mundo portugués": meméria e hierarquia Esta “viagem” pelos distintos espagos que comporiam um todo chamado de “mundo por- tugués” explicitava @ desejo de fazer “renascer’, no povo portugués, o orgulho que deveria marear uma nacdo secularmente imperial ¢ responsavel ainda pela formacao do Brasil. A instau- acho do Estado Novo teve entre os seus objetivos primeiros ro sé a manutencio da ordema de p< Fortalecimento do Estado, mas também a criagdo de um orgulho imperial, presente, de forma difusa, em varios setores da populagio portuguesa. Neste processo, es exposigdes € cclebragdes centendrias tiveram um papel decisivo: ordenaram figuras dispersas de um imagi- nitlo preexistente referido & era das grandes navegagées e & presenga portuguesa no ultramen, valendo-se de experiéncias sensiveis. Os visitantes que estiveram na'l Exposigao Colonial Por ‘uguesa do Porto e, sobretudo, na Exposicao do Mundo Portugués de 1940 saitam com a sensa. Sao de que pertenciam a um mundo portugues que em muito excedia o pequeno e Portugal metropolitano de suas existéncias. Imagens, cheiros, sons criavam, moria, Meméria fixada ainda nos albuns de fotografias e cartBes-postais ara casa ou enviava aos amigos, como se, de fia, Portuguesas, ao ultramar ou ao Brasil A Exposicao do Mundo Portugués pés em andamento uma série de naco, do império ¢ da participagéo do Brasil no “mundo portugues". Sirariam em tomo, sobretudo, da obra criadora de Portugal, que ~ © periodo das grandes navegagdes - e teria como principal luso-orientais da india e de Macau, devendo ainda concretizar-s se da representagio de um mito de origem (1987) a respeito do imaginério politico da tor, parece-me mais acertado considerarmos provinciano ou recriavam, me- que o visitante levava houvesse realizado uma viagem pelas aldeias Tepresentagdes da Estas representagbes se perderia num tempo mitico fruto 0 Brasil ¢ as civilizagées ¢ plenamente na Africa. Trata- = tomando emprestada a andlise de Raoul Girardet Franca contempordnea, Em afinidade com esse au- as representagdes em torno do império e da nacio- nalidade portuguesa nao como uma “ideologia mistificadora", mas como uma “constelagao mitol6gica” (Ibid., 1987) que cumpre um papel semelhante ao dos mitos nas culturas tribals: Ox Inites “exprimem 0 desejo inconsciente de um ideal comunitécio", observa Paula Montero, “Teconstituem a trama da integridade social e explicam a sociedace o que ela é. Fonte renovada dc significados, os mitos seriam pois indispensdvels para conduzir 0 homem a agio” (Montero, 1992, p. 75). As exposigdes mobilizariam fenémenos da mesma ordem. A festa A referéncia a este mito de origem se dé, no entanto, num espago ritual: nao se trata apenas de um discurso de um intelectual que afere na “histéria” um mito de origem. Trata-se de uma verdadeira celebracao ritual, de uma dramatizagdo da qual participariam “todos os portugue- ses". Era essa idéia de unidade do império que a organizaco do espaco da exposigio denotava: vimos como no Pavilhio Etnogrifico cada colonia era representada pelos seus nativos, com suas construgdes ¢ habitos tipicos. O cidadio portugués ia, assim, de uma coldnia a outra. Na Exposigio Colonial do Porto de 1934, 0 “Comboio Colonial” permitia ao publico visitar a geo grafia mitica do império ~ também recriada na Exposigdo do Mundo Portugués de 1940. Podia vislumbrar, de forma continua, coerente € organizada, 0 espaco imperial: de Cabo Verde a Guiné, de Sdo Tomé e Principe a Angola, de Mocambique a Goa, Damio, Diu, de Macau ao Timor, a obra portuguesa aparecia como tinica c indivisivel em qualquer parte do império. A Exposigao do Mundo Portugués apresentava, ainda, » Pavithao do Brash pavithtes dedicados a0 Portugal metropolitano, entre os quais se destacava o das aldeias portuguesas. Este ultimo, or apresentar a mesma forma da Segdo Colonial, sugeria uma continuidade ainda maior entre © Portugal europeu e suas colénias africanas e orientais. Aliés, a continuidade entre o pavilhao dedicado as aldeias ¢ a Seco Colonial fazia parte de um desejo explicito dos organizadores da exposigdo, como fica claro no catdlogo da programagao oficial: Aldeias portuguesas ~ minhotas, algarvias, timorenses... - ruas tipicas de Macau ou da Beira, capelas ingénuas, cruzeiros, campos de feira, patios carateristicos, completarao assim, com relevo € colorido, carinhosamente, a visio de uma Patria velha de oito séculos e sempre nova de esperangas. (Comemoragdes centendrias, Programa oficial, 1940) E aqui me detenho num aspecto que me chama a atengio no que se refere as realidades coloniais: o papel fundamental daquelas populagdes ndo-ocidentais, cuja imagem foi responsé- vel pela propria identidade possivel do projeto e das realidades coloniais que se formavam. O fato de os nativos desempenharem papel de protagonistas na exposi¢ao colonial, sua centralidade numa metrépole européia, sugere sua importancia na negociagdo que norteava a propria cria- sao de uma imagem de império. Aqui, os nativos ~ ou a sua imagem ~ possuem o poder de conferir legitimidade a0 projeto colonial portugués. Seguindo as sugestdes de Pina Cabral (1996), podemos relativizar a marginalidade das populagdes que se encontravam sob dominacdo lusitana. Sem negar a exploracdo e a violéncia a que eram submetidas, notamos a fragilidade do império no proprio olhar langado pelo coloni- 269 Ecos do Atlantico Sul zado. Desta forma, fica clara a preocupagdo dos organizadores da exposigao com relagao a0 comportamento dos visitantes, considerado muitas vezes vexatério ~ refiro-me aqui a aconte- cimentos verificados ao longo da Exposig#o Colonial do Porto. 0 comportamento lascivo dos homens com relagéo as mulheres seminuas ¢, inclusive, das mulheres diante da virilidade ex. Posta dos africanos chamou a atengao dos organizadores, que se viram forcados a instituir mecanismos de controle no sentido de evitar uma ma impressdo por parte dos nativos expostos: uma duivida poria em xeque - © pos ~ a superioridade européic e a estrutura hierérquica do império. Algo assim como o “poder dos fracos" para o qual chama a tengo Turner (1974) no seu clissico livro 0 processo ritual Ainda na linha do antropélogo portugues, a exposigéo ~ enquanto espago ritual ~ surge como um imenso palco iluminado. lluminar uma parte do impé- vio - aquela que dizia respeito as representagdes do colonizador portugués ~ joga necessari mente na penumbra outras partes deste mesmo império: a dura realidade colonial, a explora dos natives, o trabalho forcado, a desestruturagao de sua culturas de origem, sua incorporagao forcada numa comunidade que fazia sentido apenas para 0 colonizador ~ portanto, bastante distante da comunidade de sentido da nagéo (Anderson, B., 1989) E 0 Brasil? A incorporacdo deste pais de raiz lusa no espaco da exposicdo foi possivel na medida em que esta realidade politica auténoma em relagio ao império colonial nao apenas fazia parte do seu passado: por ter interiorizado a sua “lusitanidade” no seu projeto nacional, a complexa realidade brasileira conferia legitimidade aos projetos futuros do império, Sera esta representacéo do Brasil como pais independente, de raiz lusa, tropical ¢ moderno que possibi- litara @ incorporagdo do luso-tropicalismo por parte do império no momento em que este anun- cia sua morbidez. No interior da obra portuguesa no mundo, entre as colénias ¢ o Portugal metropolitano, 0 Brasil aparece como a suprema criagio do génio portugués, como afirmara o préprio Salazar, ¢ como, por outro lado, a Comissdo Brasileira assumira para si. Génio que reconhece a humanida- de no outro mas nao 6: concede-Ihe um lugar dindmico na formacdo de novas coletividades que se fariam pela cooperacao entre grupos com “usos e costumes” tio diferenciados. Coletivi- dades marcadas por um espirito que prescindiria de instituigdes politicas democraticas, dado que as precederia; caberia ao lider observar algo que se daria na realidade e, com sabedoria ¢ Pulso firme, impedir a manifestacdo de ideologias ¢ interesses estranhos a0 espirito (em geral, tides como alienigenas). 0 “Brasil mulato”, cantado em verso e prosa ~ ¢ na sociologia -, assu- mido como ideologia oficial de forma crescente a partir da década de 1930 e como melhor “explicagao” da realidade brasileira, no encontrava toda a luz na Exposicéio do Mundo Portu- Bués, talvez por ser por demais dindmico para uma nacdo © um império que, pelo menos em 270 A festa parte, queria evitar a mudanca ou administrar rigida- | mente qualquer tipo de transformacao. Nao deixaria de inquietar os visitantes e mesmo intelectuais portugue- ses que acompanhavam com atenc&o a produgio inte- lectual brasileira: alguns deles receberiam com entu- siasmo a solugao luso-tropical de Gilberto Freire, outros | com visivel rechaco. Caberia repensar a prépria nogao de “cultura d pério” Trata-se de um conjunto de representagdes € dis- cursos que inventa € reinventa continuamente 0 espaco € as gentes do império, procurando repor as diferencas culturais € as desigualdades sociais que justificariam sua propria existéncia. Se no caso inglés a hierarquia viria pela prépria nogao de “siiditos da Corea” - ou seja, pela propria estrutura imperial britanica -, os casos portu- gués ¢ francés sugerem problemas ¢ tensdes de dificil solug’o e que, em muitos casos, desembocaram em ‘tuagdes de extrema violéncia. A extensdo da Republica aos territérios sob dominagao francesa - e Hannah Arendt (1990) foi aqui extremamente hicida na sua anilise da Proposta¢ crise do projeto colonial francés -, ou da “na- lta sre de et teres cionalidade”, no caso de Portugal, fez com que os dis- A idéia de que o império correspondia a ‘cursos se deparassem com a crua realidade de violén nago era veiculada nos livros escolares. desigualdade do império: a impossibilidade da exten- (Mestina, 1993), sao da “comunidade de sentido” da nagéio ao espaco colonial. No caso portugués, este procedi- mento retérico deu-se no interior de um regime autoritario, algo muito distinto do ocorrido na Franca, onde a crise do império provocou um verdadeiro debate publico. A guerra colonial na Guiné, em Angola ¢ Mocambique se desenvolve nao apenas contra o autoritarismo salazarista, ‘ou as estruturas opressivas do império: ao negar o império, a guerra se desenvolve contra a propria nacionalidade que se procurava afirmar na exposicdo. Tal foi o sentido da formagao dos movimentos de libertagao nacional: a negagao violenta de que aqueles individuos que partici- param da Exposicao Colonial como “verdadciros portugucses” 0 houvessem sido algum

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