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Des-Tino
(ou O desatino de Florisa)
dramaturgia
Em um shopping.
Julia: A gente tem que dar o dízimo pra igreja para nossa vida prosperar
materialmente.
Florisa: Você quer dizer enriquecer.
Julia: Claro, sim, por que não? Por exemplo, a lógica funciona mais ou
menos assim: se você tem um carro popular e ofertá-lo à igreja, em pouco
tempo você terá uma Ferrari...
Florisa: Você ou o bispo?
Julia: Ah! Florisa, não se pode duvidar da palavra do Senhor.
Florisa: Qual palavra? De que senhor? Quem diz essa palavra? Quem a
interpreta? Desculpa, Julia, mas esta igreja mas me parece um banco.
Julia: Está nas escrituras. É preciso demonstrar obediência ao Senhor
através de doações para a igreja. De fato, é como se você emprestasse a
Deus e recebesse depois em juros.
Florisa: Você fala de Deus como se fosse um homem.
Julia: Deus fez o homem sua imagem e semelhança.
Florisa: Eu quis dizer: um chefe... de uma empresa, de uma transação
comercial, de uma caixa registradora...
Julia: É um chefe, sim, e louvá-lo incondicionalmente enche-nos de
benesses...
Florisa: Ou de promoção? Penso diferente. Por que Deus, o Criador do
Universo, iria cobrar louvor incondicional de suas criaturas imperfeitas? Só
para testá-las e satisfazer sua vaidade? Ai, Julia, não posso aceitar que
Deus seja tão mesquinho a ponto de recompensar ou punir as pessoas
apenas por causa de um capricho narcisista e, daí, cobrar tributos pelo
eterno reconhecimento de sua superioridade. Isso não me parece algo digno
de um ser superior. Para mim, o mundo é uma dádiva e Deus é de natureza
espiritual, não é nem masculino nem feminino, não tem forma humana, e é
tão perfeito que sequer podemos imaginá-lo, compreendê-lo. Não consigo
acreditar que um Ser tão grandioso se rebaixe ao que há de pior nos seres
humanos, o egocentrismo, a soberba, a futilidade, e, assim, esperar, deles,
homenagens de ordem material. Não faz sentido!
Julia: A obra do Senhor é matéria também. Temos de amar a Deus sobre
todas as coisas, e somente a Ele. Se nos desviarmos da fé verdadeira, nossa
vida perde a direção. Fé é se despojar de tudo e entregar a nossa vida em
Suas mãos. É preciso temer a Deus.
Florisa: E a nossa responsabilidade? Nossa vontade? O nosso livre-arbítrio?
Nossa capacidade de decidir o que é o bom e o que é mal? Quer dizer que
somos livres apenas para escolher a Sua tutela ou receber o Seu castigo?
Aceitando a Sua tutela, podemos fazer o que bem entender, ainda que isso
possa prejudicar outras pessoas? E os nossos atos, nossos valores éticos?
Isto não importa? Quer dizer que basta eu temê-Lo e pronto? Agindo assim,
estou agindo por medo e não por convicção. Não é algo que vem de dentro
de mim, mas de fora e, portanto, não é sincero. Faço isso de caso pensado,
com base em uma relação interesseira, para receber algo em troca. Fazer o
bem por obrigação ou só porque me é vantajoso não é fazer o bem, Julia. E
amar, por dever ou por medo, não é amor. Eu tenho por princípio que Deus
é bom. E se é bom, é generoso. Para mim, a única coisa que Deus exige de
nós é que sejamos realmente bons, solidários e amemos uns aos outros.
Então, se Deus julga, julga as atitudes. E crer ou não em sua existência não
é parâmetro de caráter de ninguém. Na minha opinião, um ateu honesto e
justo tem melhor reputação aos olhos de Deus do que um religioso
inescrupuloso. Já vi muito gente agir de má-fé em nome de alguma
religião. Realmente, Deus espera muito mais de nós do que o dízimo.
Espera integridade. E isso não é palpável, não se prova por meio de coisas
materiais. Além disso, um Deus que divide, que segrega, para mim, não é
um Deus bom não. A maldade está nos seres humanos e não em Deus. É
nisso que eu acredito.
Julia: Louva-Lo significa seguir as suas leis.
Florisa: Quem segue, Julia, de verdade? Quem segue?! Se seguissem, o
mundo não seria este caos, cheio de guerras e corrupção. Escuto muito
discurso e pouca ação. Não suporto maniqueísmo nem hipocrisia!
Julia: Se todos louvassem...
Florisa: Basta! Não queira medir a fé das pessoas. Encontrar culpados. Este
argumento é muito finalista, isto é, avalia as pessoas pelos resultados, não
por suas atitudes. Como se a vida não fosse cheia de contingências...
Julia: Você diz isso porque o Caio é bem sucedido, é abençoado.
Florisa: Isso não tem nada a ver com merecimento. É trabalho duro, Julia.
Julia: Deixa pra lá! E ele, como ele está?
Florisa: Está bem. Foi viajar com os amigos. É uma viagem que ele faz
desde criança.
Julia: Vocês quase não passam o tempo juntos, não é.
Florisa: Claro que passamos! Quem te falou isso?! Vamos à academia
todos os dias juntos. Passamos os finais de semana juntos. Claro, quando
tem jogo ele sai, mas é só em final de campeonato. Ah, e, na sexta-feira, ele
joga bola com os amigos depois do trabalho, mas volta sempre antes das 11
da noite. Antigamente, eu não gostava. Mas, depois que entrei na
faculdade, percebi que ele tinha que ter o espaço dele, seus momentos com
os amigos, assim como eu também tenho. Senão não há quem aguente, o
relacionamento não dura.
Julia: O Caio é tão especial.
Florisa: Ah, e você?! Está namorando firme aquele fulano que você
conheceu na igreja? Como é o nome dele mesmo?
Julia: Josias. Estamos pensando em nos casar em breve.
Florisa: Nossa, Julia, que notícia maravilhosa! Me conta mais...
[Entram na sala de cinema]
Cena 2
Prédio da Faculdade. Entra Dylan. Florisa o espera.
Florisa: Escuta aqui rapaz, eu quero falar com você.
Dylan: Às suas ordens, moça.
Florisa pega-o pelo braço e leva-o a um lugar mais reservado.
Florisa: Eu sou uma mulher casada, o que que você está querendo?
Dylan: Você que pregou os olhos em mim. Não está lembrada?
Florisa: O que que você disse, moleque?! Olha pra você? Se enxerga, seu
moleque!
Dylan: Acho que está havendo um mal entendido...
Dylan começa a ficar ofegante.
Florisa: Mal entendido?! Eu não posso entrar na sala de aula e já me sinto
perseguida pelo seu olhar. Não posso andar pelos corredores que parece
que estou sendo vigiada...
Dylan: Quando eu vi a aliança no seu dedo, eu parei de olhar.
Florisa: Não parou não.
Dylan: Eu não quero estragar seu casamento...
Florisa: Quem você pensa que é para estragar meu casamento? Eu nunca
me rebaixaria a um tipo como você. Não sou como estas hippies que você
conhece. Se toca, você é muito presunçoso, moleque!
Dylan: Eu não estou conseguindo me explicar... Você entendeu tudo
errado...
Florisa: Eu entendi muito bem. Quero que você me deixe em paz. Não
quero você perto de mim. Quero que você fique bem longe! Entendeu?!
Dylan fica cada vez mais ofegante.
Dylan: Espere. Não consigo respirar... Estou passando mal...
[Saem]
Cena 3
Na sala de aula.
Professora: Apesar do livro se chamar Anna Karenina, o que nos induz a
pensar numa narrativa que verse sobre uma personagem feminina tão
somente, há, no livro, outra história paralela, que se desenrola em um nível
mais profundo, com alguns pontos de intersecção com o enredo central
situado na superfície, e que é tão importante ou mais que a história da
personagem que intitula a obra. Trata-se da vida de Nicolai Dmitrievitch
Lievin. De fato, seu nome poderia ser um subtítulo ou até mesmo o título
oculto do livro e, à medida que avançamos a leitura do romance, tal
personagem masculino vai ganhando relevo, assim como, em termos
metafóricos, gravuras planas e abstratas que vão adquirindo profundidade e
forma conforme a vista vai perdendo a perspectiva. Na lógica interna do
romance, Lievin é a sombra de Anna e sua presença aparece como o
negativo dela, para intestinamente emergir e desconstruir a temática que
transita em primeiro plano, fato que nos faz questionar se não é ele o
verdadeiro protagonista do romance. Pode ser até um pouco arriscado o que
eu vou dizer. Mas Lievin poderia ser perfeitamente bem o alter-ego do
próprio autor, Leon Tolstói. Como eu disse, Lievin é o contraponto de
Anna Karenina. Sua antítese. Suas trajetórias partem de pontos opostos,
cruzam-se, e se distanciam em direções contrárias. De passado dissoluto,
Lievin se regenera; enquanto Anna, uma mulher casada, ao contrário, se
degenera. Este é o mote do romance. Normalmente, lemos as epígrafes dos
livros quase como um adorno, um capricho do autor. Peço a vocês,
encarecidamente, para não cometer esse equívoco. A epígrafe de “Anna
Karenina” nos é bem reveladora, quase uma profecia. Escreve Tolstói
(deixa eu ler aqui para vocês): “Minha é a vingança, e a recompensa”
(Deuteronômio, XXVII, 35). Ou seja, esta sentença terrível pode resumir
toda a minha arguição. Também não é por mero acaso a citação extraída
dos textos bíblicos. Há um panorama religioso de fundo pelo qual darei
ensejo à minha interpretação. Anna Karenina é casada, mas Tolstói não
esconde o quanto o conde Alexei Alexandrovich Karenin, esposo de Anna,
é um homem terrível, frio, insensível, indiferente, egoísta, orgulhoso,
péssimo pai, mais preocupado com a honra e carreira do que qualquer outra
coisa etc., etc., etc. Todavia, a princípio, Anna fez um voto sagrado com
este homem, o do matrimônio, e como tal deve se manter virtuosa. Virtude,
sim, do latim uir ou vir, daí viril, homem, o que implica dizer: privar-se da
feminilidade. Pois, na tradição religiosa, judaico-cristã, patriarcal, a mulher
carrega em seu âmago o germe da transgressão ao desobedecer à única
interdição no Gênesis: o conhecimento. De certo modo, conhecer é
amadurecer, emancipar e, principalmente, libido. Segundo a tradição, é a
mulher quem toma a iniciativa e conspira contra a ordem divina no Éden.
Ou seja, a liberdade feminina é um perigoso fator desestruturante das
relações hierárquicas. Nas sociedades arcaicas, a função da mulher se
restringe à procriação, e daí um sistema de controle e vigilância sobre sua
conduta que constitui o núcleo de toda uma política de estabilização social
em torno do pátrio poder. As mulheres são arroladas entre os bens do clã
patrilinear, enquanto propriedade, e devem reconhecer de modo irrestrito a
autoridade paterna. O que supõe a menoridade da mulher, suscitada pelo
hábito no qual se idealiza uma essência feminina associada a instintos
sexuais e, portanto, irracionais, legitimando assim uma cultura repressiva e
de heteronomia sobre suas ações, isto é, quando a vontade é regulada por
normas exteriores e definida por terceiros. Evidentemente, este ideário não
tem nenhum fundamento empírico, mas é tão somente o reflexo de um tipo
de organização social e de relações de poder. Aqui saímos do campo da
sociologia para entrar na metafísica, pois a substância masculina é
identificada diretamente com o ser divino. Deus é pai, não mãe. Em
contrapartida, a mulher é mãe de todas as revoluções. A emancipação da
mulher, ou melhor, o protagonismo feminino é um fenômeno típico das
sociedades moderna e urbana ocidentais. O casamento de Anna e Karenin,
por convenção e contaminado pelos valores da civilização, insere-se nesse
contexto moderno, ao qual poderíamos chamar, fazendo uma analogia à
ciência jurídica de seiva cristã, de teoria do princípio dos frutos da árvore
envenenada. Isto é, os valores morais intoxicados pela civilização ocidental
se tornam paulatinamente universais e irreversíveis. Portanto, nem Anna
nem Karenin representam o ideal de indivíduo proposto por Tolstói, que é o
da simplicidade natural, digamos, rousseauniana. O cenário dos salões,
festas e das reuniões em sociedade, que permeiam todo o romance, é a
manifestação de uma era afeminada que se vislumbra no horizonte, no
sentido de que o feminino é desagregador das origens. A feminilidade
ameaça o status quo através de uma guerra pela autonomia sobre o amor.
Deste modo, a paixão é a própria maçã da árvore do conhecimento que,
inexplicável e maliciosamente, está localizada no meio do Paraíso para
induzir inevitavelmente ao erro, à tentação. E, assim como toda a sociedade
moderna, Anna também se deixa seduzir pelos valores infectados,
exógenos, antinaturais, porque tudo em sua vida pregressa é artificial,
leviano e falso. Neste sentido, o corolário da civilização burguesa é a
hipocrisia e, por conseguinte, a paixão de Anna, eivada por todas as
mazelas desse universo cultural, paixão por um rapaz jovem e bonito, que
também a ama verdadeiramente, não pode escapar do destino e do castigo
daqueles que se desviam das supostas leis naturais e divinas. Não vou
contar o final da história, porque sei que muitos de vocês ainda não
terminaram de ler, mas não pensem vocês que o Conde Alexei Kirillovich
Vronsky, o jovem galanteador, por quem Anna se apaixona perdidamente,
é um cafajeste que em algum momento pensa em abandoná-la. Tosltói não
nos dá esse gostinho para aplacar nossa ânsia por justificações. Gente,
acreditem em mim, Vronsky é o sonho de qualquer mulher! Portanto, não é
a rejeição de Vronsky que leva Anna à ruína; mas, sim, a culpa que a
domina em seu íntimo, até tomá-la por inteira. Culpa que não apenas
advém do adultério, por se separar do marido, por violar as leis do
matrimônio, ainda que sem amor, mas, sim, pelos erros de toda uma
geração. Culpa que a arrasta em uma correnteza invencível às raias da
loucura. Eis a vingança! Agora, vamos à recompensa. Lievin, ao contrário,
é um homem pertencente à aristocracia rural, tem 32 anos, é bastante
vivido e maduro – tendo por base os padrões da época – e de juventude
libertina na cidade, como todos os homens, mas que se redime através do
retorno à vida do campo e no casamento com uma mocinha, a princesa
Ekaterina Alexandrovna Shcherbatskaya, a Kitty, muito mais jovem do que
ele, uma carola. Por fim, Lievin, antes ateu, convence-se, no final do livro,
da existência de Deus; fato que lhe enche a vida de sentido. Curiosamente,
a futura esposa de Lievin, a Kitty, no início do livro, era caidinha pelo
amante de Anna, o Vronsky. Claro, né, gente! Lievin não suporta isso.
Mas, claro, como eles são do “bem” (entre aspas), Kitty acaba por
descobrir um grande amor pelo marido em sua convivência com ele –
gente, ponham um entre aspas enfático nesse amor também, porque eu não
me convenci: apesar de ter só 18 anos, pasmem, Kitty tem pavor de ficar
para titia, tendo em vista os padrões morais da época. Enfim, Kitty acaba
por amar um esposo que não escolheu e que não é fruto de uma paixão à
primeira vista! Portanto, Kitty tem algo em comum com Lievin. Ela
também se regenera. (Gente, ressaltando, ela só tem 18 anos!). Ela também
era leviana, contagiada pelos ares sensuais da civilização urbana. Ao ser
preterida por Vronsky, Kitty adoece e é internada em um sanatório, onde
trava contato com uma devota, algo que a faz mudar completamente de
vida. Mas a sua transformação só se dará efetivamente com o casamento
com Lievin. Do nada ela se revela. Torna-se uma mulher forte,
determinada, resoluta, apaixonada, fiel, leal, amiga, companheira, boa
esposa, submissa [sublinhem este “submissa”]... Gente, dá até raiva! Ela,
que é uma adolescente, aparece muito mais “madura” (aspas aí!) do que
Anna, que, apesar de aparentar uns 20, devia estar perto dos trinta, pois seu
filho único tem oito anos. No fundo, para mim, Tolstói condena o único
amor verdadeiro do romance, fruto de espontânea e verdadeira paixão, que
é o amor de Anna e Vronsky. Porque Anna e Vronsky estão mais para
Romeu e Julieta do que qualquer outro casal da história. Ambos desafiam
as convenções sociais por amor, renunciam tudo e tem de superar os
obstáculos de um amor proibido. Inclusive, por isso, Anna, ao resolver
assumir seu romance com Vronsky, é banida dos círculos aristocráticos.
Mas, muito cuidado, gente, não é o amor romântico. É o amor que existe na
vida real, que pode acontecer com qualquer um de nós, afinal, trata-se da
escola realista. Quanto aos outros casais, diga-se, de passagem, todos os
relacionamentos são marcados pela hipocrisia e traições. E apesar da
hipocrisia causar um terrível mal estar em Tolstói, que é um crítico
ferrenho da sociedade de sua época, todos os hipócritas passam impunes no
romance. Somente Anna e Vronsky pagam por se amarem
verdadeiramente. Pagam porque ainda tem um pingo de dignidade que falta
aos outros personagens. Portanto, Tolstói é profundamente severo e
moralista. A crítica que ele faz da sociedade moderna é contrabalanceada
pelas comunidades arcaicas russas, tidas como ideal: um idílio, o paraíso
perdido. E daí um projeto nacional, agrário, de cunho eslavista, oriental,
antiliberal, representado por Lievin, e que permeia todo o livro em
passagens extremamente monótonas e enfadonhas que faz a gente gritar:
onde estão Anna e Vronsky! Ai, gente, vocês me desculpem pelo que eu
vou falar agora. Lievin até é um personagem interessante no início, mas
depois vai se tornando um chato. Consegue ser mais maçante que Karenin.
Sabem aquele cara pedante, cheio dos não-me-toque, que fica do alto de
um pedestal medindo com uma régua o que é certo e o que é errado, como
se o mundo girasse em torno dele? Bom, esse é o Lievin. Mas, é
exatamente isto, Anna e Vronsky representam o mundo ocidental, a
modernidade volátil, superficial, instável, sensual, movediça e vazia.
Ambos se corromperam por causa dela. Por afastarem-se do ideal de
caráter e da essência do povo russo. Neste ponto, apesar do
conservadorismo, Tolstói pode ser enquadrado como um revolucionário, se
o pensarmos como um representante de uma vertente aristocrática e
conservadora do populismo russo, e não raro ele é considerado, com muitas
reservas, um anarquista, ou melhor, um anarco-cristão...
Florisa: Professora!
Professora: Sim.
Florisa: A gente pode dizer que Anna Karenina se apaixona por Vronsky
porque Karenin é um homem mais velho e por isso...
Professora: Não, não é só isso. Como eu disse, Tolstói é um crí tico da
sociedade ocidental burguesa. Certamente, ele detesta Alexei. Alexei é o
nobre que abdica dos ideais de nobreza para se tornar um burocrata a
serviço de um Estado absolutista abominável, que é o czarismo. Tolstói é
contra o Estado de um modo geral. Certamente, não nutre simpatia por
Karenin. Mas, sem dúvida, Alexei é um personagem extremamente
complexo, muito bem construído; ele é vazio por dentro, totalmente
desumanizado. Gente, é impagável a reação de Karenin quando recebe a
notícia da boca da própria Anna de que está sendo traído por ela. Ele
explode por dentro, mas não mexe um músculo da face. Sua primeira
atitude é de não tornar público o adultério. Depois chega a permitir, após
meditações muito ponderadas, que Anna e Vronsky mantenham o
relacionamento, desde que escondido. Ou seja, ele está mais preocupado
com a fachada de seu casamento, pensando na carreira, na sua posição
social. Continua trabalhando normalmente, ambicioso que é. Há momentos
em que ele é extremamente sádico, pois cabe a ele conceder a separação a
Anna. Não. Alexei não pode ser um autêntico russo, abjeto que é. Não para
Tolstói. Não é uma pessoa; é uma coisa, uma função. Russo é Lievin. Este,
sim, é o grande herói do livro. Anna se apaixona por Vronsky, porque, em
primeiro lugar, ele é apaixonável, assim como as ilusões do mundo
moderno, e, em segundo, porque está ligada a um homem detestável,
embora um cumpridor das leis e dos valores religiosos. E, como nele tudo é
falso, Ana quer quebrar as leis. Quer ser livre. Quer amar. Ana é uma
rebelde, em sua interioridade, em seu íntimo, aos moldes de uma
personagem feminina de um romance francês, de Balzac, por exemplo. Na
crítica romântica de Balzac, pré-realista, é o dinheiro que está por trás de
tudo. Para o realismo de Tolstói, é toda a civilização ocidental. Por isso,
Alexei é um burocrata detestável, mas tem uma carreira regular e
ascendente. Ontem, como hoje, seria um bom partido para muitas alpinistas
sociais. Gente, desculpem-me o eufemismo. Então, não é porque ele é mais
velho. É porque, para Tolstói, tudo está errado na sociedade russa que
corrompe a sua origem – cristã ortodoxa. Anna e Vronsly também são
curvas fora da reta. Mas, para o desespero de Tolstói, foi Anna que se
consagrou e não Lievin. O modelo vencedor foi o de Anna. Para terminar,
no nosso mundo contemporâneo, depois de toda a revolução sexual, do
comportamento, da liberdade e igualdade de gênero, talvez, para nós,
principalmente nós mulheres, seja muito difícil simpatizar com o
moralismo de Tolstói. Porém, não podemos esquecer que “Anna Karenina”
é uma obra-prima da literatura universal, leitura indispensável.
Esteticamente, o livro é perfeito. Gente, para a próxima aula, terminem a
leitura, por favor, para entrarmos no tema seguinte que já deixei na pasta do
xerox. Obrigada e boa noite!
[Alunos e professora saem].
TERCEIRO ATO
Cena 1
Dylan se retira.
Florisa: Ele me chamou de intragável. Eu?! Intragável!
Mariana: Não liga, Florisa. Esquece essa história.
Cena 3
Florisa e Caio no quarto.
Caio: Vou acender um baseado. Quer dar um pega, amor?
Florisa: Você não vai acreditar no que aconteceu na aula hoje.
Caio: O quê?
Florisa: Aquele cara de novo.
Caio: Aposto que este otário deve ser esquerdista.
Florisa: O cara não tem a mínima consideração para com os outros. Ficou o
tempo todo atrapalhando a aula.
Caio: Nem o conheço e já estou ficando com raiva desse cara. Quer um
trago?
Florisa: Não, obrigada. Depois, no final da aula, o cara teve a pachorra de
me chamar de intragável. Pode? Eu, intragável?
Caio: Você é tudo, querida, menos intragável.
Florisa: Que ódio!
Caio: Vou dar porrada nesse cara, amor. Me fala onde eu o encontro que eu
vou encher a cara dele de porrada.
Florisa: Ah, eu vou com você! Vou te ajudar, também. Não gosto de
violência. Mas este cara está passando dos limites, merece, sim, uma lição.
Caio: Meu, eu tô muito afiado no jiu jitsu. Tô doido pra estrunchar um
maluco desse.
Florisa: Chega de falar em coisas ruins. Vamos falar em coisas boas. Amor,
você já tá preparando as malas para nossa viagem de férias? Miami!
Caio: Eu sabia que você ia se convencer.
Florisa: Vamos dormir, amor, amanhã acordamos cedo.
Caio: Ótima ideia. Amanhã vou extravasar toda a minha raiva no saco de
pancadas. E adivinha em quem eu vou estar pensando?
Florisa: Eu também. Vou pedir uma aula especial para o professor de muay
thai. Uns golpes novos.
[Dormem]
Cena 4
Dia seguinte, à tarde. Tatiana e Dylan estão sentados no banco de uma
praça dentro do campus.
Dylan: Tá vendo estas formigas andando em fila, Tati?
Tatiana: Elas carregam umas folhas muito maiores do que ela.
Dylan: Está vendo uma mulher andando lá longe com uma mochila nas
costas?
Tatiana: Estou.
Dylan: E um homem passando agora...
Tatiana: Sim.
Dylan: Qual a diferença dessas formigas daquelas pessoas.
Tatiana: Acho que muitas.
Dylan: Não. Nenhuma. Não tem diferença.
Tatiana: É pensando bem...
Dylan: Quando sairmos daqui, é preciso tomar cuidado para não pisarmos
nelas.
Tatiana: Nas formigas?
Dylan: Sim. Imagina um meteoro vindo de encontro da Terra. É a mesma
coisa. De uma perspectiva solar, o que acontece à humanidade é totalmente
indiferente ao Sol.
Entra Florisa.
Florisa: Ah, quer dizer que os dois pombinhos resolveram namorar em um
lugar mais apropriado.
Dylan: Faça um favor. Dá licença. Vai embora daqui.
Florisa: Não vou não. A praça é pública e eu fico onde eu bem entender.
Quem sabe assim da próxima vez os dois se tocam e não resolvam
incomodar ninguém na sala de aula.
Tatiana: Você é louca, garota.
Florisa: “Você é louca, garota”! E você? O que você é, para ficar com um
cara desses? Só pode ser uma tapada.
Dylan: Mais respeito. Eu não te dei liberdade...
Florisa: Você não me dá nada, moleque!
Tatiana: Sabe o que você é? Você é uma frustrada.
Florisa: Frustrada, eu?
Tatiana: É. Mal amada!
Florisa: Não me faça rir. Me poupe, garota. Sou muito mais mulher que
você!
Dylan: Por favor, não briguem por minha causa.
Florisa: Ah, meu Deus! Acho que vim parar num hospício!
Tatiana: Vai embora. A gente não fez nada pra você.
Florisa: Frustrada é você. Que não consegue arrumar um homem de
verdade.
Dylan: Devo entender isso como uma ofensa, Tati?
Tatiana: Nada. Ela tá com inveja da gente.
Florisa: Será que eu ouvi esse disparate? Escuta aqui, coisinha...
Dylan: ...“Será que” não tem outra maneira de resolver essa treta?
Tatiana: Affê!!!
QUARTO ATO
Cena 1
Sala de aula.
Daniela: Eu acho melhor marcar a reunião meia hora antes da aula.
Mariana: Na quinta, às 7 horas?
Daniela: Eu não vou conseguir chegar antes. A gente conversa, divide as
partes que cada uma vai fazer e depois a gente se encontra para juntar tudo.
Mariana: Dá para você, Florisa? Quinta, às 7 horas?
Florisa: Hã... dá...
Mariana: Mas como vai ser a divisão?
Daniela: Cada uma pega um texto, lê, ficha e depois costura tudo.
Mariana: Tipo um Frankenstein?
Daniela: Olha, eu trabalho a semana toda e não vou ter tempo para me
reunir com vocês pra fazer o trabalho.
Mariana: Pra você tá bom assim, Florisa?
Florisa: Sim...
Florisa olha para o fundo da sala.
Mariana: Florisa, você tá bem?
Florisa: Hã... oi?
Mariana: Eu perguntei se você está bem?
Florisa: Sim... Estou.
Mariana: Então, fica marcado: quinta, às 7 horas?
Florisa: O quê? Quando? Que horas?
Mariana: Quinta, às 7 horas!
Florisa: Não sei se eu posso.
Mariana: Você concordou há pouco.
Florisa: Eu entendi outro dia.
Mariana: Você não estava prestando atenção. Você está no mundo da lua.
Florisa: Só estou um pouco estressada. O Caio tem trabalhado muito...
Entra Dylan.
Daniela: Olha quem resolveu aparecer depois de três semanas. Achei que
tinha abandonado a disciplina de novo.
Florisa: É o Dylan? Ele veio?
Mariana: Esse daí não sabe o que quer da vida.
Florisa: Meninas, vocês estão a fim de fazer alguma coisa no fim de
semana?
Mariana: Florisa, a gente tem que fazer o trabalho. Esqueceu?
Florisa: Por que a gente não faz na minha casa? Eu posso preparar um bolo
e a gente pode pedir comida chinesa.
Daniela: Sábado eu tenho um compromisso.
Florisa: Domingo. A gente pode ir ao shopping também. Pegar um cinema.
Depois a gente pode ir a um restaurante japonês que eu fui com o Caio que
a comida é divina!
Daniela: Domingo, não. Quinta, às 7 horas.
Florisa: E você Mariana? Topa ir na minha casa no sábado e no shopping
no domingo? A gente pode ver um filme de comédia, tá passando um
ótimo, com aquela atriz... como é o nome dela? Aquela atriz de cabelo
ruivo... que contracenou com... Não importa. O que você acha?
Mariana: Florisa, o trabalho.
Florisa: Ah, o trabalho! O trabalho a gente faz outro dia. Mas se vocês
insistem tanto. Tudo bem, quinta, às 7.
Mariana (à parte para Florisa): Você tá apaixonada.
Florisa: O quê?
Mariana: Você tá apaixonada, pelo Dylan, sua louca.
Florisa: Não estou não.
Beijam-se.
(...)
Toca o telefone celular de Florisa.
Florisa: O que é isso, um trovão? O céu está tão limpo; a noite, linda! Um
trovão numa noite de estrelas? Não será uma bomba?
Dylan: É a cotovia avisando que o seu conde Páris está a sua espera,
enquanto o Montecchio aqui tem que descer do balcão, escorregar pela
trepadeira e escapulir em desabalada carreira pelo pomar.
Florisa: Não, engano seu, meu Romeu. Eu não ouvi nada. Aqui, em
Mântua, é uma cidade muito tranquila e silenciosa.
Beijam-se novamente.
(...)
Toca o telefone celular de Florisa outra vez.
Florisa: Fiz.
Mariana: E então?
Florisa: Então eu vi nos olhos dele como ele é doce, meigo, sincero...
Mariana: Realmente, não consigo acreditar, Florisa. Você pirou de vez.
Silêncio! O Caio está vindo aí.
[Entra o Caio acompanhado de dois seguranças]
Caio: Cadê aquele canalha, eu mato ele!
Mariana: Eu encontrei ela. Ela estava no banheiro.
Caio: Nós revistamos todos os banheiros. Onde ela estava? Eu ligo, ela não
atende!
Florisa: Eu estava no banheiro...
Mariana: ...do outro prédio.
Segurança: Doutor, a moça já tá aí. Parece que tá tudo bem. Nós
precisamos voltar pro serviço.
Caio: Ok. Obrigado.
Abre a carteira, pega uma nota de um maço de dinheiro e entrega para o
segurança.
Segurança: Obrigado, doutor.
Os seguranças saem.
Caio: Florisa, tá tudo bem mesmo?
Florisa: Tudo.
Caio: Seus olhos estão vermelhos. Parece que você andou chorando...
Florisa: Agora estou melhor. Estou bem.
Caio: Aquele maníaco não encostou a mão em você?!
Florisa: Não.
Caio: Você está bem mesmo?
Florisa: Sim.
Caio: Podemos ir embora?
Florisa: Podemos.
Caio: Mariana, muito obrigado.
Mariana: Ora, não foi nada.
Caio: Já vamos. Tchau.
Mariana: Tchau.
Cena 3
Na sala de aula.
Florisa: O Dylan não chega.
Mariana: Ele sempre se atrasa.
Florisa: Não, dessa vez ele não vem mais.
Mariana: Calma, a professora nem entrou na sala ainda. O Dylan sempre
chega atrasado.
A professora entra.
Florisa: Ele não virá. Eu sinto isso. Ele me abandonou.
Mariana: Se ele não viesse, seria até bom.
Florisa: Não me diga o que é bom para mim e o que não é. Ele não vem...
Vou chorar!
Um colega cutuca o ombro de Florisa.
Florisa: Oi?
Colega: Mandaram entregar isto.
Florisa: É um bilhete. É do Dylan, Mariana! O Dylan está lá fora me
esperando.
Mariana: Ei, aonde você vai? E a aula, sua louca?! O Dylan não vale a
pena, acredite em mim. Ele não presta...
Florisa: Depois eu te encontro. Beijos!
Dylan: Garota, tem coisas da minha que só dizem respeito à minha pessoa.
Florisa: Você é um brincalhão.
Dylan: Minha vida é um livro aberto.
Florisa: Só você para me fazer rir, Dylan.
Dylan: Mas tudo o que eu digo você dá risada! Não é tão difícil.
Florisa: Ouvir a sua voz já me deixa contente.
Dylan: Você precisa acreditar em mim.