Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
FACULDADE DE HISTÓRIA
Goiânia - GO
2017
s1ster,a de
sbl ufc
PRPG t'!i' :fQ' •hJ�AU
"<1'<.�•1"..U:· tl..t>
..·,
UFG
TERMO DE CIÊNCIA E DE AUTORIZAÇÃO PARA DISPONIBILIZAR VERSÕES ELETRÔNICAS
DE TESES E
DISSERTAÇÕES NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG
Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Goiás (UFG)
a disponibilizar, gratuitamente, por meio da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD/UFG),
regulamentada pela Resolução CEPEC nº 832/2007, sem ressarc;mento dos d;reitos autorais, de
acordo com a Lei n° 9610/98. o documento conforme permissões assinaladas abaixo, para fins de
leitura, impressão e/ou download, a título de divulgação da produção científica brasileira, a partir
desta data.
Título do trabalho: MUITO ALÉM DAS TELAS DOURADAS: cidade e tradição em Goiandlra do Couto
(1960 a 2001).
Ciente e de acordo:
Assinatu�ntad�r(a)2
Data: 29 / 11 /2017
1
Neste caso o documento será embarf;ldo por até um ano a partir da data de defesa. A extensão deste praro suscita
justificativa junto à coordenação do curso. Os dados do documento não serão disporuõilizados durante o periodo de embargo.
Casos de embargo:
- Solicitação de registro de patente
- Submissão de artigo em revista cientifica
- Publicação como capítulo de livro
- Publicação da dissertação/tese em livro
2
A assinatura deve ser cscancada.
Versão atualizada em maio de 2017.
Goiandira Ayres do Couto. Foto: JB, década de 1930
Goiânia - GO
2017
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do
Programa de Geração Automática do Sistema de Bibliotecas da UFG.
CDU 94(817.3)
RAQUEL MIRANDA BARBOSA
DEDICATÓRIA
Para os vilaboenses.
E, especialmente para:
Figura 09A Foto da Festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos 81
Figura 09B Igreja de Nossa Srª do Rosário, em estilo neogótico, década de 1950 81
Figura 17 Isaac, 1967. Lápis de cor aquarelado sobre papel sulfite. 158
Figura 18 Abraão, 1967. Lápis de cor aquarelado sobre papel sulfite. 159
Figura 21 Nicodemos, 1967. Lápis de cor aquarelado sobre papel sulfite. 162
Figura 22 Farricoco, 1967. Lápis de cor aquarelado sobre papel sulfite. 165
Figura 31 Largo do Rosário - Vista da Cidade, Goiandira do Couto, areia sobre 221
fibra de madeira, (141x93 cm), 1976.
Figura 32 Largo do Rosário, Cidade de Goiás-GO, 2016. 227
Figura 34 Largo do Rosário, Goiandira do Couto, areia sobre fibra de madeira, 231
(44 x 59),1986.
Figura 35 Cruz do Anhanguera, Goiandira do Couto, óleo sobre tela, 1947. 233
Figura 38B Casa de Cora Coralina ao contrário. Goiandira do Couto, areia sobre 241
fibra de madeira, (230x147), 1975.
Figura 39 Cruz do Anhanguera, Octo Marques, óleo sobre tela, 1987 244
Figura 40 Portões com torre da Igreja, (1989), Goiandira do Couto, areia sobre 247
fibra de madeira, (33 x 57) 1989.
Figura 41 Casa de Cora Coralina. Goiandira do Couto (52 x 36), 2004. 248
Figura 42 Rua Direita (Goiás), Octo Marques, oléo sobre tela, 1947. 250
Figura 43A Beco da Rua 13 de Maio, Goiandira do Couto (35X55), areia sobre 254
fibra de madeira, 1982.
Figura 43B Beco do Cotovelo, Goiandira do Couto (40x53), areia sobre fibra de 254
madeira, 1987.
Figura 43C Beco do Ouro Fino, Goiandira do Couto (34x45), areia sobre fibra de 254
madeira, 1978.
Figura 44 Flamboyants, Goiandira do Couto, óleo sobre tela, 1962. 255
Figura 45A Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, Goiandira do Couto, areia 257
sobre fibra de madeira, 1967.
Figura 45B Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, João do Couto, (bico de pena 257
e nanquim), 1968
Figura 46A Chafariz e Igreja da Boa Morte. João do Couto, (bico de pena e 259
nanquim), s/d
Figura 46B Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte e Palácio Conde dos Arcos, 259
João do Couto, (bico de pena e nanquim), 1968.
Figura 47A Museu das Bandeiras, Goiandira do Couto, areia sobre fibra de 262
madeira, 1974
Figura 47B Museu das Bandeiras, Goiandira do Couto (52x36), areia sobre fibra 262
de madeira, 1976.
Figura 48 Largo do Chafariz, Octo Marques, óleo sobre tela, s/d. 265
Figura 49 Chafariz, Goiandira do Couto, areia sobre fibra de madeira (42x34), 266
1978.
Figura 50 Chafariz e Museu da Bandeiras, Goiandira do Couto, areia sobre fibra 268
de madeira (60x40), 1983.
Figura 51A Chafariz, Octo Marques, óleo sobre tela, 1986. 269
Figura 51B Chafariz, Octo Marques, óleo sobre tela, 1972. 269
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 16
CAPÍTULO I .................................................................................................................... 26
CAPÍTULO II ................................................................................................................... 93
3.1 Vieses e Revezes da Mudança: arte e cultura projetando tradições ..................... 100
4.3 O Olhar Guardião: recriando o centro da paisagem cultural vilaboense ............ 217
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem por objetivo analisar a relação entre a trajetória cultural da
artista plástica goiana, Goiandira Ayres do Couto (1915- 2011), e a reconstrução da
identidade urbana da Cidade de Goiás, no século XX. Localizada nos planaltos do Centro-
Oeste do Brasil, desde o século XVIII, atualmente, é um lugar que vivencia práticas e
políticas de preservação da história e dos costumes apropriados pela população e gestores do
patrimônio cultural como sendo tradições centenárias. Há, aproximadamente dois séculos, a
antiga Vila Boa1 foi capital do Estado de Goiás, status perdido para a cidade de Goiânia, na
década de 1930.
A ascensão do Estado Novo trouxe consigo o ideal de modernidade e
progresso. Em contrapartida, a tradição acumulada na Cidade de Goiás adquiriu, na voz do
interventor federal, Pedro Ludovico Teixeira, e seus correligionários, a representação de
retrocesso, atraso. Na visão desses líderes, o modus operandi da velha política oligárquica
enraizou-se, simbolicamente, à paisagem urbana colonial vilaboense, concepção que firmou e
afirmou a ideologia mudancista. Assim, em 1932, foi assinado o decreto lei n° 2.737,
documento que sancionou a transferência da sede administrativa do Estado de Goiás para a
nova capital. Neste mesmo ato, o poder executivo instituiu a comissão encarregada de
escolher o local onde seria edificada a cidade concebida para ser monumento representativo
de ruptura com o passado. Instaurava-se, portanto, o mais emblemático paradigma da história
político-cultural goiana.
1
“Aos 25 dias do mês de julho de 1739, nesta Vila Boa de Goiás, onde veio o Exm° Sr. D. Luiz Mascarenhas,
general desta capitania, em virtude da ordem de S.M remetida ao Sr. Exm°. conde de Sarzedas; seu antecessor,
para efeito de erigir uma vila nestas minas, havendo, eleitas as justiças e declarados pelo Dr. superintendente
geral. Agostinho Pacheco Telles, juízes ordinários Antônio Dias da Silva e Antônio Brito Ferreira, vereadores
Thomé Gomes Mazagão e Antônio Xavier Garrido, o procurador João Lopes Zedes, e em seu lugar, Antônio de
Brito Rabelo, sendo escrivão da câmara Miguel Carlos, levando o estandarte dela Ignácio Dias Paes, foi
mandado pelo dito Sr. general que todos os ditos com nobreza e povo da dita vila, a que ele acompanhou, fossem
levantar pelourinho, ao lugar destinado, junto do arraial, a que em nome do Rei deu o nome de Vila Boa, e todos
concorreram para o levantamento do pelourinho, que com efeito se levantou: de que para constar fez este termo,
que assimou Exm°. general, superintendente e da câmara. E eu Antônio da Silva Almeida, secretário do governo
que o escrevi” (ALENCASTRE, 1863, p. 72).
18
2
“Edifício de arquitetura civil de grande porte, localizado no Largo da Matriz no Centro Histórico da Cidade de
Goiás. Antigo Palácio dos Governadores da província, não se sabe corretamente a data de sua construção,
possivelmente entre 1775 e 1759 ou mesmo antes. Há vestígios da passagem de D. Marcos de Noronha, o Conde
dos Arcos, pelo palácio, pois existe no jardim o brasão do Conde dos Arcos, daí o nome do edifício. Consta de
extenso pavimento térreo, colocado um pouco acima do solo, tendo ao seu fundo, um jardim. É construção de
paredes em taipa de pilão e adobes e telhas de barro canal. Sofreu, ao longo dos anos, diversas reformas e
acréscimos, mas que não alteraram substancialmente suas feições. Sua fachada principal recebeu, ao final do
século XIX, platibanda e uma porta de entrada com frontão e pilastras à moda clássica. Atualmente, abriga
coleções de móveis, quadros e demais objetos sendo aberto à visitação pública”. Disponível em
<http://portal.iphan.gov.br/ans.net/tema_consulta.asp?Linha=tc_hist.gif&Cod=1226> Acesso em: 15 mar. 2017.
19
bases culturais da artista implicadas aos seus modos de ver e conceber a cidade-ideal,
visivelmente, inspirada nas representações da paisagem urbana vilaboense.
Esse mosaico de testemunhos e análises respondeu a algumas dúvidas, suscitou
outras e orientou caminhos para que lacunas pudessem ser preenchidas. Começava-se, então,
a triagem dos rastros deixados por Goiandira do Couto nos arquivos públicos da Cidade de
Goiás e Goiânia - Diocese de Goiás, Arquivo do Museu Casa de Cora Coralina, Fundação
Frei Simão Dorvi, Arquivo do Escritório Técnico de Goiá/IPHAN, Museu de Arte de Goiânia
- MAG, Instituto de Pesquisa e Estudos Histórico do Brasil Central. Embora caiba salientar
que durante esse extenuante percurso indiciário, portas se abriram e outras se fecharam. O
acesso aos documentos relativos aos rastros de Goiandira do Couto na fundação e direção da
Escola de Belas Artes “Veiga Valle” foi negado pelos agentes públicos, atuais guardiões deste
acervo. Ainda assim, reunimos por meio dos jornais condições para quebrar, ainda que
parcialmente, o silêncio em relação à importância cultural desta instituição de ensino das artes
na Cidade de Goiás, fundada ao final da década de 1960.
A saber, o que se levantou nos centros de memória, acervos eletrônicos e
particulares restaurou a impressão de viabilidade desta pesquisa. Sabia-se que a trajetória
desta artista na/com a cidade que ela adotou como sua, poderia ser revista, à luz da ciência
histórica, muito além das telas douradas. Assim, a Cidade de Goiás, por vezes, objeto de
estudo entre os pesquisadores das mais diferentes áreas do conhecimento, reocupa
centralidade neste estudo que visa a narrar o processo de ressignificação cultural vivido pela
antiga capital do Estado de Goiás, entre as décadas de 1960 a 2001, por meio do viés
biográfico que se ampara em uma gama de documentos escritos, mas que se diferencia,
sobretudo, no uso dos documentos visuais. Haja vista que enfrentar o silêncio ao qual relegam
esses discursos, especialmente, quando utilizados como mera ilustração, é compromisso
metodológico desta narrativa.
Admitir o poder de persuasão e transmissão de sentidos e valores que as
narrativas visuais possuem é reconhecê-las como objetos portadores e emissores de
pensamento susceptíveis à apreensão social. Assim, considerando a paisagem urbana um
objeto histórico mutável no tempo, espera-se do historiador que estuda as representações
desse estilo visual mediação com as circunstâncias ou influências que motivaram a sua
produção. Segundo Freitas (2004), a imagem tem a peculiaridade de ser “cada vez mais
sedutora em seu processo de estetização do cotidiano e acaba por estimular os debates acerca
do estatuto e da função da arte” (p.05). Metodologicamente, é preciso manter-se sensível aos
21
o documento conhecido como Carta a Cidade de Goiás, eixo norteador das diretrizes de
preservação e responsabilidade individual e pública em relação aos imóveis localizados no
perímetro protegido por lei. Durante a pesquisa, os documentos revelaram que a comissão
recomendou que a Casa de Goiandira fosse tombada pelas políticas de preservação do
patrimônio cultural vilaboense. A partir desta constatação, passamos a aprofundar análises
sobre o lugar de importância e as representações da protagonista na década de 1990, auge das
ações do IPHAN local e da comunidade vilaboense, diretamente engajadas no Movimento
Pró-Cidade de Goiás, com vistas a efetivar a consagração da Cidade de Goiás como
“Patrimônio da Humanidade”. Abordagens históricas, historiográficas e conceituais sobre
patrimônio cultural, políticas culturais e a concepção de consumo da cidade enquanto produto
da cultura ampararam-se nas análises de Silva (2003), As Cidades Brasileiras e o Patrimônio
Cultural da Humanidade, obra na qual a legislação e os requisitos internacionais para
reconhecimento mundial foram contemplados; Tamaso (2007), Em nome do patrimônio:
representações e apropriações da cultura na cidade de Goiás, referencial para os estudos
sobre poder e patrimônio no caso vilaboense; e, por fim, Gonçalves (2007), Limites do
Patrimônio que discute as questões relativas a turismo e mercado cultural.
O segundo, A Cidade e as Expectativas de Futuro no Dossiê de Goiás,
revisitou o presente documento que formalizou a candidatura da Cidade de Goiás junto à
UNESCO buscando compreender como o jogo retórico das oficialidades instituiu parâmetros
para que fosse reconhecido o “valor universal excepcional” da cidade-patrimônio por meio da
demarcação dos lugares de memória, igualmente, evocados visualmente por Goiandira do
Couto. As análises sobre o Dossiê de Goiás se concentraram no anexo IV, - Inventário
Nacional de Referências Culturais, Sessão Goiás: história e Cultura e Entrevistas
Selecionadas. Identificamos, nestes tópicos, complementariedade discursiva entre o
imaginário social vilaboense, a imagem da cidade que se vislumbrava patrimonializar
mundialmente e a importância cultural de Goiandira do Couto e suas representações; como é
o caso da casa onde ela viveu e construiu sua trajetória-memória na Cidade de Goiás. Nesta
direção, o terceiro subitem focaliza-se na Construção do Museu-Vida: Espaço Cultural
Goiandira do Couto e evidencia os meandros da apropriação da Casa de Goiandira como
lugar de memória integrado ao circuito cultural da cidade-patrimônio.
Espera-se que esta tese de doutorado contribua com as historiografias goiana e
regional; seja reavaliando afirmações, complementando conhecimentos, preenchendo ou
abrindo lacunas e, sobretudo, fomentando debates. Para além desse aspecto, este estudo
imiscui-se no campo da história das cidades e do pensamento filosófico sobre imagens do
26
CAPÍTULO I
3
A seleção desse marco temporal justifica-se incialmente pelo fato de que, na década de 1960, Goiandira do
Couto reinterpreta sua arte utilizando-se da técnica de areia multicolorida e cola a base d`água sobre fibra de
madeira. Nesta, considerada sua segunda fase artística, a inspiração preservacionista da paisagem urbana
vilaboense predominou, com mais ênfase, em suas telas. O recorte final culmina com uma longa trajetória de
ressignificação cultural da Cidade de Goiás, na qual a protagonista deste estudo desempenhou ações
contundentes nesse longo período. Sendo assim, hipoteticamente defendemos a tese de que sua contribuição
artística e cultural tenha implicado na aquisição do título de Patrimônio Histórico Mundial conferido pela United
Nation Educational, Scientific and Cultural Organization (Organização para a Educação, a Ciência e
a Cultura das Nações Unidas) doravante UNESCO.
28
urbano. A biografia de Goiandira do Couto torna mais compreensível a relação da artista com
a cidade e as cercanias que lhe inspiraram suas telas douradas.
Nota-se arraigados sentimentos de cumplicidade artísticos-social entre a ela e a
Cidade de Goiás, estão interligados às origens e, consequentemente, à forma como se deu sua
atuação nos desdobramentos ocorridos no tempo e no espaço delimitado por sua existência.
Durante esses exames preliminares, fontes históricas jornais, documentos oficiais, relatos
biográficos, entrevistas, fotografias e, principalmente, as obras pictóricas da artista
asseguraram e comprovaram que: “(...) Sua participação na cultura local é fato reconhecido e
comprovado (...). Falar de Goiandira do Couto sem localizá-la no tempo e no espaço da
Cidade de Goiás não nos permite uma dimensão de sua atuação" (...), pois uma simples
menção a sua pessoa significa que: “Falar dela, é falar de Goiás” (FERREIRA, 2011, p.49). A
tessitura desse raciocínio leva-nos a crer que a autora tenha se apropriado das concepções
teóricas da nova história cultural para perceber a partir da coletividade, os vínculos culturais
individualizados da biografada na/com a sociedade vilaboense4.
Assim, compreende-se que a trajetória de Goiandira do Couto se estabeleceu
por estreitos laços entre o público e o privado, o eu e o outro, o passado e o presente e,
finalmente, ela mesma e a Cidade de Goiás. A matéria prima subjetiva que sustentou essas
sensibilidades coletivas foi produzida pela própria artista de acordo com suas escolhas
individuais, tendo em vista os papéis que ela ocupou e desempenhou na sociedade vilaboense5
- em seus vários papeis de moradora, professora, artista plástica e guardiã das tradições locais
- esses vínculos lhe garantiram uma vida de intensa atuação cultural, inseparável das
representações da cidade e do Estado consagrados mundialmente6 por sua obra pictórica.
4
Do ponto de vista teórico e metodológico, segundo Loriga (1998, p.225-227), no afã de romper com os
horizontes tradicionais da história a biografia ficou relegada por parte dos historiadores críticos do historicismo.
A ruptura dos paradigmas historiográficos dos anos de 1980 revisitou este gênero narrativo e reconsiderou o
papel da biografia na problematização dos novos domínios da história atenta aos movimentos sociais e culturais,
ao cotidiano, às subjetividades, às particularidades e à oralidade. Entre estas revisões, o indivíduo retomou lugar
de destaque na narrativa histórica diante da superação das formas tradicionalistas e ilustrativas de abordagem da
vida. No papel de protagonista histórico, o indivíduo é submetido aos rigores da reflexão correspondentes à
pesquisa histórica pautada no campo das representações.
5
Na tese “Em nome do patrimônio: representações e apropriações da cultura da cidade de Goiás” (2007), a
pesquisadora Isabela Tamaso abre um parêntese para informar sobre o significado de vilaboense que,
tradicionalmente, é uma categoria usada para denominar aquelas pessoas que compartilham o mesmo sistema
simbólico vigente na cidade de Goiás; principalmente, nascidos em Goiás, ou filhos de famílias tradicionais
locais. O termo vilaboenses tradicionais reúne grupos de diferentes graus de escolaridade, renda, faixa etária,
tipo de habitação e gênero. A distinção é baseada na origem, na antiguidade de residência das famílias na cidade,
nos dons e bens herdados, nos códigos culturais e no passado comum compartilhado (TAMASO, 2007, p.15).
6
“Por sua originalidade e pela técnica “sui generis”, suas telas têm sido levadas para quase todos os estados
brasileiros como também para o exterior, a diversos países: Estados Unidos, França, Espanha, Portugal,
Dinamarca, Alemanha, África do Sul, Itália, Suíça, Áustria, Austrália, Escócia, Canadá, Iugoslávia, Chile,
México, Japão, Iraque e Paraguai, além de exposições na ONU”. Folder do Centenário de Nascimento de
29
Goiandira Ayres do Couto (1915-2015). Cidade de Goiás, setembro de 2015. Organização Vilaboense de Artes e
Tradições, doravante OVAT- (1965-2015), 50 anos.
7
Termo que ao longo do tempo foi apropriado pelo senso comum para referir-se à identificação da residência da
artista como ponto turístico e a localização de logradouros adjacentes a ela.
30
transferência da capital do Estado da Cidade de Goiás para Goiânia, fato ocorrido nos anos de
1930.
Os indícios apresentados na crônica escrita por José Mendonça Teles (2005),
Na Casa de Goiandira, publicada na obra Semeadores do Futuro, ampliaram nosso interesse
em esmiuçar os trânsitos culturais recorrentes ocorridos neste espaço “privado”.
Provavelmente, influenciada por este passado, no auge dos anos 2000, a casa herdada de seus
pais foi consagrada oficialmente à convergência pública aos interessados em conhecer suas
memórias individuais e coletivas, indiscutivelmente, fincadas no paradoxo das idealizações da
cidade que lhe propiciaria colorir com o pó de pedra da Serra Dourada os subjetivos
sentimentos de pertença8 que ela nutriu com relação à Cidade de Goiás, lugar onde morou,
por reconhecida opção, por exatos noventa anos.
8
“É a parcela do autoconceito dum indivíduo que deriva do seu conhecimento sobre sua pertença a um grupo (ou
grupos) social, juntamente com o significado emocional e de valor associado àquela pertença” (TAJFEL, 1981,
p.291).
31
pública tanto na cidade natal quanto na vida da filha primogênita. Documentos escritos9
confirmam que ao longo de sua vida e carreira artística, Goiandira do Couto dedicou-se antes
de tudo a enaltecer e preservar a memória do pai, falecido em 1948.
Notamos, ainda, que a subjetiva missão preservacionista de suas referências
familiares e de suas bases culturais tornou-se, inclusive, uma característica sobressalente no
estilo pictórico de suas telas douradas. Ali onde se funde história e arte, que seu talento
revelou ao mundo. Nas afirmações de Corrêa (2003, p.250), a estética coutiana zelou pela
aparência bucólica e romântica da antiga capital do estado de Goiás e consolidou-se nesta
vertente entre os artistas plásticos vilaboenses da nova geração.
11
Jornal“O Popular Online”, Magazine. Atuação Cultural Intensa. Goiânia, 28, de agosto de 2011. Disponível
em: <http://www.gjccorp.com.br/cmlink/o-popular/editorias/magazine/sob-o-sol-da-barra-1.31847>. Acesso em:
14 ago. 2015.
33
12
“Nesse sentido, para Bourdieu, o conceito de trajetória implica objetivar as relações entre os agentes, sem
deixar de lado suas forças em campo. Dessa maneira, (...) a trajetória procuraria descrever posições
simultaneamente ocupadas em sucessivos campos de força: tanto individuais como “em relação” a demais
grupos sociais em concorrência” (SCHWARCZ, 2013, p.57).
13
“O povoamento de Mossâmedes originou-se da fundação de um aldeamento para residência dos inúmeros
índios das tribos “Naudós”, “Acroás” e “Caiapós”, em 1755. Sua denominação primitiva foi Aldeia de São José
de Mossâmedes ou simplesmente São José de Mossâmedes em homenagem ao Capitão-General D. José de
Almeida Sorveral de Carvalho, Governador da Capitania de Goiás, ao santo padroeiro e como recordação do
solar ou baronato de Mossâmedes em Portugal. No período de 1770 a 1774 o aldeamento passou por uma
completa reconstrução, devido sua quase extinção por inadaptação dos índios, edificando-se, com o auxílio do
braço indígena a igreja de São José de Mossâmedes, obra que vem resistindo à ação destruidora do tempo e
contribuiu para o desenvolvimento da catequese dos Caiapós sob a liderança de Damiana da Cunha, neta do
cacique daquela tribo, que se imortalizou na história do município sob o mito de grande catequista, heroína da fé
e mulher missionária. Em 1° de setembro de 1780, a aldeia passou à condição de freguesia, com o nome de São
José de Mossâmedes. Em 1781, (...), foram trazidos da Ilha do Bananal, 800 Javaés e Carajás, reativando-se o
povoamento. Em 31 de julho de 1845, pela Lei Provincial n° 6, criou-se o distrito de São José de Mossâmedes,
que em 19 de fevereiro de 1890, desmembrava-se de Itaberaí, anexando-se à Cidade de Goiás, sede da província.
Pelo Decreto-Lei n° 1233, de 31 de outubro de 1938, passou a denominar-se apenas Mossâmedes”. Disponível
em: <http://www.cidades.ibge.gov.br/painel/historico.php?lang=&codmun=521390&search=%7Cmossamedes>.
Acesso em: 03 out. 2015.
14
De acordo com Pinheiro, Vicência Pereira de Abreu ou Vicência Pereira das Virgens (1823-1923) era
descendente direta de Bartolomeu Bueno Silva, o filho, a quem a história oficial da Cidade de Goiás atribui-lhe
os títulos de: “desbravador”, “descobridor” e “fundador”, em 1727. (2002, p.48).
34
matrimônio nasceu Antônia Maria do Couto Guimarães, uma das herdeiras e administradora,
juntamente com o marido, Jacyntho Luiz Brandão, das posses do pai naquela região.
O velho Brandão morava na fazenda chamada, até hoje, Paraíso, nas fraldas
na Serra Dourada, perto de Mossâmedes, e, nas segundas-feiras, seguia com
os escravos (muitos aliás) para a extração de ouro e aos sábados voltavam
com os tachos de ouro em varas, carregados pelos escravos. Na Fazenda
Paraíso, aquele ouro em pó e em pepita era colocado em lençol, sobre um
couro, e exposto ao sol para secar (Texto de Manoel de Faria, (Nhôzinho),
publicado no jornal “Cinco de Março”, do dia 26 de maio de 1969) (BRITO,
1974, p.85).
15
Segundo Palacín, Garcia e Amado 1995 (p.38-39), os primeiros núcleos urbanos fundados em Goiás
sucederam-se na seguinte ordem: em primeiro lugar o arraial da Barra, atual distrito de Buenolândia -
jurisdicionado atualmente à Cidade de Goiás -, seguido do arraial de Sant`Anna, em 1727, que elevou-se à
categoria de vila (Vila Boa), em 1736, e, finalmente cidade, em 1818, passando a se chamar Goyaz. A descrição
dos arraiais goianos encontra-se em Notícia Geral da Capitania de 1783, documento escrito em função da
determinação régia de 1882, com o objetivo de destacar “os fatos mais notáveis que acontecem” durante o
período colonial em Goiás. Na descrição sobre o arraial da Barra, publicada pelos referidos autores na obra
“História de Goiás em Documento – I Colônia” lê-se: “O primeiro arraial, chamado Barra, por neste lugar
encontrar o rio dos Bugres no Vermelho, dista desta Vila (Boa) cinco léguas, tem capela de Nossa Senhora do
Rosário, filial da Vila. Foi onde o descobridor desta capitania estabeleceu suas lavras de onde tirou muito ouro,
e ainda hoje tem boas lavras. É arraial pequeno” (PALACÍN; GARCIA; AMADO, 1995, p.40).
16
A historiografia clássica goiana afirma que as últimas décadas do século XVIII foram marcadas pelo
esgotamento da atividade mineradora. Os estudos de Moraes (2012) exploraram o universo cultural da antiga
Vila Boa, sede da capitania de Goiás, mostrando-nos que o provável arrefecimento aurífero não abalou a
densidade demográfica da vila (capital) em virtude do desenvolvimento de práticas voltadas para o comércio, o
artesanato, a indústria e as finanças que, juntamente com as representações da religiosidade popular recriaram
sentidos de fixação ao território, para além das questões econômicas iniciais, motivadoras das primeiras
bandeiras paulistas, a partir da década de 1720. Nesta mesma direção, Chaul (1997, p.94), afirma que a
agropecuária – atividade que coexistiu com o boom aurífero – reassumiu o lugar de destaque desencadeando uma
lenta, mas progressiva recuperação das rendas e do comércio, afastando com isso, a hipótese de decadência,
atraso e isolamento aventada pela versão histórica tradicional.
35
17
A criação de um entreposto comercial nas proximidades da sede da Província de Goiás, Barreira do Bacalhau,
em 1856, fortaleceu as práticas agrícolas da região, inclusive, “mantendo intercâmbio com as Províncias do Pará,
Maranhão, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Mato Grosso” e desencadeou a criação do Mercado Municipal,
em 1857 (MORAES, 1995, p.146).
18
Pensando nos passos metodológicos para elaboração de uma teoria histórico-sociológica, Roger Chartier
(1990) aproximou-se das noções de habitus (conhecimento adquirido) e campo (espaço social de disputas),
formuladas por Pierre Bourdieu (2007), para reformular a forma de compreensão e análise dos objetos históricos
à luz da História Cultural. Desta forma, o conceito de representação seria capaz de apreender do campo histórico
as particularidades individuais estruturadas a partir das identidades coletivas a fim de extrair consciências, modos
de ver e atuações sociais dentro de um determinado campo social e, a partir delas ampliar a noção da
significação histórica por meio da triangulação conceitual: representação, prática e apropriação. Em síntese, “as
representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado
na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupos que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário
relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. (...) As lutas de representação têm
tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos que um grupo impõe, ou tenta
impor, a sua concepção do social (...)” (CHARTIER, 1990, p.17).
36
artes consolidando tradições. Sobre tradição, o afamado casamento de Joaquim Luiz do Couto
Brandão com Honória Pereira de Abreu, sua prima, tornou-se parte das memórias familiares e
locais por duas razões fundamentais. A primeira, por ter acontecido na antiga Casa da Real
Fazenda, popular Casa Velha da Ponte19, uma das primeiras construções da cidade e
localizada às margens do Rio Vermelho, importante meio de navegação e responsável pela
fixação das primeiras culturas e das posteriores, após a fundação oficial do Arraial de
Sant`Anna, no auge da mineração goiana.
Conforme Britto e Seda (2009), a propriedade foi adquirida, no século XIX20,
pelo tenente-coronel João José do Couto Guimarães avô do casal Joaquim e Honória. Não há
exatidão quanto à data da construção desta casa que tornou-se ícone da arquitetura colonial
vilaboense. Vale dizer, que o prospecto português de 1751, documento iconográfico de
autoria desconhecida, demarcou sua localização precisa durante o planejamento da paisagem
urbana vilaboense, após a elevação do Arraial de Sant`Anna à categoria de vila21, em 1736 e,
à sede da capitania de Goiás, em 1749, respectivamente. Ao observamos os aspectos formais
desta imagem histórica setecentista (figura 01), originalmente representada em tons de
vermelho e pastel, é possível visualizar nas demarcações dispostas, no próprio documento, a
localização da casa utilizada naquela época para fins administrativos, o que nos incita a pensar
sobre a Cidade de Goiás entre o passado e o presente a partir dos entrecruzamentos
19
A referida casa é margeada pelo Rio Vermelho à direita de seus alicerces. O nome popular provém da ponte
que liga a margem esquerda à direita do rio, local onde se localizava a Igreja da Lapa, destruída pela enchente de
1839, confirma Moraes (2012).
20
Museu das Bandeiras doravante MUBAN: Documentos Avulsos. Acervo da Real Fazenda da Província de
Goyaz, 1 de junho de 1825. “Goyaz, 1 de junho de 1825. Diz João José do Couto Guimarães, que ele arrematou
em Praça Pública desta junta da Fazenda uma moradia de casas sitas na Rua Direita desta cidade pela quantia de
um conto e duzentos e vinte oito mil e quatrocentos réis, para ser pago em compensação do que lhe está a dever a
Fazenda Pública de gratificações que venceu como Deputado do Governo Provisório desta Província, e porque
tem também que pagar a competência que importa em cento e vinte dois mil e oitocentos e quarenta réis, requer
a V.M.F. que digne mandar que igualmente se lhe abone por compensação nas referidas gratificações. João José
do Couto Guimaraes”. Cf. BRITTO; SEDA, (2009, p.21).
21
Arquivo Histórico Ultramarino - AHU: Doc. nº 25, Caixa 01, 11 de fevereiro de 1736. Provisão Régia de D.
João V, dispondo sobre a criação de uma Villa para sede da Capitania de Goyaz. Dom João por graça de Deos
Rey de Portugal e dos Algarves daquem e dalem mar em Africa Senhor de Guine. Faço Saber a Vós Conde de
Sarzedas Governador e Cappitam General da Cappitania de Sam Paulo, que Eu Sou Servido por Resolução de 7
do prezente mez e anno em Consulta do Meu Concelho Ultramarino passey as Minas de Goyaz e
nellasdetreminey o Citio mais apropriado para huma Villa[ilegível] mais Saudavel e com provimento de boa
agoa e tenha perto de algum Arrayal que se ache ja estabelecido para que os moradores delle possão com mais
comodidade mudar a Sua habitação para a Villa, e logo determine y nellas o lugar da Praça no meyo e a qual
se levante o Pelourinho, este assignale a Área para o Edificio da Igreja capaz de receber competente numero de
Freguezes ainda que a Povoação se aumente, e que façaes deleniar [delinear] por Linhas erectas a Área para
as Cazas com seus quintaes, e se designe o Lugar para se edificarem a Caza da Camara, e das Audiencias, e
Cadea, e mais Officinas publicas que todas devem ficar na área detreminada para as Cazas dos Moradores as
quaes pello exterior Sejão todas no mesmo perfil, ainda que no interior as fasa cada hum dos moradores a Sua
eleição, de sorte que em todo o tempos e concerve a mesma formatura da terra, e a mesma Largura das ruas, e
junto da Villa fique bastante terreno para logradouro publico (..)
37
Figura 01 - Prospecto de Vila Boa. Vista no sentido inverso, isto e, do norte para o sul, 1751.
(original Casa da Ínsua Portugal).
“Prospecto de Vila Boa – Vista no sentido inverso, isto é, do norte para o sul, em
1751.
1. Matriz. 2. Consistorio da Irmandade do Senhor dos Passos. 3. Consistorio da
Irmandade do Santíssimo Sacramento. 4. Capella de Nossa Senhora da Boa Morte. 5.
Cadêa. 6. Caza da Camara. 7. Passo do Senhor dos Passos. 8. Cazas da Real
Intendencia. 9. Cazas da rezidencia do General. 10. Capella de Nossa Senhora da
Lapa.”
22
Com o objetivo de situar o leitor das rupturas e permanências na imagem de autor desconhecido, embora na
obra de Amaury Menezes (1998), Da Caverna ao Museu: Dicionário das Artes Plásticas em Goiás, o autor
atribuiu autoria ao geógrafo genovês, Tossi Colombina (1701-), atualizamos a legenda original a fim de
demonstrar as alterações e as funções dadas a esses monumentos na Cidade de Goiás, atualmente. 1. Matriz. 2. O
prédio não existe. A irmandade tem sua sede na Igreja de São Francisco, fora desse eixo. 3. Não existe. 4. Museu
de Arte Sacra da Boa Morte. 5. e 6. Museu das Bandeiras. 7. Passo do Senhor dos Passos. 8. Ministério Público
Estadual. 9. Museu Casa de Cora Coralina. 10. Cruz do Anhanguera.
38
(2009, p.18), o referido casamento tornou-se um importante ponto de referência das tradições
orais propaladas na Cidade de Goiás, que foram, mais tarde, eternizadas na poesia mnemônica
de Cora Coralina em Estória do Aparelho Azul Pombinho23, poema publicado na primeira
obra da poetisa, em 1965. Notamos nesta composição a importância cultural da Casa Velha
da Ponte nas tradições locais24, a partir dela é possível reconstruir antigos significados deste
espaço para a memória urbana vilaboense atual, assunto que aprofundaremos nos capítulos
seguintes.
Mantendo-nos na direção da descendência dos Couto na Cidade de Goiás
focalizamos, a partir deste momento, em Vicência do Couto Brandão, irmã de Joaquim Luiz
23
“Minha bisavó – que Deus a tenha em bom lugar – inspirada no passado sempre tinha o que contar. Velhas
tradições. Casos de assombração./ Costumes antigos. Usanças de outros tempos. Cenas da escravidão.
Cronologia superada onde havia banguês. Mucamas e cadeirinhas. Rodas e teares. Ouro em profusão, posto a
secar em couro de boi. Crioulinho vigiando de vara na mão pra galinha não ciscar. Romanceiro. Estórias
avoengas... Por sinal que uma delas embalou minha infância./Era a estória de um aparelho de jantar que tinha
sido encomendado de Goiás através de uma rede de correspondentes como era norma, naquele tempo./
Encomenda levada numa carta em nobre estilo amistoso-comercial. Bem notada./ Fechada com obreia preta.
Carta que foi entregue de mão própria ao correspondente na Corte que tinha morada e loja de ferragem na Rua
do Sabão. O considerado lusitano – metódico e pontual –, o passou para Lisboa. Lisboa passou para Luanda.
Luanda no usual passou para Macau. Macau se entendeu com mercadores chineses./ E um fabricante-loiceiro,
artesão de Cantão, laborou o prodígio (no dizer de minha bisavó). Um aparelho de jantar – 92 peças. Enorme.
Pesado, lendário. Pintado, estoriado, versejado, de loiça azul-pombinho. Encomenda de um senhor cônego de
Goiás para o casamento de seu sobrinho e afilhado com uma filha de minha bisavó./ O cônego-tio e padrinho
pelo visto, relatado, fazia gosto naquele matrimônio. E o aparelho era para as bodas contratadas. Um carro de boi
– 15 juntas, 30 bois – bem fornido e rejuntado para viagem longa, partiu de Goiás, no século passado, do meado,
pouco mais. Levava seis escravos escolhidos e um feitor de confiança. Mantimentos para a viagem. E mais,
oitavas de ouro, disfarçadas no fundo de um berrante, para os imprevistos da delonga./ E o antigo carro por ano e
meio quase rodou, sulcou, cantou e levantou poeira rechinando por caminhos e atalhos, vilas e cidades, campos,
sarobais. Atravessou rios em balsas. Vadeou lameiros, tremedais. Varou Goiás – fim de mundo. Cortou o sertão
de Minas. O planalto de São Paulo./ Foi receber o aparelho e mais sedas e xailes-da-índia em Caçapava – ponta
dos trilhos da Dão Pedro Segundo – ali por volta de 1860 e tantos. Durou essa viagem, ir e voltar, dezesseis
meses e vinte e dois dias. – As bodas em suspenso./ Enquanto se esperava, escravas de dentro fiavam na roda e
urdiam no tear. Mucamas compenetradas, mestreadas por rica-dona, sentadas nas esteiras, nos estrados de
costura, desfiavam, bordavam, crivavam, repolegavam o bragal de minha avó. Sinhazinha de catorze anos –
fermosura. Prendada. Faceira. Muito certa na Doutrina. Entendida do governo de uma casa e analfabeta. Diziam
os antigos educadores: “– Mulher saber ler e escrever não é virtude”./ Afinal, muito esperado, chegou a Goiás,
sem novidades ou peça quebrada, o aparelho encomendado através de uma rede de correspondentes. Embarcado
num veleiro, no porto de Macau./ As bodas marcadas se fizeram com aparato. Fartas comezainas. Vinho do
Espinho – Portugal – da parte do correspondente. Aparelhos de loiça da China. Faqueiros e salvas de prata.
Compoteiras e copos de cristal. Na sobremesa minha bisavó exultava... Figurava uma pinha de iludição./ Toda
ela de cartuchos de papel verde calandrado, cheios de confeitos de ouro em filigrana. Mimo aos convidados
graduados: Governador da Província, Cônegos, Monsenhores, Padres-Mestres, Capitão-Mor. Brigadeiros.
Comendadores. Juízes e Provedores. Muita pompa e toda parentela. Por amor e grandeza desse fasto– casamento
da sinhazinha Honória com o sinhô-moço Joaquim Luís (...).” (CORA CORALINA, 1987, p.66-74).
24
“Os cronistas são unânimes em considerar que a primeira grande lavra de ouro foi encontrada em 1726, nos
cascalhos do Rio Vermelho, sob a Ponte do Meio, denominada, posteriormente, Ponte do Telles, da Lapa e,
atualmente, Cora Coralina. A história da cidade iniciou-se onde existe a secular casa: “descobriu muito ouro no
lugar da ponte, chamada a do Felix, e consta que, entre outras, só uma bateada de terra extraiu meia libra”. (...)
Supõem-se que, por volta de 1732, Thebas Ruiz teria construído a Casa da Ponte para arrecadação do Quinto
Real, imposto devido à Coroa Portuguesa. A narrativa de Cora Coralina revela ter sido este Thebas, para fugir de
uma devassa, quem enterrou grande quantidade de ouro no porão da casa e logo após, para não ir preso para
Portugal, suicidou-se sem revelar o esconderijo. Foi aí que começaram as especulações e “causos” que até hoje
embalam o imaginário vilaboense em torno de um possível tesouro escondido na casa velha”. (BRITTO e
SEDA, 2009, p.17-19).
39
do Couto Brandão, avó paterna de Goiandira Ayres do Couto, fundamento das origens e da
ligação da artista com a mencionada cidade e, provavelmente, com as tradições vilaboenses.
Consoante Albernaz (1992, p.51), Vicência do Couto Brandão foi uma mulher
de hábitos simples. Semialfabetizada e educada para exercer o papel de mãe, esposa e dona de
casa destacou-se na Cidade de Goiás por seus dotes culinários e pela atuação no catolicismo
popular tanto pela disciplinada missa diária e pelo terço rezado nas casas dos devotos quanto
pela farta produção de verônicas para a tradicional Festa do Divino Espírito Santo. Em 1868,
casou-se com capitão Francisco da Cunha Bastos com quem teve dois filhos: “João Edson do
Couto, médico, diplomado em Paris; e Luiz de Oliveira Couto, advogado e poeta” (BRITO,
1974, p.85). Após o casamento, passou a chamar-se Vicência do Couto Brandão Bastos,
popularmente conhecida como: Mãe Ita. Entre seus filhos, nosso foco recairá sobre Luiz do
Couto em virtude de sua visível representatividade na vida da filha, a artista, Goiandira do
Couto, conforme expusemos anteriormente. Por isso, ao perscrutar os caminhos da linhagem
paternal da artista e a trajetória de seu pai, em específico, objetiva-se esclarecer o que
suspeitamos, ou seja, que sobre eles sedimentaram-se as prováveis formas tradicionais da
cidade idealizada por Goiandira do Couto, reinventada a partir do pó de pedra que se encontra
na circunscrição da Serra Dourada. Quanto a estes entrecruzamentos de trajetórias e gerações,
Schwarcz (2013, p.56) reitera: “(...) sem descurar das especificidades do indivíduo analisado,
é preciso sempre situar o agente em seu grupo e no contexto social em que se encontra
inserido. (...) trajetória de relações - do indivíduo em relação ao grupo em seus diversos
campos sociais”.
Dentre as poucas produções científicas que trataram sobre a vida e a trajetória
artística de Goiandira do Couto na Cidade de Goiás destacamos a pesquisa de Ferreira (2011),
“Faz uma Casa com Areia”: a Cidade de Goiás e as areias coloridas na trajetória de
Goiandira Ayres do Couto que, de igual modo, lançou mão da sensibilidade ao perceber que
os rastros legados pela pintora à Cidade de Goiás começaram antes mesmo do seu
nascimento. Todavia, esmiuçar os recuos quanto às origens e às comprováveis ligações da
família com o passado remoto desta cidade dá-nos a impressão de que o sentido relacional da
vida de Luiz do Couto e Goiandira do Couto sobressai, com maior nitidez, na mescla das
experiências de ambos no que diz respeito à preservação da memória do passado oficial e,
consequentemente, das tradições culturais vilaboenses inspiradas naqueles tempos.
Ainda aconselhados por Schwarcz (2013, p.59), observamos que a ideia de
cruzar gerações amplia as particularidades da protagonista, pois respalda sua atuação social
40
E quando era obrigado a ausentar-se de seu Estado, como teve que fazer, em
busca do título de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, na Faculdade
Livre de Direito do Rio de Janeiro, sua alma sensível respondia com versos
aos nostálgicos apelos do coração saudoso. Foi em Goiás, que Luiz do Couto
encontrou o grande amor de sua vida. Uma pintora, que se tivesse tido
chance de expandir o seu talento, talvez tivesse feito registro nas agendas das
artes plásticas goiana. Seu nome, Maria Ayres Cavalcante, uma beleza
inquieta, e personalidade forte, traços principais das mulheres do Norte do
Estado (COUTO, 1985, p.154-155).
25
Referimo-nos ao ícone popularmente conhecido como “Cruz do Anhanguera”. O aprofundamento sobre esse
tema desdobrar-se-á, ainda, neste subitem.
42
origens elitistas são rastros intrincados à identidade da pintora e, por sua vez, começam a dar
sentido aos seus modos de ver, particularmente, representados na segunda fase pictórica de
sua carreira artística, conforme foi visto.
Acreditamos que a capacidade criativa de Goiandira do Couto esteve
intimamente vinculada às posições ocupadas por ela, na condição de receptora e produtora de
discursos culturais, sejam eles orais ou visuais. Sobre esse pilar, podemos nos ater à hipótese
de que seu precoce envolvimento com a vida pública, acrescido da afinidade com o pai e,
consequentemente, dos interesses e demandas culturais, com os quais ele se envolveu na
Cidade de Goiás, na primeira metade do século XX, tenha colocado Goiandira do Couto na
posição de guardiã das memórias e dos valores clássicos transferidos pela família e legados, a
seu modo, em forma de arte:
Filha de intelectuais, pai, Luiz Ramos de Oliveira Couto, foi juiz, poeta,
escritor, jornalista e um dos fundadores da Faculdade de Direito de Goiás, da
Academia Goiana de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás.
Sua mãe, Mariquinha, também tinha o dom das artes plásticas e da poesia,
além das prendas do lar. De tão educada e fina, chamava a atenção da
sociedade. Em casa, dançavam-se todas as quadrilhas da época, sempre em
francês (FRANCO, 2008, p.17).
26
Cf. (CAMARGO, 2014).
43
Para o Estado, o Lyceu propunha a formação de uma nova classe, que fosse
apta ao trabalho, mas não mais o trabalho rural e sim o liberal, de gabinete,
no comércio ou na política, ou seja, o intelectual que Gramsci denomina de
tradicional. Ser bacharel era mesmo uma condição diferenciada que
concederia privilégios aos alunos que eram aprovados no exame de admissão
e concluíam o curso secundário, afastando a população em geral de
privilégios. Primeiramente, servindo de desempate nos concursos públicos e
em seguida, desobrigando de concurso para a carreira do magistério, são
duas situações em que o recém-formado do Lyceu teria direitos adquiridos.
Seria, portanto, o Lyceu, nestes primeiros anos do século XX uma alavanca
ao sucesso social, pois transformava jovens em intelectuais, chamados de
doutores, com saberes humanistas, literários e filosóficos, jovens capazes de
trabalhar nos ramos públicos como a Secretaria da Fazenda ou o mais
complexo, como professores do ensino secundário. O desafio do Lyceu era o
de transformar jovens e adolescentes, em bacharéis com a função de
construir uma nova sociedade goiana com representantes no cenário político
nacional, pois o ensino superior seria o ápice alcançado por este grupo, que
só seria conseguido em Goiás se o aluno tivesse posses para ir ao Rio de
Janeiro e isto era facilitado se estudasse no Lyceu (BARROS, 2012, p.69).
44
Ao que parece, o papel desempenhado por Luiz do Couto fora decisivo para a
permanência do cruzeiro com o povo goiano. Além do mais, a conquista desse “achado”
45
legado de Bartolomeu Bueno Silva, já que fora encontrada em lugar tão distante de sua
origem?
Concordamos com Quadros (2015) quando diz que, a cruz ilustra o não
desapego do passado e problematiza a reinvenção de Bartolomeu Bueno da Silva na
roupagem de herói. Acrescenta ainda que os problemas de ordem estrutural como energia
elétrica, saneamento básico, rodovias de acesso, dentre outras obras ligadas ao poder político
estadual e federal entraram na ordem das desesperanças da população local, antes mesmo do
prenúncio da década de 1920. A “ordem” deveria ser mantida, e a estratégia de reverenciar os
ícones do passado resultaria no pretendido controle social. O enaltecimento das origens e dos
filhos da cidade, a exemplo de Luiz do Couto, que lutavam em prol do resgate da memória
dos tempos faustosos da riqueza colonial, ofuscaria a imagem de crise que a república
brasileira passava naquele período (HERMAN, 1996, p.81-105).
As comemorações alusivas ao centenário da elevação de Vila Boa à categoria
de cidade, em 1918, afirma Pinheiro (2010) contribuíram, significativamente, para a
articulação da descoberta em favor dos interesses políticos nacionais e regionais em jogo. Nas
falácias históricas absorvidas, inclusive, pelo discurso jornalístico, um importante meio de
manipulação da opinião pública naquela época, foi o principal alvo. A esse aspecto, o texto da
edição comemorativa do jornal “Correio Official”, de setembro de 1918, traz a seguinte
narrativa quanto à fundação da Cidade de Goiás:
27
MUBAN: Correio Oficial, Capital de Goyaz, 17 de set. 1918. n° 187, p.01-02.
47
28
MUBAN: Correio Oficial, Capital de Goyaz, 17 de set. 1918. n° 187, p.04.
48
29
MUBAN: Correio Oficial, Capital de Goyaz, 17 de set. 1918. n° 187, p.03.
49
Figura 02 - Vista da Ponte da Casa de Cora Coralina para a Cruz do Anhanguera e Rua
Moretti Foggia s/d.
30
Trazer à baila desse estudo a tela de Pedro Américo, Independência ou Morte (1888), reverbera apenas como
menção às circunstâncias engendradas no advento da Primeira República, as quais se apoiaram nesse fato
histórico, objetivando imprimir uma identidade nacional que legitimasse a nova ordem política do Brasil
republicano. Em comparação com esta tendência, o totem ao “fundador” goiano, Bartolomeu Bueno Silva, em
1918, a nosso ver, seguiu os mesmos princípios. Portanto, dispensamos o uso desta imagem, embora apoiamo-
nos na análise formal de Schilichta (2009), a qual complementa a ideia apresentada por Sandes (2000), sobre o
lugar coadjuvante protagonizado por aqueles que representavam a nação. Pela análise da autora situamo-nos na
aludida pintura histórica: “o quadro Independência ou Morte, concebido nos moldes do gênero histórico, adquire
um sentido preciso: inventar uma independência, transformando-se, se não na única, talvez na principal certidão
visual do nascimento do Brasil Nação e, isto leva-nos, sobretudo, a indagar sobre a ideia-imagem da tela de
Pedro Américo. (...) o artista chama a atenção para a figura de D. Pedro que, no alto de uma colina verde, em
traje de gala e montado em um fogoso corcel, empunha uma espada e, sob o olhar dos "dragões" de sua Guarda
50
ele, foram considerados como incapazes de acompanhar as mentalidades do gesto pictórico ali
encenado. O autor salienta, ainda, que essa visão diluiu-se nas práxis dos governos da
República Velha. Em comparação, o cenário montado no espaço urbano vilaboense,
explicitado na figura 02, evidencia uma versão romanceada para o mito de origem. A
construção de um pedestal para receber a “Cruz do Anhanguera”, em composição aos
símbolos da arquitetura colonial, representa uma lápide sobre a percepção das vozes híbridas
que retinem no vazio da memória e das lembranças de uma paisagem colonial muito diferente
do real vivido na Cidade de Goiás, nos dois séculos anteriores ao XX.
A investigação dos testemunhos da imagem aponta as aparições do tempo que
capacitaram a discussão sobre as invenções e intervenções humanas no passado. Temos, por
esse repertório documental, um eixo de entendimento com a história das visualidades urbanas
da Cidade de Goiás que se abriu à apreciação das metamorfoses culturais e alicerçaram os
acréscimos ao culto tradicional, mesmo quando as sobrevivências da imagem nos permitem
visualizar que a sociedade vilaboense, até 1918, interagiu de outra maneira com as ausências
calcificadas do passado.
Real, proclama a Independência. À esquerda, em um canto, na base do quadro, a figura solitária de um camponês
– o famoso "caipira" – que, em uma atitude de espanto e incompreensão, a tudo assiste. O caipira que representa
todos os brasileiros pertence à massa que se movimenta em torno do herói, mas, não pertence nem ao seu séquito
nem à sua guarda. O artista apresenta o caipira como uma figura tosca, rota, pés descalços, cujo corpo robusto,
com partes descobertas, contrastante com a elegância do Imperador em seu uniforme. O artista não lhe reconhece
nenhuma dignidade. E, como mero espectador, é forçado a virar o rosto para ver o nascimento do Brasil”
(SCHILICHTA, 2009, p.03-07).
51
Vicência do Couto Brandão Bastos (Mãe Ita), mãe de Luiz do Couto, deu
continuidade à tradição de repassar oralmente a história emaranhada a um conjunto de estórias
e “causos” constitutivos do imaginário cultural da Cidade de Goiás. Este legado transferiu-se
para a nova geração da família (os netos) e, no caso da personagem em foco, indícios
demonstram que essa experiência se impregnou ao jogo complexo de luz e sombras acerca do
passado vilaboense aludido em suas representações artísticas.
Nesse terreno acidentado, percebemos ainda, que a retransmissão dessas lendas
assumiu um importante papel na preservação da memória oficial da Cidade de Goiás, variável
que, inclusive, pode ser entendida como parte da envergadura adquirida por Luiz do Couto, ao
31
Pelo que parece, o único registro visual que atesta a existência da extinta Igreja da Lapa é o Prospecto de 1751,
sendo referenciada como o ponto 10 das respectivas coordenadas descritas no documento, o qual foi exposto e
transcrito conforme a figura 01. Sugerimos ao leitor que, para melhor localização, retorne a imagem da figura 01.
32
“A capela de Nossa Senhora da Lapa, solidamente edificada defronte a casa do finado Cel. Confúcio (Hotel
Municipal) sendo sua torre parede de pedra e cal, não pôde conservar-se e aluídos seus alicerces, por estarem
juntos ao cais do rio, caiu toda, cavando o rio o próprio terreno em que ela tinha existido” Jornal “O Goyaz”, “A
Grande Enchente” ([extraído do Jornal “Gazeta de Goyaz”]). Goiás, janeiro de 2002 (p.05). Fonte: AFFSD. Cf:
(MORAES, 2012, p.107).
52
proferir discursos verdadeiros quando o tema se tratava do passado de sua terra natal. É
evidente que a condição econômica, o letramento, a carreira como homem de leis, dentre
outras razões foram significativos nesse contexto e processo de capitanear a patente da “Cruz
do Anhanguera”. Entretanto, não se pode ignorar que as práticas recorrentes no seio familiar
legitimaram a ordem do discurso33 proferido por Luiz do Couto que, à época, encontrou lugar
nas ideologias circunstanciais para oficializar o reducionismo cultural emaranhado no
imaginário concernente à cruz.
De acordo com Rogério Arédio Ferreira (2007, p.103), tais intercorrências
contribuíram para que o prestígio de Luiz do Couto falasse mais alto, inclusive nas instâncias
legais, que não se opuseram aos trâmites da transferência da cruz de Catalão para a Cidade de
Goiás, ratificando a autoridade contida em seu discurso.
Temos, portanto, os sedimentos das primeiras ações voltadas à “invenção das
tradições”34, uma vez que se apropriaram do visível e do invisível das dimensões culturais
vilaboenses. Mesmo a população tendo coexistido com outras presenças no lugar onde está o
cruzeiro, os questionamentos quanto ao significado de suas lembranças não foram
encontrados em nenhum dos documentos que manipulamos. Esse vínculo umbilical obsessivo
com o passado dourado sobrepujou a razão, mas não os testemunhos da imagem (figuras 03 e
04) que se incumbiu de nos reapresentar uma das formas sobreviventes arrancadas,
literalmente, da memória coletiva.
33
Conceito foucaltiano que atribui à produção, veiculação e “aceitação” impostos pela sociedade quanto à
recepção dos discursos nas interfaces com o jogo das diferenças. Para Foucault, as “impossibilidades” subjetivas
impõem exigências para se fazer parte da ordem do discurso. Sendo assim, o uso do conceito reatualiza o leitor
para o conjunto valorativo em voga na República Velha e, nesse caso, Luiz do Couto parece ter cumprido as
“qualificações que devem possuir os indivíduos que falam” em nome do poder. (1996, p.37-39).
34
Conceito apropriado dos teóricos Eric Hobsbawm e Terence Ranger (1997), da obra “A Invenção das
Tradições”. No capítulo subsequente, Pilares da Tradição: Goiandira do Couto e as instituições, esta obra será
ponto fulcral das discussões que visam retraçar o processo de vinculação da artista às instituições locais
destinadas a revalorizar a cultura sob o viés das tradições coloniais.
53
35
Descrição do documento pelo “Museu Casa de Cora Coralina”: Foto antiga de autor desconhecido, com
dedicatória da Sra. Jacintha Luisa do Couto Brandão, mãe de Cora Coralina. Ao fundo, a Igreja do Rosário, em
estilo original. Dedicatória no verso da foto: “Aninica... Não mais habites nessa casa, mas continuas a habitar
n`um sacrário que nella existe e que é o coração de tua mai. Lembrança afetuosa do dia 20 de agosto de 1912.
De tua Mai”.
54
36
A problemática das políticas sanitárias na Cidade de Goiás foi exaustivamente discutida pelos pesquisadores,
Sônia Maria Magalhães e Danilo Rabelo. Ambos os autores situam seus estudos no século XIX. Portanto, as
questões relacionadas a saúde e saneamento público deslocaram-se para o século XX por fatores que, segundo
esses estudos, entrecruzaram-se às questões políticas, sociais e culturais herdadas, em certa medida, do século
XVIII. Mais sobre o tema: MAGALHÃES (2004); e RABELO (2010)
55
(2007), suas atribuições oficiais concorriam paralelamente com o gosto pessoal pelo
jornalismo. Dedicou parte de seu tempo às revistas e jornais da época, dentre elas, as cariocas
Fon Fon e Ilustração Brasileira. Esse dado reitera a fragilidade do discurso da historiográfica
clássica a respeito do isolamento do Estado de Goiás nas primeiras décadas do século XX.
Ainda na biografia escrita por Ferreira (2007), soubemos que, em 1925, Luiz
do Couto foi convidado a colaborar com o jornalismo de uma das principais referências da
comunicação de massa no Brasil naquela época: Assis Chateaubriand37. A transcrição e
imagem do telegrama enviado a Luiz do Couto, de punho próprio, diz: “Peço prezado amigo
reencetar sua colaboração em “O Jornal”, enviar também notícias, informações telegráficas.
Abraços, (sic)” (p.119).
As sensibilidades são nítidas. A relação entre ambos, Luiz do Couto e Assis
Chateaubriand, dá-nos a impressão de ter se consolidado há muito tempo e,
consequentemente, longe de ser uma relação baseada na superficialidade. Esse aspecto,
indubitavelmente, confere-nos dizer, que o prestígio e a eloquência de Luiz do Couto não se
limitaram aos horizontes das terras vilaboenses. A visão de Chateaubriand, ao implantar uma
sucursal de “O Jornal” na capital do Estado, demonstra-nos que o interesse pela notícia
incluía publicizar, no âmbito nacional, os acontecimentos e desdobramentos da crise política
em Goiás, de então. Tempos de mudança arejavam Goiás.
Os ideais estadonovistas retumbavam no seio da capital goiana. O contato de
Assis Chateaubriand com os goianos parece não ter se restringido à pessoa de Luiz do Couto.
Um ano após o convite (apesar de que não localizamos qualquer texto de Luiz do Couto
enviado nesse ínterim para “O Jornal”), na correspondência emitida no ano de 1926,
representada, sucessivamente, na figura 05, verifica-se que o contato objetivava outro motivo,
ou seja, evitar a divulgação da seguinte notícia:
37
Mais sobre o tema: MORAIS, Fernando. Chatô, o rei do Brasil. 4 ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 2011.
56
TRANSCRIÇÃO
08/11/26: Doutor Chateaubriand, “O Jornal” Rio. Foi expedido hoje e conforme fui informado violento
telegrama “O Jornal”. Peço não publicar conceitos desabonadores meo velho querido amigo, dr. Caiado, nem
descabidas offensas Partido Democrata. Mil vezes agradecido seo favor. Abraços. Luiz do Couto.
Fonte: Acervo de Milena Bastos Tavares (cedido em cópia digital).
Não se sabe o teor das “descabidas ofensas”; porém, nos anais desse periódico,
nada foi publicado sobre os Caiado, em “O Jornal”, naquela data. Outro aspecto que nos
chamou a atenção, abalizados pela data do documento, refere-se à rota da Coluna Prestes que
passou pelo Estado de Goiás tanto na ida quanto na vinda de suas incursões pelo nordeste
brasileiro. O alvoroço causado pela passagem dos manifestantes é relatado por Diniz (2013)
que nos traz indicativos interessantes para pensarmos nas articulações do Partido Democrata
no Estado de Goiás. Na narrativa da autora encontramos pistas para dizer que, possivelmente,
as causas para o envio do referido telegrama baseado em “conceitos desabonadores” à pessoa
do “dr. Brasil Caiado”- que era na época governador do Estado (fazendeiro, médico e irmão
do Senador Antônio Ramos Caiado) -, pode ter implicação com a causa dos colunistas, que
passaram pela região sul do Estado, local onde a ala opositora ao governo Caiado se
localizava, quase, em sua maioria.
57
38
Biblioteca Nacional Digital do Brasil, Hemeroteca Digital: Jornal “O Jornal”, 22 de janeiro de 1927, p.04.
Por: Luiz do Couto. Cf. Disponível em: <http://memoria.bn.br/Docreader/docreader.aspx?bib=110523_02&pasta
=ano%20192&pesq=Hist%C3%B3ria%20Politica%20de%20Goias>. Acesso em: 01 jul. 2015.
39
Idem
58
Luiz do Couto pela voz das oligarquias é evidente. Todavia, a inquietude se amplia quando a
linguagem do redator insiste pela utilização das referências culturais indígenas para construir
metáforas desqualificadoras àqueles que representavam o contraponto à trincada estrutura
oligárquica caiadista, que usou o poder para prestar um desserviço histórico à democracia em
Goiás.
Relembrando o episódio da “Cruz do Anhanguera", quando Luiz do Couto
capitaneou forças e influências para erigir a memória do dominador, indiscutivelmente, o
indígena foi relegado à condição de inferioridade na memória social vilaboense. Os discursos
oficiais propalavam a “domesticação” do índio como necessária diante da efetivação do
“projeto civilizador” de Goiás, no século XVIII, encabeçado por Bartolomeu Bueno pai e
filho: “Anhanguera fez arder a porção de álcool, cujas chammas aterrorisaram o goyá, filho da
terra, induzindo-o a revelar as minas de onde extrahíra o oiro que adornava as índias da
nação”.40 Diante deste feito mítico, infelizmente, endossado pela impressa, a depreciação do
indígena se consolidou no imaginário popular vilaboense, o desafio “heroico” vencido pelo
bandeirante durante o desbravamento dos sertões goianos revigora a superioridade racial
preconizada pelos colonizadores.
Quando se discutiu a visão acéfala da oposição, em “O Jornal”, Luiz do Couto
utilizou-se de um tom imperativo e carregado de juízos de valor para enaltecer as práticas
políticas dos Caiado. Tanto no governo estadual quanto no senado federal, o jornalista, ao
interagir com o entrevistado, buscou dissipar as incertezas da conjuntura nacional com frases
encorajadoras, afirmando que os rumores da revolução não passavam de um movimento
“inócuo e platônico”.
Na segunda parte, “A COHESÃO DO PARTIDO DEMOCRÁTICO”, o autor
informa que foi recebido na casa de Ramos Caiado, para a entrevista, com um cavalheirismo e
uma fidalguia ímpares. Logo no início da conversa, Luiz do Couto questiona o papel da
oposição, em reposta ouviu-se que desconhecia a existência dessa oposição sem cabeça em
Goiás, e que o Partido Democrata estava há dezoito anos dirigindo o Estado de Goiás sem que
houvesse qualquer “melindre”, afirmou o entrevistado. No tópico seguinte, nomeado “A
INEXISTÊNCIA DA MINORIA”, o então senador atribuiu que a “liberdade” dos
oposicionistas consistia na forma como o Partido Democrata reagia ao “direito” de
manifestação desses “menores”. Ficamos confusos diante de tais palavras, pois na declaração
anterior, o senador da república afirmara desconhecê-los.
40
MUBAN - Correio Official, Capital de Goyaz, 17 de set.1918. p.01.
59
41
Biblioteca Nacional Digital do Brasil, Hemeroteca Digital: Jornal “O Jornal”, 22 de janeiro de 1927, p.04. Por:
Luiz do Couto. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=110523_02&pasta
=ano%20192&pesq=Hist%C3%B3ria%20Politica%20de%20Goias>. Acesso em: 01 jul. 2015.
60
42
Idem.
61
dilema nostálgico regado a crises, disputas e retaliações. Esse fato, de alguma forma lhe deu
maior visibilidade, pois, diferente do que aconteceu na década de 1920, Goiandira do Couto
se tornava protagonista de um processo longevo de ressignificação cultural da antiga capital
baseado em um ajuste fino nos modos de representar-se, enquanto urbe, no cenário estadual
moderno.
Sobre esse terreno movediço, é possível, no entanto, reconstruir os pilares
sobre os quais Goiandira conquistou autonomia de suas ações individuais e notoriedade
pública. Assim visto, acreditamos que o berço elitista da personagem regado à cultura e às
sociabilidades vivenciadas através da experiência paterna, apresenta-se como um horizonte
interessante para explorarmos os progressivos passos dados pela protagonista dessa pesquisa
dentro do seu mundo social: a Cidade de Goiás. Incluímos, ainda, o aspecto proeminente
ligado à sua identidade feminina que, a nosso ver, era ao mesmo tempo, complexa e singular
se comparado ao perfil da maioria das mulheres vilaboenses à época.
44
“A distinção entre o indivíduo concreto e o indivíduo constituído, o agente eficiente é duplicada, pela distinção
entre o agente eficiente num campo, e a personalidade como individualidade biológica socialmente instituída
pela nominação e dotada de propriedades e poderes que lhe asseguram (em certos casos) uma superfície social,
isto é, a capacidade de existir como agente em diferentes campos”. (BOURDIEU, 1996, p.190).
63
identidade urbana da Cidade de Goiás. Por esta razão, apresentar suas origens45 e, por meio
delas, os elos com as tradições locais podem reforçar a hipótese de que a sua trajetória
artístico-cultural pautou-se pela preservação do espaço público a partir das representações
instituídas no privado.
A seleção de algumas imagens fotográficas da artista, previstas para este
subitem, em diálogo com os testemunhos orais e escritos, inspira às leituras interpretativas do
espaço de experiência da pintora, impactado por rupturas importantes que marcaram os
recíprocos regimes de historicidade, mormente, a partir dos anos de 1930. De acordo com
Kossoy (2002, p.36), “toda e qualquer imagem fotográfica contém em si, oculta e
internamente, uma história: é a sua realidade interior, abrangente e complexa, invisível
fotograficamente e inacessível fisicamente” e, possivelmente, permeável à observação
histórico-analítica quando examinadas para além da superfície.
Nesta mesma direção, metodologicamente falando, Capel (2016) afirma que
uma leitura mais complexa do documento visual pressupõe explorar os aspectos estéticos
correlatos ao conjunto de subjetividades não aparentes ao primeiro olhar. Ainda, segundo a
historiadora cultural, as questões problema, ou seja, àquelas tencionadas pela relação do
discurso artístico com o científico, só se pronunciam quando estas fontes são submetidas ao
rigor e à atenção metodológica inerente à narrativa histórico-visual. Fica claro que as imagens
não podem ser utilizadas como mera ilustração, recorremos assim à fonte visual com o intuito
de capturar expressões representativas da trajetória pública da personagem central, Goiandira
do Couto, a fim de compreendermos como os elementos figurativos são capazes de informar
as relações que ela estabeleceu nos diferentes estágios da sua atuação cultural e artística, na
antiga capital do estado de Goiás.
Sua chegada, em definitivo, à Cidade de Goiás, em 1921, com apenas seis anos
de idade, demonstrou-nos que a efervescência político-cultural desta década transitória fora
45
“A faculdade de Direito de Goiás, por intermédio do seu diretor, Dr. José Honório da Silva e Souza, acaba de
prestar excepcional e significativa homenagem a Dr. Luiz Ramos de Oliveira Couto, antigo magistrado e ex-
procurador Geral do Estado, fundador daquela casa de Ensino Superior, conhecido poeta e jornalista goiano (...).
Nesse sentido, ao homenageado, foi passado o seguinte telegrama: “Dr. Luiz do Couto, Goiás. Convido o ilustre
goiano para falar em nome da congregação, na sessão solene de 11 de maio comemorando o décimo
aniversário de reconhecimento da Faculdade. Aguardo urgente resposta. Saudações. José Honorato, Diretor”.
Em resposta, o Dr. Luiz do Couto dirigiu ao Dr. José Honorato da Silva e Souza o telegrama abaixo:
Doutor José Honorato, Diretor da Faculdade de Direito, Goiânia-Go. Profundamente comovido pelo seu
telegrama convidando para orador em nome da Congregação da Faculdade, 11 de maio, estou aniquilado ao
peso de tanta generosidade. Não sei como agradecer aos colegas do corpo docente tão cativante lembrança, até
hoje a primeira, nobre e única homenagem ao fundador do curso jurídico em nosso Estado em 1916. (...) pelo
agradecer à Congregação tão comovente convite feito ao velho descendente direto do Anhanguera para orador
em nome da Congregação. Devido minha idade e ao meu estado de saúde, com grande amargura, sou forçado a
declinar tão honroso convite (...). a) Luiz do Couto (grifo nosso). Jornal “Cidade de Goiaz”: Goiás, 28 de abril
de 1946, N°. 300, Ano VIII. Cf. AFFSD.
64
46
Cf. Jornal “Opção”, 10 a 16 de janeiro de 1999. Por: Antônio Lisboa de Morais. Disponível em:
<http://diariovilaboense4.blogspot.com.br/2009/02/goiandira-do-couto.html>. Acesso em: 16 fev. 2015.
66
(...) a família teve muita influência na vida de Goiandira, algo que ela gosta
de enfatizar. Experimentou com a família o gosto pela dança, pelas festas,
pelos amigos, pela poesia e pelas prendas domésticas (...). Goiandira foi um
pouco de tudo. Declamadora, poetisa (nunca publicou sequer um de seus
poemas, mas rasgou muitos deles), escritora, colaboradora esparsa em vários
jornais, professora e, finalmente, artista plástica. (...) Goiandira ainda era
uma mocinha e garante não se lembrar de quando começou a pintar. O
primeiro incentivo veio aos 16 anos de idade, quando foi premiada por seus
desenhos, pela Escola Complementar, que funcionava no Palácio da
Instrução Pública. A partir daí, não parou de pintar e nem de expor
(FRANCO, 2008, p.17-18).
47
“Eu me destacava em tudo quanto há. Eu me destacava na escola normal. Eu fazia o bordado melhor. (...) Fiz
partem, tricô, frigoritenho, virtinho, renda de bico, na máquina. Faço todo tipo de bordado. Além de costurar,
fazia doce, bolo, biscoito, fazia tudo. (...). Toda moça fazia café, bolo, biscoito. Todas bordavam” (LUZ, 2007,
p.261-264).
48
“Eu era declamadora oficial daqui. Eu declamava em toda festa eu declamava. Sempre tinha uma festinha na
casa de uma amiga. Uma tocava violão, a outra, violino e eu declamava. Chegava lá, nós dançávamos,
brincávamos, batíamos palma. Eram assim as festas. Saraus! Isso que eram os saraus” (LUZ, 2007, p.261-264).
Disponível em: <http://www.nee.ueg.br/seer/index.php/temporisacao/issue/view/2>. Acesso em: 10 jun. 2015.
67
ampla socialização” (2011, p.45). É importante dizer que, sendo Goiandira do Couto a
segunda de um total de doze filhos, suas vivências e memórias do cotidiano familiar
historicizaram-se as subjetivas experiências repassadas através da oralidade, aos irmãos mais
jovens49, parentes, amigos e pesquisadores interessados em conhecer mais de perto a cultura e
as tradições vilaboenses. Tudo nos leva a crer que o modelo de educação informal era baseado
na transmissão e retransmissão de saberes e fazeres culturais integrados às subjetivas
representações de alteridade e poder dos costumes privados expostos, voluntariamente, à
convivência social.
49
De acordo com Ferreira (2011, p.45), os filhos do casal, Luiz do Couto e Maria Ayres do Couto, nasceram em
diferentes períodos. A diferença de idade entre os primogênitos Goiás do Couto e Goiandira do Couto, nascidos
no início do século XX, para as irmãs mais jovens, Marluy do Couto e Isabel do Couto, nascidas em 1935 e
1938, respectivamente, era de quase três décadas.
50
“Sistema aberto de disposições, ações e percepções que os indivíduos adquirem com o tempo em suas
experiências sociais (tanto na dimensão material, corpórea, quanto simbólica, cultural, entre outras).
O habitus vai, no entanto, além do indivíduo, diz respeito às estruturas relacionais nas quais está inserido,
possibilitando a compreensão tanto de sua posição num campo quanto seu conjunto de capitais. Bourdieu
pretende, assim, superar a antinomia entre objetivismo (no caso, preponderância das estruturas sociais sobre as
ações do sujeito) e subjetivismo (primazia da ação do sujeito em relação às determinações sociais). Segundo
Maria Drosila Vasconcelos, trata-se de “uma matriz, determinada pela posição social do indivíduo que lhe
permite pensar, ver e agir nas mais variadas situações. O habitus traduz, dessa forma, estilos de vida,
68
supostamente pautado nas oficialidades. Mais uma vez, o discurso proferido na AFLAG
forneceu-nos subsídios para tecermos estas análises. Portanto, convém evidenciá-lo:
julgamentos políticos, morais e estéticos. Ele é, também, um meio de ação que permite criar ou desenvolver
estratégias individuais ou coletivas. ” Disponível em. <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/pequeno-
glossario-da-teoria-de-bourdieu>. Acesso em: 12 jun. 2015.
69
a esta questão cujas práticas extrapolaram os limites do privado. Segundo Kofes51 (2001,
p.80), no ano de 1928, pela primeira vez, o tema da participação política das mulheres, no que
tange o direito ao voto, foi apreciado pela Junta de Recursos Eleitorais de Goiás52. Após
extenuante discussão, a maioria dos membros, prováveis constituintes da ala radical do
Partido Democrata, consideraram cidadãos somente aqueles do sexo masculino.
Ainda em conformidade com a autora, os atores desta decisão alegaram que
“(...) só com a concessão expressa deste direito às mulheres é que estas poderiam reivindicar.
Um voto foi vencido nesta decisão da Junta, o do Procurador Geral do Estado, Dr. Luiz do
Couto” (p.80). Em virtude da atribuição do cargo, Luiz do Couto emitiu um parecer sobre o
alistamento eleitoral das mulheres goianas. E, é claro que o teor do documento não alterava a
decisão da referida Junta. Todavia, sua argumentação embasou-se por ponderações críticas
quanto à expectativa tradicional da mulher na sociedade, dando-nos a entender que a
deliberação coletiva soava-lhe como um retrocesso.
Vale a pena lembrar que esse debate foi a principal bandeira da Sociedade
Brasileira para o Progresso Feminino, fundada em 1922, por Bertha Lutz (SOUZA, 2005,
p.315-325), com quem Luiz do Couto estabeleceu um provável contato direto53. Supomos que
aquele convite oficial de Assis Chateaubriand, em 1925, para atuar como colaborador em “O
Jornal” pode ser uma justificativa razoável para explicar o seu envolvimento profissional e
ideológico com a militante. Em 17 de março de 1929, Berta Lutz, Orminda Bastos e Carmem
Portinho publicaram na coluna, Feminismo, do jornal “O Paiz”, o referido parecer oficial em
sua íntegra. Eis que, por estas razões, alguns trechos merecem ser destacados:
51
A pesquisa biográfica de Suely Kofes (2001), Uma trajetória, em narrativas, investigou as experiências
individuais, por uma abordagem de gênero, de Consuelo Caiado (1889-1981), filha do ex-governador, Totó
Caiado, que destacou-se por participação e contribuição na vida cultural da Cidade de Goiás nas primeiras
décadas do período republicano. Segundo a autora, ela foi responsável pela reabertura do Gabinete Literário,
“lugar de sociabilidades e também de circulação de tensões sociais e políticas da elite local” (p.59). Estas
referidas tensões acirraram-se na transição política dos anos de 1930, fato que, segundo a autora, abalou a
imagem pública de Consuelo Caiado. Mesmo não havendo rastros de seu envolvimento com as questões
político-partidárias da família, ela optou, a partir de então, por uma vida à sombra da renúncia e reclusão social.
O esquecimento e, consequentemente, o seu sucessivo apagamento da memória coletiva vilaboense, subsidiaram
as problematizações do referido estudo.
52
Conquanto, é importante dizer que o debate sobre o sufrágio feminino circulava em nível nacional muito antes
deste acontecimento em Goiás, em 1928. Segundo Kofes (2001), “isto foi motivado, em 1926, pela inclusão da
senhorita Benedita Chavez Roriz, no alistamento do município de Santa Luzia, em Goiás” (p.80).
53
“Luiz do Couto sempre valorizou a mulher. Quando no fim da década de 20, surgiu o primeiro movimento
feminista, cuja bandeira era o direito da participação da mulher nas decisões nacionais, através do voto, Luiz do
Couto, deu-lhe irrestrito apoio, na pessoa de Bertha Lutz, líder do movimento, “inclusive, prestando-lhe
assistência jurídica” (grifo nosso). (COUTO,1985).
70
No momento actual que o paiz atravessa, sem uma certa cultura cívica
necessária à vida e desenvolvimento de um povo independente dentro de um
regime democrático, penso, mesmo em benefício das mulheres, não é
chegada a hora, ainda, do seu exercício ao voto (...). Se a Constituição tão
claramente não permitisse à mulher o exercício desse direito, por certo,
como juiz seria eu o primeiro a negar-lhe (...). Não actuam em meu espírito
as velhas ponderações e argumentos de cabellos brancos, de que a missão da
mulher se limita unicamente ao lar, no aconchego caricioso do marido e da
dourada alegria dos filhos, tendo por máxima inspiração a recta que lhe
traçaram os bárbaros de todos os tempos, entre o cesto de costura e a
cozinha; que fora do lar a mulher seja o reflexo do marido; à sua sombra
pensando o que ella pensa, medrosa (...). Ora, tudo isso já vai tão longe
como a sombra do último pharaó e o rabicho do primeiro mandarim... (...)
(JORNAL “O PAIZ”, 1929, p.12).
Por esse trecho é possível confirmar que a concepção libertária defendida por
Luiz do Couto, em relação às mulheres, extrapolava as convenções impostas, culturalmente, a
elas. Neste caso, o direito ao voto tornar-se-ia uma representação do avanço nas relações de
gênero que, naquela época, eram reguladas por padrões sociais, a seu ver, obsoletos.
Ora, se compararmos estes posicionamentos com aqueles discutidos no tópico
anterior, Origens da Tradição, constatamos a existência de uma personalidade ambivalente.
Sobre isso, lembramo-nos de Bourdieu (1996, p.185), que ao criticar as narrativas lineares dos
romances modernos, afirmou que o estudo “da vida” não é um todo coerente. Sendo assim,
cabe àquele que pretende estabelecê-la, preocupar-se, sobretudo, em dar-lhe sentido. Por estas
palavras, aplicadas no caso em estudo, é possível perceber que as referidas ambiguidades
foram fundamentais para as projeções de habitus protagonizadas por Goiandira do Couto, que
consolidou-se na vida pública54 assentada social e culturalmente nas suas referências privadas.
Destarte, em 2006, ao ser indagada sobre a repressão às mulheres de sua época, a resposta
veio sem hesitação: “Não. A mulher não era tão reprimida assim” (COUTO apud LUZ, 2007,
p.261-264). A rigor desta afirmativa, encontramos em Pollack (1992) as orientações para
dilatarmos o que, possivelmente, está intrínseco à perspectiva genérica desta opinião.
54
De acordo com Ferreira (2011) “Rodeada de livros, tintas e pincéis, Goiandira do Couto recebe da mãe as
primeiras noções de desenho e pintura. A partir de 1929, com 14 anos de idade, começa a declamar poesias em
algum evento que fosse convidada, a desenhar, e também a mostrar os dotes artísticos através de pinturas a óleo
que fazia e muitas vezes presenteava seus amigos e parentes” Cf. (FERREIRA, 2011, p.54).
71
55
“(...) não podemos compreender uma trajetória (isto é, o envelhecimento social que, embora o acompanhe de
forma inevitável, é independente do envelhecimento biológico) sem que tenhamos previamente construído os
estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto de relações objetivas que uniram o
agente considerado – pelo menos em certo número de estados pertinentes – ao conjunto de outros agentes
envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis” (BOURDIEU, 1996, p.190).
56
Segundo Pollack (1992, p. 204), entende-se por identidade social “(...) à imagem de si, para si e para outros, há
um elemento dessas definições que necessariamente escapa ao indivíduo e, por extensão, ao grupo, e este
elemento, obviamente é o outro. Ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança, de negociação,
de transformação em função dos outros. A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência
aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por
meio da negociação direta com outros”.
57
A transferência da capital para uma cidade planejada, Goiânia, foi a principal plataforma política do governo
de Pedro Ludovico Teixeira. O ideal centralizador do Estado Varguista uniu-se à tática política do novo
interventor federal de manter-se no poder bem longe da matriz cultural do regime oligárquico goiano, a Cidade
de Goiás. Por esta razão, a imagem da antiga capital passou a ser associada ao velho e ao atraso. O historiador
Nars Chaul (1997, p.185), esclarece que na data da sua chegada à antiga capital, as primeiras mudanças
72
governistas já estavam em curso; foi nomeado interventor federal por Vargas, em novembro de 1930, em uma
disputa que contava com fortes nomes para o cargo, como Mario Caiado e Domingos Neto Velasco. O nome de
Ludovico ficou na ordem do dia devido à sua combatividade à ordem anterior e às afinidades que seu
concunhado, o médico mineiro Diógenes Magalhães, mantinha com Vargas. Chegando ao poder em 1930,
Ludovico, não tinha nenhum projeto de governo estabelecido, nenhuma orientação ideológica capaz de dar
sustentação à sua carreira política. Os aliados eram frágeis, visto que o processo revolucionário foi determinado
pela chamada Coluna Mineira ou Coluna Arthur Bernardes, liderada por Quintino Vargas. Após atemorizar as
forças caiadistas, a referida Coluna chegou a Goiás já ciente da vitória da Revolução. Ao chegar à capital, sem
represálias, ocupou o Palácio do Governo, empossando Carlos Pinheiro Chagas como interventor federal.
Quintino Vargas foi indicado para assumir o posto de interventor goiano, uma vez que Pinheiro Chagas
retornaria à Minas Gerais. Este recusou a indicação, alegando que deveria ser entregue a um goiano. Escolheu
então um triunvirato, composto por Pedro Ludovico, Mario Caiado e Emílio Póvoa, para dirigir inicialmente o
estado. Posteriormente, Pedro Ludovico foi escolhido para a condução do governo”.
73
E o que se faz [em caso de mudança] dessa pujante, altiva, nobre, estudiosa
mocidade do Liceu que representa o futuro de Goiás, e que terá que
abandonar os estudos porque a nossa pobreza e das suas famílias não
permitem se transportar e localizar em outro ponto do Estado designado para
nova capital? E os alunos os alunos das outras escolas oficiais do Estado
aqui, cujos estabelecimentos de ensino terão de ser transferidos? Pensaram
em toda essa calamidade?59 (MENDONÇA, 2013, p.349-350).
58
“A nova capital nasceu assim, sob o signo da modernidade e do progresso; negação do suposto atraso, que a
antiga capital, Vila Boa de Goiás, representava. As justificativas, apresentadas pela transferência, centravam-se
nas más condições da cidade que abrigava a capital e a emergência de uma nova cidade, capaz de fomentar o
desenvolvimento econômico do estado. Os discursos oficiais e o planejamento urbano foram pautados pela
antítese: modernidade e arcadismo” (SILVA, 2006, p.18).
59
Jornal “A Tribuna”. “A mudança da capital de Goiás”. Por: Luiz do Couto; Uberlândia, 16 de agosto de
1931, apud MENDONÇA (2013).
74
60
Jornal “Lavoura e Comércio”. “A mudança da capital de Goiás”. Por: Jota Jamegão; Uberaba, 21 de
novembro de 1932 apud MENDONÇA (2013).
61
Jornal “Correio Oficial”. Por: Pedro Ludovico Teixeira; Goyaz-Capital, dezembro de 1932 apud
MENDONÇA (2013 p.352).
75
instar os contextos históricos eleva a intenção biográfica a outro patamar. Mesmo porque,
retirar o biografado do esquecimento e/ou do jogo seletivo da memória oficial exige que o
historiador indicie as problemáticas que o envolvem, frisa a autora.
Guiados por este entendimento, aventamos a hipótese de que as práticas
individuais da artista, incluindo sua linguagem plástica, estão emaranhadas às primeiras
iniciativas de preservação da cultura e das tradições vilaboenses, considerando o quadro de
abatimento instaurado na Cidade de Goiás em razão da iminente mudança da capital para
Goiânia. Acredita-se que o processo de trocas culturais e simbólicas entre a protagonista e a
antiga capital do Estado, a partir da década de 1930, ficará demostrado nas páginas seguintes.
62
“Vale dizer que seu irmão, João do Couto, nascido em 1923, formou-se na Faculdade de Belas Artes de São
Paulo, estudou crítica de arte com Sérgio Millet, entre outros cursos de história da arte, arte contemporânea e
cultura brasileira, todos na Universidade de São Paulo. Participou de números instituições culturais e científicas
em São Paulo, assessorias de governos estaduais, foi desenhista em várias instituições, ilustrador de diversas
revistas, livros, trabalhos científicos. Seus trabalhos de gravura e desenhos artísticos (bicos-de-pena) trazem uma
representação realista arquitetônica e paisagística das mais rigorosas entre os artistas que trabalham com tal
linguagem em Goiás, de técnica apurada, explorando ao máximo o alto contraste, monocromático (preto e
branco) quase sempre representando os casarios de Goiás (COELHO, 2008, p.26).
76
Estudei com aula particular de Dona Angélica Pereira. As aulas eram onde é
atualmente o Gabinete Literário Goiano. E, depois, eu fui estudar onde
atualmente é o Cine Teatro São Joaquim. A minha professora foi Dona
Maria Camargo. Ela era irmã de um grande professor de música meu, que é
pai de Ely Camargo, aquela cantora (...). (...) isso era aula particular, depois
entrei pro Grupo Escolar. O Grupo Escolar era do governo (...) perto do Cine
Teatro. Depois, foi lá no hotel. Antes o Hotel foi Grupo Escolar do Estado de
Goiás. Então, era capital ainda. (...) lá eu tinha aula, lá eu fiz minha primeira
comunhão, dia 14 de maio de 1924, era aniversário da nossa diretora,
escritora, grande escritora, Ofélia Sócrates. Daí, foi meu científico, fui
estudar no normal, lá no Jardim de Infância. Aí fez aquele prédio lindo, que
tem na propriedade do quartel. Que lá dentro do Alcide Jubé é o Palácio da
Instrução, que foi feito na administração do Dr. Brasil Caiado e o secretário
geral era de Jaraguá, César Bastos. Então, aí se criou o Jardim da Infância, a
Escola Complementar e a Normal. Aí eu fui para Escola Complementar, fui
no primeiro ano, até me formar em 35. Me formei em 1935 (COUTO apud
FERREIRA, 2011, p.51-52).
O relato associa-se aos vestígios de um tempo vivido como se eles fossem suas
testemunhas63. Para Pollack, esse é um fenômeno jacente da memória construída em
coletividade, isto é, inerente à vida pública e, por isso, “passam a fazer parte da própria
essência da pessoa” (1992, p.201). Essência, nesse caso, igualmente projetada ao espaço
público por evocações paralelas e pertinentes ao roteiro da graduação acadêmica. Portanto,
faz-se necessários alinhamentos que “podem obviamente dizer respeito a acontecimentos,
personagens e lugares reais, empiricamente fundados em fatos concretos”, esclarece o teórico
(1992, p.202). Também por esses horizontes enxergamos o estreitamento da experiência
social singular vivida por Goiandira do Couto, na Cidade de Goiás, desde o tempo que “(...)
Então, era capital ainda” (FERREIRA, 2011, p.51). Desse modo, baseando-nos nos dados
apresentados por Unes (2008, p.81-83) sobre a cronologia da vida pública da artista, nas
entrevistas concedidas por ela, nos testemunhos escritos e na produção historiográfica
vislumbramos analisar, mais de perto, esse período da sistematização sociocultural da
protagonista que se deu em conjunto com o surgimento da sua primeira fase artística (pinturas
a óleo).
Em plena adolescência, aos 14 anos de idade, Goiandira ingressou na Escola
Complementar, curso com duração de dois anos, o qual tinha a finalidade de preparar os
63
A rememoração de Goiandira do Couto sobre as alterações espaciais durante o governo de Dr. Brasil Caiado,
encaixam-se quase que igualmente com a exposição detalhada por Genesco Ferreira Bretas na obra, História da
Instrução Pública em Goiás, especificamente no subitem, “Autonomia da Escola Normal do Estado” (1991,
p.514-520). Nesta sessão, o autor trata das intervenções administrativas e pedagógicas, as quais provocaram os
trânsitos geográficos das instituições públicas, fato instalado nas lembranças da artista. Cf. (BRETAS, 1991).
77
alunos provenientes dos grupos escolares para admissão na Escola Normal Oficial de Goiás64
(BRETAS, 1991, p.518). Nos jornais que circulavam naquela época, encontramos registros de
sua participação na vida cultural da Cidade de Goiás65, bem como nos registros fotográficos.
Na imagem a seguir, ao centro da primeira fila, Goiandira do Couto em meio
aos ritos, aos símbolos e às representações oficiais vilaboenses. Tais práticas aludiam o
empoderamento do cotidiano social e, respectivamente, o calendário cultural da Cidade de
Goiás, até os anos de 1930. Pelo que parece, os revezes políticos que impactaram a vida
urbana da antiga capital na referida década cooperaram, em certa medida, para a projeção
público-cultural de Goiandira do Couto, que sobressairia, também, na futura capital goiana
devido a seu talento e lastros culturais. Todavia, ela escolheu viver na cidade de Goiás.
Temos, portanto, uma explicação plausível para desdobrar os acontecimentos transitórios,
referentes à mudança da capital, articulados à participação de Goiandira do Couto direta ou
indiretamente.
Fonte: Acervo de Guilherme Antônio de Siqueira cedida por Rosarita Bueno Medeiros.
64
Parafraseando Bretas (1991), esta instituição de ensino foi instalada na Cidade de Goiás, em 1903 e manteve-
se em anexo do Liceu até 1925. Em 1929, passou a funcionar no chamado “Palácio da Instrução Pública”,
autonomamente.
65
“Transcorreu, a 6 do andante, o natalício do amigo Dr. Luiz Ramos de Oliveira Couto, comprometidíssimo
Procurador Geral do Estado, e uma das mais conceituadas intelectualidades goianas. Recebeu os cumprimentos
em sua casa entre música, poesia e o reconhecimento de inúmeros amigos” Jornal “O Democrata”, Goyaz,
19 de abril de 1930. Coluna Social. Anno XIII, n° 656, p.03. Cf. AFFSD.
78
66
Na reportagem “Goiandira: e a areia colorida se faz arte”, para o jornal “Diário da Manhã”, o artista
plástico e professor da Universidade Federal de Goiás, Carlos Sena, falecido em 2015, emitiu o seguinte parecer:
“Goiandira do Couto foi a primeira mulher pintora do Estado de Goiás. Aos 16 anos, encarou a pintura como
ofício, alcançando sua maturidade artística aos 52 anos (...). Goiandira do Couto e Octo Marques foram os
pintores pioneiros na representação do paisagismo no estado de Goiás e ajudaram muito a criar uma identidade
visual goiana no século 20” (Jornal “Diário da Manhã”, “Goiandira: e a areia colorida se faz arte”. Por:
Licínio Barbosa; Coluna: Opinião Pública. Goiânia, sábado, 3 de setembro de 2011, p.04). Fonte: acervo da
autora.
79
coletiva de arte, organizada pela Escola Normal, com a obra Lírios (1933)67, em óleo sobre
vidro (COELHO, 2008, p.26). Esse evento, sem dúvidas, oficializou seu ingresso na vida
pública e na carreira artística.
Percebe-se que as instituições de ensino, ora representadas pela Escola Normal
Oficial, deram continuidade ao compasso da vida cultural na Cidade de Goiás apesar dos fatos
ocorridos no início da década de 1930. Vale ressaltar que, a transição política seguia seu curso
sob as constantes promessas68 do interventor, Pedro Ludovico Teixeira de resguardar à cidade
“algumas centelhas de progresso ou algum sinal de vida e incentivos”69. Sem entrarmos no
mérito do tom pejorativo do discurso, supomos que estas palavras reacenderam a crença de
alguns moradores de que antiga capital poderia culturalmente manter-se como “(...) polo da
civilização e da cultura do Centro Oeste” (ALBERNAZ, 1992, p.150). Muito provavelmente,
com o intuito de modificar o quadro do provável abatimento instalado na cidade, outras
práticas culturais surgiram no ano seguinte.
Desta vez, representantes da coletividade encabeçada por alguns membros do
clero local decidiram seguir o mesmo rumo das ações implementadas por Luiz do Couto,
quando reintroduziu o símbolo do mito fundador, em 1918. Os constituintes desse grupo
deliberaram, portanto, por intervir na paisagem urbana da Cidade de Goiás. Então, em 1934,
no Largo do Rosário, um ato “cívico” foi protagonizado por esta coligação, a qual
nomearemos de guardiões da tradição.
67
Por questões metodológicas, referente ao encadeamento da biografia de Goiandira do Couto, optamos por
trabalhar apenas com as obras em estilo paisagem em um capítulo específico (Capítulo III). No entanto, dada a
relevância da fase com óleo, apresentaremos no anexo I desta tese, a tela Lírios e outras envolvendo a temática
de natureza morta, com o objetivo de mostrar possíveis alterações e domínio técnico nas diferentes fases
artísticas vividas pela protagonista deste estudo.
68
“O sr. Dr. Interventor tem afirmado que, mesmo que se realize a projetada mudança, nem por isso a velha
Goyaz ficará privada de muitos estabelecimentos e instituições que, não sendo indispensáveis à formação da
nova Capital, constituem expressões de progresso e elementos de vitalidade para a velha Vila-Boa. Isso mesmo o
nosso preclaro dirigente fez sentir com a publicação inserta no “Correio Oficial” de junho último”.
(MENDONÇA, 2013, p.358).
69
“O Sr. Dr. Pedro Ludovico Teixeira, a par da sua ideia de remover a séde do Governo para uma cidade
moderna e construída a propósito, quer cumprir solemne promessa feita à velha Vila Boa, onde se tem S. Exa e
demais inexoráveis próceres do mudancismo enterrados os seus preciosos cordões umbilicais. A promessa feita é
de deixar aqui algumas centelhas de progresso ou sinal algum de vida e incentivos”. (MENDONÇA, 2013,
p.357).
80
70
AFFSD – Revista Trimestral de História e Geografia, TOMO XII, com 67 páginas datilografadas em espaço 2.
Goiás, 09 de maio de 1966.
71
Cf. (COELHO, 1997, p.91-98); e (GALVÃO JÚNIOR, 1997, p.03-04).
72
“A modernidade para os arautos de 30 consistia no progresso do Estado, por meio, do desenvolvimento da
economia, da política, da sociedade e da cultura regionais. É importante destacar que a representação da
modernidade se edificava em oposição ao passado que encarava a decadência e o atraso de Goiás ao longo de sua
história. (...) Em nome da modernidade não só se combatia a Primeira República com as oligarquias retrógadas,
como também se propunha uma nova era político-social e econômica para o Estado, uma época de prosperidade
e progresso” (CHAUL, 1997).
81
73
“Parece constituir-se num consenso entre a historiografia goiana o fato de que a Revolução de 1930 em Goiás
foi um movimento importado, carente de um programa claro e definitivo, de repercussões limitadas no contexto
do Estado. O que alimentava os ideais da oposição revolucionária se reduzia mais a uma repulsa à ordem política
estabelecida pela oligarquia dos Caiados, e seus métodos impermeáveis e autoritários do exercício do poder, do
que propriamente um compromisso de ruptura total com as antigas estruturas e hábitos. Esta repulsa era
estendida à antiga capital - Goiás -, então centro do poder, profundamente identificada com essa oligarquia. E, se
no Estado de Goiás, a revolução não teve uma participação notável, nem provocou alguma transformação social
que mereça destaque, os fatos sugerem que ela teria sido um marco importante para a edificação de Goiânia. (...)
Toma corpo aqui uma “ideologia de progresso” (...). Mas essa ideia de progresso não se restringe à ordem
econômica. (...) Vislumbra-se, assim, um progresso também no âmbito da política e dos costumes”
(CARVALHO, 2002, p.157-160).
82
Fonte: IPHBC, Goiânia - GO. Fonte: Paulo Brito do Prado, 2014. Acervo: Elder
Passos de Camargo.
74
“O Neogótico, mais reconhecido como revivalismo gótico, iniciou no século XVIII, na Inglaterra e pretendia
recuperar as formas gótica da Idade Média, indo na contrapartida ao estilo clássico dominante naquele período.
O primeiro edifício neogótico significativo construído na França foi a Basílica de Sainte-Clothilde, em Paris.
Iniciada em 1846 pelo arquiteto de origem alemã François-Chistina Gau, ela só veio a ser consagrada em 1857.
Já na Alemanha, ressurgiu o interesse pela Catedral de Colônia, iniciada em 1248 e que estava inacabada na
época. O trabalho reiniciou em 1824 e terminou em 1880 tonando-se a catedral ápice da arquitetura neogótica e o
edifício mais alto do mundo naquela época. No Brasil, o estilo encontrou terreno fértil no reinado de Dom Pedro
II. Uma das construções neogótica brasileira mais antiga é a Catedral de Petrópolis, Rio de Janeiro. Construída
entre 1884 e 1925, ela abriga os túmulos do Imperador e de sua família. O nascimento da arte gótica está ligado à
expansão ocidental e à afirmação do poder real”. Disponível em: <https://danielamachado.wordpress.com/2008/0
4/24/o-neogotico>. Acesso em: 02 jun. 2015.
75
“Foi um movimento internacional de design, destacando-se 1925-1939. O nome Art Dèco veio da Exposição
Internacional de Artes Decorativas e industriais Modernas, em Paris, 1925. Este foi um movimento popular
internacional de design. Afetou as artes decorativas, a arquitetura, design de interiores e desenho industrial,
assim como nas artes visuais (...). Foi de certa forma uma mistura de diversos estilos e movimentos, tais como:
Construtivismo, Cubismo, Bauhaus, Art Nouveau, Modernismo e Futurismo. Embora muitos movimentos
83
uma questão de modismo, ou opção” que esse estilo caracterizado por linhas horizontais
imponentes e pela sobriedade na ornamentação das fachadas foi adotado pelo governo de
Ludovico, mas, sim porque a sensação de monumentalidade dessas formas reforçava o
aparente discurso de demarcação das fronteiras político-ideológicas entre a antiga e a nova
capital.
Eis que, nesse momento, licenciando-nos das palavras de Pollack (1992,
p.203), porque convém perguntar: “qual é a ligação real disso com a construção da
personagem”? Ora, não é sem explicação que o episódio do soerguimento do “novo”
santuário se alinhava aos jogos de poder travados no campo das representações, da memória e
das identidades sociais. Obviamente, é correto ponderar sobre a participação de Goiandira do
Couto, como coadjuvante no respectivo “ato cívico”, ocorrido em 1934. Contudo, refletir
sobre seu papel como protagonista, ou melhor, como agente eficiente do respectivo processo
histórico, é fundamentalmente importante, pois, desde então, a sua representação pública
indissociou-se das práticas individuais ou coletivas em defesa da cidade e das tradições
vilaboenses.
A rigor desta explicação, chegamos em 1935, ocasião em que Goiandira do
Couto, aos 20 anos de idade, formava-se como professora normalista. Dedicou-se a esta
profissão, juntamente com a carreira artística, até meados dos anos de 1970.
A emblemática fotografia da formatura, em 1935, testifica-nos a oficialização
de mais um dos começos da artista num contexto de recomeços e incertezas para a Cidade de
Goiás. Lançamos mão desta fonte como forma de historicizar, metodologicamente, os
desdobramentos políticos ao processo construtivo de uma “identidade totalmente conciliada
como ideal social de si mesmo”, pontua Fabris (2009, p.46). Cabe-nos, portanto, por esses
arredores, tecer análises.
tivessem criado raízes na arquitetura, o Art Dèco foi meramente decorativo, visto como funcional e ultra
moderno. De forma geral este período representa a transição entre a arquitetura produzida pelo Art Nouveau e do
ecletismo para o modernismo. Na arquitetura Art Deco, as fachadas têm rigor geométrico e ritmo linear, com
fortes elementos decorativos em materiais nobres (...)”. Disponível em: <https://brasilarqui.wordpress.com/5-art-
deco>. Acesso em: 11 nov. 2015.
84
Fonte: Acervo de Guilherme Antônio de Siqueira e publicada por Ferreira (2011, p.52).
Os olhos, diz o adágio popular, são janelas para a alma. Mas, nesse caso, o
trabalho do fotógrafo foi capturar, segundo Fabris (2009, p.46), “a autotransformação em
imagem num movimento interativo (...) com o tecido social”. Esta pode ser a razão pela qual
contemplamos eventualmente diferenças entre a imagem apresentada no subitem anterior
(figura 06), a qual deixou-nos transparecer que o pilar de pedra (a família) movia, quase que
completamente, as representações “tal qual em si mesma”. Diante da imagem da figura 10,
85
76
Termo utilizado para discernir retrato pintura de retrato fotográfico. Fabris (2009) esclarece que: “(...) na
dimensão do retrato fotográfico como “coisa”, cujo sentido é dado por intenção do observador (...). (...)
consistem no reenquadramento na fragmentação, na transformação da imagem original. (...) Outras de caráter
conceitual, que levam a adentrar pelos meandros de um gênero peculiar de retrato, expondo a função central da
imagem fotográfica: conferir identidade de um grupo, determinar uma situação social, estruturar um contexto no
qual o conjunto é mais importante que o indivíduo isolado (FABRIS, 2009, p.56).
77
Cf. Jornal “Folha de Goiaz”, “Um Gesto de Mulher Goiana”, Cidade de Goiás, n°. 35, 29 de março de 1936
apud Jornal “O Bandeirante”, “O ideal de uma artista", Cidade de Goiás, março de 1995 (s/p.). Fonte: Acervo
de Taís Helena Machado Ferreira, cedido em cópia digital.
86
Xiiii!!!! Minha Nossa Senhora, que absurdo Goiandira dar aula pra soldado.
A moça mais chique, de família, prendada, dar aula pra soldado? Como ela
rebaixou! O soldado era discriminado: se você vinha aqui eu passava pra cá,
pra não passar perto de você (COUTO apud FERREIRA, 2011, p.60).
78
Reiteramos que, segundo Mendonça (2013), entende-se por mudancismo condicionado os “compromissos
assumidos pelo interventor, por mais de uma ocasião, posteriormente gravados em normas legais e
constitucionais, de que não abandonaria a municipalidade de Goiás, após a transferência, preservando-a da
decadência” (p.340).
79
O autor esclarece que o presente fragmento legislativo proveio do “Ministério da Justiça e Negócios Interiores.
Processo n° 1698/34. Recurso da empresa Guedes, Ratto & Cia contra ato da interventoria de Goiás, Secretaria
de Estado. Diretoria do Interior, 1ª Sessão. Arquivo Nacional”.
87
80
Jornal “A Colligação”, “Contra a destruição de Vila Boa”, Cidade de Goiás, 10 novembro, de 1935, n. 45
(p.02). Cf. AFFSD.
88
Figura 11 - Jornal “Folha de Goiaz”, “Tú não morrerás!”, n°. 35, Cidade de Goiás, 1936.
Fonte: Acervo de Jales Guedes Coelho Mendonça, cedido em cópia digital (inédito).
TRANSCRIÇÃO
A velha e sempre nova cidade fundada por Bartolomeu Bueno, às margens do rio
Vermelho, de facíllimo acesso, desde que haja técnicos honestos que, de facto e de verdade estudo os
seus arredores, (...) guarda comsigo, como patrimônio sagrado, a energia e patriotismo de seus
habitantes, a mais ainda a vitoriosa audácia do paulista ousado que através de todas as amarguras
plantou as suas tendas de bandeirante na maravilhosa terra do índio (...). Tu não morrerás! (...) Um
povo como o desta capital, não se vence, porque é invencível pela sua altura cultural e moral: esmaga-
se porque a força é força – não enverga o aço: quebra-o. Vão tirar as regalias desta incomparável
cidade mediterrânea. Não foram ainda tiradas, mas o podem ser a qualquer momento por um simples
decreto. (...) Não nos acovardemos. Sabemos, dentro dos nossos próprios recursos, luctar sem soberba
e viver sem desfalecimentos. Nenhum mal queremos a futura capital nova; que ella prospere, se
desenvolva, seja grande e feliz, e em um futuro próximo possa servir de paradigma às maiores cidades
do Brasil. Mas, esse nosso anceio muito longe está do facto de se despresar, humilhar a terra mais
maravilhosa, mais exuberante, mais formosa, mais cults que é a Cidade de Goiás, que se houvesse bôa
vontade seria uma das mais encantadoras do paíz não só pelas condições tipographicas como pelas
infinitas belezas naturaes que cobrem inigualável explendor. Bôa vontade e nada mais, e com despesas
diminutas a velha cidade de Anhanguera trunpharia (...) entre todas das unidades federativas. Mas,
sobre minha terra natal, cahio o implacável braço daqueles que a desamam, obscurecendo suas
admiráveis possibilidades para leva-la ao aniquilamento. Engano, Goiás não desaparecerá. Goiás
viverá (...). Aqui todos deram-se as mãos (...) todos os corações pulsam nos mesmos rithmos, todas as
almas se confundem em uma só para a vitória da justa causa de um povo que lucta para viver em paz e
que possue a noção clara de seos destinos (“FOLHA DE GOIAZ”, 1936, p.01).81
81
Jornal “Folha de Goiaz”, n°. 35, “Tú Não Morrerás!” Por: Luiz do Couto; Cidade de Goiás, domingo, 29 de
março, de 1936, p.01. Fonte: Acervo de Jales Guedes Coelho Mendonça, cedido em cópia digital (inédito).
89
82
Idem.
90
83
Cf. Jornal “Folha de Goiaz”, “Um Gesto de Mulher Goiana”, Cidade de Goiás, n°. 35, 29 de março de 1936
apud Jornal “O Bandeirante”, “O ideal de uma artista", Cidade de Goiás, março de 1995 (s/p.). Fonte: Acervo
de Taís Helena Machado Ferreira, cedido em cópia digital.
91
84
Idem.
85
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Reminiscência”. Por: Lindolpho Emiliano dos Passos; Cidade de Goiás, agosto de
1986, p.04. Cf. AFFSD.
92
cívicas foram interrompidas, no ano seguinte, por razões que estariam, ainda, latentes na
memória da artista. Em 2009, quando concedeu entrevista à pesquisadora, ela formulou a
seguinte resposta sobre o tema:
86
Idem.
87
Conforme dados biográficos levantados por Ferreira (2007, p.32), no ano de 1936, Luiz do Couto torna-se
membro-fundador do Instituto Histórico Geográfico de Goiás. Após a transferência, com a intenção de reunir os
letrados do Estado de Goiás em torno de uma associação, Pedro Ludovico Teixeira investe o professor Colemar
Natal e Silva de poderes para “(...) instalar a Academia Goiana de Letras, pensava-se em um ambiente de
pessoas que tivesse lídimo interesse e representação de nossa cultura, podendo ultrapassar até mesmo os
meandros da literatura. Nessa fase da consolidação, a comissão organizada acatou a sugestão do poeta Luiz
Ramos de Oliveira Couto no que tange ao número de cadeiras, que para ele, deveriam ser 21 e seus respectivos
patronos. A comissão depois de várias considerações acatou a sugestão do poeta. Dias após a escolha do
primeiro presidente efetivo, pelo Interventor Federal Pedro Ludovico Teixeira, em catorze de abril de 1939, o
93
pública da artista não se arrefeceu com o abatimento da cidade. Portanto, ainda segundo
Mendonça (2013), estudar a situação a que restou reduzida a Cidade de Goiás, depois da
mudança da capital, é uma problemática que a historiografia precisa debruçar-se. Diante dessa
lacuna, assumiremos os riscos de redizê-la à luz da pessoa-personagem, Goiandira do Couto,
já que as fontes indicam-nos um diálogo profícuo. Portanto, afirmamos que a intenção é
problematizá-las no capítulo subsequente.
Nesse sentido, reexaminando as fontes, deparamo-nos com a seguinte
afirmação proferida por Lindolpho Emiliano dos Passos, em 1986: “(...) os méritos da
abnegada professora Goiandira não ficaram esquecidos. Estão gravados nos anais da Polícia
Militar” (“CIDADE DE GOIAZ”, 1986, p.04)88. Desse modo, constatando a permanência
memorável de Goiandira do Couto nesta ortodoxa instituição, propomo-nos a investigar os
sensíveis entrecruzamentos de sua trajetória noutras entidades articuladas, a partir dos anos de
1940, sob o propósito de ressignificar culturalmente o lugar de importância da antiga Vila
Boa, no contexto identitário estadual89. Subjetivamente, os meandros dessa readaptação
urbana inscreveram Goiandira do Couto como uma das principais protagonistas do processo
de reelaboração cultural do passado e das tradições vilaboenses que, por conseguinte, a partir
dos anos de 1950, adquiriram notoriedade nacional.
poeta Luiz do Couto renuncia à associação, já que não concordava com várias posturas do interventor. Tal fato,
ocorreu no dia 22 de abril do mesmo ano, durante a 4ª sessão preparatória” (FERREIRA, 2007, p.81).
88
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Reminiscência”. Por: Lindolpho Emiliano dos Passos; Cidade de Goiás, agosto de
1986, p.04. Cf. AFFSD.
89
“[...] Cidade-evolução, cidade-monumento, cidade-cultura, cidade-mãe, enfim, – Goiaz está presente em todas
as emoções cívicas de nossa história, desde as remotas quadras da tumultuária colonização lusa até a edificação
de Goiânia. A sua própria sucessora, Pedro Ludovico a concebeu dentro dos espessos paredões de seu Palácio do
Conde dos Arcos, de cujos compartimentos assimétricos e de desenhos bizarros partiam as ordens e os decretos
que iriam influir na vida de todos os quadrantes do território goiano. Esse sentimento de valorização pessoal que
cada indivíduo naquela cidade possui é defensável e traduz um pormenor por certo de sadio patriotismo, uma vez
que não existe patriotismo de boas raízes sem o natural apego do homem ao lar [...]. Essas razões recomendam
Goiaz como um excelente ponto de turismo, porque ali se sente plenamente o brasileiro típico do Estado, [...].
Acho, com a maior sinceridade, que à antiga capital devem ser encaminhados os turistas que venham ter ao
Estado, os quais, após sentir a vibração trepidante de Goiânia e Anápolis, encontrarão na cidade de Anhanguera
algo que muito podem se orgulhar os goianos. [...]. Para se conseguir esse objetivo [...], há uma coisa para se
fazer: intensificar o intercâmbio social entre a velha e a nova capital - duas cidades que têm que marchar de
mãos dadas, no futuro” (JORNAL “CIDADE DE GOIAZ”. “A cidade de Goiás como centro turístico”, 10
março, de 1940. N°. 75, s/p). Fonte: AFFSD.
94
CAPÍTULO II
(Eric Hobsbawm)
90
“O verdadeiro sentido de brasilidade é a Marcha para Oeste. No século XVIII, de lá jorrou a caudal de ouro
que transbordou na Europa e fez da América o continente das cobiças e tentativas aventurosas. E lá teremos de ir
buscar: os vales férteis e vastos, o produto das culturas variadas e fartas; das estradas de terra, o metal com que
forjara os instrumentos da nossa defesa e de nosso progresso industrial”. (VARGAS, 1938, p.124).
95
93
“Especificamente, as “cidades históricas” encontraram-se no genius loci um triunfo para fazer face à erosão do
seu tecido econômico e à perda de competitividade” (...). A cultura, o passado e o patrimônio são recursos que
(...) assumiram uma posição central na nova sintaxe do espaço urbano, dando origem a uma “metalinguagem do
patrimônio”, e propiciando que o passado seja refuncionalizado por meio de ações que podem variar, desde
políticas urbanas de reordenamento dos lugares, estetização das paisagens urbanas e monumentalização das
arquiteturas, até reinvenção de tradições e folclorização de determinadas práticas culturais” (TAMASO, 2007,
p.02).
94
“Nos anos 60, completava-se a integração inter-setorial da economia brasileira. Agropecuária e indústria, a
partir daí, não mais constituem compartimentos estaques dentro da economia nacional. Pelo contrário, trata-se de
unidades de atividades produtivas que fazem parte de uma mesma divisão social do trabalho” (BORGES, 2000,
p.17).
97
Fonte: AFFSD.
95
Informamos que Zacheu Alves de Castro, listado entre os demais da comissão organizadora do evento, era
prefeito do municipal nesta ocasião.
98
Este 2º art. do estatuto que rege as ações da OVAT explicita o amplo interesse
pela atuação e gestão cultural empreendida pela entidade, na Cidade de Goiás, desde os anos
de 1960. A pleno termo, essa instituição articulou um sólido processo de “Invenção das
Tradições” cuja atuação da personagem central deste estudo valeu-se das posições de membra
fundadora, legitimadora simbólica (devido a seu prestígio social e reconhecimento público
local) e mentora estético-criativa do mais representativo legado das reinvenções concebidas
por esta entidade: a Procissão do Fogaréu97, tema central do terceiro subitem deste capítulo.
Por essa razão, os caminhos historicizantes dessa trama enxergam um enlace
entre a trajetória artística de Goiandira do Couto e o consistente processo de ressignificação
cultural da Cidade de Goiás, o qual se consolida, substancialmente, a partir da “missão”
empreendida pela OVAT na década de 1960. Os estudos de Hobsbawm e Ranger (1997)
amparam a hipótese de que a OVAT concretizou o pensamento preservacionista introduzindo
práticas que muito se assemelham à definição dada pelos historiadores ingleses:
96
“E como representantes dessa vertente que não desmerece o legado do passado, surgem, na arte pictórica, Octo
Outurniro Marques, com suas cenas do cotidiano e flagrantes visuais da paisagem vilaboense, e Goiandira do
Couto que, (...) apresenta uma pintura arquitetônica de ruas, becos, casario e monumentos da antiga e atual
Goiás” (CORRÊA, 2003, p.250).
97
Discorreremos adiante, mais especificamente, sobre o envolvimento da artista com esta representação do
catolicismo popular que se tornou, desde os anos de 1960, a principal tradição inventada pela OVAT. A título de
esclarecimento preliminar, atinamos à seguinte definição: “A Procissão do Fogaréu da cidade de Goiás, festa
paralitúrgica que acontece todos os anos no decorrer da Semana Santa, é um exemplo concreto de (re)invenção
de tradições: de criação de valores culturais, de estratégias, de articulação e jogos de poder que as permeiam. É
um evento que projeta Goiás – cidade e Estado – para o Brasil e para o mundo. A Procissão representa uma das
cenas da Paixão de Cristo, com participação dos farricocos: figuras enigmáticas que são os destaques do cortejo”
(CARNEIRO, 2008, p.85).
100
culturais e institucionais da artista; esperando que, por meio delas, possamos entender o
entalhamento constituído no seu modo de ver a Cidade de Goiás, o qual nos parece discursar
por uma visão anacrônica da antiga capital. Segundo Freitas (2004), esse é um exercício
próprio do historiador cultural da arte, pois:
Buscamos, então, a releitura dessas hipóteses. Assim, por mais sutis que
pareçam ser os primeiros movimentos culturais encabeçados pelos moradores remanescentes,
optamos, nesse estudo, por interpretá-los como modos subjetivos de resistência em favor da
vida urbana na Cidade de Goiás. É inegável que a identidade citadina da antiga capital, até os
anos de 1930, mantivesse uma relação estreita com a condição de centro político-
administrativo. Conquanto, tendo em vista as teorizações de Hobsbawm e Ranger (1997), o
retorno às tradições do período colonial, suscitadas no ideal da “Marcha para o Oeste”,
instigou a continuidade das experiências do passado, o que, de certa forma, refundou no
espaço urbano vilaboense a prerrogativa de núcleo, isto é, lugar de começos, portanto,
propício às “reações, a situações novas, que ou assumem a forma de referência a situações
anteriores, ou estabelecem seu passado através da repetição quase obrigatória”
(HOBSBAWM e RANGER, 1997, p.10). No caso da Cidade de Goiás, identificamos uma
progressiva assimilação dessas duas síndromes.
98
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Vila Bôa (Monumento Histórico)”. Goiás, 30 de abril de 1943. Ano VI; N° 229,
p.01. Fonte: AFFSD.
99
“O movimento de 1930, (...), não alterou a estrutura fundiária e agrária do país. Pelo contrário, o compromisso
político do Governo Vargas, com os grandes proprietários rurais e o pacto de poder entre a burguesia industrial e
o setor agrário tradicional (...) transformaram o projeto de desenvolvimento nacional em um processo de
“modernização conservadora”, que promoveu o avanço das forças produtivas e das relações capitalistas de
produção no setor urbano-industrial sem alterar o status quo agrário. (...) Em Goiás, o avanço da fronteira
agrícola e o aumento do número de estabelecimentos rurais, após 1940, não alteram as bases fundiárias no
103
Estado. Pelo contrário, o caráter da especialização desenvolvida na agropecuária reforçou o latifúndio como
forma de propriedade e “refuncionalizou” a tradicional estrutura de produção no campo a serviço do mercado”
(BORGES, 2000, p.127-129).
100
“O órgão federal do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional recebeu diferentes denominações desde a sua
fundação. De acordo com o decreto n° 25 de 30 de novembro de 1937, foi organizado o Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Em 1946, o órgão foi transformado em diretoria sob a sigla de
DPHAN. Em 1970, passou a ser Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Em 1979, o órgão foi
transformado em secretaria e assumiu novamente a sigla de SPHAN. Em 1990, a SPHAN foi extinta e criou-se o
Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC). Com a medida provisória n° 660, de setembro de 1994, a
denominação foi alterada novamente para o nome atual, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
doravante IPHAN” (DELGADO, 2003, p.400).
101
Expressão utilizada comumente para referir-se à transferência da capital para Goiânia, em 1937. Nos estudos
de Delgado (2003, p.403-404), encontramos uma seleção interessante de memórias sobre esse fato. Nos relatos
destacados, a percepção da mudança afunila-se ao sentimento de desolação e abandono vivido, nos “tempos da
mudança”, os quais foram rememorados pelos moradores depoentes e/ou repassados a eles através da oralidade.
Tomando como exemplo, sublinhamos o depoimento de Olímpia Azevedo Bastos, concedido à autora, em
novembro de 2001. Lê-se: “Eu me lembro do caminhão levando tudo do Fórum, eu vi tudo daqui de casa: os
caminhões saindo, o povo chorando e a banda de música tocando o dobrado. Eu tinha 19 anos. Eu lembro bem.
Teve uma decadência muito grande” (PASSOS apud DELGADO, 2003, p.403(entrevista)). Nota-se que o
sentimento de frustração aparece intimamente ligado à perda da identidade de centro/sede do poder político
estadual. Subjetivamente, analisamos o relato sob a ótica das relações oficiais de poder que, nesse caso, parecem
estender-se ao conjunto das tradições culturais da Cidade de Goiás quando enfatiza: “Teve uma decadência
muito grande”. Considerando esse aspecto, afirmamos que o processo de ressignificação cultural da referida
cidade, ocorrido entre os anos de 1940 a 1960, apresentou duas concepções distintas de resistência. De um lado,
as instituições e seus representantes (re)inventando formas de valorizar e exaltar o passado colonial,
provavelmente, aportados na tendência nacional de expansão para o Oeste. Do outro, isto é, dos populares, o
sentido de resistência aplica-se ao receio de que a preservação do passado perpetuasse o “abandono” da antiga
capital. Esse entendimento torna-se mais visível, a partir dos anos de 1950, ocasião em que foram tombados os
primeiros bens culturais (arquitetônicos) do centro histórico vilaboense, conforme dados do IPHAN, obtidos na
14ª Superintendência Regional. De maneira geral, e sem emitir juízos de valor sobre as opiniões dos
protagonistas, concluímos que o processo de reelaboração cultural da Cidade de Goiás trata-se de um fato
histórico de suma relevância e, por isso, redunda os horizontes da episteme histórica pretendida para este
capítulo.
104
temiam que esta medida determinasse a estagnação urbana local102. Assim, estamos
convencidos de que o estereótipo do atraso incitou o referido estado de desconfiança, ainda,
abalado pelas experiências (perdas) vividas em 1937. Esse sentimento, por sua vez, contribuiu
para que às representações sociais103 vinculadas ao “mito da cidade degradada” se
reinterpretassem no discurso popular dividindo opiniões, explica Delgado (2003, p.404).
Entretanto, a aparente discrepância entre o discurso institucional (público e civil), com relação
àquele proferido pelos populares, começa a fazer sentido quando nos deparamos com pistas
semelhantes ao trecho da entrevista concedida por um morador e publicada pela pesquisadora
em sua tese:
102
“O tombamento representava o atraso, manter essas pedras, dificuldade de andar, de transitar. (...) Então, a
visão que se tinha de tombamento era essa, estaríamos permanentemente condenados. O sonho de Goiás era
asfalto, aço, argamassa, esse era o sonho. A cidade queria crescer, se igualar à Goiânia. O grande sonho era se
igualar à capital” (Delgado, 2003, p.404).
103
Entende-se por “representações sociais”: “uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada,
com um objetivo prático, e que contribuiu para a construção da realidade comum a um conjunto social (...). É
tida como um objeto de estudo tão legítimo (...) devido a sua importância na vida social e à elucidação
possibilitadora dos processos cognitivos e das intenções sociais” (JORDELET, 2001, p.22).
105
104
Jornal “Folha de Goiaz”, n°.35, “Tu não morrerás!”. Por: Luiz do Couto; Cidade de Goiás, domingo, 29 de
março, de 1936. Fonte: Acervo de Jales Guedes Coelho Mendonça, cedido em cópia digital (inédito).
105
Cf. MENDONÇA, Jales Guedes Coelho. A invenção de Goiânia: o outro lado da mudança. Goiânia: Editora
Vieira, 2013 (p.392-393).
106
morrerás”, para empreender sobre o prenúncio dos novos horizontes avistados para a antiga
capital: Cidade de Goiás: berço da cultura goiana.
Considerando que essa linha de pensamento é defendida, especialmente, pelos
guardiões da OVAT, encontramos o presente termo intitulando a palestra proferida por
Regina Lacerda, renomada escritora e folclorista do Estado de Goiás, na sessão solene de
reabertura do Gabinete Literário Goiano, em 04 de fevereiro de 1968. A referida conferência
obteve publicação, juntamente com a programação do referido evento, pelo “Departamento
Estadual de Cultura”, de acordo com dados trazidos no próprio documento disponível no
AFFSD. Nos estudos de Mônica Martins Silva (2008), A Escrita do Folclore em Goiás: uma
história de intelectuais e tradições (1940-1980), encontramos detalhada discussão sobre a
participação/envolvimento desta notável folclorista em inúmeros movimentos e projetos de
valorização cultural tanto da cidade quanto do Estado de Goiás, particularmente, entre as
décadas de 1940 a 1960.
Voltando ao pronunciamento da folclorista Regina Lacerda, nota-se que ela
teceu suas considerações concatenadas às alusões de Silva e Souza e José da Cunha Matos
para explicar como se processou a formação cultural desse “patrimônio tão caro que trazemos
conosco através dos tempos”, afirmou Lacerda (1968, p.02). A ordem do discurso encaminha-
se enaltecendo o período aurífero explicando que a riqueza encontrada nos tempos coloniais
não se resume apenas ao metal precioso, mas sim na sociedade e no “nível cultural de seus
membros” (Idem, 1968, p.03). Percebe-se nítida valorização de uma casta específica da
sociedade, tida pela oradora como a “legítima formação intelectual” e, portanto, “berço da
cultura goiana”, (Ibidem, 1968, p.03). Como adendo, relembramos que a origem dos Couto
encontra-se amalgamada a esses princípios.
O discurso avança para o século XIX, descrevendo a vida social e artística
vivida na Cidade de Goiás, com ênfase na difusão da impressa, da música erudita, dos
encontros filosóficos e literários e, sobretudo, dos debates políticos em torno dos ideais
abolicionistas e republicanos. A esse respeito, foi trazida à memória Antônio Felix de
Bulhões, “figura ímpar (...) que, nascido em 1845, veio encontrar ambiente propício para o
desenvolvimento de sua privilegiada inteligência”, acrescentou Lacerda (1968, p.09). O nome
de alguns Bulhões em certos alguns estudos da historiografia goiana, o nome dos Bulhões
figura e integra rol das oligarquias dominantes da conjuntura política em Goiás (1878-1912).
Prosseguindo na metodologia adotada pela oradora, finalmente, sua exposição
tem entrada no século XX. Parafraseando suas palavras, o referido século, trata-se de um
período marcado pelo movimento literário, o qual pode ser considerado o coroamento da
107
agitação intelectual vivida no passado. Foi lembrado, ainda, que, nesse tempo, surgia a
primeira academia Goiana de Letras que, a propósito, admitiu, em seu quadro, uma
componente feminina, representada na pessoa de Eurídice Natal e Silva. Entre outros nomes
em destaque, no campo literário, ressaltou-se o de Luiz do Couto, lembrado, também, por suas
contribuições na educação, assim como referenciou a pessoa do memorável Professor
Ferreira. Ao destacar o importante papel do Gabinete Literário, Regina Lacerda ressalvou que
nem mesmo a transferência da capital subtraiu esse patrimônio de “herança secular, que
permaneceu guardada com carinho pelos desvelos de Consuelo Caiado” (1968, p.16). Só para
constar, a mencionada guardiã do reduto vilaboense das letras, era filha de Antônio Caiado,
mais conhecido com Totó Caiado, o qual ocupou o cargo de senador durante a Primeira
República e atuou diretamente nos enfrentamentos contra a Revolução de 1930.
Nos encaminhamentos finais da folclorista, ela congratula a iniciativa dos
reorganizadores da instituição, Dr. Aimoré Velasco e Circe Camargo Ferreira, e estimula a
formação de organizações semelhantes à OVAT, porque, no seu entendimento, a refundação
do Gabinete Literário fertilizou a probabilidade de que:
artista106 com a provável primeira instituição feminina promotora de práticas e eventos, cujo
objetivo era reascender a vida social vilaboense. Referimo-nos ao citado “Goiás Clube”,
fundado em 1938.
106
“Teve lugar, em dias da semana transacta, a eleição para renovar a Diretoria do “Goiás Clube”, entidade
feminina que tem alto destaque em nossa sociedade. Por expressiva maioria foi eleita Presidente a Srt. Goiandira
Ayres do Couto, entretanto, por motivos justificados recusou o cargo acima referido. Processada nova eleição,
foi reconduzida àquele posto a srta. Dolci Caiado de Castro, que, por várias vezes consecutivas, tem obtido, nas
urnas do “Goiás Clube”, a confiança das suas consocias”. (JORNAL “CIDADE DE GOIAZ”, “Eleição no
“Goiás Clube”. Goiás, 1° de julho de 1951. Ano XIV; N°. 506, p.01). Fonte: AFFSD.
107
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Aniversário do “Goiás Clube”. Goiás, 29 de março de 1942. Ano IV; N° 171,
p.01-04. Fonte: AFFSD.
108
“D. Marcos de Noronha, primeiro governador da Capitania (1749-1755), dedicou grandes esforços à
construção, por ordem régia de duas casas de fundição, uma em Vila Boa e outra no norte, em São Feliz, arraial
pouco expressivo na produção de ouro. A grande distância entre as duas casas de fundição era proposital,
visando facilitar acesso dos moradores, evitar as longas e dificílimas viagens entre o norte e o sul do território
goiano, diminuir o contrabando e aumentar as rendas da Real Fazenda, como explicou o próprio governador, em
carta de 1751 à Corte” (PALACÍN; GARCIA e AMADO, 1995, p.96).
109
Goiás. Não há referências, ao certo, sobre as razões pelas quais o referido baile, realizado
aproximadamente na década de 1940, aconteceu na Casa de Goiandira.
Em uma de suas inúmeras entrevistas, Goiandira do Couto descreveu o
memorável baile criado e organizado por ela:
109
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Concurso de Beleza”. Goiás, 08 de junho de 1947. Ano IX, N°. 345, p.01. Fonte:
AFFSD.
110
vilaboense. Mas, essa eventual preferência não desmerece a representação social da artista.
Muito pelo contrário. Subjetivamente, demonstra-nos, mais uma vez, o seu significativo
envolvimento com os interesses da cidade que ela definia em uma palavra: “tudo” (BRITTO,
2008, p.208).
Em entrevista concedida à Ferreira (2011, p.90), Goiandira do Couto, ao relatar
suas performances culturais entrelaçadas às vivências calcadas neste cenário urbano,
novamente, generalizou: “Eu gostava de tudo o que eu fazia” (FERREIRA, 2011, p.90).
Desse modo, e, considerando a relação institucional da pintora com a rede pública de ensino
local (desde 1944)110, conjecturamos que a finalidade do concurso pode ter sido, para ela,
provavelmente, mais motivadora do que o efêmero título do mesmo. Afinal, Goiandira do
Couto encontrava-se, na data do “Concurso de Beleza”, muito próxima de completar seus
trinta e dois anos de idade, e, portanto, mostrou-se apta física e emocionalmente para se doar
em favor dos objetivos que motivaram o evento promovido e concorrido, quase em sua
totalidade, pelas próprias organizadoras e aspirantes ao título de “mais bela senhorita de
Goiás”.
Outro movimento cultural que pode ser elencado entre aqueles que se fizeram
tradicionais na Cidade de Goiás, é o carnaval. Parafraseando o testemunho dado por Elder
Camargo Passos a Delgado (2003, p.418), as décadas de 1930 e 1940 foram aquelas que
destacaram os carnavais mais animados que já aconteceram na Cidade de Goiás. Esta
informação ratifica-se, cientificamente, nas produções de Santana (2010) e Ferreira (2011).
Ambas as pesquisadoras se preocuparam em enfatizar as especificidades deste festejo popular
para os vilaboenses e convergem, em suas exposições, ao apontar, que entre os chamados
“brincantes”, o nome de Goiandira do Couto é tido como notório. Novamente, ela se destacou
na coletividade como uma das “personagens reais” que protagonizou os memoráveis
carnavais da antiga Vila Boa.
110
Analisamos a evidência da nomeação de Goiandira do Couto como uma “resposta” à influência das diretrizes
sinalizadas pelo governo federal de que o passado não estaria tão velho assim. Pois, através dele apontavam-se os
novos horizontes do futuro, materializados com a “Marcha para o Oeste”. Acerca disso, consoante Hobsbawm e
Ranger (1997), frisamos que as tradições são práticas de continuidade. Destarte: “Por ato recente do interventor
federal, foi nomeada para professora do Ginásio Oficial de Goiás, desta cidade, a srta. Goiandira Ayres do
Couto, filha do Dr. Luiz do Couto”. (Jornal “CIDADE DE GOIAZ”, “Srt. Goiandira do Couto”. Goiás, 30 de
abril de 1944. Ano VI, N°. 229, p.01). Fonte: AFSSD.
111
111
“(...) em vez de atuar conforme seu sentido genuíno, de forma revolucionária, diante de tudo que seja
tradicional ou se fundamente na aquisição ‘legítima’ de direitos, como acontece in statu nascendi, atua
exatamente no sentido contrário, como fundamento de ‘direitos adquiridos’. E precisamente nesta função alheia
à sua índole torna-se ele um componente da vida cotidiana, pois a necessidade, a qual ele assim atende, é
universal [...] exatamente neste ponto situa-se, inevitavelmente, a entrada no caminho do estatuto e da tradição”
(WEBER, 1999, p.333).
112
Entende-se que por rotinização “(...) a conservação do conceito de carisma somente se justifica pelo fato de
que sempre se mantém o caráter do extraordinário, não acessível para cada qual, nas relações entre os
carismaticamente dominados e os preeminentes por princípio, e que o carisma precisamente por isso serve para a
função social na qual é aplicado. Mas, evidentemente, esta forma da penetração do carisma na vida cotidiana
significa sua transformação em uma estrutura permanente, a mais profunda transformação de seu caráter e de sua
atuação” (WEBER, 1999, p.344).
113
“Goiandira do Couto sempre se constituiu em figura de projeção nos carnavais vilaboenses. Como animada
foliã, seu concurso foi disputado pelos blocos que se organizavam e até hoje não se dispensam a sua participação
e presença nos salões. Filha do imortal poeta e jurisconsulto, Luiz do Couto, herdou do pai a alegria contagiante.
Por isso a reportagem foi visitá-la em sua residência, a fim de ouvi-la falar dos carnavais que brincou.
Perguntada qual o carnaval que mais ficou em sua lembrança, respondeu: “Todos ficaram e muitos ainda espero
que ficarão”. (...) Enquanto discorria sobre a festa popular de Momo, Goiandira mostrava aos repórteres grande
número de fotografias, onde se viam algumas do ano de 1937 e de 1939, onde ela, ainda garota, posava ao lado
112
guardados no/pelo tempo que, neste caso, colocaram-se à disposição do ofício e dos
propósitos do historiador que deseja ser seu intérprete. Quanto às imagens, norteamo-nos
pelas teorizações de Freitas (2004, p.04-07), pois nos propõe enxergá-las, na produção
historiográfica cultural, metodologicamente, estruturada aos acontecimentos históricos. Em
outras palavras, pensá-las, tridimensionalmente, a partir do que está contido dentro, fora e no
entorno da imagem, é um procedimento que consideramos ser imprescindível aos
encaminhamentos dedutivos dessa pesquisa. Sintetizando o ensinamento do autor, trata-se de
uma abordagem tríplice que vê o formalismo visual como indissociável das sensibilidades,
semântica e social, interiorizadas na imagem, quando tratadas como testemunhas da história.
Eis, mais um depoimento. Vejamos:
Uma quase nítida representação do fato narrado. A foto (figura 13) fora tirada,
exatamente, durante o desfile dos blocos carnavalescos da Cidade de Goiás, nos anos de 1940.
O Bloco da Banda de Lá114 é flagrado pelo registro fotográfico devidamente uniformizado
de seus companheiros, alegre e brejeira” (Jornal “Cidade de Goiaz”, Goiandira: “Todos os Carnavais me
ficaram”. Fevereiro de 1981, p.04). In (FERREIRA, 2011).
114
Não sabemos precisamente as razões pelas quais Goiandira do Couto escolheu este nome para batizar o bloco.
Porém, suspeitamos que provenha da expressão popular, muito utilizada pelo senso comum vilaboense, para
situar-se no espaço urbano da Cidade de Goiás, o qual é composto tanto do lado de lá (margem esquerda) quanto
113
pela criatividade de sua mentora, Goiandira do Couto, que posicionada quase no centro da
imagem, segue igualmente vestida como a ala feminina do bloco representando, naquele
momento apoteótico, muito mais que a si mesma. E, por conseguinte, fica-nos subentendida a
visão fáustica de uma artista, sua estética para além dos pincéis e, sobretudo, o seu caráter
diferenciador que, por sua vez, substancia-se entre as tradições que se buscavam instituir na
Cidade de Goiás naquela época. Desse modo, as teorizações weberianas levam-nos a enxergar
o indivíduo atribuído de carisma como uma personagem da criação coletiva estruturada, na
maioria das vezes, às concepções culturais (e nas respectivas relações de poder) que regem o
mundo social em análise (WEBER, 1999, p.357-358). Se efetivamente o é, arriscamos dizer
que o processo de ressignificação cultural da Cidade de Goiás, de forma enviesada, legitimou
o nome de Goiandira do Couto simbolicamente entre os seres, fazeres e saberes relacionados
às tradições que se pretendiam (re)criar 115.
Vale lembrar, que essas combinações abalizavam-se na ideologia baseada na
existência de berço cultural glorioso. Nisso, compartilhando das ideias de Hobsbawm e
Ranger (1997), verifica-se que a instituição desse conjunto de práticas consistiu-se do
pensamento de continuidade do passado por ações representativas forjadas pela inventividade
de seus atores no presente. De tal modo, constatamos que “inventam-se tradições quando
ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas, tanto do lado da demanda quanto
do lado da oferta” (HOBSBAWM e RANGER, 1997, p.12). Diante tais problematizações, o
que ponderamos condiz com as realidades vividas e praticadas na Cidade de Goiás, entre os
anos de 1940 a 1960.
No campo artístico, estamos certos de que esse discurso/prática se reproduziu.
Possivelmente, não tão visível quanto nas manifestações populares. Contudo, não menos
importante. Mesmo porque, foi esse o lugar onde nasceu a “vertente preservacionista”,
patenteada aos artistas vilaboenses, Octo Marques (1915-1988) e Goiandira do Couto que, por
sua vez, realçou-se no meio artístico nacional e internacional figurando a paisagem histórica
da Cidade de Goiás utilizando-se deste estilo pictórico genuinamente local. Entretanto, antes
do lado de cá (margem direita) do Rio Vermelho. Para maiores esclarecimentos históricos e histográficos,
conferir: (TEDESCO, 2009).
115
“No cinema Progresso [primeiro cinema falado do Estado e inaugurado em 1937, na Cidade de Goiás],
Wadjou Rocha Lima costumava promover um concurso para eleição da “Rainha do Carnaval”, como ainda relata
Goiandira na entrevista, oferecendo a cada pessoa que comprava sua entrada, uma cédula onde seria colocada o
nome de uma candidata ao título, e ela mesma foi eleita diversas vezes rainha do carnaval, a foliã mais animada,
a fantasia mais bonita, o que lhe rendeu o título, ainda relembrado em reportagens sobre os antigos carnavais de
Vila Boa e de sua “eterna rainha” (....). No carnaval de 1981, houve um baile promovido pelo Lions Clube, com
o tema: “Lembranças de Carnaval”, homenageando “grandes figuras dos carnavais de Vila Boa”. Entre os
homenageados se destacavam o maestro João Ribeiro e Goiandira do Couto. Neste carnaval, Goiandira diz ter
sido a última vez que foi Rainha” (FERREIRA, 2011, p.90).
114
116
As artes plásticas foram a base do pensamento modernista brasileiro e sinônimo de um “novo estilo” de
linguagem e cultura envolvendo especialmente as questões político-culturais do Brasil, nos anos de 1920. Não
seria possível defini-lo em uma nota de rodapé. Para aprofundamentos preliminares, indicamos: Cf. RIBEIRO,
Marília Andreas. O Modernismo Brasileiro: arte e política. Revista ArtCultura, Uberlândia, v. 9, n. 14, p.115-
125, jan.-jun. 2007. Disponível em: <http://www.artcultura.inhis.ufu.br/PDF14/Marilia%20Andre%20Ribeiro.
pdf>. Acesso em: 02 mar. 2016. Reiteramos que, por se tratar de tema complexo, amplo e fértil, sugerimos
ainda: Cf. SANTOS, Paula Cristina Guidelli dos; SOUZA, Adalberto de Oliveira. As Vanguardas européias e o
modernismo brasileiro e as correspondências entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira. CELLI –
COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009,
p.789-798. Disponível em: <http://www.ple.uem.br/3/celli_anais/trabalhos/estudos_literarios/pdf_literario/083.p
df>. Acesso em: 02 mar. 2016.
117
"A Sociedade Pró-Arte de Goiás inicia suas atividades em novembro de 1945, apresentando ao público a
orquestra recém-formada pelo maestro Érick Pipper, endossada por uma coletiva intitulada: “I Exposição de
Pintura, Escultura e Arquitetura de Goiás”, composta por apenas dez trabalhos. Eventos dessa natureza foram
realizados em 1946 e 1947, durante comemorações de aniversário da Pró- Arte, com exposições bem mais
concorridas. Além da música, a associação colaborou com a literatura e incentivou as artes plásticas durante todo
o período de sua existência. O objetivo era favorecer e unir os artistas, para divulgar a arte. Entre os associados
estavam Octo Marques, Goiandira do Couto, Antônio Henrique Péclat, Jorge Félix de Souza, Regina
Lacerda, José Edilberto da Veiga, Brasil Grassini, Amália Hermano, Professor Crunwald Costa (Costinha) e
Érick Pipper, regente da orquestra" (GOYA, 2010, p.202).
118
O Batismo Cultural de Goiânia é o marco que encerra o ciclo mudancista compreendido entre os anos de
1932 a 1942. Vale lembrar que os últimos anos desta década foram impactados pela eloquência da Marcha para
o Oeste. Sobre esses acontecimentos, sabemos dizer que ele pautou-se por atividades artísticas, culturais e
religiosas com a finalidade de apresentar ao Brasil a consolidação física de Goiânia, bem como a representação
plural da identidade moderna que o Estado de Goiás vivia/viveria a partir de então. Programado para acontecer
entre os dias 1° a 11 de julho de 1945, o ápice das atividades concentrou-se no dia 05, devido aos intensos
festejos dotados de alto grau simbólico das conotações de poder. Historicizando essas representações, notamos
inúmeros paradoxos com os arquétipos referentes às tradições do berço, tangíveis na apregoada modernidade
proferida, de igual maneira, pelas autoridades estadual e federal envolvidas na fundação deste novo tempo.
Afirmamos que sejam do ponto de vista político, econômico e, sobretudo, cultural estas apropriações que
115
coexistiram nos marcos, nos símbolos, nos poderes e nas instituições outorgadas da investidura moderna.
Sugerimos aprofundamento neste tema e suas respectivas dicotomias, em: Cf. (ARAÚJO JUNIOR, 2011), e
(COSTA, 2007).
119
Ressaltamos que os dados biográficos oficiais informam que Goiandira do Couto, nesse ínterim, participou da
III Exposição de Pintura, Escultura e Arquitetura da Sociedade Pró-Arte de Goiás, ocorrida em 1947.
116
de espelhar-se em tendências do Moderno, mas não nos possibilita afirmar se era, de fato, um
movimento de vanguarda ou não, tiveram chegada tardia na Cidade de Goiás.
O Romantismo, indiscutivelmente, fez tradição entre os artistas plásticos
vilaboenses convidados para constituir a efêmera organização de artistas do estado de Goiás.
Pode-se abstrair dessa passagem da protagonista neste movimento de tendência modernista
(sutilmente avesso às suas convicções artísticas, culturais e políticas) uma amostra do precoce
prestígio e reconhecimento social daquela que foi notável representante de muitas tradições.
Nesse sentido, tratamos esta e outras razões convenientes como cabíveis justificativas para
que outra união se constituísse, paralelamente, entre Goiandira do Couto, Octo Marques,
Regina Lacerda, José Edilberto da Veiga e Ipiranga Curado, em 1947.
Esses expoentes da arte goiana se organizaram em um movimento artístico
independente que, de modo subjetivo, pode ser interpretado como um marco na história das
artes plásticas na Cidade de Goiás. Trata-se do I Salão de Pintura dos Amadores Vilaboenses.
O referido evento/movimento foi algo meticulosamente pensado pelos nomeados, certamente
com objetivo de consolidar a “vertente preservacionista” a fim de fazê-la visível ao público,
ao mercado de arte e aos “incontáveis continuadores de seus temas e técnicas”, acrescenta
Corrêa (2003, p.253). Era preciso, realmente, manter o foco na primordial empreitada dos
guardiões naquela época: preservar tradições e/ou (re)inventá-las em favor das mesmas. Por
esse motivo, acredita-se que, diante destas circunstâncias, pareceu-lhes um contrassenso
dissuadi-las para outras frentes e/ou fronteiras culturais. Nesse sentido, dada a relevância
histórica e metodológica do documento que descreve, em pormenores, as concepções da
primeira exposição coletiva dos artistas amadores da Cidade de Goiás, optamos por
transcrevê-lo na íntegra.
120
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Primeiro Salão de Pintura dos Amadores Vilaboenses”. Cidade de Goiás, 01 de
junho de 1947. Ano IX, N.º 344, p.01. Fonte: AFFSD.
121
Nomenclatura que (também) nos utilizaremos, doravante, para referirmos à protagonista, Goiandira do Couto,
tendo em vista a cientificidade dos argumentos construídos nesta direção.
122
“Em 1° de dezembro de 1952, nascia a Escola Goiana de Belas Artes (EGBA), primeira instituição escolar de
ensino superior especializada no ensino artístico em Goiânia. Na ata de fundação, constam os nomes de oito
professores que fizeram parte do primeiro corpo docente da Escola, entre os quais, seus idealizadores: Frei
Nazareno Confaloni, Luiz da Glória Mendes, José Lopes Rodrigues, Henning Gustav Ritter, José Edilberto
Veiga, Jorge Félix de Souza, Antônio Henrique Péclat e Luiz Augusto do Carmo Curado. Com o seu regimento
interno integralmente aprovado pelo Conselho Nacional de Educação, a Escola surgia com a clara intenção de
integrar valores artísticos e a urgente necessidade de formar novos elementos, servindo de apoio para plano de
pesquisas e trocas de ideias, conforme aponta Costa (1955, p.9), a partir do regimento interno aprovado no
Artigo 1° e 2° e 3° da Revista Renovação. A elaboração desse regimento obedeceu ao modelo da Escola
Nacional de Belas Artes (ENBA), porém com inovações: a primeira escola a registrar, oficialmente, no Brasil, o
Curso de Desenho Aplicado” (VIGÁRIO, 2014, p.132-133).
118
123
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Exposição de Quadros”. Goiás, 01 de novembro de 1959. Ano XXII, N°. 726,
p.01. Fonte: AFFSD.
119
Cada um no seu estilo, cada um de um jeito, eu não posso falar. (...) Eu sinto
o que vejo, o que estou vendo aí. Agora eu ter que adivinhar? Mas, eu não
destacaria nenhum nome nas artes plásticas em Goiás, não falo porque tenho
amizade com todos... Quando eu dou entrevista, a única coisa que peço é
para não tocarem em nome de outros pintores. Cada um sente de um jeito...
Como muitos já não gostam da minha arte, dizem que é muito caprichada,
muito detalhada, fotografia... Outros já gostam. Depende da pessoa
(COUTO apud BRITTO, 2009, p.01).
merecem ser vistas pelo viés da negociação entre a comunidade e a artista-guardiã como um
caminho possível para se preservar a memória da cidade que existiu - berço da cultura goiana
-, uma vez que, por ela, pautar-se-ia as representações da urbe que se pretendia reconstruir: a
cidade-patrimônio. Afinal, é atributo das tradições espelhar-se no passado para projetar o
ideal de futuro, postula Hobsbawm e Ranger (1997, p.10).
Sob esse ponto de vista, recorremos a um aspecto importante relacionado às
prerrogativas desse provável agenciamento social ajuizado representativamente, com a artista
em estudo. Pelo visto, parece-nos estar embutida a mútua condição endógena dos
instrumentos, das concepções, dos atores e suas finalidades como critério das convenções
articuladas para se estabelecer nos “jogos” culturais e de poder protagonizados, na Cidade de
Goiás, especialmente, após o paradigma da mudança. Todavia, algumas arestas ainda
permaneciam latentes e, consequentemente, alvo da resistência coletiva em meio a essa
realidade transitória. Atrevemo-nos, inclusive, cogitar que uma linha tênue separava as
sensibilidades poéticas, lúdicas, nostálgicas e orgânicas da paisagem colonial vilaboense
engendradas de diversas formas nos discursos dos guardiões das velhas e novas tradições,
e/ou que mantiveram-se correlatos ao acentuado sentimento de apego histórico e patrimonial
que a população vilaboense, ao mesmo tempo, se apropriava. Considerando esses
pressupostos afirmamos que, a partir dos anos de 1950, a Cidade de Goiás passou a vivenciar
uma relação complexa com os representantes oficiais e, burocraticamente, instituídos pelo
poder público federal, para gerir o patrimônio cultural124.
Lembramos que estes atos, à época, eram de competência do Departamento do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - DPHAN. Tamaso (2007), no quarto capítulo de
sua tese, “O Paradoxal Início da Restituição”, deu relevo à atuação dessa instituição na
Cidade de Goiás. A autora promove uma digressão aos primeiros anos desse contato, ocorrido
em 1939, e evidencia a efervescência dos dissensos em relação às propostas de tombamento
e/ou elevação da cidade à categoria de “Monumento Histórico”. Foi-nos apresentada uma
discussão acalorada. Provavelmente, as incertezas que abatiam sobre a população naquela
época se intensificaram diante da linguagem dos pareceres técnicos e dos modos como esses
representantes oficiais reagiram ao “valorar”125 as edificações públicas, particulares e
124
“O patrimônio cultural deve ser entendido como um campo de lutas a que diversos atores comparecem
construindo um discurso que seleciona, se apropria de práticas e objetos e as expropria. (...) presentes nas
manifestações patrimoniais, sejam compartilhados de modo homogêneo por uma determinada coletividade. (...)
O patrimônio cultural, quando bem compreendido, expressa diferentes representações coletivas que estabelecem
múltiplas conexões entre si”. (VELOSO, 2006, p.438-440).
125
“Contrastando com outras cidades formadas ao influxo da mineração, Goiás não apresenta um sentido de
riqueza ou, ao menos, conforto nas suas edificações. A pobreza de recursos construtivos, consequentemente
121
religiosas que compunham a paisagem urbana local quase dez anos após os primeiros
intentos. A pesquisadora segue argumentando que esse lapso temporal causou um
distanciamento da comunidade com a instituição federal, subentendendo que durante esse
período não houve aproximações, ao menos, para esclarecer-lhes os sentidos e as diretrizes
das políticas públicas, adotadas pelo órgão, durante o mapeamento da cidade, visando
implementar os primeiros tombamentos (isolados) do patrimônio cultural material da Cidade
de Goiás126. Assim, com a retomada dos intentos iniciais, ocorridos por volta de 1948, seus
emissários enfrentaram a resistência da comunidade, ora por meio de ofícios às autoridades
políticas locais, outras vezes lançando mão da impressa para manifestar as insatisfações e os
desentendimentos empreendidos com esses outsiders à cultura vilaboense. Eis alguns
exemplos:
Aquele alto funcionário [se referindo a Edgar Jacinto Silva] não foi bem
compreendido e daí veio a suposição de que aquele departamento do
Governo Federal desejava interditar prédios e monumentos, invadindo os
direitos de posse e querendo transformar a cidade em tapera. Mas, não há
nada disso. O que realmente existe é que o SPHAN tomará providências para
restaurar todos os edifícios, sem nenhum ônus para os proprietários e os
entregará posteriormente livres de qualquer retribuição aos legítimos donos
como o fez com a Igreja da Abadia (TAMASO, 2007, p.123).
talvez em um meio social incipiente e de organização precária, fez com que guardem um aspecto, até
certo, ponto rústico. Comprova este fato o pequeno número de casas assobradadas; pois que o “palácio” dos
Governadores é um casarão térreo onde a nobreza é apenas entrevista no hall de entrada. Ainda nesse sentido,
verifica-se nas casas de moradia a falta de forros, em quase todos os cômodos, e até mesmo, o emprego de pedra
tosca na pavimentação dos corredores de entrada” (Processo de Tombamento N° 345-T-42, Volume I, p.27 apud
(TAMASO, 2007, p.122) (grifo nosso).
126
Os tombamentos foram homologados, segundo Tamaso (2007, p.127), em 13 de abril de 1950. “Após analisar
o material levantado por Edgar Jacinto da Silva, o Chefe da Secção de Arte da D.E.T., Alcides da Rocha
Miranda, propõe, ainda em 1948, que sejam “inscritos nos Livros do Tombo, para os efeitos do Decreto-lei n° 25
de 30 de novembro de 1937, os seguintes logradouros, edifícios e obras de arte devidamente especificados”:
Largo do Chafariz, Rua João Pessoa (antiga Rua da Fundição), Igreja de N. Sª. da Boa Morte, Igreja N. Sª. do
Carmo, Igreja N. Sª. da Abadia, Igreja de São Francisco, Igreja de Santa Bárbara – todas incluindo imagens,
móveis e objetos de culto -, Casa de Câmara e Cadeia, Palácio dos Governadores, Antigo Quartel do XX°
Batalhão de Infantaria Militar (Quartel do Vinte), Chafariz da Boa Morte, esculturas pertencentes ao Palácio dos
Governadores (Armas de Portugal e dois bustos de pedra no palácio de Goiânia e Imagem de N. Sa. do Rosário
da antiga igreja, atualmente no Convento dos Dominicanos” (TAMASO, 2007, p.123). Cf. Idem.
122
tema e espaço fundamentalmente desprovido “de uma política de gestão efetiva dos bens
tombados que viesse a provocar alterações no desenvolvimento urbano” (DELGADO, 2003,
p.417). Fazemos essa menção, por entender que a suposta falta de perspectiva pode ser um
dos fatores que justifique a continuidade das manifestações públicas desqualificando as
intervenções técnicas e, consequentemente, refutando as presenças tanto dos gestores quanto
da própria instituição na Cidade de Goiás.
127
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Protesto Contra o DPHAN”. Cidade de Goiás, 17 de janeiro de 1960. Ano XXII,
N°. 732, p.01. Fonte: AFFSD.
128
“A identificação e valorização do patrimônio cultural, especialmente daquele designado como imaterial, pode
ensejar o fortalecimento do espaço público, espaço privilegiado onde múltiplos grupos sociais e suas
manifestações culturais e identitárias podem ser reconhecidos como representações legítimas da cultura
brasileira. (...) Em suma, o conceito de referência cultural ressalta o processo de produção e reprodução de um
determinado grupo social e aponta para a existência de um universo simbólico compartilhado” (VELOSO, 2006,
p.443-444).
129
A tese de enraizamento cultural da população vilaboense foi apropriada a partir de: (MORAES, 2012, p.30-
45).
123
130
Jornal “O Vilaboense”, “40 ANOS DA OVAT, Promovendo a Cultura e Resgatando as Tradições”. Por:
Elder Camargo Passos; Goiás, jan/fev. 2006. Ano 13, N°. CXLVII; p.10. Tiragem: 8000 exemplares.
125
134
Para conferir, ver documento no anexo II.
127
aproximar-se das entidades ligadas à cultura na Cidade de Goiás, conforme expõe o artigo 6°
do Estatuto da OVAT que ora subscrevemos:
135
Expressão do senso comum que denota posse e distinção no que diz respeito à cultura local. Termo recorrente
nos discursos dos guardiões da tradição, ainda, nos dias atuais.
128
136
Previamente, consideramos importante esclarecer que: “política cultural é entendida habitualmente como
programa de intervenções realizadas pelo Estado, entidades privadas ou grupos comunitários com o objetivo de
satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas representações
simbólicas. Sob este entendimento imediato, a política cultural apresenta-se assim como o conjunto de
iniciativas, tomadas por esses agentes, visando promover a produção, distribuição e o uso da cultura, a
preservação e a divulgação do patrimônio histórico e o ordenamento do aparelho burocrático por elas
responsável” (COELHO, 1997, p.293).
130
Esta cidade, que por longos anos foi a capital do Estado, naturalmente, está
dotada de grande número de edifícios pertencentes ao patrimônio estadual.
[...] Lamentavelmente, com a mudança da capital, deixaram de receber os
indispensáveis cuidados e caminham aceleradamente para a ruína. [...] é
mister que o governo do Estado tome providências a respeito, sob pena de
ver esse patrimônio irremediavelmente perdido. Alguns milhares evitarão a
grande perda (TAMASO, 2007, p.141).
137
Para amplo conhecimento destas diretrizes, informamos que o estatuto da OVAT encontra-se, parcialmente,
no anexo II.
131
138
“Mauro Borges Teixeira nasceu em Rio Verde (GO), no dia 15 de fevereiro de 1920, primogênito de Pedro
Ludovico Teixeira e Gercina Borges. Casou-se com a gaúcha Maria de Lourdes Dornelles Estivallet. (...). Ao
lado da trajetória individual, outro elemento contribuiu na trajetória política de Mauro Borges: sua vinculação a
uma memória familiar que se aproxima da história da região, pela ação de Pedro Ludovico, memória consagrada
pela historiografia e pela memória coletiva, a principal liderança política em Goiás. Assim, não foi casual o
encontro de Mauro Borges com a política. Logo, desde muito cedo, acompanhou de perto os meandros do poder,
nas articulações e nos posicionamentos assumidos por seu pai em favor da Revolução de 1930, construção de
Goiânia, resistência ao movimento paulista de 1932 e instalação do Estado Novo. Os estudos iniciais foram
realizados na cidade natal. Com a mudança da família para a Cidade de Goiás, cursou humanidades no Lyceu. A
seguir, em 1938, foi para o Rio de Janeiro e ingressou na Escola Militar de Realengo, da qual saiu aspirante-a-
oficial da arma de infantaria, em 1941. O fato coincide como momento de mudança na organização do Exército,
ocasionada pela instalação do Estado Novo” (FAVARO, 2015, p.26).
139
Em entrevista concedida à Tamaso (2007, p.142), em março de 2003, o ex-governador Mauro Borges narrou
a efeméride de sua chegada ao Palácio Conde dos Arcos, antiga sede do governo estadual: “Quando nós
chegamos lá, eu me lembro bem, as portas estavam abertas, as janelas abertas pareciam uma casa em abandono,
não tinha ninguém tomando conta, nós entramos lá e vimos uma porção de pequenos animais, cachorros ... onde
eram os jardins, cavalo pastando... dentro da casa... no Palácio... uma coisa horrível. Eu achei estranho aquele
abandono. Causou-me certa revolta o descaso de lá, das autoridades, quanto à conservação daquele velho
Palácio. E aí mandei imediatamente fechar, botar cadeado nas portas, mandei imediatamente fazer uma reforma
geral no Palácio... pintar tudo... pra poder voltar o que era aquele velho casarão. [...] E foi até uma sugestão da
Lourdes de transferir provisoriamente... ela falou “Mauro, por que você não faz como Minas Gerais que leva a
capital para comemorar o Tiradentes... a capital se muda para Ouro Preto... por que você não faz aqui em Goiás a
mesma coisa”? Eu falei: ótima ideia a sua, eu vou fazer isso”.
132
Texto Completo da Lei que Colocou a Cidade de Goiás Sob Proteção Especial
140
Para constar, relembramos que o episódio da palestra proferida pela folclorista, Regina Lacerda, analisada na
sessão anterior, aconteceu, aproximadamente, sete anos da promulgação da Lei 3.635 e tratou-se de uma
solenidade de reabertura do referido Gabinete Literário Goiano, a qual fora organizada pela OVAT que, à época,
estava pouco mais de três anos em franca atuação cultural na Cidade de Goiás. Os feitos institucionais serão
apresentados com a evolução das problemáticas.
135
Nós pensávamos o que poderíamos fazer para que Goiás fosse um polo
chamativo turístico. Ela tinha várias festas religiosas, folclóricas inseridas
nas religiosas, mas nós tínhamos que salvar um segmento que desse
continuidade e também marcasse. Optamos pela Semana Santa que já vinha
desde 1700, porém já “estrupiada”. Daí, quando nós passamos a levantar,
depois de escolhido o tema, lendo os livros da irmandade [o entrevistado
refere-se a Irmandade dos Passos], como é que funcionava. Aí, que nasceu a
volta da Procissão do Fogaréu, que ela tinha desaparecido. Ela já tinha
existido aqui em Goiás (PASSOS apud FERREIRA, 2011, p.70).
136
141
Causou-nos curiosidade o relativo desenlace dos nomes de Elina Maria, Joíza e Joice, logo após a artista ter
se referido a alguns membros fundadores da OVAT. Investigamos e descobrimos que a primeira tratava-se de
uma forasteira com grande potencial criativo. As duas últimas, eram irmãs e vilaboenses, porém não
constituintes às famílias tradicionais. Ainda assim, todas tiveram importante atuação, assim como os demais
membros, nos começos desta entidade. Esta entrevista foi publicada por Britto (2008), sob o título: “O Tecido do
Tempo”.
142
Essa mesma visão reafirma-se quando lemos as memórias transcritas de Hercival Alves de Castro, membro
fundador, sobrinho paterno do ex-prefeito municipal, Zaqueu Alves de Castro, mencionado nesta tese como um
dos símbolos do Carnaval vilaboense, na primeira metade do século XX. Enquanto fundador da OVAT, declarou
em entrevista: “Após diálogos e reflexões nós definimos um projeto: uma organização que canalizasse e
englobasse todos esses anseios, uma organização que não visasse apenas o resgate de período, de um fato, de
uma comemoração, mas das tradições como um todo. Nossas reuniões eram realizadas sempre na casa de
Goiandira. (...) Sentíamos em sua casa, em condições de expandir, sentimentos que às vezes não possuíamos em
nossa própria casa” (CASTRO apud BRITTO, Entrevista: “Tempo reencontrado”, 2008, p.210). Cf: (BRITTO,
2008).
137
143
Para maiores detalhes sobre essa encenação teatral, bem como a respeito da referida roteirista, conferir:
(PRADO, 2014).
140
O prédio que abriga o Museu da Boa Morte foi construído por obra da
associação dos Homens Pardos, no século XVIII, em 1789. Inicialmente,
ocupou a função de Igreja da Nossa Senhora da Boa Morte. Os alicerces
foram edificados sobre o que restou da casa de Bartolomeu Bueno da Silva.
Com as reformas, este ano, vestígios de cerâmica confirmaram sua história.
O Museu da Boa Morte fica na Cidade de Goiás, localizando-se na Praça dos
Jardins, próximo ao Palácio Conde dos Arcos, e é todo construído em taipa
(pau-a-pique), pedra, adobe numa multiplicidade de materiais. Foi fundado
em 4 de outubro de 1968. O edifício é tombado pelo Patrimônio Histórico,
via IBPC - Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural e pertence à
diocese de Goiás. Sua montagem teve a participação de Elder Passos de
Camargo (historiador e mentor), Goiandira do Couto (artista plástica),
Nice Luís Brandão, João Dimas e Antolinda Borges Baía, diretora há 28
anos (“O POPULAR” (Caderno 2), 1995, p.03) 144 (grifo nosso)
É nítida a evocação das raízes no passado colonial, acerca das possíveis origens
do lugar, associadas ao discurso retórico da OVAT, de acessão ao escultor pirenopolino, José
Joaquim da Veiga Valle (1806-1874). O acervo de obras sacras, de sua autoria, foi
144
Jornal “O Popular”, “Vida Nova para o Museu da Boa Morte”. (Caderno 2) Goiânia, segunda-feira, 23 de
janeiro de 1995 (p.03). Fonte: AFFSD.
142
A voz dos sentimentos de tradição de nosso povo fala, neste instante, à alma
da nossa mocidade entusiástica do velho Liceu de Goiaz. A iniciativa desse
punhado de jovens idealistas espelhando aos quadrantes dos rincões de nossa
terra a energia cívica dos antepassados, é prova de que a geração que
aponta no horizonte das atividades coletivas promete guardar o valioso
patrimônio passado com zelo e patriotismo. Goiaz ainda não tem um
museu. Somos um povo! As nossas relíquias shistóricas que vibram as fibras
de nascimento, estão isoladas aqui e acolá, sem o culto da coletividade e
sem o bafejo miraculoso que dá às gerações novas alento e força cívica. A
mocidade estudiosa do Liceu vai realizar a aspiração sadia de unir o
passado ao presente pela fala muda, porém significativa de nossas
preciosidades shistóricas, culturais e econômicas; o museu precisa tudo e
de tudo. Lá foi ouvida a voz idealista e sincera dos moços, Dr. Luiz do
Couto, valor intelectual, de primeira plana, abriu a volumosa e vetusta
porta do glorioso templo do passado e ofertando ao museu a histórica
cadeira de Damiana da Cunha, a catequista que salvou as populações do ódio
selvagem dos caiapós, sacrificando-se às vicissitudes da rudeza da tarefa de
apaziguar os ânimos das tribos que interceptavam o caminho do litoral para
as Minas de Cuiabá. (...) Felizmente sabemos já, é necessário reunir e
selecionar nossas possibilidades para que possamos em uma exploração
racional abrir a arca dos nossos tesouros porque, como estão, seremos
sempre, apezar que rico não há mais o poder. (...) Agora que iniciamos a
construção do monumental edifício cívico recolhendo em sacrário o que é
nosso e diz-nos respeito, contamos com a pródiga manifestação de
solidariedade de nossa gente, em entregando aos moços o que seja nosso
orgulho porque saberemos guardar em culto cívico o patrimônio que as
143
145
Cf. Jornal “A Razão”. “Organizemos nosso Museu”. Por: Celso P. Browm; Goiaz, 05 de setembro de 1937,
n°. 43, Ano II; p. 01. Fonte: AFFSD.
146
A ausência de um espaço específico, dedicado à preservação da memória, numa cidade histórica, permaneceu
latente na Cidade de Goiás até a chegada do DPHAN, em 1948. Segundo Tamaso (2007, p.123-125), durante as
observações técnicas, foi enviado um ofício, datado de dezembro de 1948, solicitando consulta “as autoridades
desse Estado sobre a possibilidade de cessão do edifício da antiga Casa de Câmara e Cadeia, a fim de que no
mesmo fosse instalado “Museu Arquivo” (p.123). O DHPAN já havia criado o MUBAN, aproximadamente em
1949, assim como detalha estudos da pesquisadora e antropóloga Isabela Tamaso (2007, p.123-125).
147
Para maiores esclarecimentos, conferir estatuto da OVAT no anexo II.
144
contadas a partir de 1948, quando o órgão federal tentou implantar as primeiras ações
político-patrimoniais na Cidade de Goiás. Finalmente, entendemos que estas “divergências”
subsidiaram, inclusive, a oficialização pública do modo de atuação da OVAT, a qual não
hesitou em defender seu espaço adquirido, inclusive, com ou sem a coparticipação da Igreja
Católica. No que se refere a esses termos, notabilizamos:
Art. 24° - A OVAT poderá fazer qualquer promoção artístico cultural como
também o levantamento e realizações de festas tradicionais e folclóricas
ligadas a tradição cultural da cidade. Como também promoções para a
preservação de aspecto físico da cidade em que a legislação do
tombamento prevê; Art. 25° - A Semana Santa da Cidade de Goiás,
primeiro empreendimento da OVAT, deverá ser mantido, preservados seus
aspectos artístico cultural com ou sem a participação dos poderes civis e
da igreja (ESTATUTO DA OVAT Livro n° A-1, fl. 04, 1978)148. (grifo
nosso)
Restaurei demais, aqueles santos tudo restaurado fui eu. Foi restaurado, eu
fiz de tudo. Essa riqueza de santo aqui em Goiás, tantos. São imagens, dedo
quebrado, eu fazia o dedinho e punha pés (...)o último que eu retoquei, que
eu reformei foi da Igreja do Carmo, mas foi só pretinho, parecia São
Benedito (...) só passei uma tinta porque ele estava sujo e velho, isso há
muitos (COUTO apud FERREIRA, 2011, p.112-113).
148
Estatuto da OVAT Livro n° A-1, fl. 04, 1978. Fonte: TABELIONATO 2º OFÍCIO.
145
informações e/ou à imagem sacra mencionada. Neste caso, a cognição dos imperativos
contidos no depoimento revelam a organicidade da divisão dos papéis nos trânsitos artístico
em prol dos horizontes nas tradições. Essas questões remetem às referências e aos referentes
que, supostamente, tenham influenciado o pragmatismo praticado pela OVAT. Nesse sentido,
encontramos no passado colonial vilaboense os ícones que sustentam a historicidade
perscrutada e estandartizada nas figuras de José Joaquim da Veiga Valle149 e o padre João
Perestrello150.
Quanto ao protagonismo de Elder Camargo Passos, presidente fundador da
OVAT, de acordo com Delgado (2003, p.421), estendeu-se para o campo das representações
público-pessoais, atribuindo-lhe o título de célebre “historiador” da cidade. Ainda, consoante
a autora, eram-lhe recorrentes os convites para proferir palestras, escrever livros e elaborar
folders. Desse modo, acreditamos que a apropriação deste espaço intelectual foi algo decisivo
para inculcar, no (in)consciente coletivo vilaboense, os ícones ligados à tradição que
fundamentalmente forjaram as bases ideológicas e a rede discursiva desta instituição,
estritamente, de acordo com as subjetividades construídas sobre os referidos representantes.
Sobre Joaquim da Veiga Valle e Pe. Perestrelo, o primeiro trata-se de um importante escultor
149
“José Joaquim da Veiga Valle nasceu em Pirenópolis (Meia Ponte), em 09 de setembro de 1806. Seu pai era
da família Pereira da Veiga e sua mãe da Pereira Valle. Seu pai foi influente na época como capitão de
ordenanças, ocupou cargos e empregos públicos. Na pesquisa bibliográfica, nada foi encontrado acerca da
infância de Veiga Valle, no entanto, sabe-se que, aos quatorze anos de idade, teve início sua produção artística
como escultor. Produziu até o ano de 1870, próximo ao ano de seu falecimento, em 1874. Aprendeu seu ofício
com o padre português Manoel Amâncio da Luz” (p.209). Cf. (MACHADO, 2014, p.204-224). Buscamos,
ainda, nas discussões de Siqueira (2008), acréscimos à presente: “(...) Artista de extrema importância para a
história da arte brasileira, Veiga Valle foi descoberto na metade do século XX por João José Rescala e, mais
tarde, sai realmente do anonimato com a criação do Museu de Arte Sacra da Boa Morte, que se constituiu na
maior referência em obras de arte goianas do século XIX. Uma das obras de arte que integram o acervo do
Museu consiste em uma pintura do Cristo Flagelado que saía, inicialmente, na Procissão do Fogaréu. Era uma
pintura de corpo inteiro em tamanho natural de aproximadamente 1,75 cm, cânones 8,0 (...) feita em tecido, com
aplicação de têmpera. O estandarte com a efígie do Cristo Flagelado foi exposto na abertura do Museu e,
segundo relatos de Elder Camargo de Passos, quando foi encontrado, ficava guardado junto com as alfaias e
paramentos da igreja, e já havia sido corroído pelas traças. Segundo suas informações, quando a senhora Darcília
de Amorim o entregou para a diretora do Museu, Antolinda Borges Baía, ele já estava sem a parte de baixo e,
então, a exímia artista plástica, Goiandira Ayres do Couto, colocou a franja na altura dos braços (já que a
parte da cintura para baixo havia sido danificada) (...) (p.142) (grifo nosso). Cf. (SIQUEIRA, 2008).
150
Este personagem é evocado pela OVAT especificamente para conferir-lhe o pioneirismo da prática que
envolve o ritual da Procissão do Fogaréu. Os interlocutores da mencionada organização vilaboense “diziam que
a Procissão do Fogaréu foi introduzida na Vila Boa de Goyazes, em 1745, pelo padre espanhol, João Perestrello
de Vasconcelos Spindola. De acordo com tal versão, o padre Spindola fundou em Goiás a Irmandade do Senhor
dos Passos e foi responsável pela ereção da mesma em altar lateral dentro da igreja matriz”, esclarece Silva
(2003, p.09). Não temos interesse em ampliar o debate sobre a desconstrução desta verdade conforme o autor
assim o faz em sua pesquisa, orientada pela professora e pesquisadora, Cristina de Cassia Moraes, referência na
historiografia goiana nas pesquisas relacionadas às confrarias e irmandades em Goiás, no século XVIII. Embora,
nuançar sobre essas questões torna-se inevitável a fim de garantirmos a cientificidade pensada para a narrativa
que pretendemos encadear no próximo subitem, o qual privilegiará análises sobre a concepção estética da
Procissão do Fogaréu, credenciada à Goiandira do Couto, artista que supostamente era vista pela OVAT como
símbolo, no presente, das tradições do passado. Cf. (SILVA, 2003).
146
151
Estatuto da OVAT Livro n° A-1, fl. 04, 1978. Fonte: TABELIONATO 2º OFÍCIO.
152
A obra literária, “Chegou o Governador”, do escritor goiano, poeta e folclorista, Bernardo Elis, relata, por
uma visão romanceada, o envolvimento amoroso entre a filha do governador da Província de Goiás, Joaquina
Porfíria Jardim, com quem Veiga Valle contraiu matrimônio. Mesmo por uma abordagem ficcional, a obra
cotejada problematiza aspectos da vida privada e o complexo desenrolar dos fatos num mundo social regido por
determinações culturais muito estáticas, no qual o controverso e o contrastante podem ser vistos como
ressonâncias que se instalaram do período colonial para o imperial, temporalidade em que se localiza o que se é
dito por verossimilhança, atributo pelo qual se baseia o desenrolar desta trama. Cf. (ELIS, 1987).
153
Termo utilizado aos nascidos na cidade de Pirenópolis, município do Estado de Goiás. Trata-se de mais uma
das “cidades históricas” goianas fundadas no século XVIII, auge do ciclo do ouro.
147
parentesco com a maior autoridade política provincial, bem como pelo seu ofício artístico
initerrupto, possibilitou-lhe assumir funções na esfera política e judiciária local. Com o passar
do tempo, estas múltiplas funções impediram-lhe de dedicar-se, integralmente, à sua arte, em
estilo barroco.
Conquanto, este aparente entrave serviu, paradoxalmente, como instrumento de
valorização monetária e simbólica de suas obras, as quais passaram a ser vistas não apenas
como representação de fé, mas, sobretudo, como sinônimo de poder econômico-social,
evidentemente, restrito às elites das quais ele era constituinte. Resta dizer, que Veiga Valle
não foi um renomado santeiro desprovido de crenças no âmbito do religare. Consoante
Machado (2014), “em 1833, Veiga Valle entrou para a Irmandade do Santíssimo
Sacramento154. Nessa sociedade só participavam membros da elite, que organizava
festividades religiosas, (...) obras de caridade e culto aos santos. (...) Essas irmandades
financiaram artistas no Brasil durante o barroco” (p.209-210). No tocante à elite vilaboense,
nota-se que as tradições herdadas dos tempos coloniais reconfiguraram-se por continuidades e
descontinuidades temporais, muito embora, seja perceptível que tanto no período imperial
quanto no republicano, não se perdeu de vista o eixo fincado na perspectiva de berço, a qual
sistematizou e, ainda, sistematiza as práticas culturais deste grupo em específico. Estas
análises sugerem a hipótese de que a associação entre a arte barroca, a Igreja e uma intensa
vida pública são os prováveis indicativos para que a OVAT tenha evocado este ícone da arte
sacra no Estado de Goiás, como bastião desta entidade fundada em 1965, período que
notabiliza-se pela intensa produção cultural calcada na (re)invenção das tradições vilaboenses.
Não obstante, prevalece a inquietude: onde pretendemos chegar com essa breve
exposição biográfica e suas respectivas associações? Pode-se conjecturar um pressuposto
eventualmente aceitável para estas imbricações. Sendo Goiandira do Couto, naquela época,
um símbolo vivo das referências tradicionais do passado colonial, ativamente engajada nas
tradições locais expressas, inclusive, através da sua arte preservacionista, evidencia-se, que
sua presença/participação entre os constituintes da OVAT, além de sedimentar a organização
em seus propósitos culturais, a imagem público-individual da artista, estreitamente, ligada aos
rastros de Luiz do Couto, certamente, traria a legitimidade social e discursiva àqueles
intencionados em forjar tradições “inventadas” institucionalmente.
154
Para maiores detalhamentos sobre a presença desta irmandade na Cidade de Goiás, no período colonial,
verificar em “As irmandades do Santíssimo: o culto ao Santíssimo Sacramento da Eucaristia”, discussão trazida
por: (MORAES, 2012, p.114-132).
148
155
Ademais, temos clareza de que, para a entidade, o apelo turístico era o principal foco motivador deste
empreendimento. Embora, observa-se que o discurso oficial, ou seja, “o resgate das tradições” foi vinculado no
âmbito público. Elder Passos de Camargo, presidente da OVAT, quando perguntado sobre o que motivou a
reinvenção da Procissão do Fogaréu e outras cerimônias da Semana Santa, respondeu categoricamente: “Nós da
OVAT, eu, Goiandira, Hercival e outros, nos preocupávamos quanto ao futuro de Goiás, turisticamente, o que
poderia ser feito. A OVAT surgiu de pessoas que já participavam das outras festas, Semana dos Passos, Semana
das Dores, Semana Santa (...). Naquela época [década de 1960] não e falava em turismo, turismo era algo,
podemos dizer, completamente desconhecido, mas já existiam pessoas que vinham visitar Goiás. Pensamos no
que poderia atrair os visitantes. Goiás sobreviveria através de uma faculdade? Nós achávamos que não, devido
estar próximo à Goiânia que possuía o Campus Universitário (...). Goiás poderia viver da agricultura? Não,
muito pequeno. Da pecuária? Também não. O que poderia ser então a vida futura de Goiás? O passado. O futuro
de Goiás era o passado” (PASSOS, Elder Camargo de. “O futuro de Goiás é o passado”. (p.195-196)
(entrevista). Cf: (BRITTO, 2008).
156
A amplitude das ações concernentes à OVAT interpenetra-se ao processo de revitalização cultural, urbanística
e econômica da Cidade de Goiás, não restritas apenas à Procissão do Fogaréu. Reiteramos que não é interesse
deste estudo o viés antropo-religioso. O olhar estritamente cultural mapeia os tentáculos desta organização em
constante interface com a protagonista, Goiandira do Couto. Como forma de torna-las, empiricamente, tangíveis
por meio da interferência (cooperação) desta entidade, nas tradições religiosas locais, é que ora destacamos o seu
discurso explicativo/descritivo, publicado nas seguintes palavras: “Outras cerimônias foram resgatadas e
revitalizadas como o Lava-Pés, a Adoração da Cruz seguida da Procissão do Enterro e a Procissão da
Ressurreição. Os personagens representados nas cerimônias são: 1. Fogaréu: Quarenta farricocos, fanfarra,
hospedeiro e figurantes; 2. Lava-Pés: Jesus e os doze apóstolos; 3. Sexta-Feira da Paixão: oito guardas romanos,
Nossa Senhora, Maria Cleófas, Maria Madalena, Verônica, três carpideiras ou heús, José de Arimatéia,
Nicodemos, São João, Abraão, Isaac, doze moças e doze rapazes que cantam o Perdão” (OVAT, 40 anos
Promovendo a Cultura e Resgatando as Tradições, 2005, p.09).
149
157
Segundo Moraes (2012, p.115), as Irmandades do Santíssimo Sacramento e do Bom Jesus dos Passos
ocuparam, semelhantemente, no século XVIII, espaços sagrados na igreja matriz em devoção à Senhora
Sant`Ana, padroeira da Cidade de Goiás, lugar de culto da elite branca. Sobre esta associação, a autora define e
explora alguns aspectos peculiares a que convém explicitá-los: “O culto em louvor de Jesus Cristo se
intensificou popularmente de maneira intensa no século XVIII. Nos Guayazes, ao menos em parte, as
responsáveis pela propagação desse culto foram as irmandades do Senhor Jesus dos Passos (...). Numa palavra, a
irmandade de Vila Boa já existia em 1751, com consistório próprio, dentro da igreja matriz de Santa Ana, o que
veio a ser corroborado ao nos depararmos com um cartaz de propaganda e um ofício de 1973, em que
convidavam para as comemorações do centenário de transladação da imagem do Senhor dos Passos da igreja
matriz para a de São Francisco de Paula de 228 anos de existência da citada irmandade. (...) Ao se tratar da
origem étnica (e confessional) dos irmãos e irmãs, a primeira regra para o ingresso na irmandade, estipulada nos
três termos de compromisso, exigia que fossem brancos, sem nota ou infâmia de Direito em fato(...) (MORAES,
2012, p.132-135).
158
Estatuto da OVAT Livro n° A-1, fl. 08, alíneas b e f, 1978. Fonte: TABELIONATO 2º OFÍCIO.
150
159
Jornal “O Vilaboense”, “40 anos da OVAT”. Por: Elder Camargo Passos; Cidade de Goiás, jan/fev. de 2006.
Ano 13, N°. CXLVII, p.10. Fonte: AFFSD.
160
“O guarda-roupa foi criado, desenhado e executado pessoalmente pela artista plástica Goiandira Ayres do
Couto, cujos materiais foram adquiridos através de fundos arrecadados com a população da cidade e uma
pequena verba da loteria estadual” (Idem, 2006, p.10). Percebe-se, que a lei estadual, 3.635/61, a qual colocou a
Cidade de Goiás sob a proteção do governo do Estado, estendeu-se, mesmo que de forma “pequena”, à
preservação dos bens imateriais reinventados, sobretudo, diante das novas concepções governistas engendradas
para o Oeste do país particularmente a partir dos anos de 1940.
151
partir das crenças que regem a fé popular161. Atentos a essas questões, cremos que não seja
por acaso, que os membros da OVAT, na ocasião do seu quadragésimo aniversário, tenham se
autodenominado “bandeirantes” da cultura162. Possivelmente, diante do êxito obtido ao
explorar a vastidão do universo cultural das tradições locais, estrategicamente, organizadas
em uma instituição que aparentemente camuflou-se numa representação endógeno-coletiva,
que inclusive favoreceu da conjuntura urbana e política ensejada da ressignificação cultural,
visivelmente, factível à absorção das construções propostas pela entidade naquela época.
As palavras de Hobsbawm e Ranger (1997) autorizam a explicação científica
de alguns argumentos empíricos aqui apresentados.
161
“Começamos a estudar a Semana Santa, para ver o que havia anteriormente. Por ouvir dizer das pessoas mais
velhas, ficamos sabendo da existência da Procissão do Fogaréu que havia desaparecido. Diziam que existia a
Procissão do Fogaréu aqui em Goiás, que mulher não podia acompanhar... Então começamos a pesquisar sobre
ela. (...) E no grupo, fui eu quem ficou responsável pela pesquisa sobre o Fogaréu. Comecei a pesquisar e a
primeira coisa que fiz foi ler os livros de ata da Irmandade, mas não encontrei nenhuma referência. Depois
encontrei um livro de receita e despesas e na leitura identifiquei em vários anos uma rubrica, pago a um
furnicoco – não era farricocos – pela saída na procissão e constatei que realmente existia a figura dos farricocos.
Conversei com minha avó, que era muito religiosa, e ela (...) também me contou que a Procissão era realizada na
Quinta-Feira, no dia das Endoenças, e citou a figura dos farricocos, que era um homem encapuzado (...). Depois
de todas as pesquisas, nós nos reunimos e fomos montando a celebração. O que já existia, nós aproveitamos para
aprimorar” (PASSOS, Elder Camargo de. “O futuro de Goiás é o passado” (p.196-197) (entrevista). Cf:
(BRITTO, 2008).
162
"A OVAT se orgulha de ser uma das responsáveis por manter essas tradições pulsando no cotidiano
vilaboense e uma das entidades precursoras na preservação do patrimônio imaterial brasileiro. Tudo começou em
1965 quando onze vilaboenses acreditavam que era possível acordar algumas manifestações que, outrora, se
encontravam adormecidas. Aos fundadores, nesse percurso, foram se associando outros bandeirantes na busca de
reviver práticas que caracterizavam o modo de ser dos moradores de Vila Boa” (Jornal “O Vilaboense”, “40
anos da OVAT”. Cidade de Goiás, jan/fev. 2006. Ano 13, N°. CXLVII, p.10. Fonte: AFFSD.
153
163
Jornal “Jornal de Brasília”, “Fogaréu de Farricocos nas ruas da velha Goiás”. Por; José Andersen; Sérgio
Habib. Brasília, 02 de abril de 1978, F-0907. Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?
bib=Tematico&PagFis=40502&Pesq=>. Acesso em: 09 dez. 2015.
164
Não há como escamotear o papel da imprensa no estabelecimento do discurso da OVAT entre os diferentes
segmentos sociais e culturais, dentro e fora do Estado de Goiás. A reprodução do discurso tradicional, as quais
associam práticas precípuas à cidade colonial fundada por bandeirantes paulistas, ou seja, lugar do berço da
cultura goiana. Foi, a partir dos anos de 1967, que propagação midiática se intensificou e, com isso, os
resultados esperados pela elite cultural começaram a dar seus primeiros sinais correlatos: turistas. Dada à
relevância desses discursos jornalísticos, selecionamos alguns deles, de distintas temporalidades, para exposição
e reflexão: “O Bispo e dezenas de fiéis católicos de Goiás, já estão na construção de uma alegoria viva da Paixão
e Morte de Cristo, a qual, segundo a Organização Vilaboense de Artes e Tradição, poderá suplantar as
manifestações de arte e de fé no estilo dos hábitos que são preservados na Espanha, na Itália e em Portugal. A
alegoria mostrará os capuzes vermelhos dos farricocos, os uniformes dos guardas romanos e a simbolização do
antigo e do novo testamento através das principais figuras, tais como: Isac, Abrão, João Evangelista, José de
Arimatéia e as 3 Heús (Jornal “O Popular”, “Semana Santa em Goiás terá comemorações em novo estilo”.
Goiânia, 4 de março de 1967, s/p. Fonte: AFFSD). “Tendo em vista bem divulgar as cerimônias religiosas da
Semana Santa na Cidade de Goiás, publicamos abaixo o programa oficial a ser cumprido êste ano na Vila Boa,
cuja colaboração estêve à cargo de uma comissão especial - OVAT - fundada com a finalidade de fazer reviver,
nos moldes antigos, as festas tradicionais da ex-Capital do Estado (Jornal “Folha de Goiás”, “Semana Santa em
Vila Boa: programa oficial”. Cidade de Goiás, 04 de março de 1967, s/p. Fonte: AFFSD). Finalmente,
“Tradicional encenação de inspiração espanhola, trazida pelo padre Perestrelo, no século 18, a Procissão do
155
OVAT, não apenas como um cortejo; mas, sobretudo, como um “espetáculo” que exalta o
culto às origens tradicionais da antiga Vila Boa de Goyaz.
Figura 16-A - Maria Madalena, 1967. Figura 16-B - Heú, lápis de cor, 1967.
Fogaréu, na Cidade de Goiás, mantém-se no posto de uma das manifestações mais importantes do calendário
religioso do Brasil. A cada edição, aumenta o cortejo que acompanha os farricocos pelas ruas estreitas e calçadas
de pedra da antiga Vila Boa. Este ano, milhares de pessoas do interior de Goiás, Goiânia, Brasília, São Paulo e
de países como Suíça, Alemanha e até da Nicarágua marcaram presença (...)” (Jornal “O Popular”, “Espetáculo
da Fé”. Goiânia, 29 de março, de 2002, p.07. Fonte: acervo da autora).
156
apresentados nas figuras 16-A e 16-B, representam a inserção de um instituto cultural que
prima pela centralidade destas manifestações. E, quando perguntado sobre o temor de uma
possível descaracterização desse símbolo das tradições (re)criadas pela OVAT, Elder
Camargo de Passos respondeu: “Acredito que, enquanto estivermos à frente da Procissão do
Fogaréu, isso não vai acontecer” (PASSOS apud BRITTO, 2008, p.203).
A partir desses desdobramentos, observamos as imagens em discussão, como o
retrato das concordâncias estabelecidas pelos guardiões da tradição. Se, de fato, não era
permitida a participação feminina nas procissões do século XVIII, notamos que a opção de
Goiandira de Couto foi evocá-las ao cortejo faustoso da Procissão do Fogaréu, artisticamente,
pela personagem Maria Madalena, que, na narrativa bíblica, simboliza o arrependimento. E,
a(s) Heú(s)165, conhecidas, popularmente, como carpideiras ou prateadoras, possivelmente,
inclusas no rito como representantes metafóricas das diversas dores humanas visíveis através
do feminino que, de alguma forma, mantinham-se vulneráveis à exclusão166.
Analisando os aspectos formais das imagens, destacamos, na figura 16-A, o
manto-azul celeste que recobre o corpo envolto em vestes esmaecidas que, mesmo sem rosto,
mostra-se, pela a postura ereta, tratar-se de uma personagem (mulher) relativamente jovem.
Levando em conta as pesquisas prévias feitas pela OVAT, acreditamos que a figuração alude
à assunção de uma nova postura comportamental da referida personagem. Porquanto, de
acordo com a narrativa bíblica, Maria Madalena protagonizou o episódio de livramento da
pena capital, - sanção aplicada às mulheres hebraicas flagradas em práticas consideradas
lascivas àquela cultura -, pela interferência emblemática do Cristo junto aos seus julgadores.
165
Já expusemos que a Procissão do Fogaréu e outras celebrações da Semana Santa, na Cidade de Goiás,
passaram a ser controladas pela OVAT, mais diretamente, a partir de 1966. Diante desta prerrogativa, a
assinatura da entidade, a (re)invenção e a ressignificação cultural, podem ser vista noutras manifestações
religiosas praticadas neste período. Nisso, inclui-se a (s) personagem (s) Heú (s). Siqueira (2014) ratifica-nos
esta característica quando reporta às celebrações da “Sexta-Feira Santa”, ocasião em que entoa-se o tradicional
“Canto do Perdão”: “Posteriormente, foi introduzido na cerimônia o toque da matraca, o Canto da Verônica, o
Canto das Heús e Via Sacra (...). O “Canto do Perdão” na Cidade de Goiás é, portanto, um réquiem, um ritual de
exéquias que se divide em seis momentos: a) a oração da via sacra, pelas rezadeiras da cidade; b) o canto de
algumas estações da Via Sacra (...); c) o toque da matraca e o Canto da Verônica; d) o canto das Heús; e) o
Canto das Sete Palavras (os anjos); f) o Canto do Perdão (Os pescadores). Diferentemente das cerimônias que
ainda são e das que eram realizadas nas outras igrejas, o Canto do Perdão na Igreja D`Abadia é mantido graças
ao esforço de jovens que tentam manter viva essa tradição” (p.149). É relevante mencionar que estes referidos
“jovens” (que de fato o é) são, em sua maioria, membros da OVAT. Portanto, representam a renovação da
entidade, dos seus princípios e das suas tradições. Cf. (SIQUEIRA, 2014, p.145-167).
166
“Nas pesquisas, constatamos que mulheres, tradicionalmente, eram proibidas de participar da Procissão do
Fogaréu. Mas, em 1966, como é que você proibiria uma coisa dessas? Até hoje ainda não tivemos uma mulher
vestida de farricoco na Procissão, também existe a questão do peso da tocha, é necessário caminhar descalço,
ficar parado algum tempo, a roupa que esquenta, etc” (PASSOS, Elder Camargo de. “O futuro de Goiás é o
passado” (p.200) (entrevista). Percebe-se que a “exclusão”, também, reconfigurou-se. O excerto da entrevista,
bem como sua íntegra, encontra-se em: (BRITTO, 2008).
157
167
“Uma peça de puro linho, com exatos 4,36 m de comprimento, 1,10 m de largura e delicados 0,34 mm de
espessura, tornou-se, ao longo dos séculos, a maior relíquia do catolicismo. E também o maior enigma da
história da cristandade. O tecido surrado, estreito e comprido, com manchas envelhecidas de sangue, queimado
em algumas áreas, traz estampada em suas fibras a tênue figura de um homem barbudo e despido de,
aproximadamente, 1,81 m de altura. Em toda a extensão da imagem impressa no pano, é possível ver as marcas
de ferimentos produzidos por chicotes, lanças e espinhos. A flagelação sofrida por quem deixou impressa sua
imagem foi tão brutal que, por si só, teria matado uma pessoa mais frágil. Não matou, mas abreviou sua
permanência na cruz, acreditam, cientistas de várias áreas que, há mais de um século, estudam o lençol
mortuário. Para os fiéis, não há dúvida: o pano realmente é o Sudário que envolveu o corpo de Cristo e foi
enterrado com ele, depois deixado na tumba quando de sua ascensão aos céus. Para os que não creem, tudo não
passa de uma fraude fabricada na Idade Média. No período feudal, o descobrimento de relíquias era uma das
atividades mais vantajosas para a Igreja Católica que assim aumentava seu domínio sobre a grande massa de
devotos da Europa que, em sua maioria, era constituída por servos analfabetos e supersticiosos”. Cf. Disponível
em: <http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/56/artigo273622-1.asp>. Acesso em: 01 abr. 2016.
168
Não nos restam dúvidas de que a Procissão do Fogaréu na Cidade de Goiás adotou uma cultura própria de
ressignificação constante do seu ciclo criativo. Embasamos esta afirmativa nas discussões formuladas até aqui e,
noutro dado informativo, que, pela pertinência, optamos por subscrevê-lo: “Em abril de 1989, conta-nos Maria
da Veiga, que ela estava na Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos e que o senhor Elder Camargo de
Passos, presidente da OVAT, e a senhora Antolinda Borges, pediram para que ela pintasse um novo Cristo para a
Procissão do Fogaréu, pois o atribuído a Veiga Valle passaria a ser acervo do Museu de Arte Sacra, ficando o de
sua autoria substituindo o do seu bisavô. Foi entregue a Maria da Veiga o sudário e ela o levou para seu ateliê e,
assim, criou um semelhante ao original. Maria relatou que: (...) Pintei em quatro horas. Saí de Goiânia (...), fui
para Goiás (...) e fui atrás de Elder na casa de sua mãe dona Altair para entregá-lo, pois eu estava com o
sudário original, e o da minha autoria, sendo que naquela noite o sudário que eu pintei saiu no Fogaréu”
(SIQUEIRA, 2008, p.148).
158
contribuição da OVAT, no que se refere ao ingresso real e simbólico das mulheres nesta
tradição (re)inventada, demonstra-nos uma eventual reatualização das permanências,
sensivelmente, incrustradas ao ethos da cultura local.
Sobre essas questões pressupõe um pensamento reflexivo sobre uma
conjugação rigorosa de normas manejáveis que desbordam do estético para o visual, conforme
sustenta Freitas (2004, p.03). Aliás, consoante Meneses (2003, p.15), as sensibilidades
capturadas de uma imagem exprimem o caráter metalinguístico intrínseco à
tridimensionalidade de suas funções - formal, social, semântico - que, por sua vez, são
igualmente atestados por Freitas (2004, p.04) como dimensões metodológicas essenciais ao
conhecimento historiográfico que se atreve a dialogar com esses testemunhos, sobretudo, com
aqueles de cunho artístico.
Nesse sentido, voltando a explorar a inserção dos prováveis “excluídos” das
celebrações vilaboenses, eis que, nos indícios iconográficos da tradição inventada na Cidade
de Goiás, encontramos a alusão ao personagem bíblico “Isaac”, filho de Abraão, o qual, à luz
da ética religiosa cristã, é visto como o “Pai da Fé”.
Ao fixarmos na imagem a seguir, (figura 17), vemos que recorrente ausência da
face recorrente, fora substituída pela postura perfilada e cabisbaixa da personagem que,
segundo o texto bíblico, quase serviu ao sacrífico religioso (fé), ato litúrgico previsto na
tradição hebraica antes Cristo169.
169
“A história de Abraão é a história do esforço e do labor. Aos olhos de Johannes de Silentio, é impossível
obter inteligência sem labor. Porém, se isso fosse possível, Abraão seria apenas um vulto. Ocorre, contudo, que
Abraão não somente deu o que tinha de melhor para Deus: existe algo muito maior nesse processo, isto é, existe
a angústia. O que acontece nessa história é que podemos (...) vê-la sob duas perspectivas: pela ética e pela
religião. Segundo a ética, Abraão quer matar (e por isso é assassino); já para a religião ele faz um sacrifício (e
por isso é um homem de fé). A angústia reside exatamente aí, isto é, em ver, pela perspectiva religiosa, que o que
faz Abraão é um sacrifício. Além disso, a fé torna esse ato ainda mais difícil. Com efeito, o sacrifício de Abraão
não é apenas um mero sacrifício. Para nosso autor, falar de Abraão implica necessariamente uma atitude de
coragem, visto que não é possível aos fracos imitá-lo. Kierkegaard (1979, p.126-127) ironiza a filosofia
sistemática que se achava tão difícil e profunda, afirmando que difícil mesmo é seguir o caminho de Abraão. (...)
Assim como a tragédia grega, também a história de Abraão não possui um fio condutor racional. Esta história se
encaixa bem na ideia de oculto e de reconhecimento que Aristóteles elaborou em sua Poética. Já o drama parece
ter se emancipado do destino e colocado muito de consciência na sua representação, porém, na visão de Silentio,
oculto e reconhecimento são necessários ao drama moderno, senão cairemos na estetização do nosso tempo. Se
na comédia temos um oculto sem sentido, no herói trágico vemos claramente uma relação com a ideia. Nosso
autor não vai se interessar aqui pelo oculto do cômico, antes deseja desenvolver o oculto na estética e na ética
para, dessa forma, mostrar a absoluta diferença entre o oculto estético e o paradoxo: “Assim, a estética exigia o
oculto e recompensava-o; a ética exigia a manifestação e punia o oculto” (...) (PAULA, 2008, p.63-67).
159
170
“Às cinco horas da tarde houve o sermão, e finalmente começou a procissão, que seguiu para a Matriz,
passando por todas as ruas da cidade. Centenas de pessoas, mulatos, negros, escravos na maior parte, abriram o
cortejo, fazendo exercícios de penitência que lhes haviam sido impostos na confissão. Traziam a parte inferior do
tronco envolta num vestido de mulher, o rosto escondido por um pano, o peito nu. Alguns carregavam cruzes de
mais de dois metros de cumprimento, outros estavam cingidos de cadeias, que arrastavam. Outros, por sua vez,
traziam ao ombro pesadas vergas de ferro, em torno das quais enlaçavam o braço, ou carregavam pesadas pedras
sobre a cabeça. Muitos se flagelavam, mas isso parecia ostentação, pois se açoitavam cuidadosamente e
lentamente, que não podiam notar grandes consequências, embora se esforçassem por expressar as dores por
mímicas” (POHL, 1976, p.145). Capturamos ainda, nas “Reminiscências” de Albernaz (1992), outra
representação sobre uma provável procissão que ocorria, também, às cinco da tarde, na Cidade de Goiás, lugar
onde a autora nasceu no início do século XX: “No domingo que precedia à Semana Santa festa do Senhor dos
Passos, com procissão organizada pela irmandade (...). Na sexta-feira da mesma semana, festa de Nossa Senhora
das Dores - Maria procura Jesus. Procissão às cinco horas da tarde, da qual participavam só moças, que a
transformavam num desfile de elegância e competição; surgiam as toaletes especiais como vestidos de noivas, de
bailes e de formaturas. As moças se revezavam carregando o andor naquele mesmo trajeto usado pela procissão
dos Passos e das Dores, cantando o motete das Dores. A banda de música sempre presente, acompanhava em
toda a procissão em todo o trajeto” (p.38). Cf. ALBERNAZ, Ondina de Bastos. Reminiscências. Goiânia: Kelps,
1992. Finalizando, sobre a Quarta-Feira “santa” encontramos em Moraes (2012), a presença da Irmandade Bom
Jesus dos Passos nos festejos deste dia, em particular: “Na quarta-feira santa, a mesma irmandade realizava outra
procissão, chamada de Passos da Paixão, criada para relembrar os incidentes da jornada de Jesus Cristo até o
local de seu sacrifício” (...) (p.147-148).
162
dos discursos visuais nos possibilita entender como as tradições inventadas, ao serem
praticadas no cenário urbano colonial da Cidade de Goiás, a nosso ver, contribuíram para
potencializar o fascínio e o encantamento subjetivos171; os quais, diametralmente, aparentam
estar consignados aos membros e às ações promovidas pela entidade, à medida que
consideramos o lugar de autoridade ocupado pela OVAT, num curto espaço de tempo, a
despeito de uma cidade, culturalmente secular.
Portanto, faz parte do senso comum a relevância das imagens para a
consolidação desse processo e, respectivamente, os “ganhos” institucionais, mesmo que
desiguais, em relação aos demais envolvidos. Afinal, o que precede ao ideário da Procissão do
Fogaréu, além dos esboços da tradição (croquis) criados por Goiandira do Couto, configura-se
no lastro das tentativas, em grande parte, protagonizadas pela artista, de ressignificar
culturalmente a Cidade de Goiás sob as bases da vertente preservacionista. Trata-se afinal de
documentos iconográficos representativos à primeira forma de visualização material tanto das
aspirações dos novos guardiões, quanto da “festa” em forma de tradição, bem como dos
modos/meios utilizados para a referida coalisão institucional, sistematizada, pontualmente,
para respaldar os começos da OVAT. Vale assinalar, que o “espetáculo da fé” possui outros
ícones a serem apresentados, os quais, em momento algum, passam-nos a impressão de serem
documentos que não se esgotam de significados atinentes às problemáticas abordadas. Nesse
sentido, convém expô-los em análise:
171
Sobre essa relação espaço e cultura, no que concerne às imbricações do patrimônio imaterial no material,
Veloso (2006), acentua que: “A identificação e valorização do patrimônio cultural, especialmente daquele
designado como imaterial, pode ensejar o fortalecimento do espaço público, espaço privilegiado onde múltiplos
grupos sociais e suas manifestações culturais e identitárias podem ser reconhecidos como representações
legítimas da cultura brasileira. A ideia de referência cultural, além de permitir a ênfase nos laços sociais entre os
indivíduos, reforça a possibilidade de formação de grupos (...). Em suma, o conceito de referência cultural
ressalta o processo de produção e reprodução de um determinado grupo social e apontam para um universo
simbólico compartilhado” (p.443-444).
163
172
Expressão utilizada pela entidade, quando na ocasião dos “40 Anos da OVAT”, ao elencar as realizações
conferidas à organização, durante este lapso temporal, conforme subscrevemos na sessão anterior. Cf. OVAT, 40
anos Promovendo a Cultura e Resgatando as Tradições, 2005, p.13 (catálogo comemorativo).
173
Ainda neste subitem explicaremos o porquê da relativização conferida ao protagonismo do Cristo na
Procissão do Fogaréu.
164
doze apóstolos, e a pena trazida na mão direita, seguramente, alude à atividade de escriba
diante do consenso ao lhe atribuírem a suposta autoria de um dos quatro livros do “Novo
Testamento” que, em conjunto, são intitulados pelas doutrinas cristãs do evangelho.
Analogicamente, é possível que estas conjecturas sobre o ato de ressignificar pavimentou o
caminho das tradições (re)inventadas na Cidade de Goiás, as quais tornaram-se “doutrinas”
assimiladas pelo inconsciente coletivo e proferidas, inclusive, pelos guardiões da tradição,
enquanto verdades sobre a cultura local.
Observada essa premissa, justificamos em Meneses (2003), a tentativa de
recrudescer as análises encadeadas, as quais vão ao encontro da seguinte afirmativa: “aos
estudos de manifestações ‘imagéticas’ da cultura se acrescentou a necessidade de
compreender os mecanismos variadamente, localizados de produção de sentido” (p.16-17).
Estamos convictos de que os esboços da tradição são instrumentos passíveis de produção e
reprodução de sentidos, cumpre-nos analisar a imagem na figura 19, homônima ao
personagem constituinte do elenco da Procissão do Fogaréu, “José de Arimatéia” (figura 20),
considerado como membro da Suprema Corte Judia (Sinédrio), função, simbolicamente,
evocada pelo manto vermelho rubro174 que o envolve. Segundo relatos, em razão da sua
estirpe social, um paradigma previsto na norma jurídica daquele povo fora quebrado. “José de
Arimatéia” teria reclamado o corpo de Cristo para o devido sepultamento, embora, segundo a
lei, aos apenados com a crucificação esse privilégio não lhes fosse permitido.
A crença dessa exceção possibilitou enquadrar a participação do personagem
“Nicodemos” (figura 21), nesta simbólica passagem do mundo cristão. A ele que, também, era
membro do Sinédrio judaico, coube-lhe a reponsabilidade de retirar o corpo da cruz, conforme
demonstra a representação a fim de encaminhá-lo aos procedimentos fúnebres. Ainda segundo
as crenças cristãs, houve, em vida, um encontro de “Nicodemos” com o Cristo, de onde veio
uma das inferências simbólicas ao renascer-se, reinventar-se.
Metaforicamente, é razoável aduzir que a célebre frase do texto evangelístico:
“necessário vos é nascer de novo (João 3:7)”175, remete às inspirações pretéritas do ufanismo
antimudancista, retroalimentadas, discursivamente, pelos novos guardiões vilaboenses, na
década de 1960. Haja vista que o processo de ressignificação cultural, baseado na Invenção
das Tradições, ambicionava reconfigurar o quadro paradigmático instalado na Cidade de
174
“COR VERMELHA: O Direito assegura a vida e a liberdade, por isto o anel de bacharel é o rubi vermelho,
que é a cor do sangue e a cor da vida. O rubi é a pedra simbólica do bacharel em direito, o seu simbolismo
representa a vida, a segurança e a paz, já o vermelho representa o sol, o sangue, o amor do direito pela
humanidade e pela paz”. Disponível em: <http:// www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=
15157&tip=UN>. Acesso em 06 abr. 2016.
175
Frase constitutiva do diálogo entre Jesus e Nicodemos relatado (na íntegra) no evangelho de João (Jo, 3:1-18).
165
Goiás, desde 1937, intuindo reaver, de algum modo, o status urbano de epicentro do Estado
de Goiás. Suspeitamos que esse visível diálogo da OVAT com as sensibilidades oriundas dos
enfrentamentos ocorridos nos anos de 1930, denota, também, contato direto com os
remanescentes ideológicos deste movimento, a exemplo da pessoa-personagem, Goiandira do
Couto.
Relativo à estas questões, passaremos a analisar o principal ícone da Procissão
do Fogaréu, considerado uma das criações mais subjetivas e, ao mesmo tempo, mais
entranhadas de ambiguidades. Essas características são, a nosso ver, emissárias intermitentes
de simbologias apropriadas pela OVAT para ultrapassar as fronteiras do tempo e do espaço
vilaboense. Referimo-nos à figura enigmática do “Farricoco” (figura 22), que no
entendimento da mentora e do grupo em geral, tinha a função de desempenhar um papel
análogo aos soldados romanos, designados à captura do Cristo, neste caso, pelas ruas da
Cidade de Goiás, à meia noite da “Quinta-feira das Endoenças”.
A imagem deste personagem promove uma ruptura, própria do rigor peculiar
de Goiandira do Couto, os demais foram representados bem ao gosto do simbolismo bíblico,
para cria-lo, simultaneamente humano, mítico e profano. Este dado expressa a notória
capilaridade das tradições refeitas na atualidade, mescladas à experiência de culto às origens,
cujo enredo de cunho religioso relaciona-se aos costumes praticados pela coletividade
vilaboense, há séculos, como é o caso da Semana Santa na Cidade de Goiás. Todavia, para os
idealizadores, a proposta de espetáculo teatral era clara. Especialmente, quando se
compreende quais eram os propósitos/sentidos do “Farricoco” para a OVAT. Assim, ao ser
questionado sobre a relação deste personagem com divindade, o Cristo, a resposta dada pelo
presidente-fundador, Elder Camargo de Passos, ratifica algumas das hipóteses derivadas desse
contexto.
176
“(...) risco de se transformar o patrimônio cultural ou bem patrimonial em uma mercadoria como outra
qualquer, ou, simplesmente, em puro fetiche, quando o patrimônio cultural, com suas complexas redes de
práticas e significados, se transforma em mero produto, ou objeto “coisificado”, ou fetichizado” (VELOSO,
2006, p.437).
167
177
“(...) mudanças discursivas e estratégicas, no campo do patrimônio, consubstanciaram-se em políticas
públicas. Na cidade de Goiás, a implementação da política do IPHAN de intervenção no planejamento do
desenvolvimento urbano teve início em 1981, por meio do convênio assinado entre o IPHAN, o Estado de Goiás
e a Prefeitura. Daí resultou o “Plano de Desenvolvimento Econômico com Preservação do Patrimônio” e
também a criação do Departamento de Infraestrutura e Urbanismo, incluindo-se na estrutura burocrática da
Prefeitura, pela primeira vez, um órgão responsável pelo planejamento urbano que propunha “incorporar na
administração da cidade questões de preservação do patrimônio, sem impedir o desenvolvimento econômico”,
conforme resumiu o arquiteto Gustavo Neiva, que participou da elaboração do Plano de Desenvolvimento (...).
Esse período foi destacado pelo presidente da OVAT, Elder Camargo de Passos, como um marco do
estreitamento dos vínculos entre o IPHAN e a comunidade local, fenômeno atribuído à atuação da arquiteta
Belmira Finageiv na diretoria da 14ª Superintendência Regional: A doutora Belmira encampou muito a nossa
ideia e comungava conosco os mesmos objetivos. Ela teve à frente do IPHAN durante muitos anos, então pra
isso facilitou muito o nosso relacionamento com o IPHAN, através da Dra. Belmira (...) [Elder Camargo de
Passos.(entrevista concedida e citada por Delgado; grifo da autora)]. Nesta narrativa da história do patrimônio na
cidade de Goiás, as políticas advindas de uma orientação do IPHAN em âmbito nacional, são discursivamente
construídas como resultado do trabalho de uma pessoa que “comungava” com os objetivos da OVAT e
que teria “encampado” suas concepções. Portanto, no jogo de disputas no campo do patrimônio, o órgão
federal emerge, nessa versão, como um mero instrumento de implementação de políticas gestadas por um grupo
de moradores da cidade” (DELGADO, 2003, p.441-442) (grifo nosso).
169
178
Buscamos em uma entrevista desse clérigo, nascido em 1922 e falecido em 2014, uma definição de si que
interpenetra em uma representação de sua trajetória religiosa, indiscutivelmente, engajada em demandas de
políticas sociais. O Instituto de Humanas da Unisinos perguntou sobre quando e por que baseou-se a escolha
religiosa. A resposta abarca o que concebemos como uma definição satisfatória ao intento desta nota explicativa.
“Desde menino eu já tinha vontade de ser padre. Talvez por influência familiar dos tios padres por parte da
minha mãe, ou de um tio padre por parte do meu pai. Na cidade onde morava, Formosa-GO, havia uma
comunidade de religiosos dominicanos franceses. Admirava estes monges pela vida missionária deles, pelo
sacrifício de rodar boa parte do estado de Goiás a cavalo. Então, me engajei na Igreja, e quando era adolescente
fui encaminhado para o seminário, depois para o noviciado em Uberaba. Mais tarde estudei em São Paulo e
cursei Filosofia; na França, mais tarde, estudei Teologia, porque faltam professores no Brasil. Nessa época
tivemos uma influência interessante dos precursores do Concílio Vaticano II. Fui ordenado padre na França e, ao
voltar ao Brasil, depois de um certo tempo de lecionar nas faculdades de Filosofia, meu provincial me designou
para a missão indigenista. Esse foi o início de uma nova etapa. Não que eu escolhesse, mas fui levado a isso
pelas circunstâncias, porque eu era o superior da missão, e a partir de um certo momento, na década de 1960, fui
procurado pelos lavradores que estavam sendo pressionados pelos proprietários da terra no estado do Pará.
Acabei me envolvendo com esse mundo. Depois também trabalhei com os povos indígenas. Tive mais contato
com o povo Xikrin, do Alto do Itacaiúnas; aprendi a língua convivendo com eles.(...) O que me marcou
profundamente foi a questão da injustiça social no sentido de o governo do estado do Pará vender terras sem
levar em conta a população que estava dentro daquele território. Houve conflitos e eu participei deles no início,
porque depois fui transferido para Goiás, como bispo diocesano, onde fiquei durante 31 anos. Lá me deparei
novamente com a questão da terra, porque é uma região de muito latifúndio, de dominação da elite dos caiados.
Nesse tempo que vivi em Goiás, ajudei a inaugurar duas fundações importantes para a Igreja e para a sociedade:
o Conselho Indigenista Missionário – Cimi, que foi substituindo pouco a pouco as antigas missões de caráter
paternalista; e a Comissão Pastoral da Terra, que surgiu graças a Medellín e ao Concílio Vaticano II, nos anos de
1972 e 1973. O Cimi surgiu como opção pelos pobres, mas considerando os pobres como sujeitos, autores e
destinatários de sua própria caminhada, como protagonistas de sua própria luta. Quer dizer, mudou, naquele
tempo, completamente a postura da Igreja com relação aos povos indígenas e com relação aos camponeses. As
experiências que se tinham eram de criar organizações, confrarias de operários, trabalhadores rurais ligados
religiosamente à Igreja. Na posição da Comissão Pastoral da Terra, que nasceu em 1975, houve uma revolução
Copernicana, assim como houve no Universo Indígena Pastoral Indigenista de respeitar a condição de sujeito dos
trabalhadores rurais e não de objeto de nossa ação caritativa” (Dom Tomás Balduíno. “90 anos de
transformação na Igreja”). Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/516656-90-anos-de-transfor
macao-na-igreja-entrevista-especial-com-dom-tomas-balduino>. Acesso em: 12 abr. 2016.
179
“O Concílio Vaticano II (1961-1965) significou, para a Igreja Católica, um divisor de águas, o fim de uma
época e o início de outra, pois encerrou, de certo modo, a longa fase inaugurada com o Concílio de Trento (1545-
1553), fase de ruptura com o nascente mundo moderno e de confronto com as correntes espirituais, culturais e
políticas que emergiam do conjunto da Renascença e, de modo particular, da Reforma Protestante. O catolicismo
latino, com o rosto que perdurou até a década de 1960, foi fruto direto da reforma católica selada pelas
orientações doutrinais e institucionais do Concílio de Trento. (...) O Concílio Vaticano II, por outro lado,
quebrou a ingênua visão de um monolitismo de posições dentro da Igreja Católica, mergulhando todo o
episcopado em amplo debate, revisão e aprofundamento das estruturas internas da Igreja Católica, das suas
relações com a demais Igrejas, comunidades cristãs e religiões, e com os não-crentes, a cultura e sociedade
modernas e o mundo em geral. O Concílio reformou as estruturas internas da Igreja, remodelou sua liturgia,
170
alterou a secular vinculação ocidental com língua em latim (nos estudos e na liturgia) e deslocou o eixo da missa
do celebrante para a assembleia de fiéis e sua participação. Na eclesiologia, o acento foi colocado no “povo de
Deus”, na igual dignidade de todos os batizados agrupados em Igrejas locais, em meio ao qual o ministério
hierárquico encontra seu lugar como estrutura de serviço aos batizados” (BEOZO, 2005, p.49-51). Sobre a
Conferência de Medelín conferir: BEOZO, José Oscar. Medellín: inspirações e raízes. Disponível em:
<http://www.servicioskoinonia.org/relat/202.htm>. Acesso em: 13 abr. 2016.
180
Jornal “Jornal de Brasília”, “Fogaréu de Farricocos nas ruas da velha Goiás”. Por: José Andersen; Sérgio
Habib. Braqsília, 02 de abril 1978, F-0907. Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?
bib=Tematico&PagFis=40502&Pesq=>. Acesso em: 09 dez. 2015.
181
Ainda sobre essa questão da excludência, as palavras das lideranças da OVAT recosturam-se, mesmo que de
maneira sutil, às angústias levantadas pelo suposto padre anônimo: “Muitos me perguntam se é só a elite quem
participa, que veste de farricoco. Digo que são pessoas de todas as classes sociais, idades e profissões. Existe
uma fila, uma lista de espera para ser farricoco. Eu acho melhor contar com os já experientes porque eu faço
apenas um ensaio, então, quem já possui experiência é mais fácil porque eu não preciso ficar repetindo”
PASSOS, Elder Camargo de. “O futuro de Goiás é o passado” (p.200) (entrevista). Cf: BRITTO, 2008).
171
Nós nunca encontramos resistências por causa do Fogaréu. Nós tivemos não
resistências, mas críticas, principalmente na época de Dom Tomás Balduíno
depois de uns três anos que ele estava aqui [década de 1970]. A OVAT e a
Irmandade dos Passos, nós quem resistimos. A única participação da Igreja
na Procissão do Fogaréu era a homilia, como ocorre até hoje. No começo,
quem falava era o vigário, Monsenhor Angelino, depois que passou a ser o
Bispo. A OVAT e a Igreja possuíam algumas opiniões divergentes, mas
sempre tivemos autonomia para realizar a celebração e nunca fomos
proibidos de promovê-la. As questões discordantes eram discutidas nas
reuniões de avaliação da Semana Santa. A Igreja não possui nenhuma
participação no Fogaréu, é uma paraliturgia e nós abrimos espaço para
que eles falem aos fiéis (PASSOS apud BRITTO, 2008, p.199-200).
Com a vinda de Dom Tomás, ele um dia chamou Elder para apresentar o
áudio-visual da Semana Santa para ele. Ele assistiu e disse que era um bonito
trabalho. Só que não havia mais, não dirá colaboração, mas aquela
convivência harmoniosa, porque a visão social de Elder era uma, e eu que
173
182
“(...) foi a partir da década de 1960 que dois acontecimentos importantes influíram para um maior
envolvimento de uma parte do clero católico com a questão social no Brasil: o Concílio Vaticano II e o Golpe
Militar de 1964. Esse segmento dentro da Igreja Católica brasileira que passou a se posicionar mais firmemente
contra os problemas econômicos e sociais que estavam atingindo o país e, quando os militares tomaram o poder
e implantaram um regime autoritário dentro do país, passaram a ser duramente perseguidos. Assim foi que surgiu
uma relação dialética no Brasil entre os religiosos envolvidos com a questão social e a realidade brasileira:
quanto mais eles denunciavam e agiam em relação aos problemas no país como a fome, o desemprego, a questão
agrária e a repressão dos militares, mais perseguidos eles eram, situação que ao invés de diminuir o ímpeto
dessas pessoas, aumentava sua determinação em combater aquela situação. Foi nesse contexto do aumento do
envolvimento da Igreja Católica com a realidade de seus fiéis, no processo de agiornamento em relação ao
secular, com o agravamento das questões sociais na América Latina e o surgimento dos opressivos regimes
militares na América Latina, que se organizou, dentro da Igreja Católica, o movimento da Teologia da
Libertação. O envolvimento pastoral com a questão social já vinha se organizando em boa parte do mundo
católico mesmo dentro da doutrina social da Igreja, mas em 1968 durante a Conferência de Medellín (II
Conferência Geral do Episcopado Latino-americano) esse envolvimento ficou mais sistematizado com uma
diretriz básica: a opção preferencial pelos pobres” (CAMILO, 2011, p.02).
174
pelos guardiões como um todo e apropriadas pelo poder público183. Subjetivamente, eis
aclarados os porquês da resistência institucional. Dom Tomás Balduíno propusera uma
clivagem na principal representação do empoderamento cultural, econômico e simbólico
desses atores. Não nos restam dúvidas de que a crescente indústria do turismo184 e seus
“fetiches” certamente se ressaltaram mais que o “sagrado” aos olhos do bispo reformador.
Novamente licenciando-nos do pensamento de Veloso (2006), observamos que
o “fetiche” contamina o campo semântico do patrimônio cultural transformando-o em “coisa
sagrada” e, com o passar do tempo, torna-se privativa. Evidentemente que a Procissão do
Fogaréu desencadeou uma crise com o clero local em virtude de um provável impedimento da
fruição do público, sobretudo, no “lugar de fala”, aspecto indispensável aos discursos sobre o
patrimônio imaterial, teoriza a autora (p.448). Compreende-se que a contingente elitização
185
sociocultural adotada pela OVAT - na condução dos festejos religiosos da Semana Santa
183
“Esteve ontem em nossa redação uma comissão de pessoas representativas da Cidade de Goiás, da qual
faziam parte o Prefeito Municipal, Sr. Jerônimo de Carvalho Bueno, a Professora Goiandira do Couto, o Padre
Luiz, o Professor Sebastião Peleja, diretor do Departamento de Turismo de Villa Boa, o pintor Octo Marques e a
Srta. Regina Lacerda. Em contato com nossa reportagem, o prefeito Jeronimo de Carvalho Bueno, informou-nos
que instalou o Departamento Municipal de Turismo (...). Disse que o Departamento desenvolverá um intenso
trabalho a fim de que [ilegível] seja intensificada em Vila Boa dando oportunidade para que seja cada vez maior
o número de visitantes na antiga capital do Estado. A comissão esteve no Palácio reivindicando um prédio para a
instalação do Departamento Municipal de Turismo no que obtiveram êxito, sendo que a Secretaria Estadual de
Viação e Obras Públicas vai providenciar a reforma do referido prédio melhorando assim suas acomodações. A
professora Goiandira do Couto, na oportunidade, disse dos preparativos para a Semana Santa e afirmou que as
festividades da Vida, Paixão, Morte e Ressureição de Cristo deste ano, serão bem movimentadas e despertarão
grande interesse” (Jornal “Folha de Goiás”, “Vila Boa tem Departamento de Turismo”. Goiânia, 02 de março
de 1967, s/p). Fonte: AFFSD.
184
“Hoje, a população de Goiás Velho quase duplicou, mas a exploração, partida de muitos lados é quase
inevitável. Nos bares e nos poucos restaurantes, os preços sofrem vertiginosos acréscimos. O que de certa forma,
não deixa de ser compreensível. Afinal, somente na Semana Santa Goiás Velho recebe um número maior de
visitantes. E até as peças de barro - artesanato típico do local - passam a ser vendidas por um preço maior. E a
exploração atinge até o Balneário Cachoeira Grande, distante da cidade cerca de nove quilômetros. É a própria
prefeitura que tem domínio sobre o balneário. (...) Os turistas compram muita roupa leve. E muitos foram
informados de que o clima ali seria ameno durante o dia e frio durante a noite. (...) E o que pensa disso tudo a
escritora e doceira Cora Coralina, cuja fama, ultrapassou os limites do município? “Antigamente - diz ela - os
vilaboenses dedicavam três semanas para reverenciar a memória do Cristo. Tudo tinha cunho eminentemente
religioso. Naquele tempo todos ouviam e seguiam o que os padres diziam. (...) Quando hoje vou à missa o que
vejo é uma prática totalmente fora da realidade. Os padres se perdem falando de coisas que não atingem o povo –
que por sua vez, não pode acompanhar suas abstrações. Quando surgiu o Concílio do Vaticano, a Igreja
estava marginalizada. Ele foi um passo à frente para acompanhar a evolução da sociedade. A igreja aqui
ainda se mantém quase no mesmo estágio. As solenidades perderam seu cunho religioso. Hoje, são
solenidades folclóricas e nada mais”. É exatamente durante a Semana Santa que a casa de Cora Coralina
recebe mais visitantes. Sua casa, aliás, é um verdadeiro ponto turístico. Tanto que nos folhetos da Goiastur,
está devidamente indicada num pequeno mapa da cidade ao lado de museus, igrejas e também das casas
dos pintores Octo Marques e Goiandira” Jornal “Jornal de Brasília”, “Fogaréu de Farricocos nas ruas da
velha Goiás” (subitem: Turismo Predatório). Por José Andersen; Sérgio Habib. Brasília, 02 de abril de 1978, F-
0908). Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=Tematico&PagFis=40502&Pesq
=>. Acesso em: 09 dez. 2015. (grifo nosso).
185
Sobre a elitização dos festejos da Semana Santa e, consequentemente, da Procissão do Fogaréu, Elder
Camargo Passos, à luz de suas “pesquisas”, justificou: “No início o Fogaréu era vivido pela elite da Igreja. A
Igreja era elitizada, a população em geral participava, mas não em lugar de destaque. A Semana Santa era
elitizada, a Irmandade dos Passos foi fundada pela elite, só depois foi ficando mais popular. Você observa os
175
vilaboense, desde 1965 - pode ter impelido o extravasamento do suposto pároco anônimo,
supratranscrito do “Jornal de Brasília”, o qual teria definido as tradições (re)inventadas pela
entidade dos guardiões das tradições locais como “espetáculos de um faraônico
anacronismo”.
Vale a pena lembrar que essa subjetiva apoteose às tradições percorria, e ainda
percorre, as ruas da Cidade de Goiás guiadas pelo mais representativo emblema institucional,
o farricoco. Nas palavras dos guardiões, esse ícone foi criado para extrapolar os limites
institucionais ou simbólicos, restrito à Procissão do Fogaréu. Alguns porta-vozes afirmam que
a intenção se vincula à busca de sentidos mais abrangentes: “temos que reconhecer que ele é
um símbolo, ele não é apenas uma figura religiosa, ele é um símbolo da cidade, e a OVAT
deve se preocupar com isso, onde estamos inserindo nosso símbolo. (...) O farricoco é uma
referência” (PASSOS apud BRITTO, 2008, p.203).
A abordagem estético-artística, contudo, sobressai. Mas, ainda assim,
interpenetra-se a orientação identitária trazida no primeiro testemunho:
nomes dos irmãos: era governador, desembargador, militares... Na origem ela não é popular, não possui esse
chamado e nem essa aproximação. (...)”, reiterou o membro-fundador. (BRITTO, 2008, p.202)
176
espaciais e culturais, desde o século XVIII. Entretanto, acredita-se que, à luz dos vestígios da
memória, escritos e visuais, cabe-nos afirmar que as tradições (re)inventadas, a partir dos anos
de 1960, na Cidade de Goiás, muito provavelmente, pautaram-se nas representações culturais
delineadas nas linhas e nas visualidades das imagens ulteriores.
186
O fato do “reavivamento” das tradições cariocas foi noticiado por diferentes jornais daquela época. O fac-
símile (figura 22) trata-se de um recorte específico do jornal “O Globo” de abril de 1965, preservado por Elder
Camargo de Passos. Contudo, em depoimento, ele cita outro periódico ratificando que o contato com os
discursos jornalísticos daquela época, indiscutivelmente, subsidiou o formato das representações evocadas para o
projeto de ressignificação cultural da Cidade de Goiás, na década de 1960. Vejamos: “Outra informação
importante foram as matérias publicadas no jornal “Correio da Manhã” [16/04/1965] que, ao descrever as
Comemorações do 4° Centenário da cidade do Rio de Janeiro, nos forneceram uma certa ideia para organizar a
Semana Santa de Goiás. (...) Lendo as reportagens eu vi que todas as cerimônias que eles faziam antigamente,
nós também possuíamos aqui” (BRITTO, 2008, p.203).
187
Transcrição parcial do documento da figura 22, Jornal “O Globo”. “Procissões dos Fogaréus e do Entêrro
Reviveram a Semana Santa do Rio de Antigamente”. Rio de Janeiro, 17 de abril de 1965. Fonte: Acervo de Elder
Camargo de Passos.
178
188
Recapitulamos que, no conjunto das ações da OVAT, relacionadas aos festejos populares da Semana Santa,
na Cidade de Goiás, estão a Procissão do Fogaréu (preparativos na quarta-feira de “Trevas” e a saída, à meia
noite, da quinta-feira das Endoenças) e a dramatização do Decendimento da Cruz (sexta-feira da Paixão),
conforme elenca o encarte alusivo ao quadragésimo aniversário da entidade (p.13). Cf. OVAT, 40 anos
Promovendo a Cultura e Resgatando as Tradições, 2005, (catálogo comemorativo).
189
Aventamos a hipótese de que a direção das análises tramadas por Delgado (2003) passou a ser concepções da
Igreja após a assunção do bispo libertário, Dom Tomás Balduíno, justificando os pontos de tensão ideológica-
cultural entre ambas as instituições. Para a autora: “(...) esse grupo se auto-representa como guardião da cultura
vilaboense e portador de virtudes que são compartilhadas por todos os membros e que os singulariza em relação
aos outros moradores da cidade, evocando o trabalho pioneiro realizado nas entidades culturais e o
pertencimento às famílias tradicionais da cidade, cujos antepassados se destacaram quer nas artes, quer na
política desde tempos remotos e cujos descendentes não abandonaram Goiás. O monopólio dos principais cargos
nas entidades culturais constitui estratégia fundamental para o exercício do poder simbólico que, na acepção de
Pierre Bourdieu, institui princípios de visão, divisão e classificação social. (...) Elder Camargo de Passos expõe
que o grupo sofre “oposição” e seus componentes são acusados de se comportarem como “donos” da cidade:
Esse grupo que também não é benquisto na cidade... tem a parte benquista, mas também tem a parte que não
gosta, que acha que nós queremos ser donos de tudo, queremos mandar em tudo. Por quê? Porque nós tempos
visão, nós tempos organização, muito serviço, arregaçamos as mangas e pegamos e fazemos. Agora, sempre tem
os que criticam e não realizam. Falar é fácil. Criticar é fácil [grifo da autora] (DELGADO, 2003, p.427-428)
179
Figura 25 - “...Y Mandó Azotarle”. Cartaz da Semana Santa de Granada, Espanha 2014.
Segundo Hobasbawm e Ranger, “(...) não é necessário recuperar nem inventar tradições
quando os velhos usos ainda se conservam” (1997, p.16). Desse modo, é possível dizer que a
suposta tradição centenária vilaboense se enquadra nas representações reveladas pelas figuras
24 e 25. Entre rupturas e permanências, depreende-se que o processo de Invenção de
Tradições na Cidade de Goiás alicerçou-se em três bases fundamentais: na criatividade
estética de Goiandira do Couto, nos antecedentes coloniais da cidade e, sobretudo, no discurso
retórico propalado pela entidade guardiã das tradições vilaboenses. Esses indícios explicam o
protagonismo dos personagens encapuzados (farricocos) durante as celebrações da Paixão e
Morte de Cristo, em âmbito local.
Reexaminando a figura 25, nota-se que o papel central do cortejo em Granada é
ocupado pelo “Cristo Martirizado”. O guarda romano, à esquerda, compõe o cenário de
pompa, em torno da dor, de forma tão estática que quase se confunde com as esculturas em
tamanho real dispostas no altar suntuoso e aparentemente móvel. Sobre os farricocos, em
particular, observa-se que, mesmo ocupando o primeiro plano da imagem, o papel
desempenhado por eles, no conjunto da representação encenada, é de coadjuvante. Esse
sentido semântico-social do personagem coaduna às definições de Câmara Cascudo (1954),
no Dicionário do Folclore Brasileiro, que, por palavras, complementa sentidos a imagem em
análise (figura 25), ainda que se tratando de uma manifestação concernente às religiosidades
do mundo europeu:
Afastando o povo com matraca (...) seguiam as Procissões dos Passos. (...)
Esses encarregados de anunciar o desfile religioso ou defender a ordem das
filas contra a intrusão dos meninos e vadios sofriam ataques, pedradas,
obrigando as Irmandades a substituí-los, posteriormente, nas Procissões dos
Fogaréus ou dos Passos. Dizia-se também Farricoco aos irmãos condutores
de andores, desde que envergassem vestimenta típica, ainda corrente nas
procissões de Sevilha, de aparatosa impressão popular. (...) Tomava parte
das extintas procissões das cinzas, caminhando à sua frente, armado de um
comprido relho, com que ia fustigando o pessoal que impedia sua marcha
(CASCUDO, 1954, p. 257-258 e 471).
190
“Art. 23° - Fica instituído como patrono da OVAT o artista José Joaquim da Veiga Valle (...)”. Estatuto da
OVAT Livro n° A-1, fl. 04, 1978. Fonte: TABELIONATO 2º OFÍCIO.
181
perseguição dos farricocos por um itinerário que contempla os principais monumentos sacros
da paisagem urbana colonial vilaboense191.
Destarte, diferentemente do que apresentou (Britto 2008), a representação
desses personagens na Procissão do Fogaréu, na Cidade de Goiás, assemelha-se aos soldados
romanos. Embora, nas releituras clássicas desse episódio emblemático para a cultura cristã, os
militares romanos “vestiam uma espécie de saia curta, com coletes de armaduras e escudo e
lanças nas mãos” (CARNEIRO, 2008, p.101). Todavia, pelo que temos visto até aqui, a
Cidade de Goiás não prima exatamente pelo clássico, e sim, pelo potencial inventivo, criativo
e retórico das suas tradições. Desse modo, a inquietude é respondida pela própria autora. E,
assessorada pelas revelações da imagem na figura 26, configura visual e textualmente a
harmonia nas afirmativas dos guardiões, Elder Passos e Goiandira do Couto, que elegeram em
seus depoimentos o farricoco como símbolo da cidade “berço da cultura goiana”.
191
“O Fogaréu inicia-se às 24h com a cidade às escuras. Os protagonistas são os farricocos e o povo, que saem,
silenciosamente, ao som de tambores e em passos rápidos com tochas nas mãos. Após o cântico do Moteto
Exeamus, os farricocos e os acompanhantes partem da Igreja da Boa Morte em direção à Igreja do Rosário, que
simboliza o cenáculo, local onde se realizou a Santa Ceia do Senhor. Na Igreja do Rosário, param e encenam a
procura por Jesus. Canta-se o Moteto Domine e há um pequeno diálogo entre o dono do cenáculo (hospedeiro) e
os farricocos. (...) Depois desse diálogo, continuam o trajeto, iluminados apenas pelas tochas, para a Igreja de
São Francisco que representa o Monte das Oliveiras onde é feita a prisão do Cristo. Ao toque do clarín e
tambores, um farricoco levanta o estandarte de linho no qual o corpo açoitado de Cristo foi pintado (...). Após
um breve silêncio, inicia-se a homilia do bispo, que dura aproximadamente trinta minutos. Em seguida a
Procissão parte para a Igreja da Boa Morte [local do seu começo], que representa o lugar do julgamento de
Cristo pelos sumos sacerdotes Caifás e Anás. Tal Igreja é a última instância da Procissão” (CARNEIRO, 2008,
p.94-95). Cf. (BRITTO, 200).
182
192
Preocupados em não incorrer no equívoco metodológico da utilização de frases soltas, atribuídas aos teóricos
escolhidos para dialogar com este estudo, optamos por expor o contexto das análises do autor correspondente à
afirmação em destaque cuja problematização refere-se ao uso, à contingência e à apropriação científica do
discurso visual. “(...) ver com restrições a proposta de desconsiderar as imagens como testemunho histórico, pois
183
elas seriam a própria história, e, em lugar de alternativa excludente, propor a manutenção de ambas mascara a
necessidade de tomar as coisas visuais antes de mais nada como coisas, que podem prestar-se a diversíssimos
usos — entre os quais os documentais, conforme as situações e não por essência ou programa original. Também
aos objetos visuais não convém a ideia positivista de documento (ainda que de origem): documento é aquilo
capaz de fornecer informações a uma questão do observador, qualquer que seja sua natureza tipológica, material
ou funcional. É preferível, portanto, considerar a fotografia (e as imagens em geral) como parte viva de nossa
realidade social. Vivemos a imagem em nosso cotidiano, em várias dimensões, usos e funções” (MENESES,
2003, p.29).
184
O simbolismo na imagem anterior (figura 27) mostra que tanto os seres míticos
das sombras, quanto os guardiões da OVAT, carregam um troféu. Finalmente, o rito atinge o
seu clímax, a Cidade de Goiás reunifica-se no tempo e no espaço sob o aporte das suas
tradições, e a arte rege sinfonia do culto às origens. Contemplamos o encontro do pilar de
pedra - Goiandira do Couto - personificado através de sua criação, o farricoco; com um dos
representantes dos pilares da tradição - Veiga Valle - evocado na figura do “Cristo
Flagelado”. Indiscutivelmente, é um momento emblemático para OVAT, cujas estruturas
cimentam-se nessas bases acampadas nos territórios da cultura, marcados e demarcados por
disputas e relações de poder. Evidenciam-se as razões pelas quais os idealizadores da
Procissão do Fogaréu reiteraram que não se trata de um ato religioso; e sim, de um
“espetáculo” que o público prestigia “para assistir à beleza da cerimônia: a beleza do fogo, as
pessoas correndo, os encapuzados” (COUTO apud BRITTO, 2008, p.207), na cidade que,
nesta hora, torna-se a ideal.
A representação de si pelo outro, ou seja, a recepção da imagem pública
institucional fortaleceu os novos intentos patenteados pelo grupo que reúne, em torno de seus
membros, os papéis de guardiões, produtores e gestores da cultura vilaboense. É importante
frisar, que mesmo diante dos abalos com a Igreja, a relação de coalizão institucional manteve-
se fluida e consolidada tanto com o poder público, em virtude dos dividendos trazidos pelo
turismo, quanto com o DPAHN/IPHAN, no que se refere à implementação das políticas
públicas relativas ao patrimônio cultural (material e imaterial), consoantes aos interesses da
“coletividade”193.
Pensando nessa direção, compreende-se que, no “jogo” cultural tramado pela
OVAT, o ápice de uma cena inventada não traduz, de fato, o encerramento dela. Mesmo
porque, é no hiato de um desfecho que se (re)articulam recomeços.
Atentos a esses valores, vislumbra-se para as discussões seguintes,
aprofundamentos nas ações institucionais da OVAT, localizadas em um arrojado
empreendimento e, para explicá-lo, lançaremos mão do conceito, projeto de futuro, o qual
193
Delgado (2003) aborda as relações discursivas do patrimônio com os novos rumos da política oficial (local e
nacional) entrecruzada às tendências do turismo cultural desbordadas nos primeiros anos da década de 1970. Já
expusemos os meandros pelos quais estabeleceu-se essa política na Cidade de Goiás. Porém, entendendo a
relevância destas transformações, mesmo diante da resistência da Igreja, apresentamos as diretrizes do poder
público federal que, a nosso ver, reforçaram o poder simbólico conferido a OVAT, encabeçando os rumos
futuros da cultura na Cidade de Goiás. Eis um fragmento do documento: “O rápido desenvolvimento urbanístico
e viário do país, sua crescente industrialização e, sobretudo, a valorização imobiliária daí decorrente impuseram
a implantação de medidas enérgicas e abrangentes. Procura-se, a partir de então, conciliar a preservação dos
valores tradicionais com o desenvolvimento econômico das regiões. (...) A industrialização de regiões até
então abandonadas e a abertura de estradas, facilitando acesso às áreas afastadas, provocam demanda
populacional e difusão do turismo” (MEC-SPHAN/Pró-Memória (1980) apud DELGADO, 2003, p.438).
185
fora formulado por Argan (1995, p.23), para discorrer sobre a fabricação, no presente, a
experiência do passado, intuindo legitimar, nas cidades - ou frações dela -, um valor
permanente. Todavia, para chegarmos a estes horizontes devemos perpassar novamente pela
dimensão da arte produzida por Goiandira do Couto. A partir de 1967, a artista-guardiã inicia
sua segunda fase artística, na qual o uso da técnica com areia e cola à base d´agua consagrou-
lhe uma carreira internacional.
Pintando a paisagem urbana colonial da cidade extraída da junção dos pilares
de pedra e da tradição, Goiandira do Couto projetou-se, cultural e artisticamente, ao mesmo
tempo em que edificou as estruturas pictóricas para a sequência das inventividades sobre a
Cidade de Goiás, também, calcadas nos pilares de areia. Afinal, os horizontes urbanos da
Cidade de Goiás, idealizados pictoricamente pela artista, correspondem aos limites
delimitados pela coalizão do poder cultural local para empreender o referido projeto de
futuro, ou seja, a patrimonialização mundial desta urbe, ocorrido em 2001. Embora
circunscrita ao perímetro urbano proveniente do passado histórico colonial vilaboense, é uma
paisagem urbana cognoscível aos guardiões das tradições como o berço cultural do Estado de
Goiás.
186
CAPÍTULO III
194
“A UNESCO é um organismo integrado na Organização das Nações Unidas (ONU), criado, em 1946, a fim
de promover a paz mundial, através da cultura, educação, comunicação, as ciências naturais e as ciências sociais.
Os principais objetivos da UNESCO são: globalizar a educação; fomentar a paz, através do ponto anterior;
promover a livre circulação de informação entre os países e a liberdade de imprensa; definir e proteger o
Patrimônio da Humanidade Cultural ou Natural (conceito estabelecido em 1972 e que entrou em vigor em 1975);
e defender a expressão das identidades culturais. As questões às quais se dá prioridade são a educação, o
desenvolvimento, a urbanização, a juventude, a população, os direitos humanos, a igualdade da mulher, a
democracia e a paz”. Cf. Disponível em: <http://www.infoescola/com/geografia/unesco>.
Acesso em: 17 jan. 2015.
188
na força simbólica que a arte passa a ter na representação do real em constante (re)
construção.
A rigor, observando essas complexas dobras, é possível constarar as
interpretações artísticas se distinguem do real e do ideal, da mesma maneira que o mundo do
pensamento se diferencia do mundo dos fatos. Não obstante, elas são constatações são
provenientes das criações humanas, sendo, portanto, motivos de inquietação do historiador
cultural da arte (ARGAN, 1995, p.73). Ainda segundo as definições do autor (1995), a cidade
ideal, “mais que um modelo propriamente dito, é um módulo para o qual sempre é possível
encontrar múltiplos e submúltiplos que modifiquem sua medida, mas não a sua substância;
(...) sempre é possível desenhar o mesmo esquema numa dimensão maior ou menor” (p.74).
Mas, o que vem a ser a substância de qualquer cidade? Não importa a identidade, se ideal,
real, simbólica ou pragmática, a ‘substância’ que qualifica o sentido de ser cidade localiza-se
no âmbito das representações sociais. Elas estariam visíveis nas representações urbanas da
cidade em Goiandira do Couto ou suas obras se tratam de um vocativo às oficialidades?
O conceito de lugares de memória pode ser útil na tarefa de repensar a função
do centro histórico vilaboense a partir das criações artistico-culturias, sejam elas de cunho
material ou imaterial, consignadas ao modos artísticos como Goiandira do Couto pousou o seu
olhar guadião sobre a cidade e suas tradições. Subjetivamente, a retórica desses discursos nos
aproximam das teorizações de Nora (1993), assim definidas:
por meio monumentos históricos edificados no passado colonial, na extensão do eixo que
compreende o Largo do Rosário ao Largo do Chafariz. As idealizações de Goiandira do
Couto, vistas pelo olhar guardião, transformaram o extensão deste eixo num lugar intacto
sugerindo subjetivos anacronismos visuais. Esta série de imagens concernentes à primeira
(óleo sobre tela -1933-1967) e à segunda fase artística da pintora (areia sobre fibra de madeira
- 1967-2004), expressam narrativas que mais se parecem apologias urbanas ao colonizador. A
escolha do métódo comparado com outras produções artísticas que, de igual modo inspiram-
se na paisagem urbana colonial vilaboense, visa rastrear revelações que nos possibilite
confirmar (ou não) as hipóteses aqui levantadas.
No entanto, cabe-nos perguntar: onde queremos chegar com essa discussão?
Ora, as expressões pictóricas de Goiandira do Couto não foram imaginadas aleatoriamente.
Revisitando os estudos sobre a formação urbana da Cidade de Goiás renovamos as condições
para sentir, transitar, observar e, sobretudo, diagnosticar as problemáticas oriundas da
idealização da paisagem pictórica vilaboense, à medida que avançamos pelos itinerários de
reconstrução desse passado em diálogo com o presente.
Os jogos culturais tramados no espaço central da Cidade de Goiás
consubstanciam-se, pensamos nós, nas telas da artista-guardiã à medida que o sentido de
valorização e de preservação deste cenário de sociabilidades exponham significados abstratos
sutilmente diluídos entre cores e texturas que privilegiam os lugares de memória de uma
cidade-ideal praticamente inalterada pelo tempo. Os valores históricos e simbólicos arraigados
nesse circuito provêm do empoderamento da paisagem pela presença das instituições
políticas, religiosas e culturais conforme a ideologia de elitização do espaço, central desde os
primórdios oficiais. Coube à elite cultural do século XX, ao prosseguir com o complexo e
amplo projeto de ressignificação cultural da Cidade de Goiás, reapropriar-se do discurso
preservacionista e tradicionalista contido das visualidades urbanas de Goiandira do Couto,
cuja perspectiva parece refundar, artisticamente, origens urbanas sob o ponto de vista dos
pilares que sustentam as (re)criações oficiais do passado na atualidade. No entanto, para
compreendermos melhor as escolhas, os referenciais de pertencimento, os juízos estéticos e as
possíveis intencionalidades advindas da idealização da paisagem urbana vilaboense, em
Goiandira do Couto, buscamos em Argan (1995), uma exposição que nos encaminha nesta
direção:
195
No conhecido “Dossiê de Goiás”, documento responsável pela inscrição da Cidade de Goiás na lista do
patrimônio da humanidade, proposto pelas instituições civis e governamentais envolvidas no tombamento em
2001, deu voz e visibilizou o marco oficial da colonização para situar o contexto que levaram à ocupação e
desenvolvimento urbano local. Destacamos no discurso o nexo colonizador do século XVIII com a Marcha para
Oeste ocorrido no século XX como forma de demostrar o ciclo do poder colonial no interior do Brasil. Os
primeiros ocupantes são quase totalmente esquecidos. Baseados nessas explicações destacamos um fragmento
representativo deste documento, o qual corrobora esta reflexão. “A construção do território brasileiro foi
realizada a partir do espaço delimitado pela costa do Atlântico e pela linha do Tratado de Tordesilhas e
progressivamente estendida até os rios Prata e Paraguai, culminando com a ocupação do exterior. (...) Os
primeiros responsáveis por essa construção foram os bandeirantes paulistas que, em busca do ouro,
ocuparam o que constitui hoje os Estados de Goiás e Tocantins, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Essa difícil
marcha para o coração do país foi concluída com a instalação da capital federal em Brasília, em 21 de
abril de 1960. Das duas primeiras capitais que marcaram o começo desta aventura, Cuiabá (Mato Grosso),
perto do centro geográfico do Brasil, apenas Goiás conservou as suas estruturas urbanas e uma arquitetura que
remontam ao século XVIII, e a paisagem que cerca permaneceu idêntica àquela encontrada pelos bandeirantes.
Goiás é assim a última testemunha desse capítulo fundamental da História do Brasil. (...) é o último
exemplo de ocupação do interior do Brasil conforme praticado nos séculos XVIII e XIX. Exemplo frágil
que começa a se tornar vulnerável na medida em que a cidade está começando a retomar o seu desenvolvimento.
Exemplo admirável na medida em que a paisagem que a rodeia permaneceu quase inalterada” (p.02-05). CD
ROOM DO “DOSSIÊ DE GOIÁS”. SESSÃO: Formulário da UNESCO: “Justificação de Inscrição”; 5 ª edição,
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2010. (grifo nosso)
191
196
Conferir no anexo I, Estatuto da OVAT. Livro n° A-1, fl. 01, 1978. Fonte: TABELIONATO 2º OFÍCIO.
192
197
Apropriamo-nos deste termo relacionando-o ao projeto de futuro, categoria concebida por Argan (1995, p.
23), para nos referir à fabricação e invenção do passado vilaboense, entre 1918 (implantação da Cruz do
Anhanguera) e 1965 (criação da OVAT e, a partir dela, o Fogaréu), aspectos que, a nosso ver, engendraram a
versão histórica e alegórica tradicionalista que fora patrimonializada em 2001.
193
que a principal materialidade de uma obra de arte está nos “pensamentos” condensados
durante o processo de criação do artista que, por sua vez, é reponsável por introduzir no
mundo cultural um ser pensante e, portanto, relativamente autônomo em relação ao seu
próprio criador (p.19). Ainda segundo a sua explanação, a representação do pensamento
material e objetivado do artista possibilitou a obra de arte ascender da condição de coisa para
tornar-se sujeita; razão pela qual exige dos estudiosos a utilização de recursos sofisticados
quando o assunto se trata do diálogo científico.
Vale a pena pontuar, ainda, que mesmo sendo testemunhas quase autônomas
em relação ao seu próprio criador, não podemos nos esquecer de que as produções artísticas
estão/são carregadas de pensamentos genéricos comunicados, na maioria das vezes, nas
particularidades que individualizam cada obra (p.20). Apesar de consideradas uma fusão
material e orgânica do criador na criação, Coli (2008) postula que, assumindo o papel de
personagem nuclear nos estudos culturais, a comunicação dos dados biográficos do criador,
por exemplo, se justificam “(...) para compreendermos a gênese da obra. Mas, passado esse
ponto, a obra começa a falar por si” (COLI, 2008, p.20). Por isso, ao serem arroladas como
testemunhas da história, as obras de arte - os registros visuais como um todo - exigem do
historiador prévia formulação de conceitos e rigorosa definição de métodos de análises para
finalmente vir a depor em favor da compreensão do que está culturalmente nelas implícito,
assegura Coli (2008, p.19). Afinal, trata-se de objetos sujeitificados justamente porque são
dotados desta ‘substância’.
Nota-se ainda a preocupação do autor em reiterar que a existência de uma obra
situa-se paralelamente ao mundo da experiência porque elas se encontram amalgamadas às
escolhas do artista, à função de receptáculo dos complementos emitidos pelo expectador e,
sobretudo, ao acúmulo de conhecimento e memórias que culminam “em processos que
escapam da solidez ‘real’ para alcançar uma intensidade etéria” (COLI, 2008, p.24). Tais
motivos chamam a atenção sobre a desenvoltura de Goiandira do Couto ao “dominar” a
plasticidade do tempo que reside em suas telas. Independente do uso da técnica - se tintas em
tom pastel ou areias multicoloridas - temos a impressão de que somos projetados para um
cenário cujo mimetismo flerta com as sensibilidades do passado tradicional vivido na antiga
Vila Boa e que, em parte, sobrevivem na Cidade de Goiás seja do ponto de vista material - os
monumentos e a arquitetura colonial sobrevivente - ou na cultura imaterial (re)inventada a
partir das ideologias e das práticas culturais engendradas pela OVAT. Vê-se que as obras da
artista-guardiã não se resumem no que ela gostaria que fosse, mas o que fizeram dela a partir
do momento em que foram apropriadas.
195
(...) não existe tábula rasa em artes. (...) Os historiadores da arte costumam
dizer que é preciso treinar o olho. Isso significa incorporar um saber, sempre
silencioso, intuitivo capaz de captar o que há de comum entre as formas. O
processo singular, próprio do artista, se reitera no conjunto coletivo das
produções artísticas. Um dos grandes prazeres dos historiadores da arte é
descobrir as imagens renascendo dentro de outras imagens, tomando novos
sentidos, ressuscitando o mesmo para se transformarem em outro (COLI,
2008, p.21-22).
198
“O imaginário é, pois, representação, evocação, simulação, sentido e significado, jogo de espelhos onde o
“verdadeiro” e o aparente se mesclam, estranha composição onde a metade visível evoca qualquer coisa de
ausente e difícil de perceber. Persegui-lo como objeto de estudo é desvendar um segredo, é buscar um
significado oculto, encontrar a chave para desfazer a representação do ser e parecer (PESAVENTO, 1995, p.24).
197
199
Termo utilizado por Pesavento (1995) para referir-se à produção de vestígios históricos, sejam eles: visuais,
escritos ou performáticos.
198
200
Capel (2015, p.354-355) buscou de maneira didática explicar essa perspectiva didi-hubemaniano que
conversa com as teorias de Aby Warburg (1866-1929) e Walter Benjamim (1892-1940). Ela explica que a
imagem é malícia e astúcia pelo fato de que, com o tempo, elas se dissolvem e se desmontam assim como
acontecem com as matrizes de um relógio. A comparação provém do pensamento benjaminiano quando afirma
que a história se fragmenta com o tempo e, nas imagens, encontramos o coração do processo histórico que pode
voltar a pulsar na medida em que recosturamos as partes dispersas ao núcleo. Portanto, a montagem visual requer
um pensamento multifocal que opere junções através do historicismo observando, antes de qualquer coisa, o
princípio dialético que flui na substância das imagens, explica Heloísa Capel Convalidamos essa afirmação em
Didi-Huberman (2012) quando diz que: “A montagem só é válida quando não se apressa a concluir ou
enclausurar: quando abre e complexifica a nossa apreensão da história, e não quando a esquematiza
abusivamente. Quando nos permite ascender às singularidades do tempo e, por conseguinte, à sua multiplicidade
essencial” (p.156). Cf. (CAPEL, 2015).
200
com o mundo vivido para que tenham aceitação social, para que sejam críveis” (1995, p.22).
Porquanto, lendo com atenção essas análises, consideramos a hipótese de que as obras de
Goiandira do Couto tenham servido para a continuidade do projeto de (re)inventar tradições.
Assim, como nos é tangível o jogo de mediação entre a utopia e a realidade nas idealizações
urbanas de Goiandira do Couto, acreditamos ser plausível deduzir que, considerando a espiral
de protagonismos da artista com o processo de ressignificação cultural da Cidade de Goiás
após a perda o status de capital do Estado, há uma relativa confluência de (re)criação do
imaginário social vilaboense com os horizontes preservacionistas que começaram a se expor
por meio da arte. Com isso, abriram-se brechas para uma eventual manipulação de
significados “que jogariam com os sonhos coletivos e com forças da tradição herdadas de um
cotidiano imemorável, forjando mitos, crenças e símbolos”, (PESAVENTO, 1995, p.23).
As lentes teóricas utilizadas nesta sessão aditaram pontos de observação ao
objeto de estudo e, consequentemente, aproximaram, mais um pouco, a discussão do patamar
pretendido: confirmar ou não as hipóteses que viemos sustentando até aqui. Estamos prestes a
tocar as imagens figuradas a partir do imaginário de Goiandira do Couto, e a exposição do
método de análise para tratar esses documentos, em específico, facilita o entrecruzar dos fios
que interligam o eu criativo-subjetivo da artista às visões de suas obras cuja recepção, a nosso
ver, acirrou as complexas fissuras no imaginário social e cultural vilaboense, especialmente, a
partir dos anos de 1970. Mesmo porque, existem outros fatores que nos levam a afirmar que
esta é uma década paradigmática. Não apenas por demarcar a continuidade do projeto de
futuro, mas pelo fato de (re)inaugurar na carreira artística da protagonista numa segunda fase
crucial: o seu encontro com as areias multicolorias.
Essa transição artística pode ser vista como um passivo das construções
ideológicas deliberadas pelo seleto grupo que se sentia encarregado das intervenções culturais
na Cidade de Goiás. Sendo assim, consideramos a hipótese de que alguns dos horizontes
materializados em 2001, com a cidade-patrimônio, buscaram inspiração na cidade-ideal de
Goiandira do Couto que se fez amplamente conhecida, a partir do momento em que a técnica
com areia tornou-se paradigma responsável por redimensionar a carreira da artista-guardiã
para um patamar internacional. Contudo, há suspeitas de que esse acontecimento na vida
artística e pública da artista foi utilizado como um instrumento de empoderamento dos
agentes culturais vilaboenses, especialmente, os membros da OVAT, por razões óbvias, já
discutidas no capítulo anterior, e por pormenores que apresentaremos no subitem seguinte: Os
Dedos Substituem os Pincéis: a técnica com areia. Portanto, o debate sobre a vida e a obra de
201
Goiandira do Couto se mostram, ainda mais, inconclusas e difusas nesta trama que estuda as
relações entre arte, cultura e poder na Cidade de Goiás.
Essa discussão continuará embasada no raciocínio de Coli (2008) quando
afirma que na imagem existe um terceiro lugar: “onde, invisíveis e imateriais, o semelhante se
funde no semelhante, onde analogia se metamorfoseia em fusão” (p.22). Aproximar o objeto
de estudo destes ensinamentos demonstra o que se pretende pensar nesse importante revés,
tanto na carreira de Goiandira do Couto quanto da Cidade de Goiás, está entrecruzado às
problemáticas lançadas em torno destas apreciações. Eis que se vislumbra no encontro da
artista com areias multicoloridas mais um acontecimento a ser explorado, já que estamos
mirando em direção ao terceiro lugar que, a nosso ver, está dentro, fora e no entorno dos
limites representados pela cidade-ideal.
201
AFFSD. Documento Avulso: fls 01 a 03. Carta endereçada ao Presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Por: Manuel Xavier de Vasconcellos Pedrosa; Rio de Janeiro, 17 de maio de 1970. (ver fac-símile do
documento completo no anexo III)
202
Para explicar o simbolismo do referido monumento traçamos dois paralelos: o passado e o presente. De
acordo com Plano Museológico: Museu de Arte Sacra (2009), redigido pela equipe técnica responsável do,
então, museu: “A construção da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte foi iniciada em 1762, por militares,
liderados pelo capitão de cavalaria Antônio da Silva Pereira. Inicialmente dedicada a Santo Antônio de Pádua, a
construção inacabada foi doada à Confraria dos Homens Pardos da Boa Morte, em virtude da proibição real de se
construir novas capelas pertencentes a militares. A Confraria da Boa Morte que já havia possuído uma pequena
capela no Largo do Chafariz, concluiu a sua edificação em 1779. Construída em dois pavimentos, quase
inteiramente em alvenaria de pedra, com exceção apenas das paredes de pau-a-pique sobre os altares laterais e
das de adobe sobre os arcos do coro, a Igreja da Boa Morte foi feita seguindo a tradição das edificações
religiosas goianas: localizada num pequeno jardim, separada da via pública por um muro alto, com cobertura em
quatro águas e telhas de barro canal em acentuada inclinação, com um pequeno poço d’água e sem torre sineira”
(...) (p.09). No presente, o protagonismo desta edificação, fica a cargo da Procissão do Fogaréu, pois é o local de
concentração e saída dos farricocos no cortejo paralitúrgico (re)inventado pela OVAT, em 1965. Ainda segundo
o documento (Plano Museológico: Museu de Arte Sacra): “Em 22 de dezembro de 1968, a convite de Dom
Tomaz, foi realizada no Salão Nobre da Cúria a primeira reunião para tratar da criação oficial do novo museu,
discutindo-se o nome que lhe seria dado, a sua montagem e a formação do Conselho que o representaria.
Estiveram presentes Dom Tomaz Balduíno, Monsenhor Angelino Fernandes, Frei Simão Dorvi, Profª Regina
Lacerda, Profª Goiandira do Couto, Sra. Antolinda Baia Borges e Sr. Elder Camargo Passos” (MINISTÉRIO DA
CULTURA, 2009, p.09-10). Disponível em: <http:// www.museus.gov.br/wpcontent/upçoads/2014/03/PlanoMu
seologico_MuseuArteSacraBoaMorte.pdf>. Acesso em: 12 jul. 2016.
203
A técnica com areia foi uma coisa interessante. Foi diferente. Tudo é
diferente (risos). Goiás foi descoberto em 1722. Todo mundo naquela época
até hoje ia na Serra Dourada e ninguém viu areia lá. Primeiro eu fui à Serra.
Uma vez, eu fui com uma turma de moça. Estávamos andando... Quando eu
olho, vejo uma pedra verde (gestos mostrando o tamanho da pedra) no chão,
linda. O sol batia nela assim (gestos). Todo mundo olhou para ela. Parecia
aqueles piriquitim, tudo cantando, eu pego, outro pega, outro puxava, deixa
eu pego, deixa eu pegar e tudo. Pegou a pedra verde e olhou. Caminhamos
mais um pouco. Quando eu olhei, achei uma amarela e outra cor-de-rosa,
três cores. Meu Deus!!! Que coisa bela! Achei 21 tons. Eu trouxe. Depois
voltei de novo lá, procurei, fiquei 5 anos com aquela coleção feita. Só
aqueles vidrinhos e pus lá e mostrava pra todo mundo. O padre veio, olhou,
pediu se podia fazer igual. Falei que sim. Foi lá e procurou também. Fez
coleção. Um dia, há 5 anos, eu era professora. Esse dia não tinha aula. Eu
não quis levantar. Era muito cedo. Fiquei deitada. Então uma voz me falou
do lado direito: “faça uma casa com areia”. Eu levei aquele susto. Olhei!
Não vi ninguém. Aí pedi o espírito de meu pai, da minha mãe que me
iluminasse. Pedi a Deus, a Jesus, pra me dar uma intuição do que era aquilo.
Eu ouvi perfeitamente a voz determinando que fizesse a casa com areia.
Então, eu puxei a colcha ao pescoço e falei: “vou rezar o pai nosso”. Fui
acabando de rezar o pai nosso e pensei: “eu sou pintora, desde menininha eu
pinto, eu sou pintora, tenho areia de todas as cores, aqueles vidrinhos, quem
sabe é pra eu fazer um quadro com areia como se fosse tinta a óleo de
sombra”. Pedi a Jesus pra me dar a intuição e ele me deu. Aí eu levantei
depressa, varri a casa, fiz café, peguei um pedaço de tela, olhei aquilo na
parede, risquei, abri aqueles vidrinhos. Vi a cor que eu queria. Abri, passei
cola e jogava assim ó (gestos rápidos). A minha técnica nasceu na manhã de
18 dezembro de 1967 (COUTO apud LUZ, 2007, p.03).
203
Diante do encontro com a técnica artesanal de pintura com areia, passaremos a utilizar, também, doravante,
essa nomenclatura para nos referir a Goiandira do Couto que foi, indubitavelmente, uma pessoa-personagem
culturalmente plural.
204
apropriação da imagem de Goiandira do Couto como um vulto que condiz com organicidade
da tradição cultural vilaboense204.
Há vestígios contundentes do princípio deste percurso. Segundo eles, a
recepção das primeiras telas veio da artista plástica Maria Guilhermina Fernandes que,
segundo Figueiredo (1979), foi pioneira no mercado de arte em Goiás, devido à iniciativa de
fundar a Galeria Alba, na cidade de Goiânia, em 1963, que posteriormente, passou a se
chamar Galeria Azul. No ano de 1968, possivelmente, diante do aprimoramento da técnica,
Goiandira do Couto procurou a marchand em busca de crítica sobre as telas levadas à
apreciação. Encontramos a resposta publicada no folder da sua segunda exposição individual,
ocorrida em 1969, na Casa Thomas Jefferson, em Brasília. Nos testemunhos que se seguem,
evidenciamos que a relação cultural da artista com a Cidade de Goiás havia chegado a um
lugar original:
204
Vale a pena lembrar que turismo foi um dos importantes pilares do projeto de futuro. Nesse aspecto, a partir
da década de 1970, notamos que o discurso de valorização dos bens materiais e imateriais da Cidade de Goiás
ganhou o reforço de alguns expoentes eleitos para simbolizar a cultura e a tradição local para, obviamente, atrair
os turistas. Teles (1991) na obra, No Santuário de Cora Coralina, dedicou-se a inventariar os mitos urbanos
através dos tempos. Primeiramente, o escritor enaltece a intelectualidade, a educação e as artes por meio dos
nascidos na Cidade de Goiás que, segundo ele, fizeram história nestes campos, inclusive, em âmbito estadual.
Em seguida, a discussão converge para a contemporaneidade afirmando que a herança do passado foi transferida
para quatro personagens principais. Parafraseando Teles (1991, p.91), alguns deles, não necessariamente
“nascidos da terra”, foram colocados nesta categoria diante dos feitos singulares realizados em favor da
preservação dos valores e das memórias da antiga Vila Boa. São eles: Cora Coralina, Octo Marques, Goiandira
do Couto e Frei Simão Dorvi. Na compreensão do autor, “(...) eram quatro vultos vivos que guardavam e faziam
a história da antiga capital do Estado, busca incessante dos turistas que andavam com suas codaques registrando
o momento histórico ao lado destas personalidades. (...) Resta, agora, Goiandira do Couto, o último mito. (...)
Seu nome é uma legenda, corre o mundo” (p.93-95). Historicizar em que medida a universalização da imagem
de Goiandira do Couto, a partir dos anos de 1970, implicou no reconhecimento mundial da Cidade de Goiás
como patrimônio histórico da humanidade, em 2001, é um dos fundamentos desta tese.
206
205
Ver fac-símile completo do folder da exposição “GOIANDIRA” no anexo IV.
208
206
Fonte: AFFSD
209
ponderados pelo vereador, Roberto Antônio de Oliveira, propositor do título. Sua visão pode
ser estendida à coletividade vilaboense, bem como se adequava aos horizontes vislumbrados
para a Cidade de Goiás com os dividendos da recente notoriedade adquirida pela artista-
artesã. Como tal, e dada à relevância do documento para confirmar as reflexões anteriores,
expomos o texto oficial:
207
Jornal “O Popular”, “Curso de Artes Plásticas já funciona em Vila Boa”. Goiânia, agosto de 1968, p. 03.
Fonte: Acervo de Taís Helena Machado Ferreira, cedido em cópia digital.
211
208
Jorge Felix de Souza foi tio, pai de criação e mentor da afamada escultora goiana, Neusa Moraes, e, atribui-se
a ele, algumas das suas escolhas artísticas e profissionais como, por exemplo, a docência. Entre as obras de
Neusa Moraes, notabilizamos: “um Imaculado Coração de Maria incrustado em nicho na fachada da residência
dos claretianos, e, no hall desta, dois pedestais em madeira; o busto do papa João XXIII, no Hotel Umuarama, o
monumento das Três Raças, na Praça Cívica. É de Neusa Moraes a escultura do fundador de Goiânia, Pedro
Ludovico Teixeira, montado a cavalo, que durante muitos anos aguardou destinação por parte das autoridades
responsáveis pelo setor cultural da capital” (SILVA, 2011, p.118). Ambas as esculturas supracitadas, encontram-
se, ainda nos dias atuais, no Paço Administrativo Estadual, complexo localizado na Praça Cívica, na cidade de
Goiânia, capital do Estado de Goiás.
212
209
Jornal “O Popular”, África do Sul Verá a Arte de Goiandira, Goiânia, 31 de outubro de 1969, s/p. Fonte:
Acervo de Taís Helena Machado Ferreira, cedido em cópia digital.
213
É perceptível que a obra de arte feita com areia havia superado os patamares
geográficos. A associação representativa entre a artista-artesã, a Cidade de Goiás e as
tradições “anhanguerinas”, convencionalmente chamadas de berço, modeladas no imaginário
coletivo vilaboense, expandiu as fronteiras goianas. Os já sabidos e discutidos esforços locais
neste sentido, os quais incluem o protagonismo direto ou indireto de Goiandira do Couto,
contaram com o apoio discursivo da impressa goiana e da crítica. Por isso, consideramos
210
Jornal “Diário da Manhã”, Roberto Marinho aos pés de Goiandira. Por: Jávier Godinho; Goiânia, 15 de abril
de 1995 s/p. Fonte: Acervo de Taís Helena Machado Ferreira, cedido em cópia digital.
214
esses veículos formadores de opinião, instrumentos decisivos para o sucesso deste formato
inventado de identidade urbana para consumo material e simbólico. Não obstante, ressaltamos
a tese de que uma parcela significativa desse status cultural e urbano adveio do poder
subjetivo das telas douradas. O refinamento nos detalhes, a precisão técnica, o inusitado
brilho multicor universalizaram e horizontalizaram diferentes olhares contemplativos para as
representações do passado colonial vilaboense circunscrito nas idealizações pictóricas
(re)imaginadas por Goiandira do Couto.
A propósito, vale a pena lembrar que o fato de estar focalizada nos holofotes da
fama, possivelmente acentuada pelo interesse de personalidades importantes211 desejosas por
saberem mais sobre ela, transformou a Casa de Goiandira em ponto turístico obrigatório para
aqueles que se deslocavam até a Cidade de Goiás. Relatos nos informam que, chegando ao
antigo casarão da família Couto, o tratamento dispensado pela artista-artesã aos visitantes,
anônimos ou não, era igualmente cordial. Sobre isso, Jávier Godinho repercutiu: “nos fins de
semana sua casa era uma romaria. Há domingos em que recebe setenta a oitenta turistas.
Quase nunca cobra e ainda oferece delicioso vinho de uvas que, em Vila Boa, se colhem duas
vezes por ano” (“O POPULAR”, Suplemento Com Areia também se Pinta, 1971, p.02)212.
Essa impressão, com o passar do tempo, popularizou-se e difundiu-se tanto
oralmente quanto pelos mais diversos meios de comunicação, como é o caso das informações
contidas no documento doado à AFFSD pelo Museu Casa de Cora Coralina, a Carta Mensal
da Associação de Cartofilia do Rio de Janeiro, Ano XVIII - Número 130:
211
Conforme a reportagem de Jávier Godinho, o jornalista-presidente das Organizações Globo, Roberto
Marinho, não conheceu pessoalmente a protagonista. Contudo, segundo seus reiterados depoimentos e dados
esparsos publicados na imprensa, ela foi visitada por personalidades públicas notáveis como: Pablo Neruda,
Juscelino Kubistchek, Chico Xavier, artistas e governadores de Estado.
212
Jornal “O Popular”, Suplemento: “Com Areia também se Pinta”. Por: Jávier Godinho; Goiânia, 05 de agosto
de 1971. Fonte: Acervo de Taís Helena Machado Ferreira (cedido em cópia digital).
215
213
Caso o leitor considere oportuno, reveja as declarações de Marly Mendanha na página 30 desta tese.
216
Quanto à técnica que a tornou famosa, Goiandira garante nada ter a ensinar,
pois a considera muito simples. Primeiro, desenha a lápis na tela, preenche
os desenhos com cola comum e depois aplica areia colorida de cores
variadas. “Não tenho nada o que ensinar”, desconversa (“O VILABOENSE”,
Senhora das Areias, 2005, p.08)214.
professores, mas a resposta não lhe foi dada até agora (“O POPULAR”,
“Escola de Artes continua fechada”, 1977, s/p)215.
Pode ser que tenha sido um desalinho pontual das conexões oficiais de poder
em relação aos fundamentos do projeto de futuro. No entanto, o que nos interessa verificar é a
densidade do envolvimento de Goiandira do Couto com o conjunto deste mesmo projeto,
pois, nas palavras de Godinho (1971, p.02), o ofício da artista-artesã na Escola de Belas Artes
“Veiga Valle” estava diretamente destinado ao seu sustento. Conjecturamos uma visão
diferente. Aventamos a hipótese de que esta dedicação, em um momento tão profícuo de sua
carreira, tinha um propósito mútuo: dar mais ênfase à sua imagem ao passo que as posições
culturais de destaque na Cidade de Goiás se mantinham restritas à cúpula dos guardiões das
tradições.
Esse pensamento reitera a fala quase declamatória proferida pela artista aos
visitantes, quando se referiria à circulação de suas obras pelo mundo. Portanto, a
mercantilização delas, por certo, configurava outras variáveis de renda. Novamente, a
entrevista concedida a pesquisadora Luz (2007), no ano de 2006, possibilita-nos franquear,
nesta tese, voz à protagonista:
215
Jornal “O Popular”, “Escola de Artes continua fechada”. Goiânia, 23 de agosto de1977, s/p. Fonte: Acervo
de Taís Helena Machado Ferreira, cedido em cópia digital.
218
216
Jornal “Diário da Manhã”, “Goiandira: e a areia colorida se faz arte”. Por: Licínio Barbosa; Coluna:
Opinião Pública. Goiânia, sábado, 3 de setembro de 2011. Fonte: Acervo da autora.
220
217
Percorreremos o itinerário entre o Largo do Rosário e o Largo do Chafariz, guiados pelo olhar guardião que
vela a paisagem urbana da Cidade de Goiás, revelando tradições construídas entre o passado e o presente. Os
monumentos que se localizam neste eixo, são vistos por essa tese como lugares de memória, pictoricamente,
evocados pelas criações artísticas de Goiandira do Couto. Demarcamos no mapa o que será visto e interpretado,
à luz das imagens. Segue a relação de monumentos e o ano em que foram edificados na Cidade de Goiás: 1.
Igreja do Rosári0 (1761; reconstruída em 1934); 2. Casa de Cora Coralina (1770); 3. Hospital São Pedro de
Alcântara (1825); 4. Cruz do Anhang uera (1918); 5. Matriz de Sant`Anna (1743); 6. Igreja Nossa Senhora da
Boa Morte (1779); 8. Chafariz de Cauda (1778); 9. Museu das Bandeiras, antiga Casa de Câmara e Cadeira
(1761).
221
218
As etapas propostas por Capel (2016) são constituídas dos respectivos passos: “1. Etapa de Observação Inicial
e Escrita de Percepção; 2. Anotação de Questões-Problema; 3. Investigação das questões problema; 4. Exame
dos Elementos da Imagem, 5. Análise de Dados de Circulação e Recepção da Imagem; 6. Diálogo com Outras
Obras” (CAPEL, 2015, no prelo, p.01).
222
Figura 31 - Largo do Rosário - Vista da Cidade, Goiandira do Couto, areia sobre fibra de
madeira, (141x93 cm), 1976.
Fonte: Cópia disponível em: MUBAN. Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011.
219
Conceito didi-hubermaniano. Cf. (DIDI-HUBERMAN, 2013).
224
ser lida sob a perspectiva do reflexo imediato, mas sim pelo posicionamento de mediações
metalinguísticas que, por sua vez, são necessariamente sintomáticas (CAPEL, 2010, p.160).
Esse princípio ressalta que o passado serviu de anteparo para as deliberações
culturais sobre o presente/futuro da Cidade de Goiás, e que a participação de Goiandira do
Couto na elaboração do enredo criativo deste processo, foi realmente efetiva.
Consequentemente, repercutir sua trajetória, práticas, escolhas e influências culturais
permitiu-nos irromper o campo do visível, pois há indícios suficientes para dizer que a obra
Largo do Rosário - Vista da Cidade (1976), figura 31, captura os sentidos totêmicos da
narrativa construída em torno da cidade-ideal. Essa perspectiva norteia-se na concepção de
berço da cultura goiana.
Do primeiro ao último plano da referida imagem, nota-se que a artista-
identifica e consegue reunir, em um mesmo conjunto paisagístico, elementos de sua memória
subjetiva e afetiva que, em boa medida, cruzam-se com o viés da história oficial; retórica
eleita pelos guardiões das tradições como imagem-discurso de projeção da Cidade de Goiás
para os horizontes da cidade-patrimônio, principal objetivo do projeto de futuro. Nesse
sentido, reexaminado o texto do Dossiê de Goiás, sessão Inventário Nacional de Referências
Culturais (Anexo IV - Introdução), fundamentamos a presente afirmativa cuja profusão
salienta-se no seguinte fragmento textual:
220
A referida localidade situa-se há aproximadamente trinta quilômetros de distância da Cidade de Goiás e,
atualmente, é jurisdicionado geográfica e politicamente ao município vilaboense.
225
confluência do discurso escrito com a narrativa visual da figura 31. Para exemplificar essa
ideia, pinçamos da citação do documento o seguinte trecho: “Narradores e narrativas vão
agenciando e atualizando, de modo artesanal, os códigos coletivos formadores da identidade
local” (DOSSIÊ DE GOIÁS, Anexo IV, Introdução, CD-ROOM, slide 06).
Assim, lendo e relendo o conteúdo dessa frase, temos a impressão de que o
autor parece ter se inspirado na imagem da tela Largo do Rosário-Vista da Cidade (1976)
para escrevê-lo. Aliás, arriscamos ir um pouco além. Entendemos que este fragmento textual
serviria quase como legenda para os modos como Goiandira do Couto narra a cidade
preservando as memórias e os mitos da tradição vilaboense como se fossem representações de
uma identidade coletiva.
Em síntese, visando aprofundar nestas análises, propomo-nos a reexaminar a
referida obra, agora, particularizando-a a partir dos detalhes.
4° Detalhe
2° Detalhe 3°Detalhe
1° Detalhe
Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011.
226
Verificou-se que o espaço ocupado pela igreja atual era antes o lugar de uma
capela em estilo colonial construída com a finalidade de abrigar o culto á
Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, trazido para o Brasil a partir
da colonização portuguesa e do tráfico de negros pelo Atlântico,
institucionalizado a partir da criação de irmandades negras, visíveis graças à
preservação dos manuscritos de compromissos, como no caso do Termo de
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos que corrobora a presença de confrarias e irmandades religiosas em
Goiás (...). Tratando-se de problemas, nos veio um amplo rol de perguntas
umbilicalmente conectadas à demolição da igreja, aos silêncios quanto à
questão racial em Goiás e ao apagamento de rastros da cultura negra na
região (PRADO, 2014, p.172-174).
cidade, aí fiquei na porta da Igreja do Rosário, naquela escadaria, fiquei e pintei aquele
quadro grandão (...) toda a cidade está aí. Toda” (COUTO apud FERREIRA, 2011, p.183),
até poderíamos crer na possibilidade de apagamento da memória africana. No entanto,
considerando que as imagens jogam com a capacidade do historiador cultural da arte de ver,
rastrear e ressuscitar sobrevivências, estamos convencidos de que sabendo operá-las, esses
testemunhos transformam-se em dispositivos do sentir/“ouvir” os ecos das vozes escamotadas
pelos ângulos genéricos da cidade-ideal.
Não obstante, a priori, daremos uma pausa nesta discussão, pois acreditamos
que, ainda, há muito para ser visto e, possivelmente, “escutado” no itinerário de poder
compreendido entre o Largo do Rosário e o Largo do Chafariz nos modos como a referida tela
(figura 30) evoca a cidade, seu passado e suas tradições. Essa, certamente, é uma das funções
precípuas do métier desse estudo que, em síntese, atenta-se ao seguinte princípio:
221
Visando diálogo sistemático, também, com a historiografia goiana, subscrevemos os dados trazidos por
Moraes (2012), os quais reiteram as origens oficiais dos monumentos que compõem a paisagem urbana do centro
histórico da Cidade de Goiás mostradas quase semelhantemente por Goiandira do Couto: “No Prospecto de Villa
Boa, de 1751, encontram-se registradas, da parte norte para o sul, a igreja matriz com o consistório das
irmandades do Senhor dos Passos e do Santíssimo Sacramento, as casas de morada do capitão general e a capela
Nossa Senhora da Lapa, com um cruzeiro em frente. No atual largo do Chafariz, aparecem a capela da Boa
Morte, a cadeia e a casa de câmara e o paço do Senhor do Passos. Isso nos leva a acreditar que o edifício da casa
de câmara e cadeia encontram-se em seu local primitivo (MORAES, 2012, p.47).
231
222
“(...) a antiga Rua Direita do Negócio, isto é, a rua comercial mais importante dos tempos da mineração.
Naquela localidade, aconteciam as transações comerciais de toda ordem, de forma intensa, por estar próxima às
primeiras minas de ouro descobertas na região da Carioca, a aproximadamente dois quilômetros dessa vista. O
logradouro, atualmente, recebe o nome de Rua Dom Cândido e, após o cruzeiro, visualizamos uma extensão da
mesma, embora passe a ser nomeada por Rua Moretti Foggia; localidade onde ainda se volta para as práticas de
negócios e constitui palco para outras notáveis manifestações de cunho religioso e cultural, de acordo com o
calendário e as tradições festivas locais” (BARBOSA, 2014, p.05).
232
Figura 34 - Largo do Rosário, Goiandira do Couto, areia sobre fibra de madeira, (44 x 59),
1986.
Quando eu pinto a cidade, em olho, acho bonito, becos, casas, o que sinto
faço na hora. Não sei se é intuição. Goiás tem muitos pontos bonitos. Eu
pinto a cidade, mas não gosto de pintar personagens. Eu não pinto nem
pessoas e nem animais, não gosto” (COUTO apud BRITTO, 2009, p.16).
234
223
Ver folder completo no anexo V.
236
Fonte: Folder Comemorativo “Dia das Bandeiras”, fl. 01, Cidade de Goiás, 2015.
Fonte: Folder Comemorativo “Dia das Bandeiras”, fls. 03, Cidade de Goiás, 2015, acervo da autora.
conjunto metalinguístico intrincado à proposta inventada pela elite cultural de que a Cidade de
Goiás nada mais era que o berço das tradições goianas.
Pode até parecer arriscado encaminhar essa afirmativa. Porém, essa analise se
fundamenta no parágrafo único do Projeto de Lei N° 21 (figura 37), que, assim, se subscreve:
“O medalhão localizado no centro da bandeira foi inspirado em um emblema anteriormente
elaborado por Goiandira Ayres do Couto”224. Por esses termos, é possível dizer que havia se
construído no imaginário social vilaboense uma relação objetiva e subjetiva da “Cruz do
Anhanguera” com as representações de Goiandira do Couto, enquanto pessoa e personalidade
vilaboense. Estas possibilidades espelham a fina sensibilidade e a sintonia carismática da
artista com as diferentes instâncias da sociedade da qual ela jamais se apartou.
A propósito, nunca é demais lembrar que, à época da criação/instituição da
bandeira do município, ou seja, em 1975, em âmbito local a artista, a artesã e guardiã,
Goiandira do Couto, ocupava o cargo de diretora da Escola de Belas Artes “Veiga Valle” e
nacional e internacionalmente vivia o auge de sua projeção artístico-cultural conduzindo a
cidade de Cidade de Goiás para a mesma direção. Portanto, ocorreu-nos relativizar a
autonomia criativa do idealizador da bandeira, Pedro Vargas Craveiro da Luz, e, por
conseguinte, a neutralidade da elite cultural vilaboense na “escolha” das insígnias relativas à
representação simbólica deste município de origem comprovadamente multicultural, mas que
insistiu (e ainda insiste) em manter uma narrativa histórica protagonizada, quase que
exclusivamente, pelos mitos e símbolos da tradição que povoam a centralidade urbana
vilaboense, igualmente, evocada nas representações da cidade-ideal.
Reler o documento na figura 37 nos possibilita interpelar o silêncio em torno
dos motivos pelos quais a “Cruz do Anhanguera” ocupa o centro do brasão da Cidade de
Goiás. O sentido semântico dado a esses símbolos está, na maioria das vezes, relacionado à
compreensão identitária de um povo que, neste caso, é multicultural. De acordo com o
parágrafo 1° do Projeto de Lei N° 21 (figura 37), nota-se o literal domínio das oficialidades
considerando o que é dito sobre o significado das cores verde, azul e amarelo diagramadas em
torno do branco e preto que dá forma ao emblema que apregoa o culto às origens.
Em última análise, depreendemos que as continuidades e as descontinuidades a
exemplo do exposto, sedimentam as suspeitas de que o processo de ressignificação cultural da
Cidade de Goiás, empreendido pela elite vilaboense, tenha adquirido maior robustez cultural e
institucional a partir da década de 1970, considerando os indícios de que grande parte do
224
Fonte: acervo da autora.
239
conjunto dessas medidas orbitaram em torno de Goiandira do Couto, vista por autoridades e
anônimos, como precípua representante das tradições vilaboenses naquela época.
Implicitamente, evidencia-se que o olhar guardião, constituinte da cidade-ideal, espraiou-se,
transversalmente, para a concepção de cidade-patrimônio, ainda, em construção.
No entanto, não estamos satisfeitos com o que é mostrado no caminho
pavimentado pelo olhar guardião, pois ele nos parece lacônico. Essa inquietude provém da
reflexão de que ambas as representações - cidade-ideal e a cidade-patrimônio -, utilizadas
como mecanismo de notabilidade da Cidade de Goiás no cenário cultural goiano, e fora dele,
partiram da uma vertente comum, isto é, das concepções criativas imaginadas e derivadas de
Goiandira do Couto. Em outras palavras, referimo-nos à redundância de significados para um
significante de caráter polissêmico, assim como são as cidades, organicamente falando.
Orientados pelos ensinamentos de Didi-Huberman (2012, p. 95), apelamos para
um olhar mais exigente, com o objetivo de nos desviar das ilusões visuais. Por isso,
recolocamo-nos perante a imagem mostrada na figura 35, Cruz do Anhanguera (1947), para
observar que o tempo encarregou-se de trincar suas formas possibilitando-nos, assim, o seu
esgarçamento visual e hermenêutico. Na potência destas rasgaduras, enxergamos outras
imagens e linguagens artísticas que, ao serem comparadas com o que é mostrado por
Goiandira do Couto, apresentam notáveis dissensos nos modos de ver e conceber uma mesma
paisagem.
Desse modo, justificamos a inclusão de outras configurações visíveis e
sensíveis inspiradas na poética urbana vilaboense, pois é um dos objetivos deste estudo evitar
a reprodução de um ponto de vista estreito sobre o que se pode ver e sentir no trajeto
compreendido entre o Largo do Rosário e o Largo do Chafariz. Temos consciência de que a
localidade em análise se trata de lugar dos começos. A dúvida advém da versão narrada pela
cidade-ideal, cuja representação é praticamente ausente da complexidade de seus fins. Por
outro lado, conforme mencionado, certificamo-nos de que repensar suas contradições e
paradoxos é uma tarefa realizável.
Parafraseando Didi-Huberman (2012, p.80), os sintomas históricos são
perturbadores e, portanto, capazes de propagar sentidos elípticos à imagem submetida à
análise multifocal dos historiadores culturais. Não sabemos exatamente do que se tratam esses
alertas. Ainda assim, sentimo-nos incomodados com o que vemos, ou melhor, com o que não
vemos nas criações artísticas de Goiandira do Couto.
Nesse sentido, frisamos: somos inclinados a olhar para o adjacente.
240
pacificação das distâncias e das “desproporções” entre o utópico e o original, pois “a imagem,
construída sobre a ilusão da perspectiva, confunde-se com aquilo de que seria a imagem”
(p.38).
Ora, considerando este raciocínio e a linha tênue que separa a cidade-real da
cidade-ideal, avaliamos que, de fato, possa ter sido o que aconteceu. Desse modo, os fios que
envolvem Goiandira do Couto, suas imagens e a paisagem histórica vilaboense emaranharam-
se à proposta intitucionalizada de ressignficação cultural da Cidade de Goiás que, no afã de
reaver o status cultural perdido em detrimento da transferência da capital, em 1937, optou por
seguir o caminho traçado pelo olhar guardião. Estamos certos de que essa “escolha” não foi
aleatória assim como não é despretenciosa a utilização do método comparado proposto para
requalificar as imagens, as linguagens e, sobretudo, as sensibilidades não reveladas nas
imagens consagradas à tradição.
Do lugar onde estamos, ou seja, em frente a Cruz do Anhaguera (figura 35),
avistamos a casa da poetisa Cora Coralina. Curiosamente, ela aparece em duas versões
diferentes. Mas, como explicar esse fenômeno? Não há uma definição exata. Basta que
levemos em consideração que as imagens são dotadas de pensamento e, por isso, se revelam
conforme solicitamos sua presença (CAUQUELIN, 2007, p.49). Eis um exemplo:
Figura 38-A - Casa Velha da Ponte, João do Couto(bico de pena e nanquim) s/d.
Figura 38-B - Casa de Cora Coralina ao contrário. Goiandira do Couto, areia sobre fibra de
madeira, (230x147), 1975.
225
Trazer as produções artísticas de João do Couto vem ao encontro da proposta comparada, neste caso, com um
artista proveniente da mesma base cultural da artista. No capítulo I, na página 74, em nota de rodapé, trouxemos
uma síntese da trajetória artística do irmão da protagonista que, por sua vez, recebeu formação artística
acadêmica na Universidade de São Paulo - USP. Consideramos que sua formação universitária, sob a influência
das vanguardas artísticas ocorridas no Brasil na primeira metade do século XX, explicam suas escolhas ao
representar a cidade natal, a Cidade de Goiás. Pelo que parece, apesar da ausência de data em algumas das
imagens que apresentaremos adiante, a série de João do Couto fora produzida na década de 1960.
243
226
“Octo Outurnino Marques nasceu na Cidade de Goiás no dia 08 de outubro de 1915. A ancestralidade de Octo
foi marcada pelo signo das artes musicais. Seu avô era músico profissional assim como seu pai, Pedro Valentim
Marques, que, além de músico, era também ourives, carpinteiro e sapateiro – ofícios de alguém bem dotado para
as artes feitas com as mãos. (...) Francisca Ferreira de Sales, conhecida como Dona Fanchi era sua mãe; mulher
energética contribuía para o minguado orçamento doméstico produzindo quitandas que eram vendidas pelo
menino Octo” (LIMA, 2009, p.21-22).
245
para se fazer uma história cultural urbana. Parafraseando seu pensamento, uma cidade
sensível tem a propriedade de se apresentar mais “real”. Desta forma, nos é permitido
enxergar o ethos urbano cujos sentidos afloram para o campo do tangível ou do visível. Essa é
a sensação que temos quando olhamos para a tela de Octo Marques (figura 39).
Subjetivamente, notamos uma cidade sociável, uma paisagem em compasso
com o fazer social que, de algum modo, representa as ações transformadoras do espaço
(natural), ao longo do tempo. Coincidência ou não, os dois monumentos mais representativos
da intervenção contemporânea na paisagem urbana vilabonese, a “Cruz do Anhanguera” e a
Igreja em Louvor a Nossa Senhora do Rosário protagonizam a cena de um dia ensolarado com
os atores responsáveis pelo viver urbano. No primeiro plano da imagem, está o pedestal em
homenagem ao “mito fundador” que, com toda a sua imponência, avança para o céu azul
revoado pelas gaivotas no horizonte. É verdade que apenas duas dessas aves ficaram na
vastidão do horizonte para serem flagradas pelo artista. Representativamente, temos a
impressão de estar contemplando uma cena do cotidiano local.
Atribuímos ao domínio técnico de Octo Marques esse jogo de movimentos
exibido pelos persongens. Essa peculiaridade leva-nos a imaginar que o totém ao fundador
teria servido de breve repouso ao colegial que segue um rumo incerto aos olhos, mas,
aparentemente, consciente de onde deseja ir. No plano intermediário, vê-se a “Casa de Cora”
desempenhando, desta vez, o papel de coajuvante da “Cruz do Anhanguera”. Curiosamente, a
única janela aberta no instante em que se deu o ato registrado por Octo Marques, se trata,
justamente, dos aposentos da iluste moradora. Não é possivel afirmar com exatidão o que ou
quem possa vir a ser; embora seja perceptível o vulto à observar as sociabilidades urbanas
que, por meio da concepção do artista, flagraram a comunhão do público com o privado. À
primeira vista, pode até parecer uma prática despretenciosa. Mas, na verdade, trata-se de uma
relação habitual e, portanto, cultural dos moradores locais, no que se refere aos usos e funções
dos monumentos localizados no centro histórico da Cidade de Goiás, explana Tamaso (2007,
p.14-20).
Finalmente, no último plano da imagem em apreciação (figura 39), o artista
revela-nos a forma arquitetônica que eventualmente encontrava-se na retaguarda de Goiandira
do Couto, na ocasião em que ela concebeu a tela Largo do Rosário-Vista da Cidade (1976),
demostrada na figura. A interlocução pictórica do artista, a nosso ver, demonstra os contrastes
da arquitetura gótica com a paisagem colonial, ao passo que desfigura o ponto de distância
colocado no centro do Largo do Rosário. Referimo-nos ao busto que homenageia Epitácio
Pessoa, meticulosamente, representado pela artista-artesã na obra supracitada (figura 31).
247
227
“Quando os primeiros missionários chegaram a Goiás, em 1883, a Irmandade dos Negros ainda existia, mas
em grande decadência. Havia muito que as minas da Califórnia, da Austrália, do sul da África, exploradas com
todos os aperfeiçoamentos que a ciência, excitada pela cobiça, pudera inventar, causaram o abandono das do
Brasil, sobretudo as de Goiás. Só se falava delas como de um fato histórico muito afastado no tempo. Por outro
lado, em virtude de certas disposições legislativas proclamando a extinção progressiva da escravidão, o número
de escravos havia diminuído muito. Efectivamente, a igreja do Rosário estava quase vacante e, esperando que o
seu sucessor, D. Duarte Silva, suprimisse pura e simplesmente a Irmandade dos Negros, D. Gonsalves entendeu
entregar sua igreja aos missionários. Tomaram estes posse dela, ao mesmo tempo que de uma casa que lhe ficava
contígua” (GALLAIS, 1942, p.71-72).
248
Figura 40 - Portões com torre da Igreja, (1989), Goiandira do Couto, areia sobre fibra de
madeira, (33 x 57) 1989.
casarões germinados, vistos por este estudo como verdadeiros coadjuvantes da paisagem
“lugarizada” pelos monumentos que evocam os começos e a “glória” destes tempos. É
interessante pontuar que nos tempos coloniais essas residências eram habitadas por moradores
que possuíam uma condição social mais abastada e, por conseguinte, detentores de poder
social e cultural sobre a cidade. Essa realidade entrelaça-se à hipótese de que a elite
representada pelos guardiões usufrui da condição de moradores do centro, para se apropriar,
simbolicamente, do poder enraizado nestas residências. Esse atributo outorgar-lhes poder
cultural no presente, a fim de projetar o futuro, com os olhos no passado.
Reavaliando a imagem (figura 40), percebe-se que Goiandira do Couto se
posicionou muito próximo à “Cruz do Anhanguera” para registrar os telhados e a torre sineira
da Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Para sermos mais precisos, os Portões com torre da
Igreja (1989) fazem parte da paisagem do Largo do Rosário, localizado na margem direita do
Rio Vermelho, logo, a vista é concebida do lado contrário (margem esquerda). Deste mesmo
lugar, a visão frontal é, igualmente, fértil, pois reúne: o cruzeiro, a casa de Cora Coralina e o
hospital São Pedro228, conforme se pode ver na imagem seguinte:
228
Para saber mais sobre a fundação e atuação desta instituição referência nos cuidados com a saúde e o
saneamento da Cidade de Goiás, desde o século XIX, conferir: (MAGALHAES, 2004).
250
de saúde, fundada no século XIX. Nesta versão pictórica, a casa anciã parece ter perdido os
juízos estéticos conferidos por sua ilustre moradora no poema, Casa Velha da Ponte. As
‘escaras da velhice’ foram substituídas por uma “nova” roupagem, possivelmente, diante de
sua musealização, em 1989, e, restauração, após ter sido parcilmente destruída em 2001, pelas
cheias imprevisíves do Rio Vermelho.
Sobre a casa contígua que flutua em águas, ela, também, não é desconhecida a
Goiandira do Couto. Esta residência, guarda as memórias da infância e da juventude do
amigo, mentor e guardião das tradições “inventadas”, Elder Camargo de Passos que,
juntamente com Goiandira do Couto, fundaram229 a OVAT em 1965, entidade que ele, ainda,
ocupa-se em presidí-la. Esta obra, especificamente, continua a exalar sutilezas. Estamos nos
referindo ao objeto sensível, de cor laranja, deixado numa das janelas da casa, onde viveu o
mencionado guardião.
Mantendo-se fiel aos seus gostos de não pintar pessoas, vemos que,
unicamente, neste lugar de memória, na paisagem urbana da cidade-ideal, alguém deixou um
sinal, possivelmente, aludindo presença nas imediações da nova representação dada à Casa de
Cora Coralina (2004). Considerando que as paisagens são culturais e carregadas de sentidos
simbólicos, justifica a atenção redobrada a todos os elementos que chegam até nós através dos
singulares vestígios reveladores de presença (PESAVENTO, 2008, p.07).
Historiadores e artistas possuem algo incomum: a capacidade imaginária e
verossimilhante de reconstruir, no presente, o passado. Assim que nos recolocamos na direção
do percurso traçado, isto é, no caminho que interliga o Largo do Rosário ao Largo do
Chafariz, fomos surpreendidos pela visão memorialista de Octo Marques. A imagem
produzida por ele traz lembranças submersas da igreja demolida em 1934. A visão nos
pareceu convincente. Por isso, decidimos olhar, novamente, para a região do Rosário.
229
“Art. 1° (...) são fundadores da OVAT: Goiandira Aires do Couto (brasileira, solteira, e professora), Joiza
Pereira Oliveira (brasileira, casada e professora), Joice Pereira de Oliveira (brasileira, solteira e professora),
Elina Maria da Silva (brasileira, casada e professora), Elder Camargo de Passos (brasileiro, casado e advogado),
Humberto do Nascimento Andrade (brasileiro, casado, comerciante), Antônio Carlos da Costa Campos (
brasileiro, casado, advogado), Eudes Pacheco Santana (brasileiro, casado e advogado), Neuza Velasco
(brasileira, casada e professora), Erlande da Costa Campos (brasileiro, casado e bancário) e Hecival Alves de
Castro (brasileiro, casado e advogado); (fls.01)”. Cf. Estatuto da OVAT Livro n° A-1, fl. 01, 1978. Fonte:
TABELIONATO 2º OFÍCIO.
251
Figura 42 - Rua Direita (Goiás). Octo Marques, oléo sobre tela, 1947.
Formulamos uma visão, cada vez mais aclarada, de que não é inócua a
recorrência de oficialidades nas representações da cidade-ideal por Goiandira do Couto.
Entretanto, não convém precipitarmos sua exposição, tendo em vista que o itinerário e os
respectivos diálogos visuais pré-estabelecidos, ainda, não se esgotaram. Considerando que
chegamos à metade do percurso e que precisamos nos reposicionar na direção pretendida, isto
é, no sentido do Largo do Chafariz, lugar que delimita o horizonte da cidade idealizada por
Goiandira do Couto, novamente fazemos uso das palavras de Pesavento (2007) que, por sua
vez, coerentemente disciplina: “a cidade precisa ser descoberta pelo olhar” (p.17). Sendo
253
assim, não seria aceitável que juízos parciais possam ser entendidos como pareceres sobre o
“todo” que é mostrado pela artista-artesã na produção pictórica Largo do Rosário (1976).
Ora, como trouxemos à baila, paradigmas e referências da cultura popular em
meio às discussões sobre oficialidade e tradição, entendemos que embrenharmos pelos lugares
que margeiam a centralidade urbana em estudo, neste caso, os becos de Goiás, é legítimo,
pois, assim, contemplando, de fato, a perspectiva oblíqua que pertine repensar a sacralização
dos lugares de memória na cidade-ideal; os quais são analisados como verdadeiros altares que
apregoam o culto às origens neste ambiente inventado.
Consoante Coelho (1997), os becos são espaços públicos, localizados na
transversal e hierarquizados em última escala de importância entre as vias urbanas (p.103). A
configuração estreita, curta e, eventualmente, sem saída são atributos que vão de encontro às
análises do autor e representam, parcialmente, as realidades urbanas na Cidade de Goiás230.
Para efeito de menção, lembramos que a identidade desses lugares é
controversa. As ciências humanas e sociais tendem a enxergá-los entre paradoxos
hermenêuticos, ressaltando a dessintonia quanto à compreensão sociocultural destes redutos,
potencialmente, capazes de interligar, segregar, aproximar ou estigmatizar as vissicitudes
urbanas praticadas nestes âmbitos. Independente do sentido, apropriamo-nos da polissemia
semântico-interpretativa que os rodeia como princípio indispensável aos estudos culturais que,
neste caso, tem como propósito ver e discutir a paisagem histórico-urbana da Cidade de Goiás
muito além das telas douradas.
Reconhecendo que, “(...) na mistura, é a memória que dita e a história escreve”
(NORA, 1993, p.24), revisitamos a poética memorialista de Cora Coralina, porque
encontramos indícios de que sua arte captou, nos becos da Cidade de Goiás, práticas de
cooperação e de sobrevivência, consideradas, há algum tempo pelo discurso oficial,
dispensáveis, decadentes e impróprias para serem perpetradas no eixo das tradições. Eis uma
provável explicação para a eugenia da cidade-ideal narrada à luz das tradições:
230
“Nos séculos XVIII e XIX, os principais meios de transporte utilizados em Goiás eram os animais cargueiros
(burros e mulas), e o encarregado por conduzi-los era denominado tropeiro. As poucas estradas existentes no
país eram transitadas por carros-de-bois, carruagens e, especialmente, por cargueiros. (...) Atividade
essencialmente masculina, constituiu por muitos anos fonte de renda de trabalhadores que vendiam, nas cidades,
leite, verduras, cereais e feixes de lenha. Na Cidade de Goiás, era comum o dito popular “quem não governa a
lenha, não governa a casa que tenha” delimitando o universo da mulher na sociedade e legitimando o acesso dos
lenheiros às casas de “conceito”. Esses trabalhadores assumiram a função de estreitar os laços da cidade-vida,
efetivando a ponte entre o mundo marginal e o mundo oficial. Os becos que, a princípio, foram criados apenas
para encurtar as distâncias, transformaram-se em locais para a circulação de se serviçais e animais” (BRITTO,
2008, p.136).
254
Figura 43-A - Beco da Rua Figura 43-B - Beco do Figura 43-C - Beco do Ouro
13 de Maio, Goiandira do Cotovelo, Goiandira do Fino, Goiandira do Couto
Couto (35X55), areia sobre Couto (40x53), areia sobre (34x45), areia sobre fibra de
fibra de madeira, 1982. fibra de madeira, 1987. madeira, 1978
231
Nora (1993) define lugares históricos como “lugares mixtos, híbridos e mutantes, intimamente enlaçados de
vida e de morte, de tempo e eternidade e de eternidade, numa trama espiral do coletivo e do individual, do
prosaico e do sagrado, do imóvel e do móvel” (NORA, 1993, p.22).
256
No beco onde perfila-se Flamboyants (1962), nem de longe nos lembra que se
tratam de vias públicas em derradeira escala de importância nas cidades, sejam elas históricas
ou não. Indentificamos, uma única diferença em relação aos becos das telas douradas e a
representação visual da figura 44: a ausência da pavimentação clássica a partir das formações
rochosas locais. Ainda assim, considerando visualmente esse aspecto, as habitações que
protagonizam o evidente cenário bucólico não nos remetem, em momento algum, ao lugar dos
desvalidos citados por Cora Coralina.
Em síntese, consoante ao que vemos nas figuras 43 (A, B e C) e 44, os modos
como Goiandira do Couto valorizou e promoveu a cultura popular, seja na primeira ou na
segunda fase artística de sua carreira, não se diferenciaram das representações anteriores,
onde evidenciamos a presença velada de um olhar guadião zelando pelas formas da cidade-
ideal concebida entre mitos e tradições construídas subjetivamente.
Pensando nas hipotéticas nuances de invisibilidade e inalterabilidade da
paisagem urbana vilaboense que, a nosso ver, pairam sobre a arte em Goiandira do Couto.
Neste caso, interrogamos: há, de fato, lugar para os rastros dos atores sociais na cidade-ideal
ou trata-se de uma urbe povoada, tão somente, pelos lugares de memória?
O interesse pela resposta encaminha-nos ao Largo da Matriz232. Estamos,
exatamente, na metade do caminho considerando onde nos propusemos chegar: ao Largo do
Chafariz. Esta localidade concentra monumentos expressivos do poder político e religioso
instalados antes de 1736, marco oficial que dispôs sobre a criação de Vila Boa e, certamente,
um lugar óbvio para as inspirações artísticas da cidade-ideal. Notadamente, trata-se de um
trecho emblemático da paisagem vilaboense em estudo, pelo fato de que os poderes temporal
e espiritual coexistiram ativamente nos tempos coloniais e, na atualidade, subsistem de forma
simbólica. Em virtude dessas peculiaridades, sentimo-nos provocados a olhar para duas
imagens contemporâneas deste monumento eclesiástico. As semelhanças entre as
representações que se seguem são quase inevitáveis, assim como as diferenças.
Oportunamente, iremos destacá-las.
232
“(...) é o largo da Matriz, também conhecido como largo do Palácio, local onde os primeiros exploradores
erigiram a pequena e primitiva capela dedicada a Sant`Anna e onde, segundo a tradição, Bartolomeu Bueno
construiu uma de suas residências. Também de formato triangular, esse largo apresenta os melhores, maiores e
mais bem acabados edifícios residências e, ao longo do tempo, teve várias dessas edificações profundamente
modificadas, com a substituição de algumas casas térreas por sobrados, a adaptação de algumas residências para
servirem de residência ao Governador, a substituição da Capela por uma igreja Matriz de dimensões
monumentais em relação ao restante do conjunto e a substituição da provável residência do fundador pela Igreja
de Nossa Senhora da Boa Morte” (COELHO, 1997, p.107).
258
Figura 45-A - Igreja Nossa Senhora da Boa Figura 45-B - Igreja de Nossa Senhora da
Morte, Goiandira do Couto, areia sobre fibra Boa Morte, João do Couto, (bico de pena e
de madeira, 1967. nanquim), 1968.
233
“Em Vila Boa, vamos encontrar dois casos específicos de adoção de nave poligonal, com utilização do
octógono na definição de sua planta. O primeiro edifício construído com a utilização de tal característica vai ser
a Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte (...). Sua posição no terreno onde está implantado, na confluência das
ruas do Horto e Fundição, é também elemento que, de certa forma, contribui para essa situação de destaque,
criando para o observador situado à sua frente, uma sensação de profundidade e relevo, em decorrência do
desalinho com que se apresentam essas ruas” (COELHO, 1997, p.117-118). Cf. Idem.
259
Relembramos que a permanência do poder político estadual na Cidade Goiás se deu até o ano
de 1937, marco da transferência definitiva para a nova capital do Estado, Goiânia.
Segundo reiterados depoimentos da protagonista, a tela representada na figura
45-A deu origem à sua segunda fase artística (areia colorida e cola à base d`água). A suposta
voz mística que lhe disse: “faz uma casa com areia”, na manhã de dezembro de 1967,
materializou-se na compressão da artista-artesã, numa “casa” não necessariamente
convencional. De acordo com a tradição oral, reside, nos alicerces desta “casa”, as ruínas da
residência que pertenceu ao mito fundador da Cidade de Goiás, o bandeirante paulista
popularmente conhecido como “Anhanguera”. Galvão Júnior e Bertran (1987), também,
reconhecem a existência desta concepção introjetada oral e, culturalmente, no(s) discurso(s)
da população local reafirmando que: “(...) conta-se da tradição histórica da cidade que
Bartolomeu Bueno Filho teve sua primeira casa no vértice sul do largo, já então definido
como triângulo” (p. 04).
Pontuar sobre essas questões têm como objetivo demonstrar os vieses pelos
quais a presença mítica do “fundador” encontra-se amalgamado no (in)consciente coletivo dos
vilaboenses, provavelmente, em decorrência das diversas estratagemas culturais daqueles que
se dedicaram em manter pujante, ainda que por sutilezas, a memória da tradição colonizadora
no tempo presente. Eis as razões pelas quais a arte em areia é vista, hipoteticamente por este
estudo, como um importante vetor dessas permanências. Mas, como se tratam de suspeitas,
partimos do princípio de que ver e comparar continua sendo a direção metodológica mais
acertada para nos orientar em relação à compreensão destas especificidades.
Nesse sentido, observando a imagem produzida por João do Couto234 (1923-
1999), representada na figura 45-B, visualizamos que sua idealização restringiu-se ao
monumento religioso que, segundo Coelho (1997), localiza-se “junto ao largo do palácio e
confere-lhe uma situação de privilégio em relação a todo o conjunto, inclusive, no que se
refere à própria igreja Matriz” (p.118). Acreditamos que a estética bicolor pautou-se por esta
prerrogativa. E, assim sendo, percebemos que há no gravurista um característico duplo regime
de idealização da paisagem urbana vilaboense, na medida em que consideramos a figura 45-B,
234
Nascido em 17 de setembro de 1923, na Cidade de Goiás, João do Couto viveu e estudou em sua cidade natal
até a segunda série ginasial, no Lyceu de Goyaz. Filho de Luís do Couto e Maria Ayres do Couto mudou-se para
o Rio de Janeiro, ainda moço, e, por lá, concluiu os antigos primeiro e segundo graus. Deu sequência aos estudos
na cidade de São Paulo, onde se formou em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo, lugar
onde conheceu e foi aluno de Sérgio Millet (1898-1966), um dos principais nomes brasileiros em crítica da arte.
Influenciado, possivelmente, pelo movimento modernista brasileiro, João do Couto fez parte de vários
movimentos culturais de sua época, tanto em Goiás quanto em São Paulo. Destacou-se pelo uso da técnica com
bico de pena e, também, imortalizou as formas arquitetônicas da Cidade de Goiás por meio de sua arte em preto
e branco (adaptação). Cf. Disponível em: <www.joaodocouto.com.br>. Acesso em: 07 mai. 2015.
260
apesar do rigor estético, como prenúncio de outras representações, cuja sensibilidade dá-nos a
entender que o artista nutriu, em algum momento, a expectativa de diálogo.
Para tanto, basta notarmos que a oficialização dos lugares de memória, neste
trecho específico do percurso, o Largo da Matriz, aparece requalificado nas imagens que se
seguem, figuras 47-A e 47-B, produzidas em bico de pena e nanquim, técnica na qual o preto
e branco predominam. Ainda assim, elas nos parecem potencialmente capazes de trincar a
invisibilidade e a inalterabilidade da cidade-ideal narrada, especialmente, pela retórica
multicor das telas douradas.
235
“Serenados os ânimos e calmos os tempos que pretendiam opor um medonho dique ao desenvolvimento da
administração de José de Almeida, o governador querido dos goianos, a Câmara e o capitão general idearam a
261
interrompidos ao serem flagrados retirando, desta paisagem idealizada, suas artes do fazer, ou
seja, formas do viver. Em suma, entendemos que João do Couto dialoga, transversalmente,
com a estética de Octo Marques e a poética de Cora Coralina; artistas que demostraram estar
atentos às vissicitudes urbanas praticadas, especialmente, por aqueles não reconhecidos como
moradores do eixo de poder, mas que, historicamente, vieram interagindo, sobretudo, com
elite residente naquela localidade236.
Intuindo robustecer essas análises, utilizamo-nos das reflexões de Pesavento
(2007) como aporte teórico, tendo em vista a observação criteriosa das produções artísticas do
referido trio de notáveis. Em boa medida, os iminentes artistas vilaboenses demonstram
conceber a cidade indissociando-a das práticas sociais vistas, indistindamente, como
instrumentos que acentuam a percepção do significado de urbano numa cidade que cultua as
suas tradições. Nesse sentido, assinalou a autora:
construção da fonte da Boa Morte. O largo hoje do Quartel tirava então o nome de Boa Morte de uma capela da
confraria do mesmo nome, associação formada pelos homens pardos. A capela ficava situada em terreno à
retaguarda do Chafariz. Em 1778, este templo ameaçava ruínas pelo que foi cedida a capela de S. Antônio, entre
a rua da Fundição e a dos Passos, cuja construção não fora aprovada em Lisboa para fins a que se destinava, isto
é, para ofícios militares e religiosos. Foi só em 1779 que a referida confraria levantou a segunda igreja da Boa
Morte em local onde hoje se acha. (...) E essa é a gênese do famoso reservatório d´água que há 142 anos abastece
uma parte da população da Capital. Este monumento é digno de ser conservado: não representa só os vestígios de
uma administração; é também a imagem do passado, de nossa arte e de nosso alcance intelectual em 1778,
porque, segundo a filosofia clássica, a arquitetura é o livro do homem dos antigos tempos”. (CORREIO
OFICIAL, 24 jan. 1920 apud BRASIL, 1980, p.40).
236
A histórica presença da elite no eixo de poder e suas imediações ratificam-se nas palavras de Galvão Júnior e
Bertran (1987): “Junto ao Largo da Matriz começaram a surgir edificações de algum porte. (...) É possível que
parte dessas casas tivessem sido mandadas edificar por comerciantes ou alguns aventureiros abastados, chegados
após a primeira divisão de datas de ouro” (GALVÃO JÚNIOR e BERTRAN, 1987, p.04).
262
237
Sugerimos ao leitor que reveja a figura 41-A e B para melhor entendimento do que veremos na chegada ao
Largo do Chafariz descrita, detalhadamente, por Coelho (1997): “Originalmente, o acesso a esse largo era feito
pela Rua da Fundição, que sai do largo do Palácio em diagonal, chegando também em diagonal a esse outro
espaço. A visão que se tem, então, é a de quem está na parte mais baixa (...). A Câmara, que vista lateralmente,
de um plano horizontal, apresentava-se singela, assume uma monumentalidade brutal quando vista desse ponto,
o que é complementado por suas características arquitetônicas de um eruditismo quase clássico, projetando-se
por sobre os edifícios residenciais, térreos e vernaculares. Também a localização do chafariz não demonstra
desconhecimento de causa da parte de quem ali o instalou, fazendo frente para quem entra pela Rua da Fundição
e não pela Rua Nova” (p.108).
238
“A Casa de Câmara e Cadeia da antiga capital da capitania de Goyaz, Vila Boa, descansa solenemente no alto
do Largo do Chafariz da atual cidade de Goiás. O grande sobrado, com pavimentos térreo e superior, grossas
paredes de taipa de pilão, entremeadas com pedras, e janelas gradeadas compõe o conjunto arquitetônico e
urbanístico oficialmente preservado pelo IPHAN, em 1978, e o Centro Histórico de Goiás reconhecido como
Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, em 2001. Desde 1950, a antiga Casa de Câmara e Cadeia de
Vila Boa não mais encerra presos em seus cômodos. Transformada no Museu das Bandeiras, abriga exposições
temáticas sobre o processo de ocupação colonial no Planalto Central e possui acervo documental do período
colonial à disposição de pesquisadores” (VIEIRA JUNIOR E BARBO, 2011, p.02).
263
Figura 47-A - Museu das Bandeiras, Figura 47-B - Museu das Bandeiras,
Goiandira do Couto, areia sobre fibra de Goiandira do Couto (52x36), areia sobre
madeira, 1974. fibra de madeira, 1976.
das Bandeiras (1974 e 1976), a retórica discursiva dos guardiões das tradições acompanha as
produções artísticas em apreciação, principalmente, se considerarmos que o projeto de
ressignificação cultural tinha um objetivo precípuo: restituir o prestígio regional da antiga
capital, por meio do reconhecimento de suas tradições, solapado com o advento dos anos de
1930. É interessante constatar que o apregoado “valor” do legado patrimonial vilaboense
restringiu-se, quase que exclusivamente, na estética pictórica da artista-artesã, aos símbolos
e/ou aos referentes da passagem europeia pela região dos Guayazes.
Desse modo, repensar essa aparente linguagem unilateral, justifica a busca de
sensibilidades noutras manifestações artísticas que notabilizem a antiga Casa de Câmara e
Cadeia, na Cidade de Goiás. Afinal de contas, os mencionados usos e funções do monumento
figurado pela estética com areia, figuras 48-A e B, instigam-nos a deduzir que o poder e a
repressão, emanados deste simbólico monumento da arquitetura colonial vilaboense, tiveram
como alvo os “invisíveis” que habitam a cidade-ideal.
A rigor, evocamos, novamente, a poética memorialista de Cora Coralina para
relatar alguns dos possíveis acontecimentos guardados em sua memória e externados em
estrofes que mais se parecem odes às sobrevivências de uma cidade que insiste em revelar
suas realidades ziguezagueantes ao longo de sua existência:
Mulheres da Vida,
Perdidas,
começavam em boas casas, depois, pra o beco.
Queriam alegria. Faziam bailaricos.
- Baile Sifilítico - assim chamado.
O delegado-chefe de Polícia - brabeza -
dava em cima...
Mandavam sem dó, na peia.
No dia seguinte, coitadas,
obrigadas a capinar o Largo do Chafariz
na frente da Cadeia (CORA CORALINA, 1987, p.105).
239
Mesmo não sendo objeto deste estudo, mas, considerando o vínculo de parentesco de Cora Coralina com
Goiandira do Couto e, sobretudo, a comparação feita entre as duas principais referências artísticas femininas na
Cidade de Goiás, esclarecemos que a poetisa viveu entre os anos de 1911 e 1955, na Cidade de São Paulo. O
regresso à cidade de Goiás se dá no ano de 1956, aos sessenta e sete anos de idade para recuperar a Casa Velha
da Ponte que estava prestes a ser vendida em leilão público. De acordo com Britto e Seda (2009): “Quando
conquistou a casa-memória de sua família, abriu suas portas, abrigou desvalidos, reescreveu os autos do passado
e estendeu a Ponte da Lapa para muito além dos rios Vermelho e Paranaíba. (...) Honrando o seu sangue
sertanista, rompeu o isolamento e as condições adversas, redescobriu Goiás e dilatou suas fronteiras” (p.27-28).
As palavras dos autores demonstram que, assim como as telas douradas, a poética coralineana, também,
ultrapassou os limites geográficos da Serra Dourada.
266
240
“Em 1778, o Chafariz de Cauda da Boa Morte foi construído com a finalidade de dividir o abastecimento de
água da cidade com o já existente Chafariz da Carioca. O termo "Chafariz de Cauda" é usado em virtude do
aqueduto que o abastece se assemelhar a uma enorme cauda, em sua parte posterior. Já "Boa Morte" se refere à
Capela de mesmo nome, pertencente à Confraria dos Homens Pretos, situada em um terreno imediatamente atrás
do local onde está implantado o Chafariz. Construído em alvenaria de pedra, com detalhes em pedra-sabão, o
chafariz possui, em seu corpo central, as bicas que forneciam água à população além de dois tanques destinados
aos animais, na parte externa. Sua estrutura é organizada para apresentar quatro corpos, além do central,
dispostos de forma tal que, em conjunto com a grade de proteção frontal, criam um pátio interno de forma
hexagonal irregular, com bancos talhados na pedra, com o objetivo provável de proporcionar conforto aos
usuários das bicas. Detalhes importantes em sua decoração são pináculos que se apresentam com desenhos
diferenciados em função de sua localização no monumento, além de volutas e mais elementos bem ao gosto
rococó. Em sua parte superior encontra-se, ainda, um escudo entalhado em pedra-sabão, onde se pode ler:
"Mandada fazer pela Câmara desta Vila, sendo o Governador e Capitão General Ilustríssimo José de Almeida
Vasconcelos Soveral e Carvalho e Ovd. Geral o Desembargador Antônio José de Almeida. Ano de 1778" (Texto
de Gustavo Neiva Coelho). Cf. Disponível em: (http:// portal.iphan.gov.br/ans.net/tema_consulta.asp?Linha=tc_
belas.gif&Cod=1227>. Acesso em: 22 jul.2015.
267
de que o artista estava à espera dos sentidos de identificação, um tanto mais resistente que a
memória de cal e pedra que povoa a localidade. Visivelmente, culturas diferentes da europeia
persistiram historicizando a cidade contextualizada, quase que majoritariamente, numa
perspectiva ilusória de um passado glorioso.
Sobre isso, Pesavento (2007) traz uma explicação oportuna: a “cidade do
passado (...) pensada através do presente, se renova continuamente no tempo de agora, seja
através da memória/evocação, individual ou coletiva, seja através da narrativa histórica pela
qual cada geração reconstroí aquele passado” (PESAVENTO, 2007, p.16). No caso da Cidade
de Goiás, a geração responsável por “reconstruir”, reinventar a história urbana da Cidade de
Goiás, o fez pelo viés tradicional, por acreditar que o saldo acumulado no passado lhes
garantiria, enquanto “coletividade”, o(s) lucro(s) simbólico(s) no futuro.
A investigação prossegue perscrutando as frestas entrecortadas pelo rigor
metódico com o qual submetemos as imagens convocadas para testemunhar a respeito do
papel, da arte em Goiandira do Couto, na construção de uma cidade-ideal, enviesada ao
projeto de futuro, implementado pelas instituições vilaboenses, a partir da década de 1970.
Espiando o acervo das telas douradas, deparamo-nos com duas de suas
interpretações sobre o Chafariz Cauda. A primeira, figura 49 subsequente, é contemporânea
das obras, Museu das Bandeiras (1974 e 1976), respectivamente figuras 47-A e B, cuja visão
privilegia um ângulo peculiar deste monumento de formas grandeloquentes, o qual pode ser
entendido como uma exaltação ao poderio dos tempos dourados na Cidade de Goiás, do
século XVIII.
Figura 49 - Chafariz, Goiandira do Couto, areia sobre fibra de madeira (42x34), 1978.
Contemplar uma cidade pela primeira vez, por exemplo, nos remete a outras
tantas cidade que conhecemos, por nossa experiência ou leitura, e das quais
possuímos imagens. Ou, no caso da cidade do passado, não mais passível de
ser observada, mas cujas imagens acumulam em cadeia no pensamento,
vistas ou imaginadas a partir de nossa bagagem cultural e da experiência da
vida. Assim, é possível formar, a partir das cidades visíveis, cidades
sensíveis e imaginárias, não experiementadas. Um historiador tout court
poderia se indagar que grau de fiabilidade que essas cidades do pensamento
teriam (...) (PESAVENTO, 2007, p.21).
resumo do que foi o longo ciclo da trajetória público-individual de Goiandira Ayres do Couto
(1915-2011) ou para os vilaboenses, simplesmente, Dila.
que convencionamos utilizar quando nos referimos à Cidade de Goiás, após o recebimento do
título de Patrimônio Histórico Mundial, em 2001.
É interessante frisar o sentido paradoxal da patrimonialização da Cidade de
Goiás no século XXI. No cerne da proposta de tombamento, estava a preservação da
paisagem colonial que, inclusive, submeteu-se às adequações urbanistíticas referendadas de
acordo com as políticas patrimôniais em nível internacional. Todavia, neste caso em
específico, preservar e inventar se entrecruzaram ao processo de composição dos ideais
históricos e estéticos da cidade-patrimônio. Entre consensos e dissensos, o que mais nos
chama a atenção é a criação de um lugar de memória dedicado à artista-artesã, o Espaço
Cultural Goiandira do Couto, construído pela própria artista no ano 2000, sob a justificativa
de separar sua vida pública da privada.
Diante desse feito, a Casa de Goiandira adquiriu status de museu, logo, passou
a ser incluída, oficialmente, entre os espaços de visitação previstos no roteiro cultural da
Cidade de Goiás. A iniciativa da protagonista de criar um espaço de memória, ainda em vida e
no bojo da concretização do projeto de futuro,no qual encontramos suas digitais, é o que nos
propomos debruçar no quarto e último capítulo desta tese.
274
CAPÍTULO IV
241
“Ação que implica a preservação e a revitalização, ou seja, a adoção de medidas que se complementam e
juntas valorizam os bens que se encontram deteriorados. Deve ficar claro que o tombamento não tem por
objetivo “congelar”, “cristalizar” a cidade ou inibir o seu desenvolvimento, mas sim proteger os bens e preservar
suas características originais, viabilizando toda e qualquer obra que venha contribuir para a melhoria da cidade”
(PELEGRINI, 2009, p.34).
242
Reza o artigo 216 da Constituição da República Federativa do Brasil: “Constituem patrimônio cultural
brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (...). Cf.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal:
Centro Gráfico, 1988.
243
De acordo com o documento, Carta à Cidade de Goiás (1983, p.6), em 1978, a Rua Joaquim Bonifácio
passou a constituir a área de vizinhança denominada oficialmente de: “Área de Entorno de Preservação do
Núcleo Histórico”, regida pelo Artigo 18 do Decreto-Lei n° 25, de 30 de novembro de 1937, sob a proteção do
Patrimônio Histórico e Artístico da Nação Brasileira.
244
“Mandada construir em 1790 com esmolas do povo pelo Rev. Salvador dos Santos Batista, a pequena igreja
fica na esquina da Rua dos Bancários. Um dos melhores exemplares da arquitetura religiosa da Cidade de Goiás,
a Igreja de Nossa Senhora da Abadia foi edificada no final do século XVIII (...). O sofisticado forro da nave,
pintado por autor anônimo, representa Nossa Senhora em meio a um grupo de anjos”. Disponível em:
<http://vilaboadegoias.com.br/cidade/patrimonio_historico/igrejas.htm>. Acesso em: 02 jan. 2017.
276
Intuindo complementar informações, além das que podem ser lidas na figura
53, destacamos uma parte relevante do texto escrito no folder:
Remontar esse breve histórico institucional tem por finalidade lançar luz nas
prováveis razões que levaram Goiandira do Couto a monumentalizar sua casa e suas
277
memórias. Mas, antes disso, precisamos nos debruçar nos antecedentes do reconhecimento da
Cidade de Goiás como Patrimônio da Humanidade245.
Por se tratar de um tema por vezes debatido no campo científico, sentimo-nos
desafiados a trazer uma discussão original. Afinal, pensar a Cidade de Goiás e seu
tombamento mundial, a partir de Goiandira do Couto, prescinde do distanciamento das
obviedades para, logo, nos aproximarmos de um vasto campo de sensibilidades intrínsecas às
expectativas de futuro, perante a iminente conquista do célebre título.
245
“A noção de patrimônio comum da humanidade, para Antônio Blanc Altemir, implica o “reconhecimento da
existência de certos interesses comuns e superiores que se sobrepõem aos objetivos imediatos e particulares dos
Estados”. Esses interesses pressupõem a gestão do patrimônio comum da humanidade pela comunidade
internacional, a repartição equitativa de seus recursos, sua utilidade para fins pacíficos e a exclusão de toda
apropriação nacional ou reclamação unilateral de soberania (...). A noção de humanidade, para René Jean Dupuy,
comporta uma característica “atemporal” que contempla as pessoas de hoje e do futuro. Disso resulta um liame
entre seres humanos da atual e da futura geração (...)” (SILVA, 2003, p.34-36).
278
Fonte: Escritório Técnico de Goiás/IPHAN, Arm. 01; Arq. 08 - G.02, fls. 03.
TRANSCRIÇÃO
Revendo algumas pastas do arquivo encontrei um levantamento 1977/1978 de bens de
interesse de tombamento em Goiás.
Creio que poderíamos fazer uma vistoria para verificar o que 20 anos depois poderia
ser preservado.
Solicito que analisem as relações em anexo e remetam suas considerações à
Coordenação.
Atenciosamente,
Célia Corsino
Coordenadora Regional
Em abril de 1995
280
ANÁLISE E CLASSIFICAÇÃO
(1977/1978)
Memorando n° 250/97
Chefe de Divisão Técnica 14ª CR
(...) os bens culturais com indicativo de tombamento pela União foram
grifados em laranja, pelo Estado, grifados em verde. Os bens culturais não
destacados, por sua vez, ou tem indicação de tombamento municipal ou se
relacionam a outros levantamentos/registros que aproveitamos para
acrescentar a relação da comissão constituída em 1977. À diretora da 17ª SR
- do Iphan (RELAÇÃO DE BENS TOMBADOS PELO ESTADO E BENS
TOMBADOS PELO IPHAN, 1995, fls. 26. Arm. 01; Arq. 08 - G 02, fls.
26)247.
246
Maria Cristina Portugal Ferreira foi diretora da então 17ª Sub-Regional do IPHAN – Cidade de Goiás, entre
os anos de 1986-1999. Atualmente, a nomenclatura dada à representação deste órgão naquela cidade é:
“Escritório Técnico de Goiás/IPHAN” que, por sua vez, será utilizada na identificação das imagens
correspondentes aos documentos que pretendemos mostrar ao longo deste capítulo. Quanto à narrativa dos
acontecimentos, preservaremos a nomenclatura que estava em voga no período.
247
Fonte: Arquivo do Escritório Técnico de Goiás/ IPHAN, Cidade Goiás – GO, doravante, AETG/IPHAN.
281
Figura 55 - Relação de Bens Tombados pelo Estado e Bens Tombados pelo IPHAN, 1997.
Fonte: Escritório Técnico de Goiás/IPHAN, Arm. 01; Arq. 08 - G.02, fls. 23.
Por mais que a cor verde, dantes fluorescente, esteja eventualmente opaca, o
testemunho, na figura 55, evidencia o endosso do IPHAN, nos anos de 1990, quanto ao
reconhecimento da “Residência da Pintora Goiandira do Couto” como um bem cultural
indissociável das políticas de preservação desenvolvidas em parceria com poder público
Estadual e Municipal de Goiás. Com isso, reafirmamos a existência de uma política de
coalizão emanada a partir dos diferentes poderes institucionais em favor da cidade-patrimônio
que, por sua vez, foi precedida da cidade-monumento, uma espécie de interstício espacial que
possibilitou legitimar assento às memórias da artista-artesã.
O tombamento da Casa de Goiandira pelo Governo do Estado de Goiás, não
desmerece a relevância do imóvel para a União, se considerarmos que a Rua Joaquim
Bonifácio, lugar onde se situa a notável residência, é, desde 1978, tombada pelo IPHAN, de
282
acordo com a Carta à Cidade de Goiás (1983, p. 06). Sendo assim, analisamos esse duplo
reconhecimento (federal e estadual) como uma forma encontrada pelas autoridades culturais
de confirmarem o prestígio da biografia de Goiandira do Couto na interface com o projeto de
futuro, notadamente, entrecruzado aos lugares de memória a serem reconhecidos como um
patrimônio de “valor universal excepcional”.
Outro aspecto que merece destaque é a relação da “comunidade” diante desse
conjunto de ações destinadas à valorização do patrimônio cultural vilaboense. Inventariando a
vasta documentação referente à implementação desta agenda normativa, percebe-se que, a
partir de 1978, o IPHAN adquiriu maior popularidade, especialmente entre os moradores do
centro histórico, tanto da área tombada quanto na de entorno, em razão do reconhecimento da
Cidade de Goiás enquanto “patrimônio da nação”248.
Segundo a Carta à Cidade de Goiás (1983, p.4), antes de 1978, o eixo
circunscrito entre o Largo do Rosário ao Largo do Chafariz havia sido tombado, mas não
reconhecido como sendo de “valor” histórico nacional. Portanto, o trabalho realizado pela
equipe de Belmira Finagiev, 1978, revelou-se decisivo na concretização da cidade-
monumento, que estivera ameaçada pelas concepções de “modernidade” não compartilhadas
pelos guardiões locais, conforme discorreu Tamaso (2007, p.156). Desse modo, estamos cada
vez mais convencidos da importância vital da união entre o poder público e a instituição civil
mais representativa na cidade, a OVAT, em prol da defesa das tradições da antiga capital.
Relembramos que essa série de medidas normativas implantadas na Cidade de
Goiás, pelo IPHAN, se entrecruza, temporalmente, à ressonância cultural e mercadológica das
telas douradas, cuja hipótese se trata de produções artísticas, caracteristicamente, marcadas
pela inalterabilidade da paisagem colonial vilaboense. De certa forma, a visão da artista
coaduna com o interesse de preservação demandado nas ações que envolveram políticos,
gestores do patrimônio cultural e, sobretudo, a elite guardiã que, por sua vez, representava
uma parte significativa dos moradores do centro histórico.
A noção de que o passado era o único caminho para se chegar ao futuro havia,
mesmo diante de iminentes ameaças e percalços, dado um passo crucial em 1978. Todavia, a
tão sonhada consagração simbólica da cidade que viveu, até aquele momento, assombrada
248
“Em agosto de 1978 é homologada a “extensão do tombamento do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico da
Cidade de Goiás”, publicada no Diário Oficial da União, no dia 21 de agosto, com o seguinte trecho: Processo
MEC n° 228. 843 -77: “Nos termos da lei n° 6292, de 15 de dezembro de 1975, e para efeitos do Decreto-Lei n°
25, de 30 de novembro de 1937, homologo a extensão do tombamento do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico
da Cidade de Goiás, no Estado de Goiás, a que se refere ao Processo n° 345 -T/58/IPHAN”. Em setembro de
1978 é realizada a inscrição do referido conjunto no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico,
no Livro do Tombo Histórico e no Livro do Tombo de Belas Artes” (TAMASO, 2007, p.158).
283
pelas perdas de 1937, ainda, não havia se concretizado plenamente. Sob essas expectativas,
retomamos os movimentos culturais ocorridos na década de 1990, para explanarmos sobre a
adesão social ao projeto de futuro, a qual se deu por meio da fundação de “novas” entidades
civis comprometidas com a ideia de transformar a Cidade de Goiás, e suas tradições
monumentalizadas, em “Patrimônio Histórico da Humanidade”.
Dentre as mais atuantes, destacamos o PROLER - Programa Nacional de
Leitura - vinculado à Biblioteca Nacional/Museu Casa de Cora Coralina, e a APROVI,
Associação de Proteção a Vida, fundada por Brasilete Ramos Caiado249, personalidade
notável na vida público-cultural da Cidade de Goiás, que ganhou notoriedade no projeto de
futuro, a partir da fundação desta entidade, cuja tônica era a preservação ambiental da cidade,
aspecto de ênfase paralela nas discussões relacionadas à patrimonialização mundial da antiga
Vila Boa, a partir de 1998. Em virtude do falecimento da fundadora, em 2004, não tivemos
acesso aos documentos da instituição que, segundo testemunhos orais, estão sob a salvaguarda
família Caiado em lugar incerto e não sabido.
Visto que o foco desse capítulo é repensar os passos recentes que antecederam
a aquisição do título, rastreando as digitais visíveis e “invisíveis” deixadas por Goiandira do
Couto nas ações institucionais de proposição da Cidade de Goiás na lista de Patrimônio da
Humanidade, tivemos o cuidado de investigar sobre a sua participação como membro destas
entidades. Em conversa informal com a segunda e última presidente da APROVI que, por sua
vez, era constituinte do PROLER, Ebe Maria Lima, ela afirmou que jamais houve qualquer
vínculo da artista com estas organizações.
Em contrapartida, no Movimento Pró-Cidade de Goiás, idealizado em fins de
1997, a filiação de Goiandira do Couto confirmou-se por meio de referências orais e formais
ao seu nome. Dentre elas, uma lista de presença das inúmeras reuniões deliberativas do grupo,
devidamente, assinado pela protagonista, documento que comprova, efetivamente, o seu
249
“Brasilete Ramos Caiado era filha de Brasil Caiado e Noêmia Rodrigues Caiado, que se casaram quando
ele estudava medicina, em São Paulo. Tiveram 11 filhos, estando Brasilete entre os mais novos. Nasceu
quando seu pai estava homiziado em uma de suas fazendas, para escapar à ordem de prisão emitida contra os
Caiado, pelos “aliancistas” vitoriosos da Revolução de 1930. (...)integrou a OVAT, entidade civil que se
propôs a resgatar e preservar os bens culturais – materiais e imateriais – da Cidade de Goiás. Dentre outros
serviços prestados à terra goiana, Brasilete foi fundadora da Faculdade de Filosofia da Cidade de Goiás, depois
Faculdade de Filosofia Cora Coralina – atualmente unidade que integra a Universidade Estadual de Goiás.
Quando teve início o movimento pró-inscrição da Cidade de Goiás na Lista do Patrimônio Mundial, da Unesco,
Brasilete Caiado foi escolhida para presidente da Comissão encarregada de liderar tão árdua empreitada, que
alcançou êxito, em 1999. Faleceu em 2003, vítima de um acidente de automóvel, deixando inumeráveis amigos e
admiradores de sua personalidade afável e dinâmica (...)” (Revista da Aflag, nº 5, 2009/2010, p.77-80).
Disponível em: <http://www.dm.com.br/cultura/2015/04/perfis-femininos-em-poder-e-paixao-a-saga-dos-
caiado-5o-perfil-brasilete-ramos-caiado.html>. Acesso em: 31 dez. 2016.
284
Fonte: Arquivo do Escritório Técnico do IPHAN, Arm. 01; Arq. 08 - G. 02, Cidade Goiás - GO.
250
Sinteticamente, entende-se por trocas simbólicas: “A forma das relações que as diferentes categorias de
produtores de bens simbólicos mantêm com os demais produtores, com as diferentes significações disponíveis
em um dado estado de campo cultural e, ademais, com sua própria obra, depende diretamente da posição que
ocupam no interior do sistema de produção e circulação de bens simbólicos e, ao mesmo tempo, da posição que
ocupam na hierarquia propriamente cultural dos graus de consagração, tal posição implicando numa definição
objetiva de sua prática e dos produtos dela derivados” (BOURDIEU, 2007, p.154).
286
intervenção federal do Estado Novo. O advento da Era Vargas foi responsável pelo fim do
ciclo do poder oligárquico no Estado de Goiás que, naquela ocasião, era governado pelo pai
de Brasilete Caiado, o Dr. Brasil Caiado, amigo íntimo do pai de Goiandira do Couto, Luiz do
Couto. Mas, como se tratam de temas detalhados no primeiro capítulo desta tese, seguiremos
no encalço das ações que fizeram existir o “Movimento Pró-Cidade”.
Os preparativos para o “I Seminário Cultural, Turístico e Ambiental da Cidade
de Goiás” começaram nos primeiros dias do ano de 1998. Tivemos acesso aos primeiros
passos formais do grupo que, conforme vimos, surgiu da concordância de Brasilete Caiado
com inquietações de Goiandira Ortiz que, à época, era, além de docente da UFG, ocupava a
presidência do Gabinete Literário Goiano251.
Naquela ocasião, dezesseis de fevereiro de 1998, no uso de suas atribuições
representativas, Goiandira Ortiz subscreveu pelo “Movimento Pró-Cidade de Goiás”, um
ofício dirigido à diretora da 17ª SR do IPHAN, Maria Cristina Portugal Ferreira, o qual
informava à representante da constituição de um movimento interinstitucional, composto por,
aproximadamente, sessenta entidades que deliberaram pela seguinte decisão:
251
Trata-se da primeira biblioteca pública, fundado no século XIX, período em que a Cidade de Goiás era capital
do Estado de Goiás.
252
Fonte: AETG/IPHAN - I Seminário Cultural, Turístico e Ambiental da Cidade de Goiás; Movimento Pró-
Cidade de Goiás, 1997-1998; Vol. 1; Arm. 01; Arq. 08 G. 02 p.06, Cidade Goiás - GO.
287
econômico desenvolvidas por número significativo de entidades civis253 que, por sua vez,
passaram a constituir o “Movimento Pró-Cidade de Goiás”. O teor deste documento
complementar, intitulado em letras maiúsculas de: “ A SOCIEDADE ORGANIZADA
MOBILIZA-SE PARA O RESSURGIMENTO CULTURAL DA CIDADE DE GOIÁS”,
tornou-se atrativo à medida que se interpenetra ao discurso enfático creditado aos vilaboenses
“organizados”, cujo objetivo era convidar formalmente o IPHAN para, juntos, trabalharem
pela candidatura da Cidade de Goiás rumo ao título histórico.
A formalidade e a profundidade da exposição documental evidencia a
necessidade de apresentar à instituição federal argumentos plausíveis e realizações tangíveis
que viessem somar ao trabalho de sua competência, sobretudo, no que se refere às ações
relativas à educação e à conscientização patrimonial. Portanto, a programação do “I
Seminário Cultural, Turístico e Ambiental da Cidade de Goiás” seguiu esboçada no
expediente encaminhado à representante da sub-regional do IPHAN, cujas diretrizes denotam
a preocupação dos idealizadores em inserir no iminente debate público abordagens
relacionadas à mudança de mentalidade da população em relação à cidade que pleiteava um
título de tamanha envergadura. Em síntese, a interlocutora do movimento naquela ocasião
primária, Goiandira Ortiz, reivindicou o apoio do órgão nas seguintes áreas:
253
“No dia 23 de fevereiro, foi realizada a primeira reunião do movimento. Das 71 entidades convidadas,
compareceram 49 e 16 justificaram suas ausências. Os organizadores do movimento ficaram entusiasmados com
a receptividade e com as discussões que foram levantadas pelos participantes” (BOLETIM ANEXO AO
OFÍCIO S/N°, “MOVIMENTO PRÓ-CIDADE DE GOIÁS”, 1998, fls.02). Fonte: AETG/IPHAN - I
Seminário Cultural, Turístico e Ambiental da Cidade de Goiás; Movimento Pró-Cidade de Goiás, 1997-1998;
Vol. 1; Arm.01; Arq. 08 G. 02 p.06, Cidade Goiás - GO.
254
AETG/IPHAN - I Seminário Cultural, Turístico e Ambiental da Cidade de Goiás; Movimento Pró-Cidade de
Goiás, 1997-1998; Vol. 1; Arm.01; Arq. 08 G. 02 p.06, Cidade Goiás - GO.
288
1965, oriunda das aspirações dos constituintes da OVAT, ganhava novos contornos à medida
que se evidencia a concepção de “produto cultural255” irrompendo a fase final do projeto de
futuro.
Desta vez, foi possível radiografar clareza por parte de uma organização civil,
ao expor que os anseios sociais estariam atrelados à visão de prospectiva de mercado dos bens
culturais (materiais e imateriais) acumulados na Cidade de Goiás. Segundo, que a
possibilidade do reconhecimento mundial, além de devolver formalmente à Cidade de Goiás o
status de epicentro histórico-cultural do Estado, “encerraria” o capítulo das perdas e,
consequentemente, devolveria dividendos reais à população local. Considerando esse
arcabouço de expectativas, compreende-se melhor o jogo persuasivo da entidade em relação
ao IPHAN que, neste caso, assumia o papel de “fiel da balança” com o propósito de equilibrar
a configuração urbana desejada pela coletividade em comum acordo com políticas protetivas
do patrimônio cultural no plano nacional e internacional.
A fruição historiográfica dessas análises ancora-se nas reflexões de Gonçalves
(2007), que se dedicou a investigar os Limites do Patrimônio. O antropólogo estudou a
categoria “patrimônio” e a vertente mercadológica contemporânea cruzada à ressignificação
do potencial simbólico dos bens culturais, mas sem perder de vista os princípios legais de sua
proteção. As questões-problema lançadas pelo autor dialogam com a realidade vilaboense de
fins dos anos de 1990, a partir do momento em que os interesses sociais - representados pelo
“Movimento Pró-Cidade de Goiás” -, buscaram se ajustar aos parâmetros normativos de
“inalienabilidade” dos bens culturais - função da competência do IPHAN - frente à intenção
de consumi-los. Nesse sentido, o autor pondera que:
(...) o mercado não seria algo que ameaçaria (ou confirmaria) o patrimônio
externamente, de fora de suas fronteiras; ao contrário, ele existiria
internamente aos patrimônios culturais modernos, no interior de suas
fronteiras, fazendo parte de sua natureza, não podendo estes existir sem
aquele. A própria “inalienabilidade” dos bens que integram os patrimônios
pode tornar-se uma forma de mercadoria nos contextos contemporâneos,
agregando valor aos objetos e transformando-os em alvo de interesse
255
De acordo com o verbete do Dicionário Crítico de Política Cultural entende-se por produto cultural:
“Tratados regionais de integração econômica e cultural que definem os produtos culturais como aqueles que
expressam ideias, valores, atitudes e criatividade artística e que oferecem entretenimento informações ou análises
sobre o presente, o passado (historiografia) ou o futuro (prospectiva, cálculo de probabilidade e intuição) (...).
Uma distinção cabe ser feita entre produto cultural e bem cultural. Este vincula-se à noção de patrimônio pessoal
ou coletivo e designa, em princípio, por seu valor simbólico, algo infungível, isto é, que não poderia ser trocado
por moeda. (...),porém, sabe-se que a maioria desses bens pode ter seu valor traduzido em moeda, o que acaba de
algum modo por transformá-los em produtos (commodities) culturais ou por apontar para o definhamento
crescente da ideia de bem cultural, mesmo que na origem tenha sido eventualmente um produto” (COELHO,
1997, p.317).
289
256
De acordo com Meneses (2009): “O verbo habeo em latim significa possuir, manter relações com alguma
coisa, apropriar-se dela. Com o acréscimo da partícula it, que indica reforço (...), o verbo habito acrescenta
intensidade e permanência a essas relações” (MENESES, 2009, p.27).
257
AETG/IPHAN - I Seminário Cultural, Turístico e Ambiental da Cidade de Goiás; Movimento Pró-Cidade de
Goiás, 1997-1998; Vol. 1; Arm.01; Arq. 08 G. 02, p.06, Cidade Goiás - GO.
290
efetivaria, tão somente, por meio do contato do turista com esse espaço de experiência dotado,
potencialmente, de atributos para ser reconhecido como “Patrimônio da Humanidade”.
Parafraseando Gonçalves (2007, p.243), o fascínio em relação ao patrimônio se
constrói a partir da manutenção dos vínculos orgânicos, o que nem sempre é possível diante
da interferência do fenômeno de mercado. No entanto, na Cidade de Goiás, é possível dizer
que existiu uma defesa ferrenha a respeito da organicidade do patrimônio cultural local.
Convém lembrar, ainda, que essas ligaduras reverberam nos critérios para a inscrição de um
bem cultural na Lista do Patrimônio Mundial que, por sua vez, norteia-se por ditames que
avaliam o “valor universal excepcional do bem, sua autenticidade e a comprovação de que o
Estado interessado adotou medidas protetoras adequadas ao bem objeto de inscrição”
(SILVA, 2003, p.93). Deve ser por isso que as audiências públicas do “I Seminário Cultural,
Turístico e Ambiental da Cidade de Goiás”, ocorridas entre os dias 25 a 28 de março de 1998,
deram lugar ao debate das estratégias relacionadas à normatização da paisagem cultural
vilaboense visando contemplar os requisitos exigidos pela UNESCO258.
A dimensão dos desafios impunha cooperação. Para tanto, entre os legados do
seminário organizado pelo “Movimento Pró-Cidade de Goiás” e o IPHAN, destaca-se o
Manifesto do Povo Vilaboense, um documento que se tornou público em junho de 1998, com
propósito de conclamar as autoridades e o povo goiano a compartilhar do projeto de
patrimonialização mundial da Cidade de Goiás, visivelmente, comprometido com a retórica
de suas tradições. Meneses (2009, p.31) postula que o patrimônio cultural apoia-se em vetores
materiais; embora sejam as dimensões imateriais responsáveis por dar sentido e estímulo aos
instrumentos operacionais de preservação das marcas da memória.
Objetivando preservar a integralidade do discurso documental que nos permitiu
chegar a esse entendimento analítico, como mostra o fac-símile do documento a ser
visualizado na imagem da figura 57:
258
Conferir no anexo VI o documento deliberativo do “Movimento Pró-Cidade de Goiás” elencando medidas de
ajustamento da Cidade de Goiás, tendo em vista a conquista do título.
291
Fonte: AETG/IPHAN; Arm. 01; Arq. 08 - G. 02, fls.25, Cidade Goiás - GO.
Fonte: AETG/IPHAN; Arm. 01; Arq. 08 - G. 02, fls.15, Cidade Goiás - GO.
259
AETG/IPHAN - I Seminário Cultural, Turístico e Ambiental da Cidade de Goiás; Movimento Pró-Cidade de
Goiás, 1997-1998; Vol. 1; Arm. 01; Arq. 08 G. 02; p.06, Cidade Goiás - GO.
293
260
Conferir outros documentos que denunciam os vínculos com a imagem da artista e a recepção da cultura da
Cidade de Goiás no anexo VII.
261
Fonte: AETG/IPHAN - Arm. 01; Arq. 08 G. 02; Cidade Goiás - GO.
294
262
“O Icomos é uma organização não-governamental fundada em 1965 na cidade de Varsóvia, Polônia, com
base nas diretrizes estabelecidas pelo Congresso Internacional sobre Restauração e Conservação de Monumentos
e Sítios, denominado Congresso de Veneza (1964). Em outras palavras, compete ao Icomos promover a teoria, a
metodologia e a tecnologia aplicadas na conservação e proteção do patrimônio arquitetônico. (...) Sua função
principal consiste em opinar sobre o pedido de inscrição de um bem cultural na Lista de Patrimônio Mundial
mediante a emissão de pareceres de cunho eminentemente técnico. Em algumas situações, o Icomos aponta as
medidas protetoras a serem tomadas pelo Estado responsável pela inscrição de um bem na lista do Patrimônio
Mundial (SILVA, 2003, p.79-80).
296
“verdade” de um povo que teve sua cidade cindida entre a parte histórica e não histórica.
Entretanto, no discurso, versa-se a respeito da patrimonialização desta urbe como um todo263.
Analisamos essa estratégia como um artifício que se encadeia à intenção de
legitimar interpretações “escolhidas” para representar os legados culturais de um povo
pluricultural. Novamente, uma cidade inalterada, anacrônica e oficial adquiria projeção
internacional robustecendo, por sua vez, a tese de que o discurso das telas douradas não ecoou
no vazio; muito pelo contrário. A nosso ver, elas preconizaram as representações de um
projeto estruturado no campo simbólico, cujo objetivo era o ressarcimento das perdas de
significado da Cidade de Goiás no plano regional, em detrimento da transferência da capital
para Goiânia nos anos de 1930. Portanto, não nos causa estranhamentos que o próprio Dossiê
de Goiás tenha encaminhado medidas no sentido de demarcar, na cidade-patrimônio, o lugar
daquela que foi pioneira das idealizações consagradas, primeiramente, como patrimônio
nacional para, finalmente, receberem o almejado reconhecimento mundial, na virada do
milênio passado.
Em síntese, os anexos II - Sessão Goiás: história e cultura - e IV - Inventário
Nacional de Referências Culturais - do Dossiê de Goiás se complementam no que tange à
visibilidade transversal à Goiandira do Couto a partir do enredo narrado nestas sessões. A
imagem de uma “cidade europeia adaptada” reedificou-se em palavras seguindo o mesmo
itinerário de poder reconstruído pelas areias douradas, ainda na década de 1960, encantando
olhares pelo mundo. Outra vez, a extensão que compreende o Largo do Rosário ao Largo do
Chafariz protagoniza as justificativas do documento quanto ao ‘valor universal excepcional’
da Cidade de Goiás. O Dossiê apropria-se dos mesmos sentidos semânticos avocados,
artisticamente, por Goiandira do Couto que concebeu a sua cidade-ideal pela materialidade
urbana dos lugares de memória evidenciando a presença da “mãe pátria”, ainda que distante,
263
“O entendimento de que a cidade toda é patrimônio, decorre da proteção ambiental e tem amparo em dados
que podem ser encontrados no próprio Dossiê. O anexo I/B informa sobre “Zone Tampom Paysagére – Serra
Dourada”, por meio de textos, mapas e fotos. Afirmando a relação estreita entre a cidade de Goiás e sua
paisagem natural, o texto apresenta leis de proteção que recaem sobre a Serra Dourada: (1) A Lei Estadual 7.197
(de 1968), que fez doação para a UFG de uma terra da Serra Dourada, destinada à implantação da reserva
biológica; (2) o decreto n° 4868, que criou a zona de proteção ambiental da Serra Dourada. Em seguida,
especifica que “o grupo de trabalho responsável pela elaboração do “Dossier de Goiás, Patrimoine Culturel”,
propõe que outra “zone tampom paysagére” seja criada, “unissant le centre historique à la Serra Dourada”.
Assim, o Dossiê indica para inscrição a lista do patrimônio mundial o centro histórico, delimitando a zona
tampão (ou entorno) contígua ao centro e também outra zona tampão, com base no valor paisagístico. Essa
segunda zona tampão incorpora a Serra Dourada e os morros Dom Francisco e Canta Galo. Nota-se que não há
referências textuais, nem iconográficas à periferia. As fotos que compõem este Anexo I/B são todas da paisagem
natural. O reconhecimento vai do centro histórico para a área de proteção ambiental (APA); do histórico-cultural
natural. No intervalo entre um e outro, encontra-se a periferia obscurecida também no Dossiê” (TAMASO,
2007, p.347).
297
enquanto sombras permanecem sobre outras culturas e outros arredores desta urbe,
considerados “alheios” aos paradigmas da tradição.
A exposição desses argumentos nos remete ao seguinte fragmento do anexo II
– sessão: Goiás: história e cultura:
Não nos parece que o “caldo cultural” tenha se misturado o suficiente. Nesta
mesma sessão, conhecida como narrativa mítica264 que, por sinal, é pouco integradora, foi
reaviviada no texto destinado ao convencimento do Comitê do Patrimônio Mundial. É
perceptível a proeminência nas ações do colonizador que se apropriou deste espaço
“ecologicamente significativo”, mas por razões bem diferentes comparadas aos seus primeiros
habitantes. Na verdade, o Dossiê reproduz concepções que pairam no imaginário social
vilaboense, especialmente, dos moradores do centro histórico da Cidade de Goiás, vistos por
diferentes olhares, como uma elite transmissora de discursos construídos à luz das
oficialidades. Há, no pensamento deste grupo, uma relativa “conformidade” com a
estratificação cultural das “minorias” quando o assunto se trata dos legados “excepcionais”
que resistiram ao tempo na paisagem urbana digna de reconhecimento mundial.
Trataremos de exemplicar esse comportamento social a partir das entrevistas
coletadas durante o Inventário Nacional de Referências Culturais, ainda neste subitem. À
priori, a ênfase está nos modos como o documento vê, historiciza e descreve a paisagem e os
atores do passado. A narrativa, em muitos momentos, se assemelha à pespectiva do olhar
guardião quando concebeu a tela Largo do Rosário - Vista da Cidade (1976), mostrada na
figura 30. É importante salientar que, de fato, trata-se de um ângulo emblamático repleto de
significantes e significados, quando a intenção é privilegiar a vertente preservacionista das
tradições. Embora, não se possa desconsiderar o pioneirismo de Goiandira do Couto no que se
refere à circulação desse modo pretérito de ver e interpretar a Cidade de Goiás.
Assim, não nos parece relevante saber, exatamente, se o Dossiê de Goiás
inspirou, embasou ou reproduziu a perpectiva da artista. O fato é que esta mesma visão
imperativa redesenha-se na tessitura das palavras a exemplo do que se escreveu sobre a
264
“As origens históricas de Goiás estão intimamente ligadas à corrida do ouro empreendida pelos bandeirantes
paulistas. Entre 1682 e 1684 uma expedição, chefiada por Bartolomeu Bueno da Silva, atravessa um imenso
território, à época conhecido como sertão do Goyazes, ou do gentio Goyá, à procura de ouro supostamente
abundante nos córregos da calha do Rio Vermelho. “(Bartolomeu Bueno)... era astuto e de caráter perseverante.
Uma prova de sua rara presença de espírito demonstrou ele uma vez ante ao perigo iminente quando salvou das
mãos dos índios com a ameaça de que, se não satisfizessem às suas exigências, incendiaria todos os seus rios.
Depois da ameaça, pôs fogo numa tigela de aguardente, ao que pobres índios ignorantes ficaram tão
aterrorizados, que consentiram tudo” . Em 1722, seu filho, também Bartolomeu Bueno, seguindo os passos do
pai, retorna ao sertão, em busca daquela fonte auríferas” (DOSSIÊ DE GOIÁS, 1999, anexo II, Goiás: história
e cultura, CD-ROOM, slide 08-09).
299
265
O Dossiê está se referindo à antiga Casa de Câmara e Cadeia, atual Museu das Bandeiras, localizado no Largo
do Chafariz. É curioso notar a ênfase como símbolo de poder e repressão dos tempos coloniais e nada ter sido
dito, ao menos nota de rodapé, que se trata do primeiro edifício tombado isoladamente pelo IPHAN, nos anos de
1950, e transformado em museu histórico da Cidade de Goiás nesta mesma época.
300
que sua residência tenha sido destino oficial de visitas técnicas, caravanas culturais e,
consequentemente, do foco midiático da imprensa em geral. O contato com Goiandira do
Couto com suas histórias e criações correspondia ao mesmo que tocar a alma do patrimônio
edificado vilaboense, pois tratava-se de um momento singular onde o visitante compreendia
que o valor dos bens culturais (materiais) não se dissocia dos costumes e das práticas
construídas por ela no século XX.
Esta é a mesma concepção propalada pela OVAT, instituição que representou,
colegiadamente, o lugar de fala e as posições artísticas defendidas por Goiandira do Couto.
Portando, sobre a peculiar e indissolúvel junção da materialidade e imaterialidade cultural
vilaboense e o tombamento mundial, a entidade se manifestou, formalmente, na ocasião em
que comemorou o seu quadragésimo aniversário:
quesito “Cartão Postal da Cidade”266. É certo que o ícone faz apologia ao colonizador. Mas,
também, não se pode desconsiderar que, paralelamente, mantém viva a memória da família
Couto nos anais da história urbana da Cidade de Goiás. Por isso, não nos surpreendeu que
Goiandira do Couto tivesse escolhido o cruzeiro como símbolo postal da cidade-patrimônio.
Elegâ-lo, despertou recordações dos tempos vividos no Largo do Rosário, demonstrando
nítido sentimento de pertença àquela localidade, considerando que ali estão fincados seus
pilares de pedra.
No entanto, é na Casa de Goiandira que as afirmações de si, enquanto
sucessora dos feitos culturais de Luiz do Couto, portanto, herdeira de tradições, se estabelece
por completo:
Eu nasci em Catalão, meu pai foi ser juiz em Itumbiara; lá nasceu Lúcia
minha irmã, e voltou pra aqui; nós moramos onde hoje é a Casa do Doce, no
Largo do Rosário pertinho da minha avó, então é lá que nós morávamos e
depois pai comprou essa casa e eu moro desde os seis anos nesta casa. (...)
Quando moça, fiz muito pela cidade. Hoje não faço mais porque estou
doente (COUTO, apud Dossiê de Goiás, Anexo IV, Entrevistas
Selecionadas, 1999, CD-ROOM, slide, 09-19).
Quanto a isso, não há o que se discutir. Goiandira do Couto foi muito além da
mocidade dedicando-se à reconstrução cultural da Cidade de Goiás. Esse “sacerdócio” lhe
conferiu carisma e prestígio suficientes, inclusive, para criticar as intervenções na paisagem
colonial vilaboense em detrimento da candidatura, referindo-se à rede de esgoto e fiação
subterrânea, conforme exigia o Comitê do Patrimônio Mundial. Sobre essas obras ela falou:
Sinto que estão mudando muito a cidade”. (...) O calçamento da cidade era
feito com muita simetria, com muita arte, muito gosto; antigamente, os
pedreiros, esse povo trabalhava com muito amor! Hoje eles não trabalham;
tinha arte agora eles não têm, eles colocam a pedra no chão de qualquer
jeito. A minha porta aqui, por exemplo, foi toda bloquetada; foi colocar uma
água até aqui na minha porta e quem colocou já sobrou um pedaço de
bloquete e tá tudo cheio de buraco. Não fazem igual, não coloca a terra, não
arruma direito. (...) (sobre fios elétricos subterrâneos): É original? Vc quer
mudar para outra coisa... a original foi essa, era lampião e já mudou pra
eletricidade; e se era até hoje... por que vai tirar esse fio? Se ela merece ser
Patrimônio porque tirar esses fios? Os fios fazem parte do Patrimônio; deixa
266
No questionário respondido em 1999 por Astulieta Ramos Caiado (Lhulhu), de aproximadamente 82 anos,
chamou-nos à atenção a interface que ela faz com o cruzeiro (escolhido como “Cartão Postal da Cidade”) e o
mito fundador: “Aquela... aquela... Como é que chama (...) uma coisa ali, a Cruz do Anhanguera. Porque eu
acho que quando falou da Cruz, você lembra sempre de quem... O Anhanguera que ajudou a fazer Goiás de
maneira que eu gosto muito daquela Cruz do Anhanguera ( O Anhanguera é o Bartolomeu Bueno) coisa boa
viu...”. Sua entrevista não foi publicada pelo Dossiê, aspecto que não desmerece sua importância testemunhal
para esta pesquisa. Este documento encontra-se disponível no AETG/IPHAN, pasta: “Inventário de Referências
Culturais”, Brochura I, Acervo Textual/Arm. 02/Cx.35.
303
tudo como era uai? Então tá modificando a cidade, criando outra, cê num
acha? (COUTO, Goiandira Ayres do. apud Dossiê de Goiás, Anexo IV,
Entrevistas Selecionadas, 1999, CD-ROOM, slide15, 18, 19 e 20).
dedicado à reconstrução cultural do espaço público vilaboense por meio de criações artísticas
materiais e imateriais que, por sua vez, acalentaram sentimentos de pertença da população
local pela cidade construída por ela. Assim, “enquanto habitante de sua mansão na Rua
Joaquim Bonifácio, Goiandira reinou sobre os súditos de sua arte inigualável” (“DIÁRIO DA
MANHÔ, Goiandira: e a areia colorida se fez arte, 2011, p.4)267, sem perder o contato
pessoal e simbólico com o povo e com as “coisas de Goiás”.
Por essa perspectiva, casa e cidade se tornaram um ambiente plural, onde
Goiandira do Couto fixou o seu eu e fez dele o seu espaço social de experiências. Nesse lugar
misto e sensível que ela forjou sua identidade público-privada, seus devaneios e sentimentos
mais íntimos responsáveis por lapidar o universo de representações que interligam sua história
de vida ao campo da memória urbana e cultural da Cidade de Goiás entre o passado e
presente. Logo, depreende-se a criação do Espaço Cultural Goiandira do Couto como uma
efeméride imbricada ao processo de formalização e reconhecimento da trama discursiva das
origens da cidade berço da cultura goiana como representante dos bens culturais de interesse
da humanidade.
Antes de aprofundarmos nos meandros da constituição deste lugar de memória
integrado aos sentidos tradicionais da paisagem da cidade-patrimônio, convém esclarecer que
o Espaço Cultural Goiandira do Couto possui uma identidade complexa e imprecisa. Chega-
se a essa análise levando em conta que a edificação contígua à casa, a qual foi iniciada no ano
2000 e concluída 2003, além de se destinar às finalidades museológicas, continuava a
negociar intimidade com a residência onde Goiandira do Couto construiu sua trajetória
ressignificando, artisticamente, a si e a vida cultural da Cidade de Goiás. Afinal, a memorável,
ainda, vivia, literalmente, no domicílio ao lado.
Foi por intermédio das telas douradas que esse espaço de sociabilidades
estreitou relações com encantamentos de Mnemosine. Assim, se genericamente museu268 é
267
Jornal “Diário da Manhã”, “Goiandira: e a areia colorida se faz arte”. Por: Licínio Barbosa; Coluna:
Opinião Pública. Goiânia, sábado, 3 de setembro de 2011. Fonte: Acervo da autora.
268
De acordo com a Lei n°. 11.904, de 2009, de 14 de janeiro de 2009 que institui o estatuto dos museus
nacionais: “Consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições sem fins lucrativos que conservam,
investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação,
contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer
306
visto como templo das musas, invocamos entre essas representantes da mitologia grega, Clio,
musa da história, para guiar esta narrativa que visa a reconstruir o processo de transição da
Casa de Goiandira em seu “Olimpo” particular. Considerando as especificidades deste
monumento íntimo269, o termo museu-vida acompanhará, doravante, as discussões que
buscam compreender a representação, o uso e a função do Espaço Cultural Goiandira do
Couto no contexto das tradições tombadas na cidade-patrimônio mundial.
Segundo Ferreira (2011, p.121), a ideia de homenagear o talento artístico e a
trajetória de Goiandira do Couto, por meio de um espaço cultural, partiu da iniciativa do
poder público municipal da Cidade de Goiás, em 25 de setembro de 1992, na gestão do então
prefeito, João Baptista Valim. Curiosamente, foi na cidade de Goiânia que o Espaço Cultural
Goiandira do Couto se concretizou. Durante, aproximadamente, um ano, o acervo pictórico,
alguns objetos pessoais da artista e peças do tradicional artesanato vilaboense ficaram
expostos à apreciação pública na cidade símbolo da modernidade goiana. Contudo, em 1993,
em virtude da transição governamental no município de Goiás, o espaço foi fechado,
conforme relembrou, nostalgicamente, Goiandira do Couto na entrevista concedida à Taís
Helena Machado Ferreira, em 2009.
Foi bonito, foi muita gente. Lá, na frente a minha exposição e, do outro lado,
era o artesanato, só coisas de Goiás, os artesãos tudo ali. Muita gente me
telefonava para saber onde tinha quadros meus para comprar, pra olhar. Mas,
fechou, fechou! Durou um ano” (COUTO apud FERREIRA, 2011, p.121-
122).
outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento” (Lei n°. 11.904,
ESTATUTO DE MUSEUS, 2009). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2009/Lei/L11904.htm>. Acesso em: 26 jan. 2017.
269
Título do texto de Leila Danziger publicado na Revista Brasileira de Museus e Museologia, do IPHAN, n° 3,
2007.
307
270
A sigla quer dizer Festival Internacional de Cinema Ambiental, um evento a cargo do governo do Estado de
Goiás que passou a fazer parte do calendário cultural da Cidade de Goiás, a partir de 1999. Essa ação é vista por
essa pesquisa como mais um ingrediente que reforça a hipótese de que houve, nos anos de 1990, um movimento
contundente a favor da implementação do projeto de futuro na Cidade de Goiás. Reiteramos, portanto, que o
lugar de memória construído na Rua Joaquim Bonifácio, se estabeleceu entre as prioridades do amplo
movimento “Cidade de Goiás - Patrimônio da Humanidade”.
308
que não quebra. E a telha de baixo eu fiz de cimento, redonda, que eu queria
que fosse para a eternidade, posteridade. As beiradas, ao invés de ser de
madeira, tudo ferro com brita e cimento dentro (Idem, 2011, p.123).
Pode ser que do ponto de vista financeiro, Goiandira do Couto tenha sido a
única responsável pela realização deste projeto. Todavia, não há como refutar a acepção
coletiva e a participação institucional nos trâmites simbólicos que, a nosso ver, foram
indispensáveis para que o lugar de memória em sua homenagem se tornasse uma realidade
integrada à percepção da cultura como tradição do passado que deve se preservar.
O testemunho oral nos revela, ainda, que Goiandira do Couto não foi isentada
do cumprimento da Lei Municipal N° 07/83271 que disciplina sobre a construção,
reconstrução, demolição e fiscalização na área urbana do município de Goiás. Nota-se, por
sua vez, que a observância da norma legal evidenciou o profundo apego da artista pelo seu
capital intelectual que, neste caso, corresponde à planta baixa referente às intervenções físicas
propostas por ela enquanto proprietária do imóvel tombado.
No Escritório Técnico de Goiás/IPHAN, encontra-se um documento de teor
semelhante anexado ao requerimento n° 67/2002 que, por sua vez, está assinado pela
solicitante tendo no item, “Descrição Sumária da Obra/Serviço”, sua solicitação junto ao
órgão federal. Lê-se: “- Ampliação, Construção de uma garagem e alteração de fachada”. A
imagem a seguir traz a representação do que se pleiteava:
271
“Parágrafo Único: Qualquer obra pública ou privada, situada no roteiro histórico ou na vizinhança de edifício
tombado ou de interesse cultural e paisagístico, só pode ser realizado após aprovação da Sub-Secretaria do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN” (LEI MUNICIPAL N° 07, de 14 de setembro de 1983).
Fonte: AETG/IPHAN - Arq. 08 G. 02; cx.10, fls. 01, Cidade Goiás - GO.
310
Aqui eu ponho o armário com as areias que eu tinha aqui em casa. Ali eu pus
de acordo com a fase que eu comecei a pintar. Tem o biombo. Aqui tem a
pedra goiana. Em baixo tem a exposição, tem os vidrinhos de penicilina, e
tem o primeiro quadro [...]. Aqui tem os quadros do meu irmão, que eu quero
expor, porque o trabalho dele é muito perfeito, elogiado no exterior. Quero
fazer uma homenagem a ele, ao meu pai e à minha mãe. Como é que eu vou
312
deixar minha mãe e meu pai, que me incentivaram de lado? (COUTO apud
FERREIRA 2011, p.124).
Na entrada foi colocado uma pequena mesa de escritório, bem simples (...)
que ficava separado do restante do salão por uma divisória (...). Todos os
objetos que se encontram no Espaço - salvo um retrato de Goiandira que está
junto com as pinturas a óleo com a indicação do autor, ano e técnica e os
quadros de sua mãe e de seu irmão onde perto deles tem a indicação do
nome dos autores e grau de parentesco com artista - não são acompanhados
de nenhuma etiqueta explicativa: “eles não precisam saber nada disso”,
comenta a artista, ficando, portanto, a cargo do guia, todas as explicações
necessárias (FERREIRA, 2011, p.126-127).
313
272
Jornal “O Popular”, Magazine: “Adeus a Goiandira”. Por: Renata dos Santos; Goiânia, quarta-feira, 24 de
agosto de 2011, p.07. Fonte: Acervo da autora.
316
273
A jornalista Renata dos Santos coletou vários testemunhos dos presentes na ocasião do velório da artista,
ocorrido em agosto de 2011, inclusive, do sobrinho que a representava socialmente. Sobre isso, ele afirmou: “Há
dois anos em fui ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro receber o Prêmio Jaburu numa solenidade de
Homenagem a ela. Ela não foi, mas fez questão de ler o discurso”, rememorou. Outro depoente, Marco Antônio
Veiga, ratificou as constantes homenagens a Goiandira do Couto fora do Estado de Goiás. Segundo ele: “(...)
durante as comemorações dos 122 anos de Cora Coralina, em Brasília, ela foi homenageada”. (JORNAL “O
POPULAR”, Magazine: Adeus a Goiandira, Por: Renata dos Santos; 24 de agosto de 2011, p.07). Fonte: acervo
da autora.
317
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
espaço privado. É importante ter claro que a pintura foi a expressão artística que a notabilizou
para mundo, embora, na Cidade de Goiás, suas habilidades multiculturais se revelaram
profícuas, logo nos primeiros anos de vida pública.
Ferreira (2011, p.95) relata um episódio interessante envolvendo as
performances culturais da protagonista, a conjuntura política local e o acirramento das
relações sociais na Cidade de Goiás entre os mudancistas e os antimudancistas, a exemplo da
família Couto. De acordo com a autora, no dia 11 de outubro de 1934, estreou, no quintal da
Casa de Goiandira, o Circo Ideal, nome dado pela artista ao espetáculo circense criado e
coordenado por ela. Sobre esse fato, ela testemunhou, entre outras coisas, sua personalidade
enfática, seus posicionamentos sociais e subjetividades “veladas” em relação ao contexto da
mudança:
Era cobrada uma entrada simbólica. Geral 100 réis, cadeira, um mil réis.
Eram os estudantes, meninos, meus irmãos todos. Uma amiga minha veio
com o namorado dela. Eles subiram na arquibancada e ela caiu. Estava mal
feita. Nós não furamos os buracos direito. (...) Precisava por luz elétrica.
Com dinheiro de quem? Menina, naquela época não pagava em dinheiro. Fui
do dono das centrais, Joaquim Guedes, era português, ele era o Cônsul da
Embaixada de Portugal, e veio colocar luz. Era custoso ter fio para pôr aqui,
não era qualquer casa que tinha luz. Ele colocou. (...) Eu fazia puxa para
vender, docinho de rapadura! A gente fazia fininho e enrolava. Fazia
pequenininho. Cobrávamos 10 por 40 réis. (...) Vinha o povo todo de Goiás.
Antigamente, tinha o muro e o portão e eu ficava na porta. O que eu falava
era ordem. Os rapazinhos vinham, o mais metidinho era o Mauro Borges,
filho do Governador de Goiás, Pedro Ludovico. Ele queria entrar. Não
deixei. Ele não pagou. Disse: - só porque você é filho do interventor, você
acha que pode entrar sem pagar? Pode ir embora. Aqui não entra sem pagar
não (COUTO apud FERREIRA, 2011, p.95-97).
econômica ou étnica. Essa é a lembrança guardada por Marlene Gomes Velasco, curadora do
Museu Casa de Cora Coralina, sobre a personalidade da notável: “Goiandira recebeu, durante
décadas, em sua própria casa tanto vendedores de banana como chefes de Estado” (JORNAL
“O POPULAR”, Magazine, Adeus a Goiandira, 24 de agosto de 2011, p.07). Esse princípio
isonômico explica porque, nos espetáculos do Circo Ideal, a entrada prescindia da
apresentação indistinta das seguintes credencias:
A figura 63 revela muito mais do que se vê. Na verdade, são ingressos para
imaginar o mundo fascinante das criações artísticas legadas por Goiandira do Couto à história
cultural da Cidade de Goiás, no século XX. Esse é o motivo principal por ela ter sido
320
escolhida como objeto central desta pesquisa que se direcionou a representar o processo de
restituição do poder simbólico para a antiga capital do Estado de Goiás. Considerando que o
sentido das glórias do passado deu lugar à simbologia de atraso e decadência incrustrados ao
discurso da modernidade goiana, o presente estudo buscou demonstrar que o projeto de futuro
encabeçado pela elite remanescente enquadrava-se à perspectiva cultural e estética da
personagem central que, além de renomada artista plástica, era conhecida pela população
local como notável representante das tradições vilaboenses.
Assentada nestas representações, potencializadas em meio ao contexto de
rupturas e permanências, compreendemos com mais propriedade a afirmação de Ferreira
(2011): “Goiandira do Couto foi um coletivo (...). Falar dela é falar de Goiás” (p.49). Esse
princípio foi observado durante a reconstrução, pelo viés biográfico, do processo de
reconhecimento simbólico e internacional da Cidade de Goiás como berço da cultura goiana,
fato ocorrido em 2001, como forma de restituir as perdas efetivas de poder em razão da
ascensão do Estado Novo na década de 1930. O enfoque dado a esse contexto histórico e o
que, ainda, pertine ser adensado a ele, como é o caso do episódio envolvendo o Circo Ideal,
estruturou o debate historiográfico do primeiro capítulo desta tese, intitulado: PILARES DE
PEDRA: Goiandira do Couto, Família e Formação.
Buscar as raízes genealógicas da artista possibilitou-nos compreender melhor
sua representação social como herdeira de tradições locais, atuação que ficou evidenciada
tanto como sucessora dos posicionamentos culturais e políticos do pai, Luiz do Couto - um
declarado antimudancista - quanto nos modos como ela articulou esse e outros legados
imateriais da família para empreender-se nas suas primeiras incursões individuais em favor da
ressignificação cultural da Cidade de Goiás, iniciada nos anos de 1940. Revisitar as diretrizes
da política econômica proposta pela Marcha para o Oeste foi de fundamental importância
para compreender em que medida a integração territorial do país, por meio do reordenamento
dos espaços produtivos, redimensionou, cultural e ideologicamente, o discurso
desenvolvimentista propagandeado pelo governo federal em relação à modernização agrícola
do centro-oeste brasileiro após o establishment da Revolução de 1930.
Assim, o desbravamento do Brasil Central, durante o século XVIII, norteou,
simbolicamente, os horizontes de futuro do Estado Novo a partir dos anos de 1940. Tal fato
explica o realinhamento da Cidade de Goiás, bem como o seu mito fundador, o bandeirante,
com as tendências nacionais e, a contrapelo, com ética “progressista” da modernidade goiana,
sem descaracterizar suas origens culturais e estéticas. O segundo capítulo, PILARES DA
TRADIÇÃO: Goiandira do Couto e as Instituições, dedicou cuidadosas análises ao
321
noções de imaterialidade cultural tangíveis nas práticas e nos discursos que tramaram os
sentidos coletivos de pertença em relação à Procissão do Fogaréu.
O terceiro capítulo desta tese, PILARES DE AREIA: a Constituição Imagética
da Cidade-Ideal, rastreou o itinerário do encontro místico de Goiandira do Couto com as
areias multicoloridas, bem como os caminhos do eixo de poder, compreendido entre o Largo
do Rosário e o Largo do Chafariz, reconstruído, pictoricamente, por uma perspectiva
inalterada do centro urbano vilaboense. Ora, se paisagem deve ser contemplada por meio da
relação histórico-cultural, no caso das telas douradas, evidencia-se uma cidade-ideal povoada
por lugares de memória que enaltecem a presença do colonizador em meio aos hiatos visíveis
e sensíveis das origens multiculturais das cidades históricas fundadas no ciclo do ouro.
Considerando essas características, afirmamos que as telas douradas criaram um regime de
historicidade não necessariamente falso, mas, certamente, parcial no que se refere aos modos
de ver e interpretar a identidade cultural e a memória urbana da Cidade de Goiás no tempo
presente. As culturas diferentes da europeia ficaram submersas nos sintomas da imagem que
não se silencia diante do que pode parecer “invisível” aos olhos.
As análises comparadas entre a estética coutiana em óleo e areia com as
produções artísticas de Cora Coralina, Octo Marques e João do Couto adensaram a hipótese
de que a concepção de cidade berço da cultura goiana se respaldou nas tradições
“inventadas”, nas convicções oficiais refundadas, pictoricamente, na monumentalidade da
cidade-ideal e, sobretudo, no conjunto de medidas institucionais que se apropriou dessas
representações imateriais para construir o enredo do passado glorioso vilaboense, evocado na
constituição da cidade-patrimônio.
Historiar os trâmites formais do projeto de futuro entrecruzado à projeção
cultural e artística de Goiandira do Couto, ambos vivenciados na década de 1970, possibilitou
compreender os motivos pelos quais a imagem da artista se vinculou às referências culturais
da cidade e do Estado de Goiás, para além de suas fronteiras. Uma vez aproximadas, frestas se
abriram para as problematizações relativas à MONUMENTALIZAÇÃO DA CASA E DAS
MEMÓRIAS DE GOIANDIRA DO COUTO NA CIDADE-PATRIMÔNIO, temática do quarto
e último capítulo desta tese.
Introdutoriamente, revisitamos o espaço de poder delimitado pelas telas
douradas demonstrando que a área de proteção dos bens culturais (patrimônio edificado)
vilaboenses estendeu-se depois dos levantamentos técnicos da comissão presidida por Belmira
Finegiev, entre os anos de 1977 e 1978. Dentre as principais medidas destacamos: o
reconhecimento do polígono central e a área de entorno como patrimônio nacional, a
323
incertezas que mantém portas e janelas, destes respectivos lugares, fechadas. O Olimpo
edificado pela "Musa das Areias" é parte integrante da história cultural da Cidade de Goiás,
portanto, um patrimônio coletivo.
325
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Anais da província de Goiás. Brasília: Convênio
SUDECO/Governo de Goiás, 1978.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008.
ARGAN, Giulio. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II: 1959-1965. São Paulo:
Paulinas, 2005.
______. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta; AMADO, Janaína (Orgs). Usos e
abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996.
______. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 11 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2007.
BRITO, Célia Coutinho Seixo de. A Mulher, a história e Goiás. 1° edição, Goiânia: Livraria e
Editora Cultura Goiana, 1974.
BRITTO, Clovis Carvalho. “Amo e Canto Com Ternura Todo o Errado de Minha Terra”:
Literatura e Sociedade em Cora Coralina. In: BRITTO, Clovis Carvalho; SANTOS, Robson
dos (orgs). Editora da UCG, Goiânia: 2008.
______. (Org). Luzes e Trevas: Estudos sobre a Procissão do Fogaréu na Cidade de Goiás.
Rio de Janeiro: Corifeu, 2008.
______; SEDA, Rita Elisa. Raízes de Aninha. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2009.
CAPEL, Heloisa Selma Fernandes. Como Analisar uma Imagem? In. História e cultura afro-
brasileira e africana [recurso eletrônico] / Cristina de Cássia Pereira Moraes (Org); autores
Alexandre Martins de Araújo... [et al.]. – Goiânia: Gráfica UFG, 2016. CD-ROM. 112 p.
Disponível versão e-book em: <www.historiaecultura.ciar.ufg.br>. ISBN: 978-85-68359-98-3
______. Retórica da Ironia e Estética Moral nos “Caprichos” de Goyas. In: RAMOS,
Alcides Freire; CAPEL, Heloisa Selma Fernandes; PATRIOTA, Rosangela (Orgs). Criações
Artísticas, Representações da História. São Paulo: Ed. Hucitec; Goiânia: Ed. da PUC Goiás,
2010.
CAUQUELIN, Anne. A Invenção da Paisagem. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.
CHAUL, Nars Nagib Fayad. Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da
modernidade. Goiânia: Ed. UFG, 1997.
COELHO, Agnaldo. Arte e técnica de Goiandira do Couto. In: UNES, Wolney (Org.).
Goiandira: arte e areia. Goiânia: ICBC, 2008.
COELHO, George Leonardo Seabra. Marcha para o Oeste: entre a teoria e prática. 2010, 176
fls. Dissertação (Mestrado em história) apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História. Faculdade de História – UFG, Goiânia: 2010.
______. A formação do espaço urbano nas vilas do ouro: o caso de Vila Boa. 1997. 131f.
Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia,
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 1997.
COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural - Cultura e imaginário. São Paulo,
Iluminuras, 1997.
COLI, Jorge. CAVALCANTI, Ana Maria Tavares; DAZZI, Camila; VALLE, Arthur
(Org.). Oitocentos: Arte Brasileira do Império à Primeira República. 1. ed. Rio de Janeiro:
EBA-UFRJ; Dezenove Vinte, 2008, p.19-25.
CORA CORALINA. Estórias da Casa Velha da Ponte. 11ª edição. São Paulo: Global, 2001.
______. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global, 1987.
CORRÊA, Rosi Meire Aparecida Fulanette. Um olhar sobre a arte pictórica vilaboense. In:
SIQUEIRA, Ebe Maria de Lima; CAMARGO, Goiandira Ortiz de e MAMEDE, Maria
Goreth F. (Org.). Leitura: Teorias e Práticas. Goiás: Vieira, 2003.
COSTA, Luís Edegar de O. Paulo Fogaça nas artes plásticas em Goiás: Indícios de
contextualização. Revista da Universidade Federal de Goiás, Goiânia-GO, v. 3. n°.1, p.39-
43, Jun. 2006.
DELGADO, Andreia Ferreira. A invenção de Cora Coralina na Batalha das memórias. 2003.
508f. Tese (Doutorado) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de
Campinas, Campinas, 2003
328
______. Imagens Apesar de Tudo. Portugal: Editora KKYM, Coleção IMAGO, 2012.
FERREIRA, Rogério Arédio. Luiz do Couto: o poeta das letras jurídicas. Goiânia: Kelps,
2007.
FRANCO, Solange. Goiandira do Couto. In: UNES, Wolney (Org.). Goiandira: arte e areia.
Goiânia: ICBC, 2008.
FREITAS, Artur. História e Imagem Artística: por uma abordagem tríplice. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n°34, jul-dez de 2004, p.3-21.
GOMIDE, Cristina Helou. Antiga Vila Boa de Goiás: experiências e memórias na/da cidade
patrimônio. 2007. 192f. Tese (Doutorado) - Programa de Estudos Pós-Graduados em História
Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.
GOYA, Edna J. de. O Ensino Superior de Artes Plásticas em Goiás: a Escola Goiana de
Belas Artes. 2010. Bahia: EGBA. Disponível em: <www.anpap.org.br/anais/2010/pdf/ceav/ed
na_de_jesus_goya.pdf>. (p.2018-2032) Acesso em 03 jan. 2016.
HOBSBAWM, Eric J.; RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. Trad. Celina Cardim
Cavalcante. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
KOFES, Suely. Uma Trajetória em Narrativas. Campinas - SP: Mercado de Letras, 2001.
KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial,
2002.
______. Pintores da Cidade. In: LIMA, Elder Rocha; GALVÃO JÚNIOR, José Leme.
Cidade de Goiás: poesia visual. Cidade de Goiás: Casa de Cora Coralina, 1997.
LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques (Org). Jogos de escalas:
experiência da microanálise. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio
Vargas, 1998.
MAGALHÃES, Sônia Maria. Alimentação, Saúde e Doenças em Goiás no Século XIX. 2004.
260f. Tese (Doutorado) - Departamento de História, Faculdade de História, Direito e Serviço
Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2004.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço
provisório, propostas cautelares. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, n° 45,
p.11-36, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbh/v23n45/16519.pdf>. Acesso
em: 25 jan. 2015.
MORAIS, Fernando. Chatô, o rei do Brasil. 4 ed. São Paulo: Cia das Letras, 2011.
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Trad. Yara Aun
Khourny. Projeto História, São Paulo: (10) de dez. 1993.
PAULA, Marcio Gimenes de. O Silêncio de Abrãao: os desafios para a ética em “Temor e
Tremor” de Kierkegaard. INTERAÇÕES - Cultura e Comunidade / v. 3 n. 4 / p.55-72 / 2008.
Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/interacoes/article/view/6708/6135>.
Acesso em: 01 abr. 2016.
PAZ, Josi. Farricoco: Leve para casa – ética e estética do souvenir. In: BRITTO, Clovis
Carvalho (Org). Luzes e Trevas: Estudos sobre a Procissão do Fogaréu na Cidade de Goiás.
Rio de Janeiro: Corifeu, 2008.
______. História e História Cultural. 2° ed. I reimpressão. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
______. História, Memória e Centralidade Urbana. Rev. Mosaico, v.1, n.1, p.3-12, jan/jun.,
2008. Disponível em: <http://seer.ucg.br/index.php/mosaico/article/view/225/179>. Acesso
em: 17 jul. 2015.
POHL, Johann Emanuel. Viagem ao Interior do Brasil. Trad. Milton Amado e Eugênio
Amado. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1976.
PINHEIRO, Antônio Cézar Caldas. Os tempos místicos das cidades goianas: mitos de origem
e invenção de tradições. Goiânia: Ed. da UCG, 2010.
POLLACK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: vol.
5, n° 10, 1992.
331
PRADO, Paulo Brito do. “Goiás que a história guardou”: mulheres, ditadura e cultura nos
anos de 1960. 2014. 236f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2014.
______. Patrimônio inquerido: por uma história de memórias subterrâneas nos sertões de
Goiás em 1930. Tempo de Histórias, (PPGHIS/UnB) N.° 24, Brasília: Jan-Jul 2014, ISSN
2316-1191. Disponível em: <http://periodicos.unb.br/index.php/emtempos/article/download/
11939/8364>. Acesso em: 01 jan. 2015.
QUADROS, Eduardo Gusmão. Anhanguera: mito fundador de Goiás. In: LEMES, Fernando
Lobo (Org). Territórios da História de Goiás: séculos XVIII - XX. Rio de Janeiro: Editora
Multifoco, 2015.
SANDES, Noé Freire. A invenção da nação: entre a monarquia e a república. Goiânia: Ed. da
UFG: Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira, 2000.
SANTANA, Francis Marques Otto de Camargo. Abram Alas Para Estes Carnavais:
reconstruindo o carnaval de Vila Boa à nova capital Goiânia. 26 ª Reunião Brasileira de
Antropologia, realizada nos dias 01 a 04 de junho. Porto Seguro - BA: 2010. Disponível em:
<http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/grupos_de_trabalho/trabal
hos/GT%2037/francis%20santana.pdf>. Acesso em: 17 fev. 2016.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Biografia como gênero e problema. In: Revista História Social.
Campinas: PGUNICAMP, n.º 24, 1º sem., p.52-73, 2013.
SILVA, Nancy Ribeiro de Araújo e. Desenho de uma vida: Crônica sobre Jorge Félix de
Souza. Revista UFG / Dez. 2011 / Ano XIII nº 11. Disponível em: <http://proec.ufg.br/revista
_ufg/dezembro2011/arquivos_pdf/artigos_o_desenho.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2016.
SIQUEIRA, Guilherme Antônio de. A arte de (en) cantar perdão e os prantos derramados
sobre o corpo místico. In: BRITTO, Clovis Carvalho; SIQUEIRA, Guilherme Antônio;
PRADO, Paulo Brito (Orgs). Por uma História da Saudade: itinerários do Canto do Perdão
na Cidade de Goiás (séculos XIX e XX). 1 edição. Goiânia: Gráfica e Editora América, 2014.
______. Fé e Arte: a semelhança divina entre dois corpos dolorosos. In: BRITTO, Clovis
Carvalho (Org). Luzes e Trevas: Estudos sobre a Procissão do Fogaréu na cidade de Goiás.
Rio de Janeiro: Corifeu, 2008.
SOUZA, Lia Gomes Pinto; SOMBRIO, Mariana Moraes de Oliveira; LOPES, Maria
Margaret. Para ler Berta Lutz. Cadernos Pagu (24), Campinas-SP: jan-jun de 2005, p.315-
325. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332005000100016&
script=sci_arttext>. Acesso em: 11out. 2015.
SOUZA, Rildo Bento de. “A História Não Perdoa os Fracos”: o processo de construção
mítica de Pedro Ludovico Teixeira. 2015. 269f. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-
Graduação em História, Faculdade de História, Universidade Federal de Goiás, Goiânia,
2015.
TAJFEL, Henri. Grupos humanos e categorias sociais. Tradução de Lígia Amâncio. Lisboa:
Livros Horizonte, 1981.
TELES, José Mendonça. No Santuário de Cora Coralina. Goiânia: Editora Kelps, 1991.
VARGAS, Getúlio. A Nova Política do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, vol. V,
1938.
VIEIRA, Antônio Carlos Pinto. Maré: casa e museu, lugar de memória. MUSAS - Revista
Brasileira de Museus e Museologia, n. 3. Rio de Janeiro: Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, Departamento de Museus e Centros Culturais, p.153-160, 2007.
Disponível em: < https://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2011/01/Musas3.pdf>.
Acesso em: 12 jan. 2017.
Fontes documentais
Arquivo Histórico Ultramarino - AHU: Doc. nº 25, Caixa 01, 11 de fevereiro de 1736.
Provisão Régia de D. João V, dispondo sobre a criação de uma Villa para sede da Capitania
de Goyaz. Transcrição: Milena Bastos Tavares, historiadora, documentalista e arquivista.
Fonte: Museu das Bandeiras – (MUBAN) Cidade de Goiás-GO
COUTO, Goiandira Ayres do. Palestra em homenagem ao poeta Luiz do Couto. In: XV
Aniversário da – AFLAG. 1984. Anuário 1983/1984, Cidade de Goiás. Secretaria de Cultura e
Desporto do Estado de Goiás/Gráfica de Goiás-CERNE, 1985. Fonte: AFLAG.
334
Estatuto da OVAT Livro n° A-1, fl. 01-16, 1978. Fonte: Tabelionato de Registros de Pessoas
Jurídicas, Títulos, Documentos, Protestos e 2° de Notas. Praça Dr. Tasso de Camargo, n° 01,
Centro - CEP: 76.600- 000, Cidade de Goiás – GO. Fonte: Organização Vilaboense de Artes e
Tradições – OVAT – Cidade de Goiás-GO
Folder Comemorativo “Dia das Bandeiras”, fls. 03, Cidade de Goiás, 2015, Fonte: acervo da
autora.
Jornal “Correio Oficial”. Capital de Goyaz, 17 de set. 1918. n° 187. Fonte: Museu das
Bandeiras – (MUBAN) Cidade de Goiás-GO
Jornal “Correio Oficial”. Por: Pedro Ludovico Teixeira; Goyaz-Capital, dezembro de 1932
apud MENDONÇA (2013 p.352).
Jornal “Diário da Manhã”, “Goiandira: e a areia colorida se faz arte”. Por: Licínio Barbosa
Coluna: Opinião Pública. Goiânia, sábado, 3 de setembro de 2011. Fonte: Acervo da autora.
Jornal “Folha de Goiaz”, “Tú Não Morrerás!”. Por: Luiz do Couto; Cidade de Goiás, n°. 35,
29 de março, de 1936. Cedido em cópia digital (inédito) por Jales Guedes Coelho Mendonça.
Jornal “O Globo”. “Procissões dos Fogaréus e do Entêrro Reviveram a Semana Santa do Rio
de Antigamente”. Rio de Janeiro, 17 de abril de 1965. Cedido por Elder Camargo de Passos
Jornal “O Jornal”, 22 de janeiro de 1927, p.04. Por: Luiz do Couto. Fonte: Biblioteca
Nacional Digital do Brasil, Hemeroteca Digital – Rio de Janeiro-RJ. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=110523_02&pasta=ano%20192&pesq
=Hist%C3%B3ria%20Politica%20de%20Goias>. Acesso em: 01 jul. 2015.
Jornal “O Paiz”, Coluna: Feminismo. Domingo, 17 de março de 1929, p.12. Parecer do ilustre
jurista Dr. Luiz do Couto, Procurador Geral do Estado de Goyaz, sobre o alistamento eleitoral
feminino. Fonte: Biblioteca Nacional Digital do Brasil, Hemeroteca Digital – Rio de Janeiro-
RJ. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=178691_05&pasta
=ano%20192&pesq=voto%20feminino>. Acesso em: 02 out. 2015.
Jornal “O Popular”, Magazine: “Adeus a Goiandira”. Por: Renata dos Santos; Goiânia,
quarta-feira, 24 de agosto de 2011, p.07. Fonte: Acervo da autora.
Jornal “O Vilaboense”, Senhora das Areias, Por: Valbene Bezerra. Goiás, ago/set de 2005,
Ano 12. Fonte: Acervo da autora.
Jornal “O Popular”. Publicação do Decreto-lei 3.635/61, 1962. Cedido pela família de Maria
Dulce Loyola
Telegrama de Luiz do Couto enviado a Assis Chateaubriant, 1926. Fonte: Acervo de Milena
Bastos Tavares, cedido em cópia digital.
Jornal “Diário da Manhã”, Roberto Marinho aos pés de Goiandira, Goiânia, 15 de abril de
1995 s/p.
Jornal “Folha de Goiaz”, “Um Gesto de Mulher Goiana”, Cidade de Goiás, n°. 35, 29 de
março de 1936 apud Jornal “O Bandeirante”, “O ideal de uma artista", Cidade de Goiás,
março de 1995 (s/p.).
Jornal “O Bandeirante”, “O ideal de uma artista", Cidade de Goiás, março de 1995 (s/p.).
Jornal “O Popular”, “Escola de Artes continua fechada”, Goiânia, 23 de agosto de1977, s/p.
Jornal “O Popular”, Suplemento: “Com Areia também se Pinta”. Por Jávier Godinho.
Goiânia, 05 de agosto de 1971.
Jornal “O Popular”, África do Sul Verá a Arte de Goiandira, Goiânia, 31 de outubro de 1969.
Jornal “O Popular”, “Curso de Artes Plásticas já funciona em Vila Boa”. Goiânia, agosto de
1968.
Carta Mensal da Associação de Cartofilia do Rio de Janeiro, por Hélio Melo, Ano XVIII –
Nº 130. Utilidade Pública Muncipal - Lei n° 2.054 de 08/12/1993. Edição e diagramação:
Samuel Gorberg. Rio de Janeiro: ACARJ, 2004.
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Reminiscências”, Por: Lindolpho Emiliano dos Passos. Cidade
de Goiás, agosto de 1986.
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Eleição no “Goiás Clube”. Goiás, 1° de julho de 1951. Ano
XIV; N°. 506, p.01).
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Concurso de Beleza”. Goiás, 08 de junho de 1947. Ano IX, N°.
345.
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Primeiro Salão de Pintura dos Amadores Vilaboenses”. Cidade
de Goiás, 01 de junho de 1947. Ano IX, N.º 344, p.01.
Jornal “Cidade de Goiaz”, Goiás, 28 de abril de 1946, N°. 300, Ano VIII.
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Srt. Goiandira do Couto”. Goiás, 30 de abril de 1944. Ano VI,
N°. 229.
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Vila Bôa (Monumento Histórico)”. Goiás, 30 de abril de 1943.
Ano VI; N° 229, p.01.
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Aniversário do Goiás Clube”. Goiás, 29 de março de 1942. Ano
IV; N° 171, p.01-04.
Jornal “Cidade de Goiaz”. “A cidade de Goiás como centro turístico”, 10 março, de 1940.
N°. 75.
337
Jornal “Folha de Goiás”, “Semana Santa em Vila Boa: programa oficial”. Cidade de Goiás,
04 de março de 1967.
Jornal “Folha de Goiás”, “Vila Boa tem Departamento de Turismo”. Goiânia, 02 de março
de 1967, s/p.
Jornal “O Democrata”, Goyaz, 19 de abril de 1930. Coluna Social. Anno XIII, n° 656.
Jornal “O Popular”, “Vida Nova para o Museu da Boa Morte”. (Caderno 2) Goiânia,
segunda-feira, 23 de janeiro de 1995.
Jornal “O Popular”, “Semana Santa em Goiás terá comemorações em novo estilo”. Goiânia,
4 de março de 1967, s/p.
Livreto “Cidade de Goiás: Berço da Cultura Goiana”. Conferência pronunciada por Regina
Lacerda na Solenidade de reabertura do Gabinete Literário Goiano. Publicação do
Departamento Estadual de Cultura. Goiás, 4 de fevereiro de 1968.
COUTO, Goiandira Ayres do. Entrevista concedida no ano de 2005 e publicada em 2009
(p.10). Cf. BRITTO. Clovis Carvalho. Pintando com areia da Cidade de Pedras: itinerários
do processo criativo de Goiandira do Couto. XIV Congresso Brasileiro de Sociologia. Grupo
de Trabalho: Sociologia da Arte, Rio de Janeiro: 2009.
COUTO, Goiandira Ayres do. Entrevista concedida a Taís Helena Machado Ferreira, 2009.
In: FEREIRA, Tais Helena Machado. A Cidade de Goiás e as areias coloridas na trajetória
de Goiandira Ayres do Couto. 2011. 230f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-
Graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
COUTO, Goiandira Ayres do. Entrevista concedida em 11/11/ 2008 à Mônica Martins Silva.
In: SILVA, Mônica Martins. A “Invenção do Fogaréu” e enredos do folclore vilaboense. Cf:
BRITTO, Clovis Carvalho (Org). Luzes e Trevas: Estudos sobre a Procissão do Fogaréu na
Cidade de Goiás. Rio de Janeiro: Corifeu, 2008.
COUTO, Goiandira Ayres do. Entrevista: “O tecido do tempo” (p.206-208). In: BRITTO,
Clovis Carvalho (Org). Luzes e Trevas: Estudos sobre a Procissão do Fogaréu na cidade de
Goiás. Rio de Janeiro: Corifeu, 2008.
338
COUTO, Goiandira Ayres do. Entrevista: Entre cultura e linguagem: entrevista com
Goiandira do Couto, 2006. In: LUZ, Renata Moraes da. TEMPORIS (ação) Revista Eletrônica
da Unidade Universitária “Cora Coralina”. Vol. 1, n°9, 2007, p.261-264. Disponível em:
<http://www.nee.ueg.br/seer/index.php/temporisacao/issue/view/2>. Acesso em: 10 jun. 2015.
CASTRO, Hecival Alves de. Entrevista: “Tempo reencontrado”, 2008. In: BRITTO, Clovis
Carvalho (Org). Luzes e Trevas: Estudos sobre a Procissão do Fogaréu na cidade de Goiás.
Rio de Janeiro: Corifeu, 2008.
CASTRO, Hercival Alves de. Entrevista concedida à autora, em 14/11/2001 apud Delgado
(2003). In: DELGADO, Andreia Ferreira. A invenção de Cora Coralina na Batalha das
memórias. 2003. 508f. Tese (Doutorado) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade de Campinas, Campinas, 2003.
TEIXEIRA, Mauro Borges. Entrevista concedida à Isabela Tamaso, em março de 2003. In:
TAMASO, Isabela. Em nome do patrimônio: representações e apropriações da cultura na
cidade de Goiás. 2007. 784f. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Instituto de Ciências Sociais, Departamento de Antropologia,
Universidade de Brasília, Brasília, 2007 (p.144).
Jornal “Jornal de Brasília”, “Fogaréu de Farricocos nas ruas da velha Goiás”. Por; José
Andersen; Sérgio Habib. Brasília, 02 de abril de 1978, F-0907. Disponível em:
<http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=Tematico&PagFis=40502&Pesq=>.
Acesso em: 09 dez. 2015.
Jornal “Opção”, 10 a 16 de janeiro de 1999. Por Antonio Lisboa de Morais. Disponível em:
<http://diariovilaboense4.blogspot.com.br/2009/02/goiandira-do-couto.html.> Acesso em: 16
fev. 2015.
Jornal “O Popular Online”, Magazine. Atuação Cultural Intensa. Goiânia, 28, de agosto de
2011. Disponível em: <http://www.gjccorp.com.br/cmlink/o-popular/editorias/magazine/sob-
o-sol-da-barra-1.31847>. Acesso em: 14 ago, 2015.
CHAFARIZ DE CAUDA:
Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/ans.net/tema_consulta.asp?Linha=tc_belas.gif&Cod=1227>.
Acesso em: 22 jul. 2015
COR VERMELHA:
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=115157
&tip=UN>. Acesso em: 06 abr. 2016.
339
DEFINIÇÃO DE HABITUS:
Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/pequeno-glossario-da-teoria-de-
bourdieu>. Acesso em: 12 jun. 2015.
MOSSAMEDES:
Disponível em: <http://www.cidades.ibge.gov.br/painel/historico.php?lang=&codnum=52139
0&search=%7Cmossamedes>. Acesso em: 03 out. 2015.
SANTO SUDÁRIO:
Disponível em: <http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/56/artigo273622-1.asp>.
Acesso em: 01 abr. 2016
SERRA DOURADA:
Disponível em: <http://eco.tur.br/ecoguias/goias/ecopontos/paisagens/serradourada.htm>.
Acesso em: 14 out. 2014.
SIGLA UNESCO:
Disponível em: <http://www.infoescola.com/geografia/unesco>. Acesso em: 17 jan. 2015.
Multimídias
ANEXO I
Vaso com Rosas Vermelhas, 1947, (28x36). Pôr-do-Sol no Araguaia, 1961, (47x69).
Óleo sobre tela Óleo sobre tela.
ANEXO II
ANEXO III
ANEXO IV
ANEXO V
ANEXO VI
ANEXO VII