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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

RAQUEL MIRANDA BARBOSA

MUITO ALÉM DAS TELAS DOURADAS

Cidade e tradição em Goiandira do Couto (1960 a 2001)

Goiânia - GO

2017
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UFG
TERMO DE CIÊNCIA E DE AUTORIZAÇÃO PARA DISPONIBILIZAR VERSÕES ELETRÔNICAS
DE TESES E
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Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Goiás (UFG)
a disponibilizar, gratuitamente, por meio da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD/UFG),
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desta data.

1. Identificação do material bibliográfico: [ ] Dissertação [ x ] Tese

2. Identificação da Tese ou Dissertação:

Nome completo do autor: Raquel Miranda Barbosa

Título do trabalho: MUITO ALÉM DAS TELAS DOURADAS: cidade e tradição em Goiandlra do Couto
(1960 a 2001).

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Assinatu�ntad�r(a)2

Data: 29 / 11 /2017

1
Neste caso o documento será embarf;ldo por até um ano a partir da data de defesa. A extensão deste praro suscita
justificativa junto à coordenação do curso. Os dados do documento não serão disporuõilizados durante o periodo de embargo.
Casos de embargo:
- Solicitação de registro de patente
- Submissão de artigo em revista cientifica
- Publicação como capítulo de livro
- Publicação da dissertação/tese em livro
2
A assinatura deve ser cscancada.
Versão atualizada em maio de 2017.
Goiandira Ayres do Couto. Foto: JB, década de 1930

Fonte: Acervo de Antônio Carlos Costa Campos.


RAQUEL MIRANDA BARBOSA

MUITO ALÉM DAS TELAS DOURADAS


Cidade e tradição em Goiandira do Couto (1960-2001)

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em


História da Universidade Federal de Goiás
para obtenção do título de Doutora em
História.
Área de Concentração: Culturas, Fronteiras e
Identidades.
Linha de Pesquisa: Fronteiras,
Interculturalidades e Ensino de História.

Orientadora: Dra. Heloisa Selma Fernandes Capel

Goiânia - GO
2017
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do
Programa de Geração Automática do Sistema de Bibliotecas da UFG.

Miranda Barbosa, Raquel


MUITO ALÉM DAS TELAS DOURADAS [manuscrito] : cidade e
tradição em Goiandira do Couto (1965-2001) / Raquel Miranda
Barbosa. - 2017.
ccclviii, 358 f.: il.

Orientador: Profa. Dra. Heloisa Selma Fernandes Capel.


Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Goiás, Faculdade de
História (FH), Programa de Pós-Graduação em História, Goiânia, 2017.
Bibliografia. Anexos.
Inclui siglas, mapas, fotografias, abreviaturas, lista de figuras.

1. Goiandira do Couto. 2. Tradições. 3. Cidade-Ideal. 4. Cidade


Patrimônio. 5. Lugares de memória. I. Fernandes Capel, Heloisa Selma ,
orient. II. Título.

CDU 94(817.3)
RAQUEL MIRANDA BARBOSA
DEDICATÓRIA

Para os vilaboenses.

Um povo que não desencanta dos encantos da


cidade que é pedra, areia, pó e poeira.

E, especialmente para:

Sebastião Ferreira de Miranda e Cacilda


Araújo de Miranda (In Memorian), minhas
raízes na Cidade de Goiás.
AGRADECIMENTOS

Primeiramente e indiscutivelmente a Deus que é amor infinito. Por isso, é a


força mais poderosa do universo para mim. Em seguida ao Fábio, que mudou uma parte da
minha vida, justamente, no transcorrer da experiência desta tese que marcou para sempre o
meu viver. Aos meus irmãos, Franklin e Saul Ezrom, agradeço pelo amor de cada qual à sua
maneira. Às minhas cunhadas, Márcia pela irmandade, pelo sublime que existe entre nós, e a
Tercília pelo constante dulçor de suas palavras ao me incentivar e me compreender. À minha
família como um todo, por entender que foi necessário me ausentar.
À Heloisa Selma Fernandes Capel, minha orientadora e amiga, digo-lhe: você
me ensinou a ressignificar o meu olhar, ver para além do horizonte e, assim, sentir a
experiência do renovo. Nada me fará esquecer o que construímos juntas e é por isso que todas
as formas de lhe agradecer, ainda, serão insuficientes. Sinto-me vinculada a você mesmo
depois deste rito de passagem. Gratidão é um sentimento que não desaparece. Muito pelo
contrário! Ele é crescente! Obrigada por tudo! Nesta oportunidade, agradeço ao corpo docente
e aos funcionários do Programa de Pós Graduação em História da UFG.
Agradeço a Leila, minha companheira, irmã de coração. Sua generosidade, seu
carinho e preocupação comigo foram fundamentais para que eu rompesse essa jornada. O que
fez por mim jamais será esquecido. Você me deu mais o que necessário. Foi testemunha fiel
dos dias a fio dedicada a esse projeto. Foi mão amiga, ouvido silente e olhar caloroso em
todos os momentos que precisei. Quantas e quantas vezes o sabor da comida confortou a
minha alma. Muito obrigada!
Meus agradecimentos pessoais à FAPEG - Fundação de Amparo a Pesquisa do
Estado de Goiás - por ter me concedido auxílio financeiro que subsidiou esta pesquisa que
vislumbra outros recomeços. Neste ensejo, agradeço à UEG - Universidade Estadual de Goiás
-, pela garantia da licença para aprimoramento durante quase três anos. O tempo concedido
foi de vital importância para eu ter chegado até aqui.
Aos amigos pesquisadores que participaram da rede colaborativa, fornecendo
documentos para a elaboração desta tese. Destaco a generosidade do Dr. Jales Guedes Coelho
Mendonça que gentilmente me cedeu fontes importantes e algumas inéditas adquiridas ao
longo de sua trajetória de pesquisa. Sua obra, A Invenção de Goiânia: O Outro Lado da
Mudança, foi outro presente inestimável recebido neste processo. Muito obrigada, Jales!
Ainda profundamente tocada, não há palavras para expressar a importância do pesquisador e
artista plástico, Guilherme Antônio de Siqueira, que me concedeu a maioria das fotografias
referentes à Goiandira do Couto. Sua amizade, dedicação e amor estiveram sempre ao meu
alcance todas as vezes que precisei. E não foram poucas... Não tenho palavras para explicar
sua importância para mim neste trajeto e, certamente, para vida. Há muito para ser construído
ao seu lado.
Ainda nesta direção, meus agradecimentos eternos a Milena Bastos Tavares
que se envolveu pessoalmente nas demandas de garimpagem dos documentos que tanto
precisei. Seu compromisso com a história de Goiás vai além das dificuldades do seu ofício. A
você, Milena, meu eterno muito obrigada! Respeitosamente, agradeço a Elder Camargo de
Passos por ter cedido documentos de seu arquivo pessoal. Com muito carinho, estendo
gratidão ao meu ex-aluno Tiago Mota, que tanto me ajudou com as fotografias antigas da
paisagem vilaboense e da Casa de Cora. A Antônio Cezar Caldas que, por tantas vezes,
prestou esclarecimentos, inclusive via telefone, e pela documentação visual cedida.
Completando este panteão de notáveis, destaco a incansável Maria de Fátima Cansado, da
Fundação Frei Simão Dorvi, que muitas e muitas vezes me contactou, informalmente, para
dizer que havia achado “pepitas de ouro” que, de fato, agregaram valor à narrativa. Sem
dúvidas, sua atuação, Fátima, fez e faz diferença nas pesquisas desenvolvidas no Estado de
Goiás e fora dele.
Falar de todos esses colaboradores me remete, imediatamente, aos arquivos e
centros de memória que abriram suas portas para execução desta pesquisa. Assim, agradeço à
Fundação Frei Simão Dorvi, à Academia Itaberina de Arte e Cultura, ao Arquivo do Museu
das Bandeiras, ao Arquivo do Escritório Técnico de Goiás/IPHAN, Arquivo do Museu Casa
de Cora Coralina, ao Arquivo da Diocese da Cidade de Goiás e às famílias de Maria Dulce de
Loiola, Nice Monteiro Daher e Antônio Carlos Costa Campos. Agradecimento especial à Tais
Helena Machado Ferreira que me cedeu grande parte dos documentos do acervo de Goiandira
Ayres do Couto quanto esteve na Cidade de Goiás para desenvolver sua pesquisa pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Homenagear ao meu amigo de coração, Willian Flugge Carvalho, é o mínimo
diante do que ele me ofereceu nesse processo. Parceria, cumplicidade e dedicação foram
doadas a mim, por ele, muitas e muitas vezes. Igualmente, pela amizade cuidadosa de minha
amiga, Jacqueline Siqueira Vigário, não há palavras para agradecer tamanha generosidade e
compreensão ao longo desta jornada. A Giovana Emos oferto um coração grato.
Jamais me esquecerei de atores importantes que contribuíram para a beleza
estética desta tese. Às professoras, Esp. Lissandra Silva Faria e Dra. Terezinha do
Nascimento, que cuidaram da forma do meu texto zelando pela originalidade das ideias no
mesmo. À Abrahão Moraes, pela paciência e pelo rigor metódico com os quais lapidou a
formatação de cada página deste meu legado intelectual.
Finalmente, à banca examinadora desta tese, particularizo agradecimentos à
professora Cristina de Cássia pelo pronto atendimento e pelos conselhos preciosos em todos
os momentos que precisei. Ao professor Dr. Eduardo Gusmão de Quadros por estar comigo,
mais uma vez, em um rito de passagem na minha vida acadêmica. À professora Sônia Maria
Magalhães que me inspirou muitas vezes com suas ideias escritas e faladas. Ao professor
Ademir Luiz pelas colocações oportunas ditas com tamanho cavalheirismo. E aos professores,
Cristiano Alexandre dos Santos e Thiago Fernando Sant `Anna, pela pronta disposição.
Pra Goiandira

Letra: Marcelo Barra e Gilberto Mendonça Teles.

“Cava beleza dourada. Da serra encontra jazida,


da terra bem colorida para os teus quadros reais.

Exibe o ritmo sereno, da tela simples da artista.


Essa pintura que avista, só pode ver em Goiás.

Pinta e no cenário, de linhas, formas e cores,


desenha o tempo das flores no cerrado e nos
gerais.

Olha e no silêncio de tudo o que se admira; olha


vem a Goiandira pintando o céu de Goiás.”
RESUMO

Ao representar a paisagem urbana da Cidade de Goiás, Goiandira do Couto


(1915-2011) privilegia uma narrativa pictórica baseada nos mitos e marcos edificados durante
a colonização portuguesa, no eixo que se estrutura entre o Largo do Rosário e o Largo do
Chafariz. Como herdeira de uma tradição cultural e familiar, a artista se relaciona com as
instituições guardiãs do passado, como a Organização Vilaboense de Artes e Tradições
(OVAT), reinventando a cidade e sua identidade cultural. Em suas telas, a valorização dos
símbolos da memória oficial inspirou a criação de uma cidade-ideal que, mais tarde, tornar-se-
ia cidade-patrimônio apregoando o enredo das oficialidades, conforme se vê no Dossiê de
Goiás, documento que formalizou a candidatura da Cidade de Goiás ao título de patrimônio
mundial, homologado em 2001. Por se tratar de um processo complexo, ressalta-se o poder
institucional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) que se
dedicou entre as décadas de 1950 a 1990, ao levantamento, reconhecimento e tombamento do
patrimônio cultural vilaboense. A partir da década de 1960, nota-se que esse trâmite se
estabelece em profícuo diálogo com a elite cultural (OVAT) e com as autoridades políticas
locais e regionais que, por sua vez, vislumbraram a preservação do passado como atributo
para projetar a Cidade de Goiás para o futuro. Paralelamente, as telas douradas circulavam
pelo mundo enunciando a existência de uma cidade-ideal, no interior do Brasil, dotada de
“valor excepcional universal”. Aventamos a hipótese de que, ao delimitar o perímetro do
tombamento histórico, nos anos de 1980, o IPHAN considerou a relação do patrimônio
edificado com o roteiro das tradições construídas visual e imaterialmente por Goiandira do
Couto. Suspeitamos que essas aproximações afluíram para a delimitação e normatização dos
limites, dos símbolos e das personagens que representariam a cidade berço da cultura goiana
junto à UNESCO. Nas especificidades desse processo, os rastros de Goiandira do Couto se
legitimaram, no advento do século XXI, entre os lugares de memória da cidade-patrimônio
com a fundação do Espaço Cultural Goiandira do Couto, um lugar destinado à musealização
da trajetória público-privada desta notável artista e guardiã das memórias vilaboenses, ainda,
em vida.
Palavras-chave: Goiandira do Couto, Tradições, Cidade-Ideal, Cidade-
Patrimônio, Lugares de Memória.
ABSTRACT

In representing the urban landscape of the City of Goiás, Goiandira do Couto


(1915-2011) privileges a pictorial narrative based on the myths and landmarks built during
Portuguese colonization, along the axis that is structured between the Largo do Rosário
(Rosary Square) and the Largo do Chafariz (Fountain Square). As an heiress of a cultural and
family traditions, the artist establishes a relationship with Guardian-of-the-past Institutions,
such as the Organization of Arts and Traditions of the City of Goiás (Organização Vilaboense
de Artes e Tradições - OVAT), reinventing the city and its cultural identity. In her paintings,
the valorization of the symbols of the official memory inspired the creation of an ideal city
which would later become a heritage city, proclaiming the plot of officialdom, as seen in the
Dossier of Goiás, the document that formalized the candidature of the City of Goiás to the
title of World Heritage, homologated in 2001. Because it is a complex process, the
institutional power of the Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN
(Institute of National Historical and Artistic Heritage) is highlighted, which was dedicated to
the survey, recognition and promulgation of the cultural heritage of the City of Goiás,
between the decades of 1950 and 1990. From the 1960s onwards, this process is established in
a fruitful dialogue with the cultural elite (OVAT) and with the local and regional political
authorities which, in turn, have glimpsed the preservation of the past as an attribute to project
the City of Goias to the future. Meanwhile, the golden canvas travelled around the world,
stating the existence of an ideal city in the interior of Brazil, endowed with "universal
exceptional value". We hypothesized that, in delimiting the perimeter of the historical listed
patrimony, in the 1980s, the IPHAN has considered the relationship of the built heritage with
the list of traditions visually and immaterially constructed by Goiandira do Couto. We suspect
that these approaches have converged to the delimitation and normalization of the limits,
symbols and characters which would represent the birthplace of the local (State of Goiás)
culture along with UNESCO. Through the specificities of this process, the traces of Goiandira
do Couto were legitimized, in the advent of the 21st century, among the memory places of the
heritage city with the foundation of the Cultural Space Goiandira do Couto, a place intended
to the ‘musealization’ of the public and private trajectories of this remarkable artist and
guardian of the memories of the City of Goiás, when she was still alive.
Keywords: Goiandira do Couto, Traditions, Ideal City, Heritage City, Memory
Places.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 01 Prospecto de Vila Boa, 1751 36

Figura 02 Vista da Ponte da Casa de Cora Coralina para a Cruz do Anhanguera e. 48


Rua Moretti Foggia
Figura 03 Rua Moretti Foggia (Antiga Rua Direta, 1815) 49

Figura 04 Casa de Cora Coralina e a árvore, 1912 52

Figura 05 Telegrama de Luiz do Couto enviado a Assis Chateaubriant, 1926 55

Figura 06 Goiandira Ayres do Couto, 1933 63

Figura 07 Casal Luiz do Couto e Maria Ayres do Couto 71

Figura 08 Festa Cívica no Largo da Matriz, Cidade de Goiás, 1932 (inédita) 76

Figura 09A Foto da Festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos 81

Figura 09B Igreja de Nossa Srª do Rosário, em estilo neogótico, década de 1950 81

Figura 10 Goiandira do Couto. Formatura da Escola Normal Oficial de Goiás, 83


1935.
Figura 11 Jornal “Folha de Goiaz”, “Tu não morrerás!”, n°. 35, Cidade de 87
Goiás, 1936.
Figura 12 Convite dos festejos alusivos ao aniversário de Getúlio Vargas. Cidade 96
de Goiás, 1941.
Figura 13 Desfile do Bloco da Banda de Lá. Cidade de Goiás, década de 1940. 111

Figura 14 Jornal “O Popular”, publicação do Decreto-lei 3.635/61, 1962. 132

Figura 15 Páginas do Encarte Comemorativo OVAT, 40 anos Promovendo a 138


Cultura e Resgatando as Tradições, 2005.
Figura 16A Maria Madalena, 1967. 154

Figura 16B Heú, lápis de cor, 1967. 154

Figura 17 Isaac, 1967. Lápis de cor aquarelado sobre papel sulfite. 158

Figura 18 Abraão, 1967. Lápis de cor aquarelado sobre papel sulfite. 159

Figura 19 João Evangelista, 1967. 162

Figura 20 José de Arimatéia, 1967. 162

Figura 21 Nicodemos, 1967. Lápis de cor aquarelado sobre papel sulfite. 162

Figura 22 Farricoco, 1967. Lápis de cor aquarelado sobre papel sulfite. 165

Figura 23 Concentração dos Farricocos, Cidade de Goiás, 2016. 170


Figura 24 Reportagem do Jornal “O Globo”, “Procissões dos Fogaréus e do 175
Entêrro Reviveram a Semana Santa do Rio de Antigamente”, 1965.
Figura 25 “...Y Mandó Azotarle”. Cartaz da Semana Santa de Granada, Espanha 178
2014.
Figura 26 A Perseguição dos Farricocos pelas ruas da Cidade de Goiás, 2012. 181

Figura 27 Os farricocos e o “Cristo Flagelado”, 2012. 182

Figura 28 “Goiandira arte e areia”. 203

Figura 29 Convite da I Exposição Individual de Goiandira do Couto, Galeria 205


Azul, 1968.
Figura 30 Diagrama do Olhar Guardião. 219

Figura 31 Largo do Rosário - Vista da Cidade, Goiandira do Couto, areia sobre 221
fibra de madeira, (141x93 cm), 1976.
Figura 32 Largo do Rosário, Cidade de Goiás-GO, 2016. 227

Figura 33 Placa em Homenagem a Joaquim da Veiga Valle, 2016. 228

Figura 34 Largo do Rosário, Goiandira do Couto, areia sobre fibra de madeira, 231
(44 x 59),1986.
Figura 35 Cruz do Anhanguera, Goiandira do Couto, óleo sobre tela, 1947. 233

Figura 36 Bandeira do Município de Goiás, 1975. 235

Figura 37 Projeto de Lei N° 21, Criação da Bandeira do Município de Goiás, 236


1975.
Figura 38A Casa Velha da Ponte, João do Couto(bico de pena e nanquim).s/d 240

Figura 38B Casa de Cora Coralina ao contrário. Goiandira do Couto, areia sobre 241
fibra de madeira, (230x147), 1975.
Figura 39 Cruz do Anhanguera, Octo Marques, óleo sobre tela, 1987 244

Figura 40 Portões com torre da Igreja, (1989), Goiandira do Couto, areia sobre 247
fibra de madeira, (33 x 57) 1989.
Figura 41 Casa de Cora Coralina. Goiandira do Couto (52 x 36), 2004. 248

Figura 42 Rua Direita (Goiás), Octo Marques, oléo sobre tela, 1947. 250

Figura 43A Beco da Rua 13 de Maio, Goiandira do Couto (35X55), areia sobre 254
fibra de madeira, 1982.
Figura 43B Beco do Cotovelo, Goiandira do Couto (40x53), areia sobre fibra de 254
madeira, 1987.
Figura 43C Beco do Ouro Fino, Goiandira do Couto (34x45), areia sobre fibra de 254
madeira, 1978.
Figura 44 Flamboyants, Goiandira do Couto, óleo sobre tela, 1962. 255
Figura 45A Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, Goiandira do Couto, areia 257
sobre fibra de madeira, 1967.
Figura 45B Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, João do Couto, (bico de pena 257
e nanquim), 1968
Figura 46A Chafariz e Igreja da Boa Morte. João do Couto, (bico de pena e 259
nanquim), s/d
Figura 46B Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte e Palácio Conde dos Arcos, 259
João do Couto, (bico de pena e nanquim), 1968.
Figura 47A Museu das Bandeiras, Goiandira do Couto, areia sobre fibra de 262
madeira, 1974
Figura 47B Museu das Bandeiras, Goiandira do Couto (52x36), areia sobre fibra 262
de madeira, 1976.
Figura 48 Largo do Chafariz, Octo Marques, óleo sobre tela, s/d. 265

Figura 49 Chafariz, Goiandira do Couto, areia sobre fibra de madeira (42x34), 266
1978.
Figura 50 Chafariz e Museu da Bandeiras, Goiandira do Couto, areia sobre fibra 268
de madeira (60x40), 1983.
Figura 51A Chafariz, Octo Marques, óleo sobre tela, 1986. 269

Figura 51B Chafariz, Octo Marques, óleo sobre tela, 1972. 269

Figura 52 Goiandira do Couto e a tela Largo do Rosário, s/d. 271

Figura 53 Mapa de Goiás, folder Ao Morador, Escritório do IPHAN, Cidade de 275


Goiás, 2014.
Figura 54 Projeto de Levantamento de Bens de Interesse para Tombamento 278
(1977/1978), Reedição em 1995.
Figura 55 Relação de Bens Tombados pelo Estado e Bens Tombados pelo 280
IPHAN, 1997.
Figura 56 Lista de Presença “Movimento Pró-Cidade de Goiás”, 2000. 283

Figura 57 Manifesto do Povo Vilaboense, 1998. 290

Figura 58 Resumo da Reunião Para Formação do Comitê “Goiás: Patrimônio da 291


Humanidade”, s/d.
Figura 59 - “Recorte do folder do VI FICA - referindo-se à Casa de Goiandira do 307
Couto”, 2004.
Figura 60 - Planta Baixa do Espaço Cultural Goiandira do Couto IPHAN, 2002 308

Figura 61A Planta Baixa por Goiandira do Couto, 2002. 309


-
Figura 61B Casa e Espaço Cultural Goiandira do Couto 309
-
Figura 62 - A Musa das Areias; Foto: Walter Alves, 2005. 313

Figura 63 - Ingressos para o Circo Ideal, 1934. 318


LISTA DE ABREVIATURAS

AFFSD - Arquivo Fundação Frei Simão Dorvi


AFLAG - Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás
APROVI - Associação de Proteção a Vida
DPHAN - Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
EGBA - Escola Goiana de Belas Artes
FICA - Festival Internacional de Cinema Ambiental
IBPC - Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural
IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
OVAT - Organização Vilaboense de Artes e Tradições
PROLER - Programa Nacional de Leitura
SPHAN - Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
TABELIONATO 2º OFÍCIO - Tabelionato de Registros de Pessoas Jurídicas, Títulos,
Documentos, Protestos e 2° de Notas. Praça Dr. Tasso de
Camargo, n° 01, Centro - CEP: 76.600-000, Cidade de Goiás
- GO
UNESCO - Organização para a Educação, a Ciência e a Cultura das
Nações Unidas
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 16

CAPÍTULO I .................................................................................................................... 26

PILARES DE PEDRA: Goiandira do Couto, Família e Formação

2.1 Origens da Tradição .................................................................................................. 32

2.2 Interfaces do Público com o Privado ....................................................................... 60

2.3 Goiandira do Couto no Desenho da Trama............................................................. 74

CAPÍTULO II ................................................................................................................... 93

PILARES DA TRADIÇÃO: Goiandira do Couto e as Instituições

3.1 Vieses e Revezes da Mudança: arte e cultura projetando tradições ..................... 100

3.2 Institucionalizando Guardiões: a fundação da OVAT .......................................... 122

3.3 Política Cultural ou Coalizão de Poderes? .............................................................. 128

3.4 O Turismo Histórico e a Invenção de Tradições ..................................................... 136

3.5 Concepções Estéticas da Imaterialidade Cultural .................................................. 150

CAPÍTULO III ................................................................................................................. 185

PILARES DE AREIA: A Constituição Imagética da Cidade-Ideal

4.1 Imagens Como Pensamento: releituras teóricas ..................................................... 192

4.2 Os Dedos Substituem os Pincéis: a técnica com areia ............................................ 200

4.3 O Olhar Guardião: recriando o centro da paisagem cultural vilaboense ............ 217

4.4 Reconstruindo Origens ............................................................................................. 232

4.5 Visões Comparadas Pelo Eixo de Poder .................................................................. 239


CAPÍTULO IV .................................................................................................................. 273

A MONUMENTALIZAÇÃO DA CASA E DAS MEMÓRIAS DE GOIANDIRA DO


COUTO NA CIDADE-PATRIMÔNIO
5.1 Normatizando o Devir das Tradições ...................................................................... 276

5.2 A Cidade e as Expectativas de Futuro no Dossiê de Goiás .................................... 293

5.3 A Construção do Museu-Vida: Espaço Cultural Goiandira do Couto ................... 303

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 316

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 323

ANEXO I Produção em Óleo – 1ª Fase Artística de Goiandira Ayres do


Couto......................................................................................................... 338
ANEXO II ESTATUTO DA OVAT Livro n° A-1, fl. 01, 1978. ............................... 339

ANEXO III Documento Avulso: Carta endereçada ao Presidente do Instituto


Histórico e Geográfico Brasileiro, fls. 01-03 ......................................... 345

ANEXO IV Folder da exposição “GOIANDIRA”, 1974. ........................................... 348

ANEXO V Folder Comemorativo “Dia das Bandeiras”, Cidade de Goiás,


2015............................................................................................................ 349
ANEXO VI “Movimento Pró-Cidade de Goiás”: Medidas de Ajustamente da
Cidade de Goiás Visando Candidatura a Título de Patrimônio
Mundial .................................................................................................... 350
ANEXO VII Documentos que relacionam a imagem de Goiandira do Couto à
352
referência cultural da Cidade de Goiás nas Artes. ...............................
17

INTRODUÇÃO

Se arte é um dos grandes tipos de estrutura


cultural, a análise da obra de arte deve dizer
respeito, de um lado, à matéria estruturada, de
outro lado, ao processo de estruturação
(Giulio Carlo Argan)

Esta pesquisa tem por objetivo analisar a relação entre a trajetória cultural da
artista plástica goiana, Goiandira Ayres do Couto (1915- 2011), e a reconstrução da
identidade urbana da Cidade de Goiás, no século XX. Localizada nos planaltos do Centro-
Oeste do Brasil, desde o século XVIII, atualmente, é um lugar que vivencia práticas e
políticas de preservação da história e dos costumes apropriados pela população e gestores do
patrimônio cultural como sendo tradições centenárias. Há, aproximadamente dois séculos, a
antiga Vila Boa1 foi capital do Estado de Goiás, status perdido para a cidade de Goiânia, na
década de 1930.
A ascensão do Estado Novo trouxe consigo o ideal de modernidade e
progresso. Em contrapartida, a tradição acumulada na Cidade de Goiás adquiriu, na voz do
interventor federal, Pedro Ludovico Teixeira, e seus correligionários, a representação de
retrocesso, atraso. Na visão desses líderes, o modus operandi da velha política oligárquica
enraizou-se, simbolicamente, à paisagem urbana colonial vilaboense, concepção que firmou e
afirmou a ideologia mudancista. Assim, em 1932, foi assinado o decreto lei n° 2.737,
documento que sancionou a transferência da sede administrativa do Estado de Goiás para a
nova capital. Neste mesmo ato, o poder executivo instituiu a comissão encarregada de
escolher o local onde seria edificada a cidade concebida para ser monumento representativo
de ruptura com o passado. Instaurava-se, portanto, o mais emblemático paradigma da história
político-cultural goiana.

1
“Aos 25 dias do mês de julho de 1739, nesta Vila Boa de Goiás, onde veio o Exm° Sr. D. Luiz Mascarenhas,
general desta capitania, em virtude da ordem de S.M remetida ao Sr. Exm°. conde de Sarzedas; seu antecessor,
para efeito de erigir uma vila nestas minas, havendo, eleitas as justiças e declarados pelo Dr. superintendente
geral. Agostinho Pacheco Telles, juízes ordinários Antônio Dias da Silva e Antônio Brito Ferreira, vereadores
Thomé Gomes Mazagão e Antônio Xavier Garrido, o procurador João Lopes Zedes, e em seu lugar, Antônio de
Brito Rabelo, sendo escrivão da câmara Miguel Carlos, levando o estandarte dela Ignácio Dias Paes, foi
mandado pelo dito Sr. general que todos os ditos com nobreza e povo da dita vila, a que ele acompanhou, fossem
levantar pelourinho, ao lugar destinado, junto do arraial, a que em nome do Rei deu o nome de Vila Boa, e todos
concorreram para o levantamento do pelourinho, que com efeito se levantou: de que para constar fez este termo,
que assimou Exm°. general, superintendente e da câmara. E eu Antônio da Silva Almeida, secretário do governo
que o escrevi” (ALENCASTRE, 1863, p. 72).
18

Nos últimos anos da permanência do poder estadual na Cidade de Goiás, ou


seja, entre 1932 e 1937, identificou-se, além de um clima de disputas políticas e ideológicas
entre partidários e contrários à mudança, a notabilidade individual da personagem central
deste estudo, Goiandira do Couto. Foi nesse ambiente paradoxal de começos e recomeços que
ela ingressou na vida pública, por meio das artes plásticas, embora registros históricos
evidenciem que seu protagonismo, na Cidade de Goiás, tenha extrapolado os limites da
representação para se tornarem práticas culturais.
Abstrair esse entendimento pressupõe método e análise, mas, antes de qualquer
coisa, precede inquietar-se com o que se vê. Observando as criações artísticas desta pintora
goiana, em 2009, durante uma exposição no Palácio Conde dos Arcos2, incomodou-nos a
presença deliberada do sentido de inalterabilidade e oficialidade da paisagem urbana
vilaboense, concepção subjetiva construída a partir da comparação entre as aparências da
cidade idealizada pela artista e as transformações físicas e culturais que a cidade se submeteu
desde os tempos das perdas efetivas com a transferência da capital, em 1930, e ganhos
simbólicos, obtidos por meio da conquista do título de Patrimônio da Humanidade, logo na
virada do último milênio.
No ano de 2010, surgiu a oportunidade de passar uma tarde com Goiandira do
Couto em sua casa, lugar onde residiu desde sua chegada à Cidade de Goiás, ainda na
infância, em 1921. As longas conversas foram regadas às rememorações do passado
enaltecendo os valores tradicionais vividos e transferidos a ela no seio da família. Seu pai,
Luiz do Couto, que fora, constantemente citado e relembrado à medida que gavetas, caixas e
memórias eram abertas. Na sua visão, o patriarca da família Couto foi um dos maiores
intelectuais que a Cidade de Goiás conheceu.
Naquela tarde, na Casa de Goiandira, a sensação foi de retrocesso ao início do
século XX, tempos classificados por ela como gloriosos. Desde então, articula-se hipóteses
correlatas aos conceitos de tempo, memória, espaço e poder, à luz das imagens, que, por sua

2
“Edifício de arquitetura civil de grande porte, localizado no Largo da Matriz no Centro Histórico da Cidade de
Goiás. Antigo Palácio dos Governadores da província, não se sabe corretamente a data de sua construção,
possivelmente entre 1775 e 1759 ou mesmo antes. Há vestígios da passagem de D. Marcos de Noronha, o Conde
dos Arcos, pelo palácio, pois existe no jardim o brasão do Conde dos Arcos, daí o nome do edifício. Consta de
extenso pavimento térreo, colocado um pouco acima do solo, tendo ao seu fundo, um jardim. É construção de
paredes em taipa de pilão e adobes e telhas de barro canal. Sofreu, ao longo dos anos, diversas reformas e
acréscimos, mas que não alteraram substancialmente suas feições. Sua fachada principal recebeu, ao final do
século XIX, platibanda e uma porta de entrada com frontão e pilastras à moda clássica. Atualmente, abriga
coleções de móveis, quadros e demais objetos sendo aberto à visitação pública”. Disponível em
<http://portal.iphan.gov.br/ans.net/tema_consulta.asp?Linha=tc_hist.gif&Cod=1226> Acesso em: 15 mar. 2017.
19

vez, direcionaram o recorte cronológico e definiram as especificidades do objeto desta tese:


cidade e tradição em Goiandira do Couto.
No ano seguinte, exatamente agosto de 2011, à pesquisa em curso, Goiandira
do Couto faleceu prestes a completar noventa e seis anos de idade. Antes, a saúde frágil
exigiu que ela se distanciasse da Cidade de Goiás, por meses, ao longo daquele ano. Entre
idas e vindas, na medida do possível, o relacionamento com a pintora foi se estreitando.
Embora, o fatídico acontecimento tenha impedido, após meses angariando sua simpatia, o
acesso ao seu vasto acervo documental acumulado durante os seus mais de oitenta anos de
vida pública. Sem falar, dos documentos que ela herdou da família, especialmente,
relacionados ao pai, um importante personagem na vida política e cultural da Cidade de
Goiás, ainda nos tempos em que era capital do Estado. A princípio, o sentido da perda foi
duplo.
As cautelosas orientações da professora Heloisa Selma Fernandes Capel nos
possibilitaram rever o percurso metodológico. Incialmente, inventariar o tema na bibliografia
foi um dos métodos adotados. Assim, buscou-se saber sobre o que se produziu a respeito de
Goiandira do Couto. Dentre o que se foi levantando, importou-nos considerar a dissertação de
mestrado de Taís Helena Machado Ferreira (2011), apresentada ao Programa de Pós
Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob o título, “Faz
Uma Casa Com Areia: a Cidade de Goiás e as Areias Coloridas na Trajetória de Goiandira
Ayres do Couto”; e os artigos de Rosi Meire Aparecida Fulanete Corrêa (2003),“ Um Olhar
Sobre a Obra Pictórica Vilaboense”, e de Clovis Carvalho Britto (2009), “Pintando Com
Areia a Cidade de Pedras: itinerários do processo criativo de Goiandira do Couto”. Apesar
de que, em relação a esse último, sua importância inclui-se na categoria dos testemunhos orais
concedidos pela protagonista, como é caso da publicação de Renata Morais Luz (2006),
“Entre a História e as Artes: Goiandira do Couto na cultura vilaboense”, bem como outros
depoimentos que circularam na imprensa local, regional e nacional e no meio acadêmico nas
mais diversas áreas do conhecimento, igualmente, inventariados.
Convém frisar que a pesquisa de Ferreira (2011) se destaca pelo volume e
importância objetiva dos documentos em relação às hipóteses desta tese. Por essa razão,
estabelecemos contato com a estudiosa que cedeu a maioria dos documentos escritos - jornais,
folders de exposição, correspondências - adquiridos por meio do contato com a personagem,
em 2009. A análise da historiografia em diálogo com os documentos e com as obras
pictóricas, à época, expostas no Espaço Cultural Goiandira do Couto, uma espécie de museu-
galeria fundado pela protagonista em 2003, fomentou outras problemáticas relacionadas às
20

bases culturais da artista implicadas aos seus modos de ver e conceber a cidade-ideal,
visivelmente, inspirada nas representações da paisagem urbana vilaboense.
Esse mosaico de testemunhos e análises respondeu a algumas dúvidas, suscitou
outras e orientou caminhos para que lacunas pudessem ser preenchidas. Começava-se, então,
a triagem dos rastros deixados por Goiandira do Couto nos arquivos públicos da Cidade de
Goiás e Goiânia - Diocese de Goiás, Arquivo do Museu Casa de Cora Coralina, Fundação
Frei Simão Dorvi, Arquivo do Escritório Técnico de Goiá/IPHAN, Museu de Arte de Goiânia
- MAG, Instituto de Pesquisa e Estudos Histórico do Brasil Central. Embora caiba salientar
que durante esse extenuante percurso indiciário, portas se abriram e outras se fecharam. O
acesso aos documentos relativos aos rastros de Goiandira do Couto na fundação e direção da
Escola de Belas Artes “Veiga Valle” foi negado pelos agentes públicos, atuais guardiões deste
acervo. Ainda assim, reunimos por meio dos jornais condições para quebrar, ainda que
parcialmente, o silêncio em relação à importância cultural desta instituição de ensino das artes
na Cidade de Goiás, fundada ao final da década de 1960.
A saber, o que se levantou nos centros de memória, acervos eletrônicos e
particulares restaurou a impressão de viabilidade desta pesquisa. Sabia-se que a trajetória
desta artista na/com a cidade que ela adotou como sua, poderia ser revista, à luz da ciência
histórica, muito além das telas douradas. Assim, a Cidade de Goiás, por vezes, objeto de
estudo entre os pesquisadores das mais diferentes áreas do conhecimento, reocupa
centralidade neste estudo que visa a narrar o processo de ressignificação cultural vivido pela
antiga capital do Estado de Goiás, entre as décadas de 1960 a 2001, por meio do viés
biográfico que se ampara em uma gama de documentos escritos, mas que se diferencia,
sobretudo, no uso dos documentos visuais. Haja vista que enfrentar o silêncio ao qual relegam
esses discursos, especialmente, quando utilizados como mera ilustração, é compromisso
metodológico desta narrativa.
Admitir o poder de persuasão e transmissão de sentidos e valores que as
narrativas visuais possuem é reconhecê-las como objetos portadores e emissores de
pensamento susceptíveis à apreensão social. Assim, considerando a paisagem urbana um
objeto histórico mutável no tempo, espera-se do historiador que estuda as representações
desse estilo visual mediação com as circunstâncias ou influências que motivaram a sua
produção. Segundo Freitas (2004), a imagem tem a peculiaridade de ser “cada vez mais
sedutora em seu processo de estetização do cotidiano e acaba por estimular os debates acerca
do estatuto e da função da arte” (p.05). Metodologicamente, é preciso manter-se sensível aos
21

interditos metafóricos localizados entre a utopia e a realidade, pois a percepção do artista é,


por natureza, impregnada de subjetivos significados.
Desse modo, pensar a cidade em Goiandira do Couto acrescenta à produção
historiográfica goiana originalidade epistemológica; uma vez que cruzar a trajetória público-
individual da artista às transformações culturais vividas na Cidade de Goiás, desde o
paradigma da mudança, interpretando documentos visuais que, hipoteticamente, recriaram a
cultura que se vive, se pratica e se preserva. Os estudos sobre a formação urbana da Cidade de
Goiás oferecem-nos condições para sentir, transitar, observar e, sobretudo, diagnosticar as
problemáticas oriundas da idealização da paisagem pictórica vilaboense, à medida que
avançamos nos itinerários de reconstrução desse passado em diálogo com o presente.
Considerando que a imagem da cidade é disseminadora de valores simbólicos,
os quais são vivenciados cotidianamente pelas pessoas, apropriamo-nos do princípio de que
cidade e sociedade urbana se constituem de forma complementar: uma não existe sem a outra.
Assim, entendemos o espaço e as representações do urbano como um verdadeiro observatório
das relações sociais, pois é composta por diversa tipologia de objetos concretos e de
elementos intangíveis que, ao serem articulados, expressam e manifestam a montagem da
realidade que se acredita ter. A textualidade de uma cidade, geralmente, abrange aspectos
representativos dos ideais políticos, das práticas sociais, das recordações históricas, dos
imaginários coletivos que são, comumente, (re)afirmados na cultura. Desta forma, cidade,
sociedade e cultura conformam uma tríade que reproduz crenças, mentalidades e ideologias
possíveis de serem capturadas nos significantes ou significados dados à paisagem urbana.
Assim, houve interesse de apreender o trânsito dessas relações, na Cidade de
Goiás, por meio das imagens artísticas. Optamos pela produção pictórica de Goiandira do
Couto porque elas, a nosso ver, sublinham o valor da associação da memória àquilo que se
desejou recriar no presente: um projeto de futuro baseado na idealização de um passado
glorioso. Debruçar sobre esses documentos exige rigor e método. Por isso, adotou-se nesta
narrativa, histórica cadência teórico-metodológica entre imagens, palavras e análises
estruturadas em quatro momentos distintos de análises, embora complementares entre si.
O primeiro capítulo tem como título PILARES DE PEDRA: Goiandira do
Couto, Família e Formação. Tal título foi eleito porque, simbolicamente, pilares representam
bases de sustentação e as pedras, fundamentos que rementem aos começos, às origens de uma
pessoa que, neste caso, são imutáveis. Os domínios teóricos e empíricos explicitados e
trabalhados na construção do capítulo podem se enquadrar nesta metáfora. Assim,
historicizou-se para demonstrar a reconstituição das Origens da Tradição com o intuito de
22

situar, retrospectivamente, o objeto dentro de um processo de longo prazo. As reflexões


avançam para as Interfaces do Público com o Privado, ressaltando o papel político do pai da
personagem principal, bem como o contexto histórico envolvendo os Couto no paradigma da
mudança. A realização de um apanhado histórico/político forneceu sentido para importantes
afirmações que são colocadas no discorrer do texto e que dizem respeito a pontos centrais da
tese (como a correlação entre trajetória artística e práticas políticas, por exemplo).
O ciclo das pedras é finalizado com a temática: Goiandira do Couto no
Desenho da Trama, onde, sobretudo, ressalta-se o papel individual da protagonista como
herdeira e guardiã de tradições. A autonomia individual da artista, que realizou sua primeira
exposição em 1933, foi investigada a partir da educação familiar, formação intelectual e
participação nas atividades culturais de uma cidade em transição. Essas instâncias da vida
público-privada serviram de instrumentos para a compreensão da sua genuinidade artística
relacionada aos posicionamentos políticos em defesa das tradições vilaboenses. Bourdieu
(1996) e Schwartcz (2013) foram os teóricos que nos permitiu ajustar processos culturais às
estruturas sociais vividas no início da carreira artística, meio que introduziu a personagem na
vida pública.
O segundo capítulo foi intitulado PILARES DA TRADIÇÃO: Goiandira do
Couto e as Instituições, tendo em vista as discussões primordiais sobre as diretrizes
institucionais dos anos de 1960 com a fundação, principalmente, da OVAT - Organização
Vilaboense de Artes e Tradições -, entidade civil pública que subsidia o período de
(re)invenção das tradições; as quais se amparam no passado para projetar o futuro. O cerne da
problematização se refere ao envolvimento processual de Goiandira do Couto com as
prováveis instituições artístico-culturais responsáveis pela criação da concepção da Cidade de
Goiás como berço das tradições goianas. No subitem, Vieses e Revezes da Mudança: arte e
cultura projetando tradições, um reexame historiográfico que, conjuntamente às análises dos
documentos e imagens, propicia interpretações sobre as ressignificações identitárias e as
ações que prenunciaram o processo de restituição simbólica para a Cidade de Goiás desde as
perdas efetivas na década de 1930. Consideramos a questão, a partir dos olhares lançados para
os atores desse processo. Assim, com as discussões tramadas sob o viés: Institucionalizando
Guardiões: a fundação da OVAT vislumbra mostrar o ambiente em que Goiandira se estrutura
social e culturalmente como legitimadora da entidade e, com isso, fortalecia o discurso das
origens evocado por meio das crenças e práticas populares.
Na sequência, trazemos à baila pontos cruciais dos argumentos que norteiam os
Pilares da Tradição: Política Cultural ou Coalizão de Poderes? Nesse tópico, demonstramos
23

o histórico e o enlace das instituições conciliadas à perspectiva de que o futuro da Cidade de


Goiás era o seu passado. Essa dimensão empírica foi analisada a partir dos conceitos de
cultura e poder, razão pela qual se colocou em pauta as primeiras inciativas relacionadas ao
Turismo Histórico e a Invenção de Tradições sob a lente teórica dos historiadores ingleses,
Eric Hobsbawm e Terence Ranger (1997), documentos legislativos, jornais da época e
testemunhos orais dos atores envolvidos nesse processo, embora, já publicados no meio
científico. Atualmente, os remanescentes se negam a conceder outros depoimentos formais
sobre o assunto. O segundo capítulo termina debatendo as Concepções Estéticas da
Imaterialidade Cultural, dada a importância das criações artísticas de Goiandira do Couto na
elaboração dos conteúdos da cultura imaterial, a exemplo da Procissão do Fogaréu, fato que a
singulariza no campo das representações artísticas e culturais na condição de guardiã das
tradições vilaboenses. Documentos visuais, escritos e as entrevistas concedidas pelos
guardiões da tradição vilaboense (OVAT), no ano de 2008, foram publicadas integral e
originalmente na obra, Luz e Trevas: Estudos Sobre a Procissão do Fogaréu na Cidade de
Goiás (2008) subsidiaram análises aprofundadas sobre a construção do poder cultural na
Cidade de Goiás baseado nas crenças e mitos da tradição setecentista.
O terceiro capítulo tem o título PILARES DE AREIA: a Constituição Imagética
Sobre a Cidade-Ideal, momento em que as discussões sobre imagem, paisagem e memória na
cidade são privilegiadas no aporte visual de suas produções, principalmente, as telas douradas.
O primeiro subitem, Imagens como Pensamento: releituras teóricas explora teoria e médodo
nos estudos da imagem. Coli (2008) e Didi-Huberman (2012) ofereram suporte teórico para as
análises comparadas entre as obras de Goiandira do Couto e outras produções artísticas
visuais e literárias. De acordo com os teóricos, as imagens não são apenas formas, mas
,também, pensamentos que vão adquirindo autonomia em relação ao seu criador. Por isso,
exigem ser tratadas como testemunhas da história, método criteriosamente observado ao
longo desta narrativa.
Os pormenores relativos ao encontro de Goiandira do Couto com as areias
multicoloridas foram abordados sob o título: Os Dedos Substituem os Pincéis: a técnica com
areia, marco que delimitou sua segunda fase artística e seu ingresso na carreira internacional.
A projeção no meio cultural e artístico lançou holofotes sobre a cidade-ideal e, ao mesmo
tempo, sobre a Cidade de Goiás que vivia o auge do processo de ressignificação e restituição
simbólica dos poderes perdidos na década de 1930. O tópico O Olhar Guardião:(re)criando o
centro da paisagem cultural vilaboense é demonstrado, visualmente, como o eixo que
interliga Largo do Rosário ao Largo do Chafariz e que foi reconstruído por Goiandira do
24

Couto a partir da perspectiva dos lugares de memória relativos às oficialidade urbanas


preservadas na localidade. Depreende-se que, ao recriar, no presente, um modelo de cidade-
ideal, ela notabilizou os símbolos do poder português, possivelmente, como estratégia para
legitimar o discurso das tradições “inventadas” e, sobretudo, a ideologia de cidade berço da
cultura goiana, base do projeto de futuro encabeçado pelo poder público e pela elite local; e
vislumbrava, na construção da cidade-patrimônio, os meios para se devolver à antiga capital o
que consideravam legítimo: o poder.
Acerca disso, utilizamo-nos da tela Largo do Rosário - Vista da Cidade (1976),
de Goiandira do Couto, a qual representa a sua visão do centro urbano vilaboense entre o
norte e sul da cidade e norteia o itinerário hermenêutico desta tese. Nesta direção, os subitens
finais, Reconstruindo Origens e Visões Comparadas pelo Eixo de Poder, estabelecem, por
meio do método comparado, ligaduras entre a estética preservacionista de Goiandira do Couto
e as visões artístico-sociais de João do Couto, Octo Marques e Cora Coralina sobre a Cidade
de Goiás. A hipótese de que a produção pictórica de Goiandira do Couto induz o observador a
acreditar na existência de uma cidade verossimilhante àquela fabricada por portugueses e
bandeirantes no século XVIII. O tombamento do conjunto arquitetônico do centro histórico da
Cidade de Goiás, a partir dos anos de 1950 - dados do IPHAN - favorece “nexos” para
compreender o jogo retórico das oficialidades que delimitam os espaços de poder na cidade-
patrimônio, reconhecida como tal, pela UNESCO, em 2001.
O quarto e último capítulo desta tese problematiza A MONUMENTALIZAÇÃO
DA CASA E DAS MEMÓRIAS DE GOIANDIRA DO COUTO NA CIDADE-PATRIMÔNIO.
As ligações entre os pilares que sustentaram a artista e os passos institucionais na direção de
se implementar, formalmente, o projeto de futuro, ou seja, a patrimonialização mundial da
Cidade de Goiás, foram discutidos como meios para se ressarcir as perdas simbólicas. A
documentação arquivada no Escritório Técnico de Goiás/IPHAN demonstrou-nos que
ressignificar a identidade do município tendo em vista as oficialidades materiais e imateriais
preservadas, culturalmente, entre práticas e representações, fundamentaram o processo
formal de tombamento do centro histórico vilaboense e as políticas públicas que
vislumbravam alavancar a economia do município através do turismo.
Metodologicamente, o capítulo final foi dividido em três subitens. O primeiro,
Normatizando o Devir das Tradições, se ateve aos trâmites legais relativos à delimitação, ao
reconhecimento do espaço cultural e tombamento do conjunto paisagístico de valor histórico.
Os trabalhos da comissão presidida pela superintendente do IPHAN, Belmira Finegiev, entre
os anos de 1977-1983, legaram à Cidade de Goiás o título de patrimônio histórico nacional e
25

o documento conhecido como Carta a Cidade de Goiás, eixo norteador das diretrizes de
preservação e responsabilidade individual e pública em relação aos imóveis localizados no
perímetro protegido por lei. Durante a pesquisa, os documentos revelaram que a comissão
recomendou que a Casa de Goiandira fosse tombada pelas políticas de preservação do
patrimônio cultural vilaboense. A partir desta constatação, passamos a aprofundar análises
sobre o lugar de importância e as representações da protagonista na década de 1990, auge das
ações do IPHAN local e da comunidade vilaboense, diretamente engajadas no Movimento
Pró-Cidade de Goiás, com vistas a efetivar a consagração da Cidade de Goiás como
“Patrimônio da Humanidade”. Abordagens históricas, historiográficas e conceituais sobre
patrimônio cultural, políticas culturais e a concepção de consumo da cidade enquanto produto
da cultura ampararam-se nas análises de Silva (2003), As Cidades Brasileiras e o Patrimônio
Cultural da Humanidade, obra na qual a legislação e os requisitos internacionais para
reconhecimento mundial foram contemplados; Tamaso (2007), Em nome do patrimônio:
representações e apropriações da cultura na cidade de Goiás, referencial para os estudos
sobre poder e patrimônio no caso vilaboense; e, por fim, Gonçalves (2007), Limites do
Patrimônio que discute as questões relativas a turismo e mercado cultural.
O segundo, A Cidade e as Expectativas de Futuro no Dossiê de Goiás,
revisitou o presente documento que formalizou a candidatura da Cidade de Goiás junto à
UNESCO buscando compreender como o jogo retórico das oficialidades instituiu parâmetros
para que fosse reconhecido o “valor universal excepcional” da cidade-patrimônio por meio da
demarcação dos lugares de memória, igualmente, evocados visualmente por Goiandira do
Couto. As análises sobre o Dossiê de Goiás se concentraram no anexo IV, - Inventário
Nacional de Referências Culturais, Sessão Goiás: história e Cultura e Entrevistas
Selecionadas. Identificamos, nestes tópicos, complementariedade discursiva entre o
imaginário social vilaboense, a imagem da cidade que se vislumbrava patrimonializar
mundialmente e a importância cultural de Goiandira do Couto e suas representações; como é
o caso da casa onde ela viveu e construiu sua trajetória-memória na Cidade de Goiás. Nesta
direção, o terceiro subitem focaliza-se na Construção do Museu-Vida: Espaço Cultural
Goiandira do Couto e evidencia os meandros da apropriação da Casa de Goiandira como
lugar de memória integrado ao circuito cultural da cidade-patrimônio.
Espera-se que esta tese de doutorado contribua com as historiografias goiana e
regional; seja reavaliando afirmações, complementando conhecimentos, preenchendo ou
abrindo lacunas e, sobretudo, fomentando debates. Para além desse aspecto, este estudo
imiscui-se no campo da história das cidades e do pensamento filosófico sobre imagens do
26

urbano, aprofundando o olhar sobre seus significados e sentidos. Compreende-se, portanto,


que o belo é fascinante e, quando observado sob a lente cultural, torna-se ainda mais
surpreendente. Avistam-se horizontes muito além das telas douradas.
27

CAPÍTULO I

PILARES DE PEDRA: Goiandira do Couto, Família e Formação

Afinal, éramos classe dominante, devíamos dar


exemplo de bom comportamento e educação,
sobretudo era preciso demonstrar união do grupo
familiar.
(Bernardo Élis)

Arte e história se intercambiam nos domínios teóricos e empíricos da trajetória


protagonizada pela pintora goiana, Goiandira Ayres do Couto. Vivendo no espaço histórico
cultural da Cidade de Goiás de 1915 a 2011, escreveu a narrativa artístico-histórica de seu
estado natal com inusitados pinceis. Se ela registrou seus feitos e os de uma coletividade com
as areias coloridas de Serra Dourada, seus quadros são, por isso mesmo, mostras de um
pensamento cognitivo marcado prioritariamente pela veia artística da mulher que pintava
utilizando os próprios elementos da terra. O historiador, por sua vez, na tentativa de capturá-
los, tem por finalidade reconstruir o mais objetivamente possível nesta tese de doutorado,
algumas das experiências vividas no século XX por essa renomada artista plástica que
universalizou a cidade de suas origens ao universalizar sua arte.
Introdutoriamente, apresentamos os elos centrais que historicizam este estudo.
Priorizamos os aspectos que lhes são correlatos, porque a exposição do contexto possibilita
melhor junção de possíveis hiatos. Acreditamos que o encontro artístico da pintora com a
cidade de Goiás que simboliza sua “poética do espaço e seu espaço de devaneio”, tensiona um
complexo ciclo histórico-cultural. Esta hipótese se sustenta em virtude de seu envolvimento
com as práticas culturais reinventadas na Cidade de Goiás, particularmente entre os anos de
1960 a 20013, que tiveram significativo impacto no cotidiano sociocultural deste espaço

3
A seleção desse marco temporal justifica-se incialmente pelo fato de que, na década de 1960, Goiandira do
Couto reinterpreta sua arte utilizando-se da técnica de areia multicolorida e cola a base d`água sobre fibra de
madeira. Nesta, considerada sua segunda fase artística, a inspiração preservacionista da paisagem urbana
vilaboense predominou, com mais ênfase, em suas telas. O recorte final culmina com uma longa trajetória de
ressignificação cultural da Cidade de Goiás, na qual a protagonista deste estudo desempenhou ações
contundentes nesse longo período. Sendo assim, hipoteticamente defendemos a tese de que sua contribuição
artística e cultural tenha implicado na aquisição do título de Patrimônio Histórico Mundial conferido pela United
Nation Educational, Scientific and Cultural Organization (Organização para a Educação, a Ciência e
a Cultura das Nações Unidas) doravante UNESCO.
28

urbano. A biografia de Goiandira do Couto torna mais compreensível a relação da artista com
a cidade e as cercanias que lhe inspiraram suas telas douradas.
Nota-se arraigados sentimentos de cumplicidade artísticos-social entre a ela e a
Cidade de Goiás, estão interligados às origens e, consequentemente, à forma como se deu sua
atuação nos desdobramentos ocorridos no tempo e no espaço delimitado por sua existência.
Durante esses exames preliminares, fontes históricas jornais, documentos oficiais, relatos
biográficos, entrevistas, fotografias e, principalmente, as obras pictóricas da artista
asseguraram e comprovaram que: “(...) Sua participação na cultura local é fato reconhecido e
comprovado (...). Falar de Goiandira do Couto sem localizá-la no tempo e no espaço da
Cidade de Goiás não nos permite uma dimensão de sua atuação" (...), pois uma simples
menção a sua pessoa significa que: “Falar dela, é falar de Goiás” (FERREIRA, 2011, p.49). A
tessitura desse raciocínio leva-nos a crer que a autora tenha se apropriado das concepções
teóricas da nova história cultural para perceber a partir da coletividade, os vínculos culturais
individualizados da biografada na/com a sociedade vilaboense4.
Assim, compreende-se que a trajetória de Goiandira do Couto se estabeleceu
por estreitos laços entre o público e o privado, o eu e o outro, o passado e o presente e,
finalmente, ela mesma e a Cidade de Goiás. A matéria prima subjetiva que sustentou essas
sensibilidades coletivas foi produzida pela própria artista de acordo com suas escolhas
individuais, tendo em vista os papéis que ela ocupou e desempenhou na sociedade vilaboense5
- em seus vários papeis de moradora, professora, artista plástica e guardiã das tradições locais
- esses vínculos lhe garantiram uma vida de intensa atuação cultural, inseparável das
representações da cidade e do Estado consagrados mundialmente6 por sua obra pictórica.

4
Do ponto de vista teórico e metodológico, segundo Loriga (1998, p.225-227), no afã de romper com os
horizontes tradicionais da história a biografia ficou relegada por parte dos historiadores críticos do historicismo.
A ruptura dos paradigmas historiográficos dos anos de 1980 revisitou este gênero narrativo e reconsiderou o
papel da biografia na problematização dos novos domínios da história atenta aos movimentos sociais e culturais,
ao cotidiano, às subjetividades, às particularidades e à oralidade. Entre estas revisões, o indivíduo retomou lugar
de destaque na narrativa histórica diante da superação das formas tradicionalistas e ilustrativas de abordagem da
vida. No papel de protagonista histórico, o indivíduo é submetido aos rigores da reflexão correspondentes à
pesquisa histórica pautada no campo das representações.
5
Na tese “Em nome do patrimônio: representações e apropriações da cultura da cidade de Goiás” (2007), a
pesquisadora Isabela Tamaso abre um parêntese para informar sobre o significado de vilaboense que,
tradicionalmente, é uma categoria usada para denominar aquelas pessoas que compartilham o mesmo sistema
simbólico vigente na cidade de Goiás; principalmente, nascidos em Goiás, ou filhos de famílias tradicionais
locais. O termo vilaboenses tradicionais reúne grupos de diferentes graus de escolaridade, renda, faixa etária,
tipo de habitação e gênero. A distinção é baseada na origem, na antiguidade de residência das famílias na cidade,
nos dons e bens herdados, nos códigos culturais e no passado comum compartilhado (TAMASO, 2007, p.15).
6
“Por sua originalidade e pela técnica “sui generis”, suas telas têm sido levadas para quase todos os estados
brasileiros como também para o exterior, a diversos países: Estados Unidos, França, Espanha, Portugal,
Dinamarca, Alemanha, África do Sul, Itália, Suíça, Áustria, Austrália, Escócia, Canadá, Iugoslávia, Chile,
México, Japão, Iraque e Paraguai, além de exposições na ONU”. Folder do Centenário de Nascimento de
29

Desse modo, quando o historiador se atreve a falar/escrever sobre a vida de


uma pessoa, pressupõe-se que os fios das vivências e das experiências (descontínuas e
desconexas) se entrelaçarão a um relato historiográfico razoavelmente inteligível, ainda que
não seja relatado linearmente. Muito embora, metodologicamente tramadas, as prováveis
conexões cronológicas tenham o objetivo de emitir sentidos de coerência concatenados às
subjetividades interpretativas previamente selecionadas para a reconstrução da narrativa
existencial do investigado. Desse modo, o empreendimento biográfico torna-se um ideário
subjetivo imprescindível do historiador para abarcar a vida do biografado em todas suas
conexões, conforme esclarece Bourdieu (1996, p.185).
Assim sendo, ponderar sobre as formas de ser, agir e viver da protagonista,
enxergando-as como produtos culturais de um tempo e um grupo social específico, torna-se
prerrogativa essencial para submetê-las à observação científica e, finalmente, tratá-las como
objeto da significação histórica, sublinha Bourdieu (1996, p.184). Ainda segundo o autor,
entendemos que a fabricação dos acontecimentos ressalta as singularidades sob uma
perspectiva artificial, criativa e ilusória do que se credita ter sido a história/passado produzida
individualmente e protagonizada coletivamente, portanto, documento histórico ligado e
interligado aos pressupostos das representações submetidas ao método e à consciência do
historiador. Diante dos descaminhos de uma trajetória o metier de historiar permite que se
(re)crie a aparência de uma realidade consonante ao conjunto de relações culturais ritmadas
por continuidades e descontinuidades, que neste caso em específico, prioriza o espaço de
singular experiência, ou seja, o século XX, na Cidade de Goiás.
Atentos a estes aspectos, tomamos a casa de Goiandira7, no sentido de berço
cultural, como ponto de partida desta narrativa. A vitalidade desta abordagem se dá,
sobretudo, porque sua história, desde a infância, estabeleceu-se em forma de jogo com uma
gama variada de pessoas que transitaram entre sua vida pública e privada. O interessante foi
constatar durante a pesquisa de campo que mesmo no espaço privado, sua vida particular
esteve em constante comunicação com o espaço público vilaboense. A casa de seus pais foi
durante anos expoente de encontros culturais e, possivelmente, um lugar de discussões
políticas. Alguns documentos escritos e visuais, selecionados para embasar este estudo
histórico biográfico comprovam as estreitas relações de seu pai, Luís Ramos de Oliveira
Couto (1884-1948), com as autoridades governamentais da época, especialmente, anteriores a

Goiandira Ayres do Couto (1915-2015). Cidade de Goiás, setembro de 2015. Organização Vilaboense de Artes e
Tradições, doravante OVAT- (1965-2015), 50 anos.
7
Termo que ao longo do tempo foi apropriado pelo senso comum para referir-se à identificação da residência da
artista como ponto turístico e a localização de logradouros adjacentes a ela.
30

transferência da capital do Estado da Cidade de Goiás para Goiânia, fato ocorrido nos anos de
1930.
Os indícios apresentados na crônica escrita por José Mendonça Teles (2005),
Na Casa de Goiandira, publicada na obra Semeadores do Futuro, ampliaram nosso interesse
em esmiuçar os trânsitos culturais recorrentes ocorridos neste espaço “privado”.
Provavelmente, influenciada por este passado, no auge dos anos 2000, a casa herdada de seus
pais foi consagrada oficialmente à convergência pública aos interessados em conhecer suas
memórias individuais e coletivas, indiscutivelmente, fincadas no paradoxo das idealizações da
cidade que lhe propiciaria colorir com o pó de pedra da Serra Dourada os subjetivos
sentimentos de pertença8 que ela nutriu com relação à Cidade de Goiás, lugar onde morou,
por reconhecida opção, por exatos noventa anos.

Foi lá na casa de Goiandira, com direito a dobrados a Banda de Música da


Polícia Militar, que o Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, que teve
como um dos fundadores o seu pai, Luís do Couto, poeta e magistrado, lhe
outorgou o diploma de Sócio Honorário, pelos relevantes serviços prestados
à cultura brasileira. (...) O casarão de seus pais, é ponto obrigatório da
avalanche de turistas que chegam diariamente à Cidade de Goiás (...). A casa
de Goiandira é um verdadeiro palácio de cultura. (...) E como cultura é o que
fica quando tudo já passou e Goiandira um dia passará, eu disse a ela que
estava na hora de transformar seu patrimônio em Fundação Cultural
Goiandira do Couto. Ela ficou feliz (TELES, 2005, p.92).

Este fragmento da crônica de José Mendonça Teles explicita a fecundidade da


trajetória da artista goiana na Cidade de Goiás. O objetivo deste capítulo é mostrar que em sua
biografia se argamassa indiscutivelmente a herança familiar e a formação artística. Elas
interpenetram às variadas relações culturais que Goiandira estabeleceu com a cidade desde
sua chegada, juntamente com sua família, no ano de 1921.
O dia 12 de setembro de 1915, no município de Catalão, data e local de seu
nascimento é o ponto de partida dos acontecimentos. Todavia, a relação de Goiandira do
Couto com a Cidade de Goiás, iniciou-se antes mesmo do seu nascimento. Razão porque
faremos uma digressão à segunda metade do século XIX, na então capital da Província de
Goiás, a Cidade de Goiás, onde nasceu seu pai, Luís Ramos de Oliveira Couto ou apenas Luiz
do Couto, homem que alcançou prestígio nacional e deixou significativos rastros de sua vida

8
“É a parcela do autoconceito dum indivíduo que deriva do seu conhecimento sobre sua pertença a um grupo (ou
grupos) social, juntamente com o significado emocional e de valor associado àquela pertença” (TAJFEL, 1981,
p.291).
31

pública tanto na cidade natal quanto na vida da filha primogênita. Documentos escritos9
confirmam que ao longo de sua vida e carreira artística, Goiandira do Couto dedicou-se antes
de tudo a enaltecer e preservar a memória do pai, falecido em 1948.
Notamos, ainda, que a subjetiva missão preservacionista de suas referências
familiares e de suas bases culturais tornou-se, inclusive, uma característica sobressalente no
estilo pictórico de suas telas douradas. Ali onde se funde história e arte, que seu talento
revelou ao mundo. Nas afirmações de Corrêa (2003, p.250), a estética coutiana zelou pela
aparência bucólica e romântica da antiga capital do estado de Goiás e consolidou-se nesta
vertente entre os artistas plásticos vilaboenses da nova geração.

Atualmente, detectam-se representantes de três vertentes na arte pictórica


vilaboense; a preservacionista, com uma pintura mais arquitetônica; a
vertente que capta as sombras e o povo simples da cidade; e uma outra, que é
a da preocupação social, do resgate daqueles que estão na sombra, na
margem, na escuridão. Ao estabelecer linhagens para esta análise,
denominou-se vertente preservacionista, Linhagem Goiandira do Couto, que
tem como representantes Regina Damasceno, Josélio do Maranhão, Di
Magalhães e Marly Mendanha (CORRÊA, 2003, p.253).

A influência de Goiandira do Couto entre os referidos artistas concentrou-se


particularmente no estilo de representar a arquitetura local com elementos tirados da própria
terra, já que o uso da técnica tradicional - óleo sobre tela - predominou e ainda predomina
entre os específicos seguidores, expôs Corrêa (2003).
O pioneirismo local, no que diz respeito ao uso da técnica que utilizava a areia
multicolorida da Serra Dourada10, a cola à base d’água sobre fibra de madeira lhe trouxeram
entre tantas referências, o título de “Pintora das Areias”. Estas e outras identificações
semelhantes vieram a partir dos anos de 1968, período em que a originalidade desta técnica
encerrou sua primeira fase artística iniciada em 1933 quando ela usava óleo sobre tela.
Segundo o depoimento de Marly Mendanha, ex-aluna e discípula da artista ao jornal “O
Popular”: “Ela não ensinou sua técnica para ninguém especificamente. Mas dizia que jogar
areia colorida na cola era fácil, mas a tarefa de jogar sombra e luz no trabalho exigia talento e
9
Sobre este aspecto, apresentaremos no decorrer deste capítulo os depoimentos da artista concedidos à impressa
(escrita e falada), aos pesquisadores da cultura vilaboense e nos discursos publicados em boletins institucionais
os quais comprovam a influência de Luís do Couto na vida pública e artística de Goiandira do Couto.
10
“Esta serra é um anteparo para a cidade de Goiás, que acaba envolvida por seus contrafortes. Com suas
escarpas, formações de arenito como a extinta Pedra Goiana e campos altos, representa especial valor ecológico,
devido à fauna e flora (lá estão árvores como o papiro e a arnica, por exemplo) e às veredas de onde nascem os
rios. Ficou famosa pelas areias dos mais diversos tons, imortalizadas em obras de arte de Goiandira do Couto e
outros. À tarde, reflete a luz do sol, provocando o efeito dourado que também lembra o ouro na origem da
região”. Disponível em: <http://www.eco.tur.br/ecoguias/goias/ecopontos/paisagens/serradourada.htm>. Acesso
em: 14 out. 2014.
32

dom11” (grifo nosso). Aparentemente, os limites simbólicos constituídos a partir destas


relações de poder pairam na metáfora do jogo de luz e sombras que pretendemos realçar.
Parafraseando Unes (2008, p.10), os quadros que ela pintou utilizando areia da
Serra Dourada em vez de tinta a óleo na criação de suas telas, trouxe-lhe reconhecimento
público no cenário estadual e projeção cultural no meio artístico nacional e internacional, em
virtude das telas que representavam singulares caminhos da primeira cidade colonial goiana.
No âmbito local, é reconhecidamente identificada como guardiã das tradições vilaboense. Seu
protagonismo e seu processo de invenção de práticas culturais impactaram, transversalmente,
a história cultural e urbana da Cidade de Goiás a partir dos anos 60 do século XX. Não nos
restam dúvidas de que o resultado destas ações está impregnado na identidade cultural desta
urbe que, nos dias atuais, vive da preservação das suas “tradições”.
Nas identificações atribuídas à Goiandira do Couto percebe-se que ela sempre
ocupou posições de destaque no mundo social vilaboense que são entendidas como
indicativos de um lugar de fala sedimentado.
Sobre esta questão Bourdieu esclarece que a “forma inteiramente singular de
nominação que é o nome próprio, institui-se uma identidade social constante e durável que
garante a identidade do indivíduo biológico em todas as suas histórias de vida possíveis”
(1996, p.186). As colocações e os deslocamentos adquiridos pela artista no espaço social
foram estabelecidos sobre as bases do nome Couto herdado da família paterna de origem
portuguesa. Pelo que parece, as estruturas dos pilares de pedra estão fincadas nas
representações que sedimentam esse alicerce, fundamentalmente, importante à propositura de
uma verossímil história de vida da artista em estudo.
Convictos de que a reconstrução destes rastros familiares ampliará as
possibilidades de releitura da biografia oficial da pintora - a maioria delas com características
descritivas - para aproximá-la de uma narrativa histórico-biográfica pautado nos contextos,
nas ressonâncias e nas mediações culturais, ainda que sintéticas, se comparadas ao acúmulo
das experiências vividas por Goiandira do Couto na Cidade de Goiás.

11
Jornal“O Popular Online”, Magazine. Atuação Cultural Intensa. Goiânia, 28, de agosto de 2011. Disponível
em: <http://www.gjccorp.com.br/cmlink/o-popular/editorias/magazine/sob-o-sol-da-barra-1.31847>. Acesso em:
14 ago. 2015.
33

2.1 Origens da Tradição

A reaproximação da biografia com a história permitiu ao historiador ajustar os


processos culturais às estruturas sociais sob a perspectiva dos papéis de ator e coadjuvante
que, por sua vez, é simultaneamente protagonizado pelo indivíduo que se torna objeto de
investigação histórica. Basta observarmos, cuidadosamente, o contexto de suas posições no
mundo social no qual está inserido.
Retraçar a história de vida de Goiandira do Couto por meio de sua relação com
a cidade abala o ritmo linear dos acontecimentos oficiais - puramente ilusórios - porque se
embasa na compreensão de suas ações frente às condições concretas das experiências que lhe
são subjacentes. Para Schwarcz (2013, p.56), a estratégia de situar o indivíduo analisado à sua
rede de envolvimentos sociais e geracionais além de ampliar a noção da biografia para o
conceito de trajetória de vida 12, e indica tramas sensíveis arraigadas ao passado do artista. Na
trajetória destas relações localizamos a Fazenda Paraíso, propriedade situada no alto do Vale
do Urú, nas proximidades da Cidade de Goiás, mais precisamente entre a antiga capital e o
atual município de Mossâmedes13, justamente ali, teve início os vínculos vilaboenses de
Goiandira do Couto. Segundo Brito (1974, p.84), estas terras foram adquiridas em leilão
público no entresséculo do XVIII para o século XIX, pelo tenente-coronel João José do Couto
Guimarães, homem rico e influente casado com Vicência Pereira de Abreu14. Desse

12
“Nesse sentido, para Bourdieu, o conceito de trajetória implica objetivar as relações entre os agentes, sem
deixar de lado suas forças em campo. Dessa maneira, (...) a trajetória procuraria descrever posições
simultaneamente ocupadas em sucessivos campos de força: tanto individuais como “em relação” a demais
grupos sociais em concorrência” (SCHWARCZ, 2013, p.57).
13
“O povoamento de Mossâmedes originou-se da fundação de um aldeamento para residência dos inúmeros
índios das tribos “Naudós”, “Acroás” e “Caiapós”, em 1755. Sua denominação primitiva foi Aldeia de São José
de Mossâmedes ou simplesmente São José de Mossâmedes em homenagem ao Capitão-General D. José de
Almeida Sorveral de Carvalho, Governador da Capitania de Goiás, ao santo padroeiro e como recordação do
solar ou baronato de Mossâmedes em Portugal. No período de 1770 a 1774 o aldeamento passou por uma
completa reconstrução, devido sua quase extinção por inadaptação dos índios, edificando-se, com o auxílio do
braço indígena a igreja de São José de Mossâmedes, obra que vem resistindo à ação destruidora do tempo e
contribuiu para o desenvolvimento da catequese dos Caiapós sob a liderança de Damiana da Cunha, neta do
cacique daquela tribo, que se imortalizou na história do município sob o mito de grande catequista, heroína da fé
e mulher missionária. Em 1° de setembro de 1780, a aldeia passou à condição de freguesia, com o nome de São
José de Mossâmedes. Em 1781, (...), foram trazidos da Ilha do Bananal, 800 Javaés e Carajás, reativando-se o
povoamento. Em 31 de julho de 1845, pela Lei Provincial n° 6, criou-se o distrito de São José de Mossâmedes,
que em 19 de fevereiro de 1890, desmembrava-se de Itaberaí, anexando-se à Cidade de Goiás, sede da província.
Pelo Decreto-Lei n° 1233, de 31 de outubro de 1938, passou a denominar-se apenas Mossâmedes”. Disponível
em: <http://www.cidades.ibge.gov.br/painel/historico.php?lang=&codmun=521390&search=%7Cmossamedes>.
Acesso em: 03 out. 2015.
14
De acordo com Pinheiro, Vicência Pereira de Abreu ou Vicência Pereira das Virgens (1823-1923) era
descendente direta de Bartolomeu Bueno Silva, o filho, a quem a história oficial da Cidade de Goiás atribui-lhe
os títulos de: “desbravador”, “descobridor” e “fundador”, em 1727. (2002, p.48).
34

matrimônio nasceu Antônia Maria do Couto Guimarães, uma das herdeiras e administradora,
juntamente com o marido, Jacyntho Luiz Brandão, das posses do pai naquela região.

O velho Brandão morava na fazenda chamada, até hoje, Paraíso, nas fraldas
na Serra Dourada, perto de Mossâmedes, e, nas segundas-feiras, seguia com
os escravos (muitos aliás) para a extração de ouro e aos sábados voltavam
com os tachos de ouro em varas, carregados pelos escravos. Na Fazenda
Paraíso, aquele ouro em pó e em pepita era colocado em lençol, sobre um
couro, e exposto ao sol para secar (Texto de Manoel de Faria, (Nhôzinho),
publicado no jornal “Cinco de Março”, do dia 26 de maio de 1969) (BRITO,
1974, p.85).

A descrição do cotidiano da fazenda muito se confunde com os tempos áureos


da mineração em Goiás, durante o período colonial. A ocupação urbana do território goiano -
marco zero no antigo arraial da Barra15 - se deu num processo evolutivo à medida que a
fixação da sociedade mineradora emergia, irregularmente, no território goiano que passou a
ser habitado por diferentes culturas. Na transição do século XVIII para XIX16 o apogeu
minerador entrava em esgotamento, fato que problematiza as práticas opulentas da mineração
vivida na Fazenda Paraíso neste período. Esta reflexão toma por base os estudos de Pinheiro
(2002, p.89) que nos informa sobre a data de nascimento do primeiro filho do casal Antônia
Maria e Jacyntho Brandão, Joaquim Luiz do Couto Brandão, ocorrido no ano de 1832 e,
portanto, tempos em que o fluxo econômico da Província de Goiás reconduzia-se às
atividades econômicas precedentes à mineração, ou seja, às práticas agropecuárias, explica
Chaul (1997, p.93).

15
Segundo Palacín, Garcia e Amado 1995 (p.38-39), os primeiros núcleos urbanos fundados em Goiás
sucederam-se na seguinte ordem: em primeiro lugar o arraial da Barra, atual distrito de Buenolândia -
jurisdicionado atualmente à Cidade de Goiás -, seguido do arraial de Sant`Anna, em 1727, que elevou-se à
categoria de vila (Vila Boa), em 1736, e, finalmente cidade, em 1818, passando a se chamar Goyaz. A descrição
dos arraiais goianos encontra-se em Notícia Geral da Capitania de 1783, documento escrito em função da
determinação régia de 1882, com o objetivo de destacar “os fatos mais notáveis que acontecem” durante o
período colonial em Goiás. Na descrição sobre o arraial da Barra, publicada pelos referidos autores na obra
“História de Goiás em Documento – I Colônia” lê-se: “O primeiro arraial, chamado Barra, por neste lugar
encontrar o rio dos Bugres no Vermelho, dista desta Vila (Boa) cinco léguas, tem capela de Nossa Senhora do
Rosário, filial da Vila. Foi onde o descobridor desta capitania estabeleceu suas lavras de onde tirou muito ouro,
e ainda hoje tem boas lavras. É arraial pequeno” (PALACÍN; GARCIA; AMADO, 1995, p.40).
16
A historiografia clássica goiana afirma que as últimas décadas do século XVIII foram marcadas pelo
esgotamento da atividade mineradora. Os estudos de Moraes (2012) exploraram o universo cultural da antiga
Vila Boa, sede da capitania de Goiás, mostrando-nos que o provável arrefecimento aurífero não abalou a
densidade demográfica da vila (capital) em virtude do desenvolvimento de práticas voltadas para o comércio, o
artesanato, a indústria e as finanças que, juntamente com as representações da religiosidade popular recriaram
sentidos de fixação ao território, para além das questões econômicas iniciais, motivadoras das primeiras
bandeiras paulistas, a partir da década de 1720. Nesta mesma direção, Chaul (1997, p.94), afirma que a
agropecuária – atividade que coexistiu com o boom aurífero – reassumiu o lugar de destaque desencadeando uma
lenta, mas progressiva recuperação das rendas e do comércio, afastando com isso, a hipótese de decadência,
atraso e isolamento aventada pela versão histórica tradicional.
35

Não estamos questionando a aparente prosperidade da família Couto (Brandão)


e, muito menos se elas se originaram nos tempos coloniais. A intenção é reconsiderar que as
possíveis práticas mineradoras - conforme relatadas no fragmento do jornal “Cinco de Março”
apud Brito (1974, p.85) -, muito provavelmente, estiveram subordinadas ao exercício
contínuo da agricultura, da pecuária e da manufatura17, razão do nome Paraíso, conforme
relata Brito (1974, p.84). Ainda nas palavras da autora:

As águas do Fartura e do Ribeirão formavam sedutores poços de banho e


mantinham o solo úmido e as pastagens sempre verdes e frescas. Toda
criação era sadia e bem nutrida graças a essa fertilidade. (...) Gente branca da
Casa Grande. Gente de cor nas senzalas; braços indispensáveis na lavoura,
nos teares, nas cozinhas e no embalo do berço (BRITO, 1974, p.82-83).

Pela descrição, observa-se que o campo das representações18 fecunda os


começos da numerosa descendência de Antônia Maria (Mãe Iaiá) e Jacyntho Brandão, na
Cidade de Goiás. Referimo-nos às permanências simbólicas em torno da trajetória deste grupo
familiar, as quais legitimaram discursos tradicionais, repassados oralmente de geração em
geração, consolidando assim um campo de saberes representativos sobre a cultura vilaboense
dos tempos passados. Schwarcz (2013, p.59) compara o historiador a um tecelão quando se
propõe a tramar histórias de vida. Todavia, completa que a qualidade do produto final, a
narrativa histórica, depende da seleção e da firmeza dos fios.
Atentos a esta orientação optamos, dentre os oito filhos do referido casal, por
narrar os cruzamentos de vida dos primogênitos, Joaquim Luiz do Couto Brandão e Vicência
do Couto Brandão, que se mudaram da Fazenda Paraíso para a Cidade de Goiás em meados
do século XIX. A partir deles o nome Couto passou a compor o rol das famílias elitistas locais
e a ocupar posições de destaque na vida cultural, especialmente, no campo da política e das

17
A criação de um entreposto comercial nas proximidades da sede da Província de Goiás, Barreira do Bacalhau,
em 1856, fortaleceu as práticas agrícolas da região, inclusive, “mantendo intercâmbio com as Províncias do Pará,
Maranhão, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Mato Grosso” e desencadeou a criação do Mercado Municipal,
em 1857 (MORAES, 1995, p.146).
18
Pensando nos passos metodológicos para elaboração de uma teoria histórico-sociológica, Roger Chartier
(1990) aproximou-se das noções de habitus (conhecimento adquirido) e campo (espaço social de disputas),
formuladas por Pierre Bourdieu (2007), para reformular a forma de compreensão e análise dos objetos históricos
à luz da História Cultural. Desta forma, o conceito de representação seria capaz de apreender do campo histórico
as particularidades individuais estruturadas a partir das identidades coletivas a fim de extrair consciências, modos
de ver e atuações sociais dentro de um determinado campo social e, a partir delas ampliar a noção da
significação histórica por meio da triangulação conceitual: representação, prática e apropriação. Em síntese, “as
representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado
na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupos que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário
relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. (...) As lutas de representação têm
tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos que um grupo impõe, ou tenta
impor, a sua concepção do social (...)” (CHARTIER, 1990, p.17).
36

artes consolidando tradições. Sobre tradição, o afamado casamento de Joaquim Luiz do Couto
Brandão com Honória Pereira de Abreu, sua prima, tornou-se parte das memórias familiares e
locais por duas razões fundamentais. A primeira, por ter acontecido na antiga Casa da Real
Fazenda, popular Casa Velha da Ponte19, uma das primeiras construções da cidade e
localizada às margens do Rio Vermelho, importante meio de navegação e responsável pela
fixação das primeiras culturas e das posteriores, após a fundação oficial do Arraial de
Sant`Anna, no auge da mineração goiana.
Conforme Britto e Seda (2009), a propriedade foi adquirida, no século XIX20,
pelo tenente-coronel João José do Couto Guimarães avô do casal Joaquim e Honória. Não há
exatidão quanto à data da construção desta casa que tornou-se ícone da arquitetura colonial
vilaboense. Vale dizer, que o prospecto português de 1751, documento iconográfico de
autoria desconhecida, demarcou sua localização precisa durante o planejamento da paisagem
urbana vilaboense, após a elevação do Arraial de Sant`Anna à categoria de vila21, em 1736 e,
à sede da capitania de Goiás, em 1749, respectivamente. Ao observamos os aspectos formais
desta imagem histórica setecentista (figura 01), originalmente representada em tons de
vermelho e pastel, é possível visualizar nas demarcações dispostas, no próprio documento, a
localização da casa utilizada naquela época para fins administrativos, o que nos incita a pensar
sobre a Cidade de Goiás entre o passado e o presente a partir dos entrecruzamentos

19
A referida casa é margeada pelo Rio Vermelho à direita de seus alicerces. O nome popular provém da ponte
que liga a margem esquerda à direita do rio, local onde se localizava a Igreja da Lapa, destruída pela enchente de
1839, confirma Moraes (2012).
20
Museu das Bandeiras doravante MUBAN: Documentos Avulsos. Acervo da Real Fazenda da Província de
Goyaz, 1 de junho de 1825. “Goyaz, 1 de junho de 1825. Diz João José do Couto Guimarães, que ele arrematou
em Praça Pública desta junta da Fazenda uma moradia de casas sitas na Rua Direita desta cidade pela quantia de
um conto e duzentos e vinte oito mil e quatrocentos réis, para ser pago em compensação do que lhe está a dever a
Fazenda Pública de gratificações que venceu como Deputado do Governo Provisório desta Província, e porque
tem também que pagar a competência que importa em cento e vinte dois mil e oitocentos e quarenta réis, requer
a V.M.F. que digne mandar que igualmente se lhe abone por compensação nas referidas gratificações. João José
do Couto Guimaraes”. Cf. BRITTO; SEDA, (2009, p.21).
21
Arquivo Histórico Ultramarino - AHU: Doc. nº 25, Caixa 01, 11 de fevereiro de 1736. Provisão Régia de D.
João V, dispondo sobre a criação de uma Villa para sede da Capitania de Goyaz. Dom João por graça de Deos
Rey de Portugal e dos Algarves daquem e dalem mar em Africa Senhor de Guine. Faço Saber a Vós Conde de
Sarzedas Governador e Cappitam General da Cappitania de Sam Paulo, que Eu Sou Servido por Resolução de 7
do prezente mez e anno em Consulta do Meu Concelho Ultramarino passey as Minas de Goyaz e
nellasdetreminey o Citio mais apropriado para huma Villa[ilegível] mais Saudavel e com provimento de boa
agoa e tenha perto de algum Arrayal que se ache ja estabelecido para que os moradores delle possão com mais
comodidade mudar a Sua habitação para a Villa, e logo determine y nellas o lugar da Praça no meyo e a qual
se levante o Pelourinho, este assignale a Área para o Edificio da Igreja capaz de receber competente numero de
Freguezes ainda que a Povoação se aumente, e que façaes deleniar [delinear] por Linhas erectas a Área para
as Cazas com seus quintaes, e se designe o Lugar para se edificarem a Caza da Camara, e das Audiencias, e
Cadea, e mais Officinas publicas que todas devem ficar na área detreminada para as Cazas dos Moradores as
quaes pello exterior Sejão todas no mesmo perfil, ainda que no interior as fasa cada hum dos moradores a Sua
eleição, de sorte que em todo o tempos e concerve a mesma formatura da terra, e a mesma Largura das ruas, e
junto da Villa fique bastante terreno para logradouro publico (..)
37

constituídos com o estabelecimento da família Couto na paisagem urbana do atual centro


histórico desta urbe.

Figura 01 - Prospecto de Vila Boa. Vista no sentido inverso, isto e, do norte para o sul, 1751.
(original Casa da Ínsua Portugal).

Fonte: Cópia disponível em: MUBAN22.


TRANSCRIÇÃO (figura 01):

“Prospecto de Vila Boa – Vista no sentido inverso, isto é, do norte para o sul, em
1751.
1. Matriz. 2. Consistorio da Irmandade do Senhor dos Passos. 3. Consistorio da
Irmandade do Santíssimo Sacramento. 4. Capella de Nossa Senhora da Boa Morte. 5.
Cadêa. 6. Caza da Camara. 7. Passo do Senhor dos Passos. 8. Cazas da Real
Intendencia. 9. Cazas da rezidencia do General. 10. Capella de Nossa Senhora da
Lapa.”

Nesta casa, importante monumento da arquitetura vilaboense, formou-se a


primeira linhagem dos Couto na Cidade de Goiás, nascidos da união entre Joaquim e Honória.
Destacamos entre os filhos do casal Jacynta Luisa, mãe da consagrada poetisa goiana Cora
Coralina, portanto, prima, em segundo grau, de Goiandira do Couto. Afirmam Britto e Seda

22
Com o objetivo de situar o leitor das rupturas e permanências na imagem de autor desconhecido, embora na
obra de Amaury Menezes (1998), Da Caverna ao Museu: Dicionário das Artes Plásticas em Goiás, o autor
atribuiu autoria ao geógrafo genovês, Tossi Colombina (1701-), atualizamos a legenda original a fim de
demonstrar as alterações e as funções dadas a esses monumentos na Cidade de Goiás, atualmente. 1. Matriz. 2. O
prédio não existe. A irmandade tem sua sede na Igreja de São Francisco, fora desse eixo. 3. Não existe. 4. Museu
de Arte Sacra da Boa Morte. 5. e 6. Museu das Bandeiras. 7. Passo do Senhor dos Passos. 8. Ministério Público
Estadual. 9. Museu Casa de Cora Coralina. 10. Cruz do Anhanguera.
38

(2009, p.18), o referido casamento tornou-se um importante ponto de referência das tradições
orais propaladas na Cidade de Goiás, que foram, mais tarde, eternizadas na poesia mnemônica
de Cora Coralina em Estória do Aparelho Azul Pombinho23, poema publicado na primeira
obra da poetisa, em 1965. Notamos nesta composição a importância cultural da Casa Velha
da Ponte nas tradições locais24, a partir dela é possível reconstruir antigos significados deste
espaço para a memória urbana vilaboense atual, assunto que aprofundaremos nos capítulos
seguintes.
Mantendo-nos na direção da descendência dos Couto na Cidade de Goiás
focalizamos, a partir deste momento, em Vicência do Couto Brandão, irmã de Joaquim Luiz
23
“Minha bisavó – que Deus a tenha em bom lugar – inspirada no passado sempre tinha o que contar. Velhas
tradições. Casos de assombração./ Costumes antigos. Usanças de outros tempos. Cenas da escravidão.
Cronologia superada onde havia banguês. Mucamas e cadeirinhas. Rodas e teares. Ouro em profusão, posto a
secar em couro de boi. Crioulinho vigiando de vara na mão pra galinha não ciscar. Romanceiro. Estórias
avoengas... Por sinal que uma delas embalou minha infância./Era a estória de um aparelho de jantar que tinha
sido encomendado de Goiás através de uma rede de correspondentes como era norma, naquele tempo./
Encomenda levada numa carta em nobre estilo amistoso-comercial. Bem notada./ Fechada com obreia preta.
Carta que foi entregue de mão própria ao correspondente na Corte que tinha morada e loja de ferragem na Rua
do Sabão. O considerado lusitano – metódico e pontual –, o passou para Lisboa. Lisboa passou para Luanda.
Luanda no usual passou para Macau. Macau se entendeu com mercadores chineses./ E um fabricante-loiceiro,
artesão de Cantão, laborou o prodígio (no dizer de minha bisavó). Um aparelho de jantar – 92 peças. Enorme.
Pesado, lendário. Pintado, estoriado, versejado, de loiça azul-pombinho. Encomenda de um senhor cônego de
Goiás para o casamento de seu sobrinho e afilhado com uma filha de minha bisavó./ O cônego-tio e padrinho
pelo visto, relatado, fazia gosto naquele matrimônio. E o aparelho era para as bodas contratadas. Um carro de boi
– 15 juntas, 30 bois – bem fornido e rejuntado para viagem longa, partiu de Goiás, no século passado, do meado,
pouco mais. Levava seis escravos escolhidos e um feitor de confiança. Mantimentos para a viagem. E mais,
oitavas de ouro, disfarçadas no fundo de um berrante, para os imprevistos da delonga./ E o antigo carro por ano e
meio quase rodou, sulcou, cantou e levantou poeira rechinando por caminhos e atalhos, vilas e cidades, campos,
sarobais. Atravessou rios em balsas. Vadeou lameiros, tremedais. Varou Goiás – fim de mundo. Cortou o sertão
de Minas. O planalto de São Paulo./ Foi receber o aparelho e mais sedas e xailes-da-índia em Caçapava – ponta
dos trilhos da Dão Pedro Segundo – ali por volta de 1860 e tantos. Durou essa viagem, ir e voltar, dezesseis
meses e vinte e dois dias. – As bodas em suspenso./ Enquanto se esperava, escravas de dentro fiavam na roda e
urdiam no tear. Mucamas compenetradas, mestreadas por rica-dona, sentadas nas esteiras, nos estrados de
costura, desfiavam, bordavam, crivavam, repolegavam o bragal de minha avó. Sinhazinha de catorze anos –
fermosura. Prendada. Faceira. Muito certa na Doutrina. Entendida do governo de uma casa e analfabeta. Diziam
os antigos educadores: “– Mulher saber ler e escrever não é virtude”./ Afinal, muito esperado, chegou a Goiás,
sem novidades ou peça quebrada, o aparelho encomendado através de uma rede de correspondentes. Embarcado
num veleiro, no porto de Macau./ As bodas marcadas se fizeram com aparato. Fartas comezainas. Vinho do
Espinho – Portugal – da parte do correspondente. Aparelhos de loiça da China. Faqueiros e salvas de prata.
Compoteiras e copos de cristal. Na sobremesa minha bisavó exultava... Figurava uma pinha de iludição./ Toda
ela de cartuchos de papel verde calandrado, cheios de confeitos de ouro em filigrana. Mimo aos convidados
graduados: Governador da Província, Cônegos, Monsenhores, Padres-Mestres, Capitão-Mor. Brigadeiros.
Comendadores. Juízes e Provedores. Muita pompa e toda parentela. Por amor e grandeza desse fasto– casamento
da sinhazinha Honória com o sinhô-moço Joaquim Luís (...).” (CORA CORALINA, 1987, p.66-74).
24
“Os cronistas são unânimes em considerar que a primeira grande lavra de ouro foi encontrada em 1726, nos
cascalhos do Rio Vermelho, sob a Ponte do Meio, denominada, posteriormente, Ponte do Telles, da Lapa e,
atualmente, Cora Coralina. A história da cidade iniciou-se onde existe a secular casa: “descobriu muito ouro no
lugar da ponte, chamada a do Felix, e consta que, entre outras, só uma bateada de terra extraiu meia libra”. (...)
Supõem-se que, por volta de 1732, Thebas Ruiz teria construído a Casa da Ponte para arrecadação do Quinto
Real, imposto devido à Coroa Portuguesa. A narrativa de Cora Coralina revela ter sido este Thebas, para fugir de
uma devassa, quem enterrou grande quantidade de ouro no porão da casa e logo após, para não ir preso para
Portugal, suicidou-se sem revelar o esconderijo. Foi aí que começaram as especulações e “causos” que até hoje
embalam o imaginário vilaboense em torno de um possível tesouro escondido na casa velha”. (BRITTO e
SEDA, 2009, p.17-19).
39

do Couto Brandão, avó paterna de Goiandira Ayres do Couto, fundamento das origens e da
ligação da artista com a mencionada cidade e, provavelmente, com as tradições vilaboenses.
Consoante Albernaz (1992, p.51), Vicência do Couto Brandão foi uma mulher
de hábitos simples. Semialfabetizada e educada para exercer o papel de mãe, esposa e dona de
casa destacou-se na Cidade de Goiás por seus dotes culinários e pela atuação no catolicismo
popular tanto pela disciplinada missa diária e pelo terço rezado nas casas dos devotos quanto
pela farta produção de verônicas para a tradicional Festa do Divino Espírito Santo. Em 1868,
casou-se com capitão Francisco da Cunha Bastos com quem teve dois filhos: “João Edson do
Couto, médico, diplomado em Paris; e Luiz de Oliveira Couto, advogado e poeta” (BRITO,
1974, p.85). Após o casamento, passou a chamar-se Vicência do Couto Brandão Bastos,
popularmente conhecida como: Mãe Ita. Entre seus filhos, nosso foco recairá sobre Luiz do
Couto em virtude de sua visível representatividade na vida da filha, a artista, Goiandira do
Couto, conforme expusemos anteriormente. Por isso, ao perscrutar os caminhos da linhagem
paternal da artista e a trajetória de seu pai, em específico, objetiva-se esclarecer o que
suspeitamos, ou seja, que sobre eles sedimentaram-se as prováveis formas tradicionais da
cidade idealizada por Goiandira do Couto, reinventada a partir do pó de pedra que se encontra
na circunscrição da Serra Dourada. Quanto a estes entrecruzamentos de trajetórias e gerações,
Schwarcz (2013, p.56) reitera: “(...) sem descurar das especificidades do indivíduo analisado,
é preciso sempre situar o agente em seu grupo e no contexto social em que se encontra
inserido. (...) trajetória de relações - do indivíduo em relação ao grupo em seus diversos
campos sociais”.
Dentre as poucas produções científicas que trataram sobre a vida e a trajetória
artística de Goiandira do Couto na Cidade de Goiás destacamos a pesquisa de Ferreira (2011),
“Faz uma Casa com Areia”: a Cidade de Goiás e as areias coloridas na trajetória de
Goiandira Ayres do Couto que, de igual modo, lançou mão da sensibilidade ao perceber que
os rastros legados pela pintora à Cidade de Goiás começaram antes mesmo do seu
nascimento. Todavia, esmiuçar os recuos quanto às origens e às comprováveis ligações da
família com o passado remoto desta cidade dá-nos a impressão de que o sentido relacional da
vida de Luiz do Couto e Goiandira do Couto sobressai, com maior nitidez, na mescla das
experiências de ambos no que diz respeito à preservação da memória do passado oficial e,
consequentemente, das tradições culturais vilaboenses inspiradas naqueles tempos.
Ainda aconselhados por Schwarcz (2013, p.59), observamos que a ideia de
cruzar gerações amplia as particularidades da protagonista, pois respalda sua atuação social
40

em um conjunto de referências que explicam outras práticas estabelecidas com/entre seus


contemporâneos.
Assim sendo, buscamos no ano de 1884, data de nascimento de Luiz Ramos de
Oliveira Couto, o elo de Goiandira do Couto com o passado colonial vilaboense. Segundo
Ferreira (2011), a herança portuguesa é proveniente da linhagem familiar dos Couto,
originários da cidade medieval de Guimarães, localizada no distrito de Braga, em Portugal,
lugar onde nasceu seu tataravô, o já mencionado, João José do Couto Guimarães. O livro de
memórias: Luiz do Couto, o poeta das letras jurídicas, de Rogério Arédio Ferreira (2007),
ratifica as informações trazidas pela autora e, ainda, explica as sensibilidades em torno do
nome desse primogênito do casal Francisco e Vicência, cuja data do nascimento coincidiu
com o domingo de Ramos; dia venerado entre os cristãos católicos porque é de bom augúrio,
reza “a tradição em Jerusalém, desde a vinda de Cristo, retirar ramos das oliveiras, daí os pais
de Luiz do Couto acharam abençoado e de bom tom acrescentar também o Ramos de
Oliveira” (FERREIRA, 2007, p.40).
A infância de Luiz do Couto, vivida na Cidade de Goiás, mostrou-lhe a
vocação “inata” para o caminho das letras. Cursou a educação primária e secundária na cidade
natal, tendo concluído a segunda fase de estudos no Lyceu de Goyaz, instituição considerada,
no passado, como referência educacional de padrões refinados, porque reinterpretava o
modelo francês formal de ensinar aos “escolhidos” da sociedade vilaboense que puderam
frequentá-la naquela época (BARROS, 2012, p.26-58). Formou-se em Direito, no Rio de
Janeiro, em 1906 e, no ano seguinte, foi convidado a assumir a função de juiz da Comarca de
Rio das Palmeiras, jurisdicionada ao antigo arraial de São José do Duro, atual município de
Dianópolis, no Estado do Tocantins. Este lugar foi duplamente importante na vida do
intelectual vilaboense, pois marcou o início da carreira na magistratura e possibilitou-lhe
conhecer Maria Ayres Cavalcante, com quem se casou em 1911 (FERREIRA, 2011, p.11).
Ainda parafraseando Ferreira (2011), as concepções culturais cristãs, que
regeram as prioridades do matrimônio no início do século passado, influenciaram o casal Luiz
do Couto e Maria do Couto. Após um ano de casados, tiveram o primeiro filho, cujo nome
homenageou a terra natal do seu pai: nasceu Goyás do Couto. As mudanças não se resumiram
a esses fatos, pois a família composta por doze filhos cresceu, junto a horizontes promissores
da carreira de juiz de Luiz do Couto, que se mudou com a família para o sul do Estado de
Goiás, para presidir a Comarca do Rio Paranaíba, com sede em Catalão, em 1913. Quase dois
anos depois:
41

Goiandira do Ayres do Couto nasceu em Catalão, em 12 de setembro de


1915. Aos três anos de idade, a família mudou-se para Itumbiara e mais tarde
para a antiga capital do Estado. Lá morou primeiro no Largo do Rosário,
mudando-se, aos seis anos de idade, para a casa onde reside até hoje
(FRANCO, 2008, p.17).

Seguindo o relato, destacamos que a mudança para outra região do Estado de


Goiás propiciou a Luiz do Couto o cumprimento das determinações oficiais e a realização de
práticas culturais que reelaboraram, historicamente, seus feitos no decorrer de sua trajetória
individual, para um movimento contraditório no âmbito de ações coletivas. Antes de entramos
neste tema específico, acreditamos que contextualizar as influências e as representações que o
impactaram culturalmente, há de nos fornecer elementos palpáveis para compreendermos a
posição conservadora de Goiandira do Couto quanto à preservação da memória familiar,
principalmente, do pai. Suas reinterpretações artístico-visuais, notadamente, se concentram
nos espaços históricos da Cidade de Goiás que, inclusive, um deles25 teve a interferência
direta do seu genitor na (re) composição da memória tradicional na paisagem vilaboense
ligada aos tempos bandeirantes.
Dentre as referências culturais da pintora, encontramos suas palavras proferidas
no ano de 1984, e que foram publicadas no anuário da Academia Feminina de Letras e Artes
de Goiás, doravante - AFLAG - Biênio 1983/1984, no ano de 1985. Ela fez interessante
alusão à mãe, nascida no norte do Estado de Goiás, o que sedimenta concepções construídas
em torno do espaço familiar que, por sua vez, favoreceu-lhe acessibilidade à arte e à cultura
letrada:

E quando era obrigado a ausentar-se de seu Estado, como teve que fazer, em
busca do título de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, na Faculdade
Livre de Direito do Rio de Janeiro, sua alma sensível respondia com versos
aos nostálgicos apelos do coração saudoso. Foi em Goiás, que Luiz do Couto
encontrou o grande amor de sua vida. Uma pintora, que se tivesse tido
chance de expandir o seu talento, talvez tivesse feito registro nas agendas das
artes plásticas goiana. Seu nome, Maria Ayres Cavalcante, uma beleza
inquieta, e personalidade forte, traços principais das mulheres do Norte do
Estado (COUTO, 1985, p.154-155).

Não restam dúvidas de que, a função do conhecimento histórico é apreender os


fios para depois entrelaçá-los ao contexto que fundamenta a narrativa. Diante disso,
percebemos que o deslocamento dessas pedras, indubitavelmente, revelar-nos-á que, as

25
Referimo-nos ao ícone popularmente conhecido como “Cruz do Anhanguera”. O aprofundamento sobre esse
tema desdobrar-se-á, ainda, neste subitem.
42

origens elitistas são rastros intrincados à identidade da pintora e, por sua vez, começam a dar
sentido aos seus modos de ver, particularmente, representados na segunda fase pictórica de
sua carreira artística, conforme foi visto.
Acreditamos que a capacidade criativa de Goiandira do Couto esteve
intimamente vinculada às posições ocupadas por ela, na condição de receptora e produtora de
discursos culturais, sejam eles orais ou visuais. Sobre esse pilar, podemos nos ater à hipótese
de que seu precoce envolvimento com a vida pública, acrescido da afinidade com o pai e,
consequentemente, dos interesses e demandas culturais, com os quais ele se envolveu na
Cidade de Goiás, na primeira metade do século XX, tenha colocado Goiandira do Couto na
posição de guardiã das memórias e dos valores clássicos transferidos pela família e legados, a
seu modo, em forma de arte:

Filha de intelectuais, pai, Luiz Ramos de Oliveira Couto, foi juiz, poeta,
escritor, jornalista e um dos fundadores da Faculdade de Direito de Goiás, da
Academia Goiana de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás.
Sua mãe, Mariquinha, também tinha o dom das artes plásticas e da poesia,
além das prendas do lar. De tão educada e fina, chamava a atenção da
sociedade. Em casa, dançavam-se todas as quadrilhas da época, sempre em
francês (FRANCO, 2008, p.17).

Os referidos moldes franceses, incorporados à educação e ao convívio coletivo


familiar, foram lembrados por Goiandira do Couto na entrevista concedida em 2006 e
publicada pela revista Temporis (ação), em 2007: “Eu fui criada num ambiente de cultura.
Aqui na minha casa nós falávamos só quase em francês. Meu pai, minha mãe, meus irmãos
todos. Eu já declamei em francês” (COUTO apud LUZ, 2007, p.261-264). Sobre a
identificação e o patamar valorativo atribuído à cultura francesa, percebemos que a matriz do
pensamento educacional positivista articulou-se, desde cedo, com a formação sociocultural
(informal) da artista que, igualmente, foi fruto de um tempo em que o modelo educacional
brasileiro baseou-se por esses princípios, apesar de não ter estudado em nenhuma das duas
instituições cânones do ensino positivista, de inspiração francesa, na Cidade de Goiás: o
Lyceu de Goyaz e o Colégio Sant`Anna26.
Nos estudos de Barros (2012) encontramos subsídios para a compreensão de
tais influências na Cidade de Goiás, pois conforme mencionamos, Luiz do Couto, pai de
Goiandira do Couto, concluiu seus estudos no Lyceu de Goyaz, instituição instalada no
regime imperial, precisamente em 1846, com o objetivo de alavancar os horizontes políticos e

26
Cf. (CAMARGO, 2014).
43

econômicos da então Província de Goyaz. De acordo com a autora, a presença da igreja


garantiu a sobrevivência dessa instituição que passou, nos primeiros anos de existência, por
uma crise que beirava a apatia. Tratando-se de uma instituição “pública” de ensino, a
localização geográfica da antiga capital fez com que os governadores daquela época se
empenhassem, diretamente, para consolidar o ensino secundário na Cidade de Goyaz em
virtude dos interesses que estavam em jogo: “[...] inspirar nos meninos os princípios de
Moral, o amor ao trabalho [...]” (BARROS, 2012, p.42).
Parafraseando Barros (2012), no âmbito dessa discussão ideológica, implantada
na educação brasileira durante a passagem do século XIX para o XX, tanto o governo
imperial quanto o republicano defenderam, veementemente, a inclusão de disciplinas no
currículo escolar, que introduzissem a visão do prático, do útil, do objetivo e do direto,
contrapondo-se ao modelo educacional religioso que vigorou desde a reforma pombalina, no
limiar cultural e pedagógico das “certezas” trincadas. Embora o positivismo tivesse impactado
a educação em Goiás, com mais ênfase nas últimas décadas do século XIX, a falta de
profissionais civis obrigou o governo goiano a admitir para o quadro docente e administrativo
do Lyceu de Goyaz, membros representantes do clero local. A autora elucida que essa relação
era conveniente pelo fato de que o processo pedagógico deveria assemelhar-se à doutrinação
tendo em vista a preparação eficaz dos sucessores do poder político e dos “novos” líderes da
máquina administrativa estatal em pujante transição.

Para o Estado, o Lyceu propunha a formação de uma nova classe, que fosse
apta ao trabalho, mas não mais o trabalho rural e sim o liberal, de gabinete,
no comércio ou na política, ou seja, o intelectual que Gramsci denomina de
tradicional. Ser bacharel era mesmo uma condição diferenciada que
concederia privilégios aos alunos que eram aprovados no exame de admissão
e concluíam o curso secundário, afastando a população em geral de
privilégios. Primeiramente, servindo de desempate nos concursos públicos e
em seguida, desobrigando de concurso para a carreira do magistério, são
duas situações em que o recém-formado do Lyceu teria direitos adquiridos.
Seria, portanto, o Lyceu, nestes primeiros anos do século XX uma alavanca
ao sucesso social, pois transformava jovens em intelectuais, chamados de
doutores, com saberes humanistas, literários e filosóficos, jovens capazes de
trabalhar nos ramos públicos como a Secretaria da Fazenda ou o mais
complexo, como professores do ensino secundário. O desafio do Lyceu era o
de transformar jovens e adolescentes, em bacharéis com a função de
construir uma nova sociedade goiana com representantes no cenário político
nacional, pois o ensino superior seria o ápice alcançado por este grupo, que
só seria conseguido em Goiás se o aluno tivesse posses para ir ao Rio de
Janeiro e isto era facilitado se estudasse no Lyceu (BARROS, 2012, p.69).
44

A consistência de tais informações nos ajuda a pensar sobre a vida de Luiz do


Couto no processo de formação cultural da elite goiana e, sobretudo, vilaboense. Diante do
que foi exposto, inegavelmente, a trajetória desse patriarca cumpriu os requisitos estruturados
à organicidade do poder que regeu os interesses políticos da República Velha em Goiás.
Contudo, gostaríamos de nos ater a esses aspectos correlatos ao cientificismo novecentista,
introduzido na cultura escolar das elites, e que “legitimou” alguns intelectuais daquela época a
produzir “verdades” sobre o mundo.
A esse respeito, mencionamos anteriormente sobre as incongruências de um
“feito” histórico atribuído a Luiz do Couto, o qual fora desencadeado, enquanto viveu na
região de Catalão, entre os anos de 1913 a 1921. Essa questão converge-nos a Sandes (2000),
pois nele encontramos um longo estudo sobre a transferência e construção da memória
nacional como estratégia de manipulação ideológica dos símbolos “heroicos” do passado à
realidade daquele presente. Resumidamente, um transplante da história e da memória que
viesse legitimar o processo político “evolutivo” que culminou na implantação do sistema
republicano, a partir da representação dos seus líderes, ao final do século XIX.
Em Goiás não foi diferente. Enfim, o processo de identificação nacional, de
certo modo, despertou ações sincronizadas regionalmente, quando a exaltação dos mitos de
origem colocou, a então capital do estado, a Cidade de Goiás, no foco das “releituras”
históricas. Os caminhos dessa trama são sinuosos e foram narrados por Pinheiro (2010) sob a
ótica do entrecruzamento das ideias, da cultura e das manobras que os homens daquela época
reelaboraram para dela protagonizar.

A descoberta da cruz do Anhanguera, em alguns anos antes das


comemorações do centenário de elevação da antiga Vila Boa à categoria de
cidade, o que se deu em 1918, é sintomática. (...) Segundo o que se sabe e
que foi vinculado em jornais da época como Lidador, Nova Era e outros, a
Cruz do Anhanguera fora encontrada pelo vilaboense Dr. Luiz Ramos de
Oliveira Couto, juiz de direito de Catalão, em 1914, quando ele procedia à
divisão da fazenda Casados. Segundo os informes, na base da cruz se achava
inscrita “data de 172...” faltando o último algarismo, que estava
completamente apagado. A notícia deste achado se espalhou rapidamente. A
maçonaria deu total cobertura e importância ao rico achado. Tempos depois,
o Dr. Washington Luiz, grande Presidente, enviou um emissário a Goiás,
conduzindo a vultosa garantia de 15 contos para adquirir a famosa Cruz. Mas
a recusa de Luiz do Couto colocou um ponto final à régia proposta
(PINHEIRO, 2010, p.47-49).

Ao que parece, o papel desempenhado por Luiz do Couto fora decisivo para a
permanência do cruzeiro com o povo goiano. Além do mais, a conquista desse “achado”
45

simbólico provocou disputas entre catalanos e vilaboenses devido, ambos, atribuírem a


mesma concepção ao cruzeiro: valor heroico e marco histórico. Ainda segundo Pinheiro
(2010), a validação de autenticidade histórica da “Cruz do Anhanguera” foi dada por peritos,
enviados de São Paulo, pelas autoridades federais. Observa-se que, de certo modo, houve um
endosso à valoração simbólica levantada a partir do discurso do juiz descobridor. Ainda a esse
respeito, o discurso de Goiandira do Couto na AFLAG, em 1984, fez menção às contribuições
de seu pai que, segundo ela, sempre cedia espaço em sua vida pessoal e profissional para a
cultura e as tradições de Goiás.

Cedia lugar ao historiador, preocupado com a nossa identidade, com o


registro correto dos nossos fatos mais significativos, a fim de que nossa
trajetória, como povo livre, não sofresse os acidentes de percurso,
geralmente, provocados pelas distorções, propositadas ou não, de verdade e
informações básicas para a vida de um povo (COUTO, 1985, p.152).

Nota-se que o ponto de vista da pintora vê-se incrustado de apego ao passado,


sobretudo, quando se trata da veneração dos feitos do pai, que foram absorvidos por ela, como
sendo o manancial da “verdade”. À luz da história cultural, conseguimos compreender as
posições da pintora, pois ela era o fruto de um arcabouço cultural de seu tempo lapidado por
interesses muito maiores de se constituir uma sociedade, ou uma fração significativa dela, que
pensasse dessa forma. O papel do historiador consiste colocar em discussão os “acidentes de
percurso” e “as distorções propositadas ou não” que impactaram a sociedade,
principalmente a vilaboense, a qual ainda se equivoca quando a questão se refere às
“informações básicas para a vida de um povo”. Por sinal, percebemos que atribuir a hipótese
de guardiã de tradições à Goiandira do Couto concorre para a confirmação diante da
continuidade dada de se reinventar o passado tradicional da Cidade de Goiás, por meio da
arte, integrada ao projeto de preservação da memória oficial, interligada a entidades e
instituições fundadas, particularmente, nos anos de 1960. Estes aspectos serão detalhados no
próximo capítulo.
A respeito dos “equívocos”, Quadros (2015) apresenta uma discussão
interessante sobre a “Cruz do Anhanguera” e a relevância desta “descoberta” no imaginário
social vilaboense, epidermicamente, vinculado à redescoberta do passado mediante a
ressignificação da identidade nacional, nos primeiros anos da República. Os estranhamentos
começam, segundo o autor, a partir da localização geográfica onde foi encontrada a referida
cruz. Se o achado tratava-se de um marco da chegada do bandeirante em Vila Boa - que
inclusive levava a alcunha no cruzeiro - por que se aventurar na hipótese de que a cruz seria
46

legado de Bartolomeu Bueno Silva, já que fora encontrada em lugar tão distante de sua
origem?
Concordamos com Quadros (2015) quando diz que, a cruz ilustra o não
desapego do passado e problematiza a reinvenção de Bartolomeu Bueno da Silva na
roupagem de herói. Acrescenta ainda que os problemas de ordem estrutural como energia
elétrica, saneamento básico, rodovias de acesso, dentre outras obras ligadas ao poder político
estadual e federal entraram na ordem das desesperanças da população local, antes mesmo do
prenúncio da década de 1920. A “ordem” deveria ser mantida, e a estratégia de reverenciar os
ícones do passado resultaria no pretendido controle social. O enaltecimento das origens e dos
filhos da cidade, a exemplo de Luiz do Couto, que lutavam em prol do resgate da memória
dos tempos faustosos da riqueza colonial, ofuscaria a imagem de crise que a república
brasileira passava naquele período (HERMAN, 1996, p.81-105).
As comemorações alusivas ao centenário da elevação de Vila Boa à categoria
de cidade, em 1918, afirma Pinheiro (2010) contribuíram, significativamente, para a
articulação da descoberta em favor dos interesses políticos nacionais e regionais em jogo. Nas
falácias históricas absorvidas, inclusive, pelo discurso jornalístico, um importante meio de
manipulação da opinião pública naquela época, foi o principal alvo. A esse aspecto, o texto da
edição comemorativa do jornal “Correio Official”, de setembro de 1918, traz a seguinte
narrativa quanto à fundação da Cidade de Goiás:

Os primeiros alicerces de sua fundação datam de 1726 e a tradicção melhor


avisada concede às margens do rio Vermelho, fronteiras à Cruz do
Anhanguéra a glória de terem sido o local em que o famoso Anhanguéra fez
arder a porção de álcool, cujas as chammas aterrorisaram o goyá, filho da
terra, induzindo-o a revelar de onde extrahira o oiro que adornava as índias
dessa nação. Goyaz deve, portanto, sua fundação ao metal amarello. Tal foi
o seu argumento em poucos anos de existência, a importância de suas cotas
para o erário de S. M. que em 1736 era elevado à cathegoria de Villa com
denominação Bôa, em homenagem a Bueno, o grande descobridor
(JORNAL “CORREIO OFICIAL”, 1918, p.01-02)27.

A “autenticidade” da cruz e suas referências geográficas incorporaram-se ao


texto jornalístico e aos interesses de viver à época. O passado imortalizou-se, mas de forma
inconsistente, a partir de “seu” fundador, e do símbolo de “seu” legado às terras Guayazes.
Nesta mesma edição, Americano do Brasil subscreveu favoravelmente sobre os “novos”
entendimentos em relação ao bandeirante, a construção da imagem do mártir e herói deveria

27
MUBAN: Correio Oficial, Capital de Goyaz, 17 de set. 1918. n° 187, p.01-02.
47

ser fato consumado: “Foi a homenagem póstuma à memória imperecível de Bartolomeu


Bueno, cuja a effigie, transformada em saudade, há de viver em coração humano enquanto
existir o último goyano”28.
Obviamente, a utopia positivista inaugurou a tendência do apagamento das
demais culturas que originaram e formaram o povo goiano. Por isso, atribuímo-la como um
instrumento cultural que favoreceu a invisibilidade das culturas africanas e indígenas na
sociedade vilaboense. Seguramente, o “resgate” simbólico e vocativo do “herói” bandeirante
inflacionou a concepção histórica tradicional vilaboense. Intensificada, mais tarde, pela
releitura das tradições oficiais, tônica das práticas voltadas para a fabricação e preservação
das oficialidades se reforçaram ao se incorporarem às obras coutianas inspiradas, em certa
medida, nos feitos do patriarca dos Couto. Goiandira afirma veementemente: “me orgulho de
haver sido discípula de seus ensinamentos (...) que medem os valores humanos pelos
parâmetros da cultura, da moral e do civismo” (COUTO, 1985, p.152-154). Nessa ocasião, a
artista reaviva a “retrilhagem” dos caminhos de seu pai. Entre os “pontos mais significativos”,
ela destaca: “1914 - descobre no município de Catalão, a “Cruz do Anhanguera” e, em “1918
- Implantação da “Cruz do Anhanguera”, na ex capital goiana, cidade de Goiás (COUTO,
1985, p.156)”.
A questão relacionada à repatriação da cruz já havia se tornado ponto pacífico.
Foi apropriada, no tempo, pelo coletivo social como “verdade” material, possivelmente, em
virtude das representações envolvidas no processo de patente do “bem” histórico, como foi o
caso do vilaboense Luiz do Couto. A respeito da importância paterna, em sua cidade natal,
Goiandira do Couto, em entrevista concedida a Ferreira (2011), disse enfaticamente: “Meu
pai recebia muitos intelectuais. Eu estou falando para você sem modéstia nenhuma, tudo é
verdade. Meu pai era uma pessoa importantíssima na cidade, de destaque. Meu pai era
político! (...) jornais, gente de fora, as pessoas vinham aqui em casa” (COUTO apud
FERREIRA, 2011, p.53).
Enquanto Goiandira do Couto estivesse segura ao enfatizar que “tudo” o que
foi relatado era verdade, (aspecto no que concordamos com a artista), ao ratificar a influência
social de seu pai na Cidade de Goiás, naquele período fora dos limites da Serra Dourada, as
questões relacionadas a esse respeito se complexificavam à medida que opiniões contrastantes
surgiram em torno da emblemática cruz e, por consequência, do suposto “descobridor”.

28
MUBAN: Correio Oficial, Capital de Goyaz, 17 de set. 1918. n° 187, p.04.
48

Quem descobriu a falsa cruz do grande cabo de bandeiras foram os


trabalhadores de uma turma da Estrada de Ferro de Goyaz. Levava a notícia
da descoberta a Catalão, seu supremo magistrado foi vê-la e como “perito”,
reconheceu que o madeiro devia mesmo ter sido fincado alli pelo
Anhanguéra, pois trazia gravado a fogo a inscrição: 1746. Justificado o
levantamento da supposta Cruz do Anhanguéra, próximo à margem direita
do Paranahyba, afirmava outro foliculario do mesmo tomo e erudição
histórica que assim procedera o descobridor dos Guayazes no intuito de
assinalar a posse da terra goiana. Ora, por esse tempo, os lindes de S. Paulo e
Goyaz se marcavam pelo Rio Grande e não pelo paranahyba. Este só ficou
como limite de Goyaz depois do desmembramento dos Julgados de Araxá e
Desemboque, que passaram a Minas Geraes em 1816 (PINHEIRO, 2010, p.
50-51).

As controvérsias apontadas foram, segundo o autor, creditadas a Henrique


Silva, no ano de 1927 à revista A Informação Goiana e demonstra que o desejo de
reinterpretar os acontecimentos de 1918 motivou o crítico a se aprofundar nos dados
apresentados quase uma década depois do fato.
Buscamos nos arquivos da Fundação Frei Simão Dorvi, doravante AFFSD,
algum indício de repercussão favorável ou contrário, por parte da população, aos
questionamentos envolvendo as crenças impregnadas no símbolo das origens. No entanto,
nada foi encontrado. Neste caso, tanto Quadros (2015) quanto Pinheiro (2010) nos esclarecem
que o mito em torno da representação principal sedimentou-se durante a faustosa consagração
oficial. Mesmo confrontados pela inexatidão, ambiguidade e crítica externa, estes argumentos
não foram suficientes para impedir que a voz da tradição falasse e se voltasse,
favoravelmente, ao ciclo de invenção das efemérides vilaboenses; aspecto que se evidenciam
como um entrave aos dilemas relacionados às identidades na cultura local.
A forma épica de como o passado da Cidade de Goiás calhou a ser reescrito
nos primeiros anos do século XX incidiu em equívocos propalados por discursos que,
seguramente, foram muito além do que os registros documentais nos dizem: “o ataque dos
índios, os animaes selvagens, as terríveis moléstias, nada impedia seus passos. Mas, estava
escripto que a grande epopéa de Anhanguéra se tornaria notável na história da conquista da
terra para sanar os grandes malles”29. Estas apropriações indexaram o totem ao fundador,
incorporando-as às telúricas composições da paisagem colonial da Cidade de Goiás, sem
qualquer contraponto da sociedade impactada, fato que comprova a eficácia do jogo
psicológico em torno da presença da cruz, desde os primeiros anos da colonização do Brasil
Central.

29
MUBAN: Correio Oficial, Capital de Goyaz, 17 de set. 1918. n° 187, p.03.
49

Figura 02 - Vista da Ponte da Casa de Cora Coralina para a Cruz do Anhanguera e Rua
Moretti Foggia s/d.

Fonte: Disponível em: <http://sherolvinhas.blogspot.com.br/2012/11/bom-dia-pessoal-hoje-vim-mostrar-


para.html>. Acesso em: 24 jun. 2015.

Rememorar o passado colonial incorporado à paisagem urbana vilaboense,


como nos mostra a imagem da figura 02, exalta o mito na mesma medida em que exclui e,
sobretudo, subjuga outros protagonistas dessa trama. A barbárie e a dominação passaram a
ser politicamente corretos quando a lembrança desses atores não reafirmava como verdades o
projeto de reestruturação das elites, no Brasil republicano, conforme aludimos.
Semelhantemente, ao discutir a ambiência das representações contidas na
imagem de Pedro Américo, Independência ou Morte (1888), Sandes (2000) problematiza o
jogo cênico que manteve os homens simples coadjuvantes na referida tela30, pois, segundo

30
Trazer à baila desse estudo a tela de Pedro Américo, Independência ou Morte (1888), reverbera apenas como
menção às circunstâncias engendradas no advento da Primeira República, as quais se apoiaram nesse fato
histórico, objetivando imprimir uma identidade nacional que legitimasse a nova ordem política do Brasil
republicano. Em comparação com esta tendência, o totem ao “fundador” goiano, Bartolomeu Bueno Silva, em
1918, a nosso ver, seguiu os mesmos princípios. Portanto, dispensamos o uso desta imagem, embora apoiamo-
nos na análise formal de Schilichta (2009), a qual complementa a ideia apresentada por Sandes (2000), sobre o
lugar coadjuvante protagonizado por aqueles que representavam a nação. Pela análise da autora situamo-nos na
aludida pintura histórica: “o quadro Independência ou Morte, concebido nos moldes do gênero histórico, adquire
um sentido preciso: inventar uma independência, transformando-se, se não na única, talvez na principal certidão
visual do nascimento do Brasil Nação e, isto leva-nos, sobretudo, a indagar sobre a ideia-imagem da tela de
Pedro Américo. (...) o artista chama a atenção para a figura de D. Pedro que, no alto de uma colina verde, em
traje de gala e montado em um fogoso corcel, empunha uma espada e, sob o olhar dos "dragões" de sua Guarda
50

ele, foram considerados como incapazes de acompanhar as mentalidades do gesto pictórico ali
encenado. O autor salienta, ainda, que essa visão diluiu-se nas práxis dos governos da
República Velha. Em comparação, o cenário montado no espaço urbano vilaboense,
explicitado na figura 02, evidencia uma versão romanceada para o mito de origem. A
construção de um pedestal para receber a “Cruz do Anhanguera”, em composição aos
símbolos da arquitetura colonial, representa uma lápide sobre a percepção das vozes híbridas
que retinem no vazio da memória e das lembranças de uma paisagem colonial muito diferente
do real vivido na Cidade de Goiás, nos dois séculos anteriores ao XX.
A investigação dos testemunhos da imagem aponta as aparições do tempo que
capacitaram a discussão sobre as invenções e intervenções humanas no passado. Temos, por
esse repertório documental, um eixo de entendimento com a história das visualidades urbanas
da Cidade de Goiás que se abriu à apreciação das metamorfoses culturais e alicerçaram os
acréscimos ao culto tradicional, mesmo quando as sobrevivências da imagem nos permitem
visualizar que a sociedade vilaboense, até 1918, interagiu de outra maneira com as ausências
calcificadas do passado.

Figura 03 - Rua Moretti Foggia (Antiga Rua Direta, 1815).

Fonte: Paulo Brito do Prado, 2014. Acervo: Elder Camargo Passos.

Real, proclama a Independência. À esquerda, em um canto, na base do quadro, a figura solitária de um camponês
– o famoso "caipira" – que, em uma atitude de espanto e incompreensão, a tudo assiste. O caipira que representa
todos os brasileiros pertence à massa que se movimenta em torno do herói, mas, não pertence nem ao seu séquito
nem à sua guarda. O artista apresenta o caipira como uma figura tosca, rota, pés descalços, cujo corpo robusto,
com partes descobertas, contrastante com a elegância do Imperador em seu uniforme. O artista não lhe reconhece
nenhuma dignidade. E, como mero espectador, é forçado a virar o rosto para ver o nascimento do Brasil”
(SCHILICHTA, 2009, p.03-07).
51

É possível perceber no final da Rua Moretti Foggia, nas imediações onde


atualmente encontra-se o cruzeiro, conforme revelou-nos a fotografia (figura 03), percebe-se
que uma presença, em forma natural, assumiu o lugar de uma memória remota que ali habitou
por, aproximadamente, um século. Referimo-nos à Igreja da Lapa31, um local que sediou a
Irmandade dos Mercadores, no século XVIII, a qual fora totalmente destruída na enchente de
183932. Diante desse fato, constatamos que de 1839 a 1918, não houve intenção dos
moradores em reconstruir a capela em estilo colonial. A natureza, por sua vez, encarregou-se
de ocupar o espaço. A catástrofe não conseguiu levar, inteiramente, a lembrança
memorialística do que habitou aquele lugar. Uma memória (re)transmitida, oralmente, entre
outras crenças populares, passadas adiante, conforme o jornal “Folha de São Paulo” nos
conta.

Diz a história que no dia 26 de julho de 1.727 o filho de Bartolomeu Bueno


Silva fundou o arraial de Sant`Ana às margens do Rio Vermelho, região rica
em ouro. Passados 250 anos, a hoje cidade de Goiás, ex-capital do estado,
deixada ao abandono pelo patrimônio histórico tem pregado este aviso em
frente a prefeitura à prefeitura: “trocamos o ouro pela cultura”. A cidade se
orgulha do passado de uma história que se confunde com as lendas. A avó
de Goiandira, famosa por seus quadros feitos com areias da região, contava
da grande enchente de 19 de março 1839 que derrubou a Igreja de Nossa
Senhora da Lapa, das pessoas que morreram agarradas a baús repletos de
ouro levados pelas águas do rio Vermelho, de quilos, de arrobas de ouro.
Uma riqueza que não deixou rastros, só lendas (...) (GOMIDE, 2007, p.150).

Vicência do Couto Brandão Bastos (Mãe Ita), mãe de Luiz do Couto, deu
continuidade à tradição de repassar oralmente a história emaranhada a um conjunto de estórias
e “causos” constitutivos do imaginário cultural da Cidade de Goiás. Este legado transferiu-se
para a nova geração da família (os netos) e, no caso da personagem em foco, indícios
demonstram que essa experiência se impregnou ao jogo complexo de luz e sombras acerca do
passado vilaboense aludido em suas representações artísticas.
Nesse terreno acidentado, percebemos ainda, que a retransmissão dessas lendas
assumiu um importante papel na preservação da memória oficial da Cidade de Goiás, variável
que, inclusive, pode ser entendida como parte da envergadura adquirida por Luiz do Couto, ao

31
Pelo que parece, o único registro visual que atesta a existência da extinta Igreja da Lapa é o Prospecto de 1751,
sendo referenciada como o ponto 10 das respectivas coordenadas descritas no documento, o qual foi exposto e
transcrito conforme a figura 01. Sugerimos ao leitor que, para melhor localização, retorne a imagem da figura 01.
32
“A capela de Nossa Senhora da Lapa, solidamente edificada defronte a casa do finado Cel. Confúcio (Hotel
Municipal) sendo sua torre parede de pedra e cal, não pôde conservar-se e aluídos seus alicerces, por estarem
juntos ao cais do rio, caiu toda, cavando o rio o próprio terreno em que ela tinha existido” Jornal “O Goyaz”, “A
Grande Enchente” ([extraído do Jornal “Gazeta de Goyaz”]). Goiás, janeiro de 2002 (p.05). Fonte: AFFSD. Cf:
(MORAES, 2012, p.107).
52

proferir discursos verdadeiros quando o tema se tratava do passado de sua terra natal. É
evidente que a condição econômica, o letramento, a carreira como homem de leis, dentre
outras razões foram significativos nesse contexto e processo de capitanear a patente da “Cruz
do Anhanguera”. Entretanto, não se pode ignorar que as práticas recorrentes no seio familiar
legitimaram a ordem do discurso33 proferido por Luiz do Couto que, à época, encontrou lugar
nas ideologias circunstanciais para oficializar o reducionismo cultural emaranhado no
imaginário concernente à cruz.
De acordo com Rogério Arédio Ferreira (2007, p.103), tais intercorrências
contribuíram para que o prestígio de Luiz do Couto falasse mais alto, inclusive nas instâncias
legais, que não se opuseram aos trâmites da transferência da cruz de Catalão para a Cidade de
Goiás, ratificando a autoridade contida em seu discurso.
Temos, portanto, os sedimentos das primeiras ações voltadas à “invenção das
tradições”34, uma vez que se apropriaram do visível e do invisível das dimensões culturais
vilaboenses. Mesmo a população tendo coexistido com outras presenças no lugar onde está o
cruzeiro, os questionamentos quanto ao significado de suas lembranças não foram
encontrados em nenhum dos documentos que manipulamos. Esse vínculo umbilical obsessivo
com o passado dourado sobrepujou a razão, mas não os testemunhos da imagem (figuras 03 e
04) que se incumbiu de nos reapresentar uma das formas sobreviventes arrancadas,
literalmente, da memória coletiva.

33
Conceito foucaltiano que atribui à produção, veiculação e “aceitação” impostos pela sociedade quanto à
recepção dos discursos nas interfaces com o jogo das diferenças. Para Foucault, as “impossibilidades” subjetivas
impõem exigências para se fazer parte da ordem do discurso. Sendo assim, o uso do conceito reatualiza o leitor
para o conjunto valorativo em voga na República Velha e, nesse caso, Luiz do Couto parece ter cumprido as
“qualificações que devem possuir os indivíduos que falam” em nome do poder. (1996, p.37-39).
34
Conceito apropriado dos teóricos Eric Hobsbawm e Terence Ranger (1997), da obra “A Invenção das
Tradições”. No capítulo subsequente, Pilares da Tradição: Goiandira do Couto e as instituições, esta obra será
ponto fulcral das discussões que visam retraçar o processo de vinculação da artista às instituições locais
destinadas a revalorizar a cultura sob o viés das tradições coloniais.
53

Figura 04 - Casa de Cora Coralina e a Árvore, 191235.

Fonte: Acervo do Museu Casa de Cora Coralina - Cidade de Goiás - GO.

Não nos restam dúvidas de que a verticalidade das (re)invenções históricas se


monumentalizou na paisagem vilaboense para camuflar um turbilhão de incertezas oriundas
dos rumores da crítica ao sistema republicano que passaram a repercutir no Estado, no
crepúsculo dos anos de 1920. As oligarquias que dominavam as estruturas do poder nos
respectivos estados da federação daquela época tiveram autonomia para conter esse tipo de
movimento, diante da autonomia dada pela esfera federal, quando a questão se tratava do
controle interno aos rumores de crise. Obviamente, esse exercício estabeleceu-se numa via de
mão dupla, pois os interesses governamentais federais se consolidaram baseados nas alianças
tratadas, convencionalmente, por Política dos Governadores que, a priori, lançaram mão das
estratégias simbólicas em defesa da imagem do poder efetivo.
O apoio irrestrito dos representantes estaduais ao governo federal criou uma
máquina administrativa que trabalhava em rotação única. Essa cumplicidade estreita, aos
poucos, passou a ser vista pelos primeiros opositores das oligarquias, como uma estrutura,

35
Descrição do documento pelo “Museu Casa de Cora Coralina”: Foto antiga de autor desconhecido, com
dedicatória da Sra. Jacintha Luisa do Couto Brandão, mãe de Cora Coralina. Ao fundo, a Igreja do Rosário, em
estilo original. Dedicatória no verso da foto: “Aninica... Não mais habites nessa casa, mas continuas a habitar
n`um sacrário que nella existe e que é o coração de tua mai. Lembrança afetuosa do dia 20 de agosto de 1912.
De tua Mai”.
54

paradoxalmente, frágil. A obra Caminhos de Goiás: da construção da “Decadência” aos


limites da modernidade (1997), do historiador Nars Chaul, recoloca a problemática da
inventividade como um contexto propício para a reestruturação do discurso de decadência no
Estado de Goiás. Conforme discutimos, a (re) invenção das tradições, a exemplo da “Cruz do
Anhanguera”, representou uma tentativa forçada de reprimir os efeitos negativos que
pairavam sobre o “abandono” de Goiás no contexto político-econômico nacional daquela
época.
A tese do autor desconstrói os efeitos depreciativos à economia agropastoril
extensiva, praticada em Goiás a partir do século XIX. Suas análises dizem que se trata de um
processo natural esta retomada das atividades agropecuárias, as quais se tornaram essenciais
para a vida econômica do Estado de Goiás, diante da crise aurífera vivida no século XVIII.
Ainda segundo seus estudos, o “novo” fôlego da política republicana nacional veio com a
reforma administrativa, ocorrida nos primeiros anos da Primeira República, quando as mentes
liberais se inseriram nos cargos de poder dando um tom de modernidade às diretrizes políticas
federais e estaduais, em que o estado de Goiás também já havia sido impactado. Portanto, a
decadência foi um termo pejorativo dado ao processo histórico de readaptação econômica do
Estado de Goiás. Pode se concluir que se trata de um termo que soa, de fato, determinista.
Porém, a manutenção da economia goiana na ordem do setor primário, a chegada da luz
elétrica na cidade de Goiás somente em 1923, a precariedade das políticas públicas sanitárias
urbanas36, as desigualdades no acesso à educação, dentre outras mazelas relacionadas à
negligência desse modelo governamental, nos fazem acreditar que a máquina administrativa
beneficiou o bel-prazer das elites oligárquicas, Caiado e Bulhões (CAMPOS, 2003), que
naquela época, representavam os principais expoentes do coronelismo na capital e no Estado
de Goiás até os anos de 1930.
A junção dessas variáveis passou a ser alvo da retaliação e das críticas da ala
anti-oligárquica que se aglomerava nas regiões sul e sudeste do Estado de Goiás. As crises
nacionais não tardaram a afetar seriamente, inclusive a seus líderes e os simpatizantes das
oligarquias locais como, por exemplo, Luiz do Couto, que após viver outro momento na
carreira jurídica a partir de 1921, instalara-se imediatamente na antiga capital com a família.
Chamado para assumir o cargo de Procurador Geral do Estado, de acordo com Ferreira

36
A problemática das políticas sanitárias na Cidade de Goiás foi exaustivamente discutida pelos pesquisadores,
Sônia Maria Magalhães e Danilo Rabelo. Ambos os autores situam seus estudos no século XIX. Portanto, as
questões relacionadas a saúde e saneamento público deslocaram-se para o século XX por fatores que, segundo
esses estudos, entrecruzaram-se às questões políticas, sociais e culturais herdadas, em certa medida, do século
XVIII. Mais sobre o tema: MAGALHÃES (2004); e RABELO (2010)
55

(2007), suas atribuições oficiais concorriam paralelamente com o gosto pessoal pelo
jornalismo. Dedicou parte de seu tempo às revistas e jornais da época, dentre elas, as cariocas
Fon Fon e Ilustração Brasileira. Esse dado reitera a fragilidade do discurso da historiográfica
clássica a respeito do isolamento do Estado de Goiás nas primeiras décadas do século XX.
Ainda na biografia escrita por Ferreira (2007), soubemos que, em 1925, Luiz
do Couto foi convidado a colaborar com o jornalismo de uma das principais referências da
comunicação de massa no Brasil naquela época: Assis Chateaubriand37. A transcrição e
imagem do telegrama enviado a Luiz do Couto, de punho próprio, diz: “Peço prezado amigo
reencetar sua colaboração em “O Jornal”, enviar também notícias, informações telegráficas.
Abraços, (sic)” (p.119).
As sensibilidades são nítidas. A relação entre ambos, Luiz do Couto e Assis
Chateaubriand, dá-nos a impressão de ter se consolidado há muito tempo e,
consequentemente, longe de ser uma relação baseada na superficialidade. Esse aspecto,
indubitavelmente, confere-nos dizer, que o prestígio e a eloquência de Luiz do Couto não se
limitaram aos horizontes das terras vilaboenses. A visão de Chateaubriand, ao implantar uma
sucursal de “O Jornal” na capital do Estado, demonstra-nos que o interesse pela notícia
incluía publicizar, no âmbito nacional, os acontecimentos e desdobramentos da crise política
em Goiás, de então. Tempos de mudança arejavam Goiás.
Os ideais estadonovistas retumbavam no seio da capital goiana. O contato de
Assis Chateaubriand com os goianos parece não ter se restringido à pessoa de Luiz do Couto.
Um ano após o convite (apesar de que não localizamos qualquer texto de Luiz do Couto
enviado nesse ínterim para “O Jornal”), na correspondência emitida no ano de 1926,
representada, sucessivamente, na figura 05, verifica-se que o contato objetivava outro motivo,
ou seja, evitar a divulgação da seguinte notícia:

37
Mais sobre o tema: MORAIS, Fernando. Chatô, o rei do Brasil. 4 ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 2011.
56

Figura 05 - Telegrama de Luiz do Couto enviado a Assis Chateaubriant, 1926.

TRANSCRIÇÃO
08/11/26: Doutor Chateaubriand, “O Jornal” Rio. Foi expedido hoje e conforme fui informado violento
telegrama “O Jornal”. Peço não publicar conceitos desabonadores meo velho querido amigo, dr. Caiado, nem
descabidas offensas Partido Democrata. Mil vezes agradecido seo favor. Abraços. Luiz do Couto.
Fonte: Acervo de Milena Bastos Tavares (cedido em cópia digital).

Não se sabe o teor das “descabidas ofensas”; porém, nos anais desse periódico,
nada foi publicado sobre os Caiado, em “O Jornal”, naquela data. Outro aspecto que nos
chamou a atenção, abalizados pela data do documento, refere-se à rota da Coluna Prestes que
passou pelo Estado de Goiás tanto na ida quanto na vinda de suas incursões pelo nordeste
brasileiro. O alvoroço causado pela passagem dos manifestantes é relatado por Diniz (2013)
que nos traz indicativos interessantes para pensarmos nas articulações do Partido Democrata
no Estado de Goiás. Na narrativa da autora encontramos pistas para dizer que, possivelmente,
as causas para o envio do referido telegrama baseado em “conceitos desabonadores” à pessoa
do “dr. Brasil Caiado”- que era na época governador do Estado (fazendeiro, médico e irmão
do Senador Antônio Ramos Caiado) -, pode ter implicação com a causa dos colunistas, que
passaram pela região sul do Estado, local onde a ala opositora ao governo Caiado se
localizava, quase, em sua maioria.
57

Em 1926, após sucessivas interferências do Executivo no Judiciário de


Goiás, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, solicitou a intervenção
federal. Com a recusa desse pedido, o Partido Democrata ampliaria ainda
mais sua influência no Judiciário, circunstância que agravou os
descontentamentos políticos e convergiu para uma combativa oposição
(DINIZ, 2013, p.24).

O pedido de Luiz do Couto tratava-se de nada mais nada menos de um tema


pessoal, portanto, a ressalva “confidencial” acompanha o telegrama repleto de subjetividades
relacionadas a um pedido entre amigos. A existência de outro forte vínculo de amizade,
certamente, motivou a mediação que visou proteger a imagem do outro amigo que, por sua
vez, era uma pessoa pública em defesa, sobretudo, dos interesses oligárquicos no jogo pela
manutenção do poder em Goiás.
Salientamos que, por se tratar de um tema sinuoso, cabe ao historiador se
cercar de suas fontes para produzir uma narrativa consistente. Desse modo, a investigação
levou-nos ao acervo da Hemeroteca Digital para uma pesquisa acurada nos exemplares de “O
Jornal”, entre os anos de 1925 e 1929, e nos deparamos com um artigo de página completa,
intitulado: “POLÍTICA DE GOYAZ: o sr. Ramos Caiado concede uma entrevista ao “O
Jornal”, sobre a situação no Estado”, publicada aos vinte e dois dias de janeiro de 1927, pelo
“director da sucursal d`”O Jornal” em Goyaz”, Luiz do Couto.
O referido artigo cruza a entrevista com as observações construídas no discurso
jornalístico que, introdutoriamente, afirma remontar os acontecimentos do ano de 1925 até
aquela data. Segundo Luiz do Couto, o descontentamento social com os líderes políticos
tornou-se progressivo diante da condição diminuta dos municípios goianos. Ele os tratava
como: “mexericos e intrigas de aldeia38”. Luiz do Couto se refere aos movimentos sociais,
também de forma pejorativa. Diante do endurecimento das imposições oligárquicas que
imperavam em Goiás nos anos de 1920, capturamos imediatos sentidos de compreensão
quanto às concepções étnicas usadas, inconscientemente ou não, para depreciar aqueles com
opiniões contrárias ao governo.
O presente artigo se dividiu em quatro partes. Na primeira, “OPPOSIÇÃO
SEM CABEÇA”, o correspondente não aplica a imparcialidade, mesmo ressalvando que era
necessário ouvir a situação e a oposição. Ainda assim, afirmou: “Fácil entender-me com o sr.
Ramos Caiado. Impossível entender-me com o seu adversário de penacho39”. A predileção de

38
Biblioteca Nacional Digital do Brasil, Hemeroteca Digital: Jornal “O Jornal”, 22 de janeiro de 1927, p.04.
Por: Luiz do Couto. Cf. Disponível em: <http://memoria.bn.br/Docreader/docreader.aspx?bib=110523_02&pasta
=ano%20192&pesq=Hist%C3%B3ria%20Politica%20de%20Goias>. Acesso em: 01 jul. 2015.
39
Idem
58

Luiz do Couto pela voz das oligarquias é evidente. Todavia, a inquietude se amplia quando a
linguagem do redator insiste pela utilização das referências culturais indígenas para construir
metáforas desqualificadoras àqueles que representavam o contraponto à trincada estrutura
oligárquica caiadista, que usou o poder para prestar um desserviço histórico à democracia em
Goiás.
Relembrando o episódio da “Cruz do Anhanguera", quando Luiz do Couto
capitaneou forças e influências para erigir a memória do dominador, indiscutivelmente, o
indígena foi relegado à condição de inferioridade na memória social vilaboense. Os discursos
oficiais propalavam a “domesticação” do índio como necessária diante da efetivação do
“projeto civilizador” de Goiás, no século XVIII, encabeçado por Bartolomeu Bueno pai e
filho: “Anhanguera fez arder a porção de álcool, cujas chammas aterrorisaram o goyá, filho da
terra, induzindo-o a revelar as minas de onde extrahíra o oiro que adornava as índias da
nação”.40 Diante deste feito mítico, infelizmente, endossado pela impressa, a depreciação do
indígena se consolidou no imaginário popular vilaboense, o desafio “heroico” vencido pelo
bandeirante durante o desbravamento dos sertões goianos revigora a superioridade racial
preconizada pelos colonizadores.
Quando se discutiu a visão acéfala da oposição, em “O Jornal”, Luiz do Couto
utilizou-se de um tom imperativo e carregado de juízos de valor para enaltecer as práticas
políticas dos Caiado. Tanto no governo estadual quanto no senado federal, o jornalista, ao
interagir com o entrevistado, buscou dissipar as incertezas da conjuntura nacional com frases
encorajadoras, afirmando que os rumores da revolução não passavam de um movimento
“inócuo e platônico”.
Na segunda parte, “A COHESÃO DO PARTIDO DEMOCRÁTICO”, o autor
informa que foi recebido na casa de Ramos Caiado, para a entrevista, com um cavalheirismo e
uma fidalguia ímpares. Logo no início da conversa, Luiz do Couto questiona o papel da
oposição, em reposta ouviu-se que desconhecia a existência dessa oposição sem cabeça em
Goiás, e que o Partido Democrata estava há dezoito anos dirigindo o Estado de Goiás sem que
houvesse qualquer “melindre”, afirmou o entrevistado. No tópico seguinte, nomeado “A
INEXISTÊNCIA DA MINORIA”, o então senador atribuiu que a “liberdade” dos
oposicionistas consistia na forma como o Partido Democrata reagia ao “direito” de
manifestação desses “menores”. Ficamos confusos diante de tais palavras, pois na declaração
anterior, o senador da república afirmara desconhecê-los.

40
MUBAN - Correio Official, Capital de Goyaz, 17 de set.1918. p.01.
59

Em última instância, “UMA REVELAÇÃO MUITO GRAVE”, nuances de


suspense e de contradições instalaram-se com mais ênfase ao artigo. No depoimento, o
senador latifundiário afirmou ter “tolerância” com os oposicionistas, entretanto, as revelações
graves vêm na contramão do que foi dito anteriormente. No detalhamento sobre a seriedade
da questão, percebe-se que o fato envolvia a chegada dos “revoltosos” da Coluna Prestes, em
1925, no sul do Estado, que “obrigou-o” a tomar, segundo ele, medidas protetivas enérgicas e
imediatas.

Rebeldes montados e forças legais de caminhões, àqueles fugindo sempre


para logares inaccessíveis aos vehículos, buscando a capital e espalhando o
pânico. Ameaçado, todo o sul do estado; em perigo a propriedade particular,
desapparecendo a riqueza pública, ameaçado o lar, pelo saque, pela morte e
pela desonra, reuni rapidamente mais de 2000 mil homens dispostos, armas
em punho, para defenderem com a própria vida a legalidade, a integridade
do nosso território, a família goyana, o nosso povo honesto e laborioso (“O
JORNAL”, 1927, p.04)41.

Esse depoimento foi crucial para confirmar a configuração do modelo político


adotado, na prática, pelas oligarquias do poder e ressaltar a relação de proximidade de Luiz do
Couto com essas lideranças. Percebe-se que, os Caiado possuíam simpatizantes de variadas
classes sociais, pois ao se referirem ao séquito que seguiu suas diretrizes no que se refere a
constituir a milícia contra os expedicionários da Coluna Prestes, é possível afirmar que, a
maioria das deles, eram homens simples, moradores subjugados pela condição de agregados
às terras desses coronéis donatários do sertão goiano.
Nitidamente, a ordem do discurso das oligarquias se estabeleceu em torno de
uma retórica apelativa de ameaça às instituições oficiais, modus operandi instalado pelo poder
oligáquico diante do quadro de iletramento e dos valores culturais do patriarcalismo pujante
na sociedade goiana da época. A precária condição mental e econômica dos agregados
alimentava a relação de dependência/dominação, velada pelos vínculos de apadrinhamento
constituído entre os lavradores e seus filhos. Assim, os coronéis detentores de latifúndios
passavam a disponibilizar de um exército particular, a exemplo dos feudos medievais, numa
trama de poder dificilmente compreendida pelas vítimas do sistema político praticado na
República Velha, não somente no estado de Goiás, afirma Campos (2003).

41
Biblioteca Nacional Digital do Brasil, Hemeroteca Digital: Jornal “O Jornal”, 22 de janeiro de 1927, p.04. Por:
Luiz do Couto. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=110523_02&pasta
=ano%20192&pesq=Hist%C3%B3ria%20Politica%20de%20Goias>. Acesso em: 01 jul. 2015.
60

As ações de Ramos Caiado não terminaram nessa revelação. O político relatou


ainda que, antes de agir, teria levado o fato ao conhecimento do general Sócrates, chefe da
região, em São Paulo. A posição do referido militar foi pela não ofensiva, o que fora
constatado por Luiz do Couto, ao manusear o telegrama recebido com a clara determinação.
Abertamente, Ramos Caiado afirmou: “desobedeci e marchei rumo aos rebeldes”42. O
entrevistado não deu detalhes do desfecho e encerrou-se a conversa naquele instante.
Contudo, pode-se imaginar que o súbito silêncio foi uma escolha proposital, o que viesse a ser
dito, poderia depor, contrariamente, às intenções iniciais com a publicação do artigo.
Compreender a postura política de Luiz do Couto num contexto de trânsito
mediante a leitura desse telegrama certifica que suas atuações culturais se basearam no
alinhamento ao oficial, nesse caso, incondicionalmente, ao lado das lideranças políticas que
representaram a Ordem no Estado, porém, muito longe do sentido da palavra Progresso. Ao
enaltecer o tradicionalismo dos Caiado, por meio da escrita, o intelectual revelou nas
entrelinhas, uma parte da sua visão sobre a cultura, a sociedade, a política e a diversidade
goiana. Visão idealista que, certamente, deve ter orientado o modelo de educação e de valores
transferidos em família, especialmente, à Goiandira do Couto, considerada em comparação
aos irmãos, um verdadeiro espelho do pai (FERREIRA, 2007, p.54).
Não encontramos resquícios de envolvimento da pintura goiana com as
questões político-partidárias e, muito menos, nos seus desdobramentos em Goiás.
Provavelmente, em virtude da tenra idade e pelo fato de que a política, ainda, não era um
espaço compartilhado pelas mulheres. Todavia, a intenção de revirar os fundamentos das
experiências e das vivências no núcleo familiar, justifica-se ampliar a compreensão sobre os
pilares responsáveis pelo entalhamento cultural da artista. Suas intepretações pictóricas do
espaço urbano da Cidade de Goiás reinterpretam, de alguma forma, as posições
protagonizadas por seu pai, perceptivelmente, mais representativo na trajetória pessoal e
artística da pintora, do que a presença materna.
A fruição dos acontecimentos no Estado de Goiás, sobretudo, na capital goiana
se desdobrou quase que simultaneamente aos movimentos da trajetória individual de
Goiandira do Couto começam a sobressair no campo da cultura e da arte. Os caminhos da
cidade e da artista se vêem atados por um paradoxo curioso. Os anos de 1930 foram
responsáveis pelos primeiros sinais da ascensão da carreira da pintora, uma vez que, nesta
mesma ocasião, a Cidade de Goiás perdia o status de capital do Estado e mergulhava em um

42
Idem.
61

dilema nostálgico regado a crises, disputas e retaliações. Esse fato, de alguma forma lhe deu
maior visibilidade, pois, diferente do que aconteceu na década de 1920, Goiandira do Couto
se tornava protagonista de um processo longevo de ressignificação cultural da antiga capital
baseado em um ajuste fino nos modos de representar-se, enquanto urbe, no cenário estadual
moderno.
Sobre esse terreno movediço, é possível, no entanto, reconstruir os pilares
sobre os quais Goiandira conquistou autonomia de suas ações individuais e notoriedade
pública. Assim visto, acreditamos que o berço elitista da personagem regado à cultura e às
sociabilidades vivenciadas através da experiência paterna, apresenta-se como um horizonte
interessante para explorarmos os progressivos passos dados pela protagonista dessa pesquisa
dentro do seu mundo social: a Cidade de Goiás. Incluímos, ainda, o aspecto proeminente
ligado à sua identidade feminina que, a nosso ver, era ao mesmo tempo, complexa e singular
se comparado ao perfil da maioria das mulheres vilaboenses à época.

2.2 Interfaces do Público com o Privado

Pensar os conceitos de público e privado, separadamente, é um esforço inócuo


para este estudo. Embora, a ampla discussão feita pela filósofa contemporânea, Hannah
Arendt (1906-1975), na obra A Condição Humana, teça críticas contundentes a esse
respeito43, recorremos aos estudos culturais para analisá-los sob a perspectiva da relação e
mediação, tendo em vista as particularidades existentes na trajetória de Goiandira do Couto
na/com a Cidade de Goiás. Mesmo porque, conforme foi visto, a vida privada da artista
pautou-se no contato direto com as dimensões da vida pública vivida por seu pai, Luiz do
Couto.
43
Hannah Arendt compõe entre os principais estudiosos do século XX, os quais se preocuparam em discutir os
fenômenos políticos de sua época. A obra A condição Humana, particularmente no capítulo II, buscou distinguir
e pormenorizar os conceitos de público e privado. Nesse sentido, argumenta que a modernidade instituiu a
bipolaridade atual submetida evidentemente às regras do mundo social considerando que “os dois domínios
constantemente recobrem um ao outro, como ondas de perene fluir do processo da vida”. (ARENDT, 2008, p.
40). Embora sua teorização tenha aclarado o entendimento dos respectivos conceitos, notamos que a abordagem
política dada pela autora destoa das especificidades do objeto, o qual extrapola a visão positiva empreendida na
referida obra atinada a compreender tais conceitos para, essencialmente, discutir as questões da atividade e dos
regimes políticos instaurados na Europa a partir dos anos de 1930. Assim, esclarecemos que explanação histórica
da autora foi de fundamental importância para compreensão destes conceitos, em específico. Por isso,
concluímos que no caso em estudo, metodologicamente, a distinção entre eles não se aplica ao objeto. Pois,
aventamos a hipótese de que a Casa de Goiandira (espaço físico e, alguns membros do núcleo familiar)
construiu/constituiu na Cidade de Goiás uma identidade social, ao mesmo tempo, público-privada. Para tanto, a
Casa de Goiandira, nos anos 2000, além de residência da artista, consagrou-se como um espaço público oficial
de visitação de turistas. Assim, sobre o “Centro Cultural Goiandira do Couto”, informamos que a discussão será
ampliada no capítulo IV desta tese. E, quanto ao entendimento dos conceitos de público, à luz da filosofa
contemporânea, conferir: (ARENDT, 2008, p.31-78).
62

Nos testemunhos orais e visuais - fotografias - encontramos subsídios que


comprovam a constante interlocução da casa dos Couto com mundo social vilaboense. Foi
através deste lugar plural que a artista manifestou suas individualidades no espaço público as
quais se tornaram, com tempo, objetos próprios da cultura e das tradições locais. De fato,
observando por este ângulo, reitera-se que a distinção entre os conceitos (público e privado)
silenciaria a experiência biológica, socialmente instituída no pilar da família, propício à
protagonista, Goiandira do Couto, atuar, simultaneamente, “como agente eficiente em
diferentes campos44” da cultura vilaboense, conforme explica Bourdieu (1996, p.190). Mas,
como operacionalizar a mediação destes campos, tendo em vista as singularidades do objeto
análise?
Pensar sobre a junção dos conceitos de público e privado, por si só, não é tarefa
fácil. Obviamente, que trazer à tona as imbricações destes processos, a partir dos estudos
biográficos, exige estratégia de investigação. Afinal, preencher lacunas, tecer tramas e
interpretar os ditos e não ditos em comparação com as realidades agrupadas nas frestas dos
registros fotográficos e nas subjetividades dos depoimentos orais são possibilidades
metodológicas que nos assistem. Enfim, a intenção principal desta narrativa é repensar a
retórica em torno da “ilusão biográfica”, isto é, trincar a artificialidade considerando o sentido
dos movimentos sucessivos que alteram as posições sociais como orienta Bourdieu (1996,
p.190). Considerando a fotografia como forma de expressão cultural, afirma Boris Kossoy
(2002), entende-se que seu uso na aproximação de paralelos tão díspares possibilita-nos aludir
para as expressões sensíveis e transitórias da vida de Goiandira do Couto subjetivamente
articulada entre binômios sociais e culturais. Portanto:

(...) quando apreciamos determinadas fotografias nos vemos, quase sem


perceber, mergulhando no seu conteúdo e imaginando a trama dos fatos e as
circunstâncias que envolveram o assunto ou a própria representação (...) no
contexto em que foi produzido: trata-se de um exercício mental de
reconstituição quase intuitivo (KOSSOY, 2002, p.132).

Neste caso, a observação rigorosa dos procedimentos teórico-metodológicos


facilita, indubitavelmente, as abordagens previstas nesta produção histórico-biográfica que
visa entrelaçar a vida de Goiandira do Couto a um conjunto de transformações que afetaram a

44
“A distinção entre o indivíduo concreto e o indivíduo constituído, o agente eficiente é duplicada, pela distinção
entre o agente eficiente num campo, e a personalidade como individualidade biológica socialmente instituída
pela nominação e dotada de propriedades e poderes que lhe asseguram (em certos casos) uma superfície social,
isto é, a capacidade de existir como agente em diferentes campos”. (BOURDIEU, 1996, p.190).
63

identidade urbana da Cidade de Goiás. Por esta razão, apresentar suas origens45 e, por meio
delas, os elos com as tradições locais podem reforçar a hipótese de que a sua trajetória
artístico-cultural pautou-se pela preservação do espaço público a partir das representações
instituídas no privado.
A seleção de algumas imagens fotográficas da artista, previstas para este
subitem, em diálogo com os testemunhos orais e escritos, inspira às leituras interpretativas do
espaço de experiência da pintora, impactado por rupturas importantes que marcaram os
recíprocos regimes de historicidade, mormente, a partir dos anos de 1930. De acordo com
Kossoy (2002, p.36), “toda e qualquer imagem fotográfica contém em si, oculta e
internamente, uma história: é a sua realidade interior, abrangente e complexa, invisível
fotograficamente e inacessível fisicamente” e, possivelmente, permeável à observação
histórico-analítica quando examinadas para além da superfície.
Nesta mesma direção, metodologicamente falando, Capel (2016) afirma que
uma leitura mais complexa do documento visual pressupõe explorar os aspectos estéticos
correlatos ao conjunto de subjetividades não aparentes ao primeiro olhar. Ainda, segundo a
historiadora cultural, as questões problema, ou seja, àquelas tencionadas pela relação do
discurso artístico com o científico, só se pronunciam quando estas fontes são submetidas ao
rigor e à atenção metodológica inerente à narrativa histórico-visual. Fica claro que as imagens
não podem ser utilizadas como mera ilustração, recorremos assim à fonte visual com o intuito
de capturar expressões representativas da trajetória pública da personagem central, Goiandira
do Couto, a fim de compreendermos como os elementos figurativos são capazes de informar
as relações que ela estabeleceu nos diferentes estágios da sua atuação cultural e artística, na
antiga capital do estado de Goiás.
Sua chegada, em definitivo, à Cidade de Goiás, em 1921, com apenas seis anos
de idade, demonstrou-nos que a efervescência político-cultural desta década transitória fora

45
“A faculdade de Direito de Goiás, por intermédio do seu diretor, Dr. José Honório da Silva e Souza, acaba de
prestar excepcional e significativa homenagem a Dr. Luiz Ramos de Oliveira Couto, antigo magistrado e ex-
procurador Geral do Estado, fundador daquela casa de Ensino Superior, conhecido poeta e jornalista goiano (...).
Nesse sentido, ao homenageado, foi passado o seguinte telegrama: “Dr. Luiz do Couto, Goiás. Convido o ilustre
goiano para falar em nome da congregação, na sessão solene de 11 de maio comemorando o décimo
aniversário de reconhecimento da Faculdade. Aguardo urgente resposta. Saudações. José Honorato, Diretor”.
Em resposta, o Dr. Luiz do Couto dirigiu ao Dr. José Honorato da Silva e Souza o telegrama abaixo:
Doutor José Honorato, Diretor da Faculdade de Direito, Goiânia-Go. Profundamente comovido pelo seu
telegrama convidando para orador em nome da Congregação da Faculdade, 11 de maio, estou aniquilado ao
peso de tanta generosidade. Não sei como agradecer aos colegas do corpo docente tão cativante lembrança, até
hoje a primeira, nobre e única homenagem ao fundador do curso jurídico em nosso Estado em 1916. (...) pelo
agradecer à Congregação tão comovente convite feito ao velho descendente direto do Anhanguera para orador
em nome da Congregação. Devido minha idade e ao meu estado de saúde, com grande amargura, sou forçado a
declinar tão honroso convite (...). a) Luiz do Couto (grifo nosso). Jornal “Cidade de Goiaz”: Goiás, 28 de abril
de 1946, N°. 300, Ano VIII. Cf. AFFSD.
64

vivenciada ativamente no seu cotidiano familiar. Perscrutar os caminhos e descaminhos das


representações do âmbito privado da artista evidenciou, por sua vez, os pontos de vista, as
bases culturais e, sobretudo, o lugar social historicamente sedimentado na antiga capital pela
trajetória de gerações, de certo modo, arraigada às tradições vilaboenses. Conforme ela
mesma dizia: “a Cidade de Goiás, berço de Luiz do Couto, foi célula-mãe. (...) como se
tivesse nascido de suas próprias entranhas. Aqui nasceu, aqui viveu” (COUTO, 1985, p.150).
Indiscutivelmente, foi esse sentimento incondicional o maior legado de Luiz do Couto à sua
filha, Goiandira do Couto, que, por meio da arte, fez a si e às suas origens tradicionais,
internacionalmente conhecidas.
Sobre estas questões, apresentamos a fotografia que se segue para
introduzirmos o despontar das individualidades da jovem Goiandira do Couto no coletivo
social vilaboense, a partir dos anos de 1930.

Figura 06 - Goiandira Ayres do Couto, 1933.

Fonte: Acervo de Guilherme Antônio de Siqueira.


65

Coincidentemente, a visibilidade de Goiandira do Couto se deu em um


contexto de rupturas políticas e culturais, as quais impactaram a vida urbana da Cidade de
Goiás devido à perda do status de capital do estado. Neste arcabouço de incertezas notamos
que a artista, assentada sobre diferentes pilares, visto que, a família foi o fundamento de sua
ampla inserção social e cultural na cidade, é possível vislumbrar o percurso de uma longa e
paradoxal trajetória de vida intrincada à “valorização” da cidade que a consagrou,
subjetivamente, considerada como um lugar que “possui muita cultura (...), muita história, e
que faz parte da minha vida”. (COUTO apud BRITTO, 2008, p.208).
A evolução cronológica deste estudo tem nos direcionado, aos poucos, para o
crescimento individual da personagem central. Pelo retrato (figura 06), notamos uma jovem
de pose desenvolta, olhar fixo para câmera e sorriso instintivo, sutilezas que denunciam a
intimidade com o ato de ser fotografada, de ser vista em destaque. No texto de Antônio
Lisboa de Morais, publicado no Jornal “Opção”, em janeiro de 1999, o jornalista extraiu das
memórias relatadas pela artista e do contato com as fontes visuais do seu acervo particular, as
origens da familiaridade com este recurso de produção de imagem. A exposição ratifica os
indícios da visível espontaneidade explicitada na figura 06. Vejamos:

No primeiro carro que chegou a Catalão, em 1917, (um calhambeque), lá


está a menina Goiandira do Couto (com dois anos), no colo do pai, sob o
olhar grave da mãe. Em outubro de 1918, em passeio pelo Jardim da Luz, em
São Paulo, foi colhido um flagrante dos pimpolhos. Indignado, o pai escreve,
no verso da foto: Estes retratos saíram péssimos, porque os meninos não
quiseram se comportar bem. Veja com que cara ficaram Goyás e Goiandira
(“OPÇÃO”, 1999, s/p.) 46”.

Não tivemos acesso aos referidos retratos. Todavia, a análise do excerto e as


sensibilidades visíveis na fotografia da figura 06 convencem-nos de que a infância e a
juventude, vividas pela artista, possibilitaram-lhe o contato direto com as inovações da época,
arte e cultura, inclusive, dos grandes centros urbanos, algo, naquele tempo, restrito a um
grupo seleto da sociedade vilaboense. Por esta razão, é possível afirmar que o lugar social de
Goiandira do Couto, em virtude da família, garantiu-lhe a prematura inserção na vida cultural
da Cidade de Goiás, espaço onde ela escreveu sua própria história. Pelas palavras de Franco
(2008), é perceptível a reciprocidade das práticas individuais com a preservação das tradições.

46
Cf. Jornal “Opção”, 10 a 16 de janeiro de 1999. Por: Antônio Lisboa de Morais. Disponível em:
<http://diariovilaboense4.blogspot.com.br/2009/02/goiandira-do-couto.html>. Acesso em: 16 fev. 2015.
66

(...) a família teve muita influência na vida de Goiandira, algo que ela gosta
de enfatizar. Experimentou com a família o gosto pela dança, pelas festas,
pelos amigos, pela poesia e pelas prendas domésticas (...). Goiandira foi um
pouco de tudo. Declamadora, poetisa (nunca publicou sequer um de seus
poemas, mas rasgou muitos deles), escritora, colaboradora esparsa em vários
jornais, professora e, finalmente, artista plástica. (...) Goiandira ainda era
uma mocinha e garante não se lembrar de quando começou a pintar. O
primeiro incentivo veio aos 16 anos de idade, quando foi premiada por seus
desenhos, pela Escola Complementar, que funcionava no Palácio da
Instrução Pública. A partir daí, não parou de pintar e nem de expor
(FRANCO, 2008, p.17-18).

As artes plásticas surgiram na vida de Goiandira do Couto desde muito cedo.


Considerada pela crítica como autodidata, a artista, em seus inúmeros depoimentos, atribuiu o
contato com os pincéis à influência de sua mãe, D. Maria Ayres do Couto, que segundo ela:
“se tivesse tido chance de expandir seu talento, talvez, tivesse feito registro nas agendas das
artes plásticas goiana” (COUTO, 1985, p.150). Provavelmente, as responsabilidades com uma
família numerosa e o envolvimento com os papéis tradicionais da mulher, também repassados
para filha47, podem ter sido o empecilho para a continuidade da carreira artística que deixou
um legado de dois quadros, sem título, datados de 1926 e 1928, conforme Ferreira (2011,
p.146). Não nos restam dúvidas de que a representação materna evocava memórias íntimas
constituintes da convivência privada com a artista. Por isso, na maioria das vezes, as
rememorações sobre a mãe remetiam às características abstratas, destacadas na personalidade
forte e na beleza exótica consideradas por ela, os “traços principais das mulheres do Norte do
Estado” (COUTO, 1985, p.150). Goiandira não se cansava de dizer que estes predicados
nutriram o amor devotado de seu pai materializado em versos e poemas declamados por ela48
nas festas, recitais e saraus organizados, ou não, pela família Ayres do Couto.
Nos levantamentos feitos por Ferreira (2011, p.91-95), percebe-se que o gosto
pelas sociabilidades imprimiu no espaço privado, a residência dos Couto, uma relativa
identidade de espaço público. A pesquisadora explica que estes trânsitos culturais foram parte
integrante da formação dos filhos, os quais nasceram e cresceram em um ambiente
frequentado “tanto por pessoas simples da comunidade, como por pessoas de certa posição
social, relacionadas à política e à cultura, fazendo com que eles vivenciassem um espaço de

47
“Eu me destacava em tudo quanto há. Eu me destacava na escola normal. Eu fazia o bordado melhor. (...) Fiz
partem, tricô, frigoritenho, virtinho, renda de bico, na máquina. Faço todo tipo de bordado. Além de costurar,
fazia doce, bolo, biscoito, fazia tudo. (...). Toda moça fazia café, bolo, biscoito. Todas bordavam” (LUZ, 2007,
p.261-264).
48
“Eu era declamadora oficial daqui. Eu declamava em toda festa eu declamava. Sempre tinha uma festinha na
casa de uma amiga. Uma tocava violão, a outra, violino e eu declamava. Chegava lá, nós dançávamos,
brincávamos, batíamos palma. Eram assim as festas. Saraus! Isso que eram os saraus” (LUZ, 2007, p.261-264).
Disponível em: <http://www.nee.ueg.br/seer/index.php/temporisacao/issue/view/2>. Acesso em: 10 jun. 2015.
67

ampla socialização” (2011, p.45). É importante dizer que, sendo Goiandira do Couto a
segunda de um total de doze filhos, suas vivências e memórias do cotidiano familiar
historicizaram-se as subjetivas experiências repassadas através da oralidade, aos irmãos mais
jovens49, parentes, amigos e pesquisadores interessados em conhecer mais de perto a cultura e
as tradições vilaboenses. Tudo nos leva a crer que o modelo de educação informal era baseado
na transmissão e retransmissão de saberes e fazeres culturais integrados às subjetivas
representações de alteridade e poder dos costumes privados expostos, voluntariamente, à
convivência social.

Eu era professora de dança. As mocinhas ficavam doidas para dançar,


aprender. – Vamos pra casa de Goiandira? Vamos! Chamava de brinquedo.
Vamos para um brinquedo hoje lá em casa às sete horas? De casa em casa, a
gente ia convidando. Era só para dançar. Aqui não tinha eletrola, a primeira
foi de pai. Papai gostava demais de música. Tocava violão com mamãe,
cantava bem. Os dois sentavam-na rede, cantavam juntos, era muito bom.
Ele abraçava minha mãe, beijava minha mãe. Era um marido ótimo, um pai
ótimo, eles viveram muito felizes. Toda a vida eu fui feliz. Até hoje
(COUTO apud FERREIRA, 2011, p.53).

O depoimento chama-nos a atenção pela preponderância da presença paterna


em relação à materna. Neste caso, as recordações íntimas além de enfatizar sobre suas
habilidades pessoais dão-nos a impressão de que o ambiente familiar descrito era uma
prerrogativa da personalidade sociável Luiz do Couto, consequentemente, uma identidade em
sucessão.
Segundo Bourdieu (1996, p.190), analisar histórias de vida sob o ponto de vista
da trajetória é estar apto a entender que as posições ocupadas pelo indivíduo (biografado)
estão interligadas a um conjunto de referências propensas de outros agentes. Atentos a esta
explicação supomos que ao estabelecer uma relação objetiva com o pai, Goiandira de
aproximou-se da vida pública pautada em subjetivas concepções de valor e sentido. Em outras
palavras, instituiu-se, entre os dois, o habitus50 ajustado ao campo das representações

49
De acordo com Ferreira (2011, p.45), os filhos do casal, Luiz do Couto e Maria Ayres do Couto, nasceram em
diferentes períodos. A diferença de idade entre os primogênitos Goiás do Couto e Goiandira do Couto, nascidos
no início do século XX, para as irmãs mais jovens, Marluy do Couto e Isabel do Couto, nascidas em 1935 e
1938, respectivamente, era de quase três décadas.
50
“Sistema aberto de disposições, ações e percepções que os indivíduos adquirem com o tempo em suas
experiências sociais (tanto na dimensão material, corpórea, quanto simbólica, cultural, entre outras).
O habitus vai, no entanto, além do indivíduo, diz respeito às estruturas relacionais nas quais está inserido,
possibilitando a compreensão tanto de sua posição num campo quanto seu conjunto de capitais. Bourdieu
pretende, assim, superar a antinomia entre objetivismo (no caso, preponderância das estruturas sociais sobre as
ações do sujeito) e subjetivismo (primazia da ação do sujeito em relação às determinações sociais). Segundo
Maria Drosila Vasconcelos, trata-se de “uma matriz, determinada pela posição social do indivíduo que lhe
permite pensar, ver e agir nas mais variadas situações. O habitus traduz, dessa forma, estilos de vida,
68

supostamente pautado nas oficialidades. Mais uma vez, o discurso proferido na AFLAG
forneceu-nos subsídios para tecermos estas análises. Portanto, convém evidenciá-lo:

E, como de Luiz do Couto, eu não trago apenas o sangue e o nome, mas


também a admiração pelo homem-arte-cultura, que conheci tão de perto.
Permitam-me, ilustres amigas, rastrear, na saudade, os caminhos que ele
percorreu edificando a vida. (...) Nos requintados saraus do Palácio Conde
dos Arcos, e em ocasiões diversas, fui seu par em valsas. Fui a intérprete
preferida de seus poemas, num tempo em que a poesia imperava em salões e
era a mais bela expressão cultural. Participei ativamente de sua vida pública
e me orgulho de haver sido discípula atenta de seus ensinamentos morais
(COUTO, 1985, p.150-152).

As formulações a respeito do campo privado da artista parecem então, delinear


“um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido como expressão unitária
de uma ‘intenção’ subjetiva e objetiva, de um projeto” (Bourdieu, 1996, p.184). Para o
filósofo francês a vida deve ser pensada como um percurso abalizado por descaminhos e
descontinuidades. Esta perspectiva analítica encaixa-se na trajetória de Goiandira do Couto
quando a partir dos de 1930, com o advento do Estado Novo, as sinuosidades se mostraram
mais visíveis. Coincidentemente, este período delimitou o seu ingresso na vida pública e, o
duplo papel exercido por Luiz do Couto - figura paterna e preceptor de práticas culturais - que
foram, sem dúvida, expressivos no processo de consolidação das individualidades e
peculiaridades da artista como agente produtora de cultura em diferentes campos do mundo
social vilaboense. É importante destacar que o seu acesso à vida pública representou,
inclusive, uma “quebra” nos paradigmas convencionais quanto ao lugar do feminino na
sociedade local. Por esta razão, cabe-nos, aqui, abrir um parêntese.
Na sessão anterior discutimos, à exaustão, o alinhamento de Luiz do Couto
com o tradicionalismo no que se refere às representações histórico-culturais concernentes à
identidade urbana da Cidade de Goiás. Contudo, no que diz respeito aos valores sociais,
particularmente relacionados às questões de gênero, encontramos indícios de que sua
mentalidade esteve à frente das concepções ortodoxas do patriarcalismo de seu tempo. É
plausível dizer que o campo das letras tem parcela significativa na construção desse
pensamento de vanguarda vivido, por ele, em ações práticas. E, não estamos nos referindo ao
respaldo dado à Goiandira do Couto que, no tocante a esse aspecto, simbolizou o seu
comprometimento irrestrito com ideais de inclusão social feminina. O que propomos refere-se

julgamentos políticos, morais e estéticos. Ele é, também, um meio de ação que permite criar ou desenvolver
estratégias individuais ou coletivas. ” Disponível em. <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/pequeno-
glossario-da-teoria-de-bourdieu>. Acesso em: 12 jun. 2015.
69

a esta questão cujas práticas extrapolaram os limites do privado. Segundo Kofes51 (2001,
p.80), no ano de 1928, pela primeira vez, o tema da participação política das mulheres, no que
tange o direito ao voto, foi apreciado pela Junta de Recursos Eleitorais de Goiás52. Após
extenuante discussão, a maioria dos membros, prováveis constituintes da ala radical do
Partido Democrata, consideraram cidadãos somente aqueles do sexo masculino.
Ainda em conformidade com a autora, os atores desta decisão alegaram que
“(...) só com a concessão expressa deste direito às mulheres é que estas poderiam reivindicar.
Um voto foi vencido nesta decisão da Junta, o do Procurador Geral do Estado, Dr. Luiz do
Couto” (p.80). Em virtude da atribuição do cargo, Luiz do Couto emitiu um parecer sobre o
alistamento eleitoral das mulheres goianas. E, é claro que o teor do documento não alterava a
decisão da referida Junta. Todavia, sua argumentação embasou-se por ponderações críticas
quanto à expectativa tradicional da mulher na sociedade, dando-nos a entender que a
deliberação coletiva soava-lhe como um retrocesso.
Vale a pena lembrar que esse debate foi a principal bandeira da Sociedade
Brasileira para o Progresso Feminino, fundada em 1922, por Bertha Lutz (SOUZA, 2005,
p.315-325), com quem Luiz do Couto estabeleceu um provável contato direto53. Supomos que
aquele convite oficial de Assis Chateaubriand, em 1925, para atuar como colaborador em “O
Jornal” pode ser uma justificativa razoável para explicar o seu envolvimento profissional e
ideológico com a militante. Em 17 de março de 1929, Berta Lutz, Orminda Bastos e Carmem
Portinho publicaram na coluna, Feminismo, do jornal “O Paiz”, o referido parecer oficial em
sua íntegra. Eis que, por estas razões, alguns trechos merecem ser destacados:

51
A pesquisa biográfica de Suely Kofes (2001), Uma trajetória, em narrativas, investigou as experiências
individuais, por uma abordagem de gênero, de Consuelo Caiado (1889-1981), filha do ex-governador, Totó
Caiado, que destacou-se por participação e contribuição na vida cultural da Cidade de Goiás nas primeiras
décadas do período republicano. Segundo a autora, ela foi responsável pela reabertura do Gabinete Literário,
“lugar de sociabilidades e também de circulação de tensões sociais e políticas da elite local” (p.59). Estas
referidas tensões acirraram-se na transição política dos anos de 1930, fato que, segundo a autora, abalou a
imagem pública de Consuelo Caiado. Mesmo não havendo rastros de seu envolvimento com as questões
político-partidárias da família, ela optou, a partir de então, por uma vida à sombra da renúncia e reclusão social.
O esquecimento e, consequentemente, o seu sucessivo apagamento da memória coletiva vilaboense, subsidiaram
as problematizações do referido estudo.
52
Conquanto, é importante dizer que o debate sobre o sufrágio feminino circulava em nível nacional muito antes
deste acontecimento em Goiás, em 1928. Segundo Kofes (2001), “isto foi motivado, em 1926, pela inclusão da
senhorita Benedita Chavez Roriz, no alistamento do município de Santa Luzia, em Goiás” (p.80).
53
“Luiz do Couto sempre valorizou a mulher. Quando no fim da década de 20, surgiu o primeiro movimento
feminista, cuja bandeira era o direito da participação da mulher nas decisões nacionais, através do voto, Luiz do
Couto, deu-lhe irrestrito apoio, na pessoa de Bertha Lutz, líder do movimento, “inclusive, prestando-lhe
assistência jurídica” (grifo nosso). (COUTO,1985).
70

No momento actual que o paiz atravessa, sem uma certa cultura cívica
necessária à vida e desenvolvimento de um povo independente dentro de um
regime democrático, penso, mesmo em benefício das mulheres, não é
chegada a hora, ainda, do seu exercício ao voto (...). Se a Constituição tão
claramente não permitisse à mulher o exercício desse direito, por certo,
como juiz seria eu o primeiro a negar-lhe (...). Não actuam em meu espírito
as velhas ponderações e argumentos de cabellos brancos, de que a missão da
mulher se limita unicamente ao lar, no aconchego caricioso do marido e da
dourada alegria dos filhos, tendo por máxima inspiração a recta que lhe
traçaram os bárbaros de todos os tempos, entre o cesto de costura e a
cozinha; que fora do lar a mulher seja o reflexo do marido; à sua sombra
pensando o que ella pensa, medrosa (...). Ora, tudo isso já vai tão longe
como a sombra do último pharaó e o rabicho do primeiro mandarim... (...)
(JORNAL “O PAIZ”, 1929, p.12).

Por esse trecho é possível confirmar que a concepção libertária defendida por
Luiz do Couto, em relação às mulheres, extrapolava as convenções impostas, culturalmente, a
elas. Neste caso, o direito ao voto tornar-se-ia uma representação do avanço nas relações de
gênero que, naquela época, eram reguladas por padrões sociais, a seu ver, obsoletos.
Ora, se compararmos estes posicionamentos com aqueles discutidos no tópico
anterior, Origens da Tradição, constatamos a existência de uma personalidade ambivalente.
Sobre isso, lembramo-nos de Bourdieu (1996, p.185), que ao criticar as narrativas lineares dos
romances modernos, afirmou que o estudo “da vida” não é um todo coerente. Sendo assim,
cabe àquele que pretende estabelecê-la, preocupar-se, sobretudo, em dar-lhe sentido. Por estas
palavras, aplicadas no caso em estudo, é possível perceber que as referidas ambiguidades
foram fundamentais para as projeções de habitus protagonizadas por Goiandira do Couto, que
consolidou-se na vida pública54 assentada social e culturalmente nas suas referências privadas.
Destarte, em 2006, ao ser indagada sobre a repressão às mulheres de sua época, a resposta
veio sem hesitação: “Não. A mulher não era tão reprimida assim” (COUTO apud LUZ, 2007,
p.261-264). A rigor desta afirmativa, encontramos em Pollack (1992) as orientações para
dilatarmos o que, possivelmente, está intrínseco à perspectiva genérica desta opinião.

Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória, individual ou


coletiva? Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente.
Em segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de “vividos por
tabela”, ou seja, os acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à
qual a pessoa se sente a pertencer (POLLACK,1992, p.201).

54
De acordo com Ferreira (2011) “Rodeada de livros, tintas e pincéis, Goiandira do Couto recebe da mãe as
primeiras noções de desenho e pintura. A partir de 1929, com 14 anos de idade, começa a declamar poesias em
algum evento que fosse convidada, a desenhar, e também a mostrar os dotes artísticos através de pinturas a óleo
que fazia e muitas vezes presenteava seus amigos e parentes” Cf. (FERREIRA, 2011, p.54).
71

Introduzimos esse capítulo relacionando Goiandira do Couto às noções de


pertencer. Através desse sentimento, que reverbera interpretações, viemos até aqui alocando a
objetividade às suas subjetividades; método que nos aproxima das representações no espaço
dos possíveis55. Portanto, compete-nos dizer que a memória dos tempos vividos na mocidade
amalgamou-se à identidade social56 da artista por pontos que Pollack (1992, p.201) considera
relativamente invariáveis. Isso, explica a imediata negação como resposta, concebida no
tempo presente. Goiandira do Couto nunca se casou. O pai, sua principal identificação
masculina, foi, indiscutivelmente, a antítese da repressão. E, com relação às lembranças
“vividas por tabela”, o modelo de marido passou a ser a representação do homem devotado
que nunca lhe saiu da memória: “no meu pai o que mais me encantou, foi sua grande
capacidade de amar. Amou apaixonadamente a sua companheira” (COUTO, 1985, p.151).
Prestar atenção às sensibilidades envoltas às referências, influências e,
sobretudo, aos paradoxos inerentes à trajetória da vida “podem servir de base a uma
relembrança de um período que a pessoa viveu por ela mesma, ou (...) para a memória do
grupo” (POLLACK, 1992, p.202). Por isso, rastreando o conjunto das fontes deparamo-nos,
mais uma vez, com as sensibilidades do discurso visual. E, posto em comparação com as
lembranças subjetivas da artista revela-nos, em preto e branco, o colorido da cumplicidade
que existiu entre o casal, Luiz e Maria. Uma cena bucólica e íntima retrata um dos inúmeros
hiatos no regime, ilusoriamente contínuo, das formalidades e das realidades construídas em
torno do homem de vida pública. Luiz do Couto aparece, na imagem, nitidamente estruturado
na importância do papel privado desempenhado pela esposa, D. Maria Ayres do Couto.
Os feitos “invisíveis” desta mulher entrelaçaram-se à vida do marido que
enxergou o horizonte das mudanças políticas57, decorrentes da implantação do Estado Novo,
em 1930, com os pés fincados na Cidade de Goiás.

55
“(...) não podemos compreender uma trajetória (isto é, o envelhecimento social que, embora o acompanhe de
forma inevitável, é independente do envelhecimento biológico) sem que tenhamos previamente construído os
estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto de relações objetivas que uniram o
agente considerado – pelo menos em certo número de estados pertinentes – ao conjunto de outros agentes
envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis” (BOURDIEU, 1996, p.190).
56
Segundo Pollack (1992, p. 204), entende-se por identidade social “(...) à imagem de si, para si e para outros, há
um elemento dessas definições que necessariamente escapa ao indivíduo e, por extensão, ao grupo, e este
elemento, obviamente é o outro. Ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança, de negociação,
de transformação em função dos outros. A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência
aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por
meio da negociação direta com outros”.
57
A transferência da capital para uma cidade planejada, Goiânia, foi a principal plataforma política do governo
de Pedro Ludovico Teixeira. O ideal centralizador do Estado Varguista uniu-se à tática política do novo
interventor federal de manter-se no poder bem longe da matriz cultural do regime oligárquico goiano, a Cidade
de Goiás. Por esta razão, a imagem da antiga capital passou a ser associada ao velho e ao atraso. O historiador
Nars Chaul (1997, p.185), esclarece que na data da sua chegada à antiga capital, as primeiras mudanças
72

Figura 07 - Casal Luiz do Couto e Maria Ayres do Couto.

Fonte: Acervo da Academia Itaberina de Letras e Artes, década de 1930.

governistas já estavam em curso; foi nomeado interventor federal por Vargas, em novembro de 1930, em uma
disputa que contava com fortes nomes para o cargo, como Mario Caiado e Domingos Neto Velasco. O nome de
Ludovico ficou na ordem do dia devido à sua combatividade à ordem anterior e às afinidades que seu
concunhado, o médico mineiro Diógenes Magalhães, mantinha com Vargas. Chegando ao poder em 1930,
Ludovico, não tinha nenhum projeto de governo estabelecido, nenhuma orientação ideológica capaz de dar
sustentação à sua carreira política. Os aliados eram frágeis, visto que o processo revolucionário foi determinado
pela chamada Coluna Mineira ou Coluna Arthur Bernardes, liderada por Quintino Vargas. Após atemorizar as
forças caiadistas, a referida Coluna chegou a Goiás já ciente da vitória da Revolução. Ao chegar à capital, sem
represálias, ocupou o Palácio do Governo, empossando Carlos Pinheiro Chagas como interventor federal.
Quintino Vargas foi indicado para assumir o posto de interventor goiano, uma vez que Pinheiro Chagas
retornaria à Minas Gerais. Este recusou a indicação, alegando que deveria ser entregue a um goiano. Escolheu
então um triunvirato, composto por Pedro Ludovico, Mario Caiado e Emílio Póvoa, para dirigir inicialmente o
estado. Posteriormente, Pedro Ludovico foi escolhido para a condução do governo”.
73

Ora, sendo a fotografia um campo de certezas mediatas daquilo que já não é


mais e, partindo do pressuposto de que a “recepção da imagem subentende os mecanismos
internos do processo de construção da interpretação, processo este que se funda na evidência
fotográfica” (KOSSOY, 2002, p.44); lemos a imagem da figura 07 sob a impressão de que a
queda da oligarquia caiadista reconfigurou a atuação pública de Luiz do Couto, que deixou o
cargo de Procurador Geral do Estado, em outubro de 1930, para supostamente engajar-se nas
prioridades relacionadas à família, à advocacia e às letras, as quais serviram, inclusive, como
instrumento de defesa dos interesses da Cidade de Goiás abalada pela decisão do interventor
federal, Pedro Ludovico Teixeira (SOUZA, 2015), de transferir a capital do Estado da Cidade
de Goiás para a moderna Goiânia.58. O fato é que, no campo ideológico, as opiniões sobre a
mudança dividiram entre prós e contra. Ao passo que momentaneamente, ambos, partilhavam
o mesmo espaço político: a antiga capital.
Nesse contexto, o receio do empobrecimento cultural da Cidade de Goiás
passou a ser tônica das inquietações da ala antimudancista, aqui representada por Luiz do
Couto, que usou o saber como instrumento de poder para colocar o futuro da cultura e da
educação na Cidade de Goiás na pauta das preocupações dos chamados progressistas.

E o que se faz [em caso de mudança] dessa pujante, altiva, nobre, estudiosa
mocidade do Liceu que representa o futuro de Goiás, e que terá que
abandonar os estudos porque a nossa pobreza e das suas famílias não
permitem se transportar e localizar em outro ponto do Estado designado para
nova capital? E os alunos os alunos das outras escolas oficiais do Estado
aqui, cujos estabelecimentos de ensino terão de ser transferidos? Pensaram
em toda essa calamidade?59 (MENDONÇA, 2013, p.349-350).

Ainda de acordo com o historiador, Jales Guedes Coelho Mendonça (2013,


p.345-356), a reação aos questionamentos foi quase imediata. Em 1932, ao ser nomeada a
comissão encarregada de escolher o local da nova capital, incluiu-se entre suas atribuições
projetar para a antiga sede do poder político uma suposta função de centro cultural. O autor
reuniu uma série de testemunhos para expor o pensamento e, possíveis compromissos dos
representantes da ala centrista, os quais passaram a defender a vertente do “mudancismo
condicionado”, conceito pertinente às problematizações desta pesquisa. Sendo assim, o artigo

58
“A nova capital nasceu assim, sob o signo da modernidade e do progresso; negação do suposto atraso, que a
antiga capital, Vila Boa de Goiás, representava. As justificativas, apresentadas pela transferência, centravam-se
nas más condições da cidade que abrigava a capital e a emergência de uma nova cidade, capaz de fomentar o
desenvolvimento econômico do estado. Os discursos oficiais e o planejamento urbano foram pautados pela
antítese: modernidade e arcadismo” (SILVA, 2006, p.18).
59
Jornal “A Tribuna”. “A mudança da capital de Goiás”. Por: Luiz do Couto; Uberlândia, 16 de agosto de
1931, apud MENDONÇA (2013).
74

publicado no jornal “Lavoura e Comércio”, em novembro de 1932, evidencia as primeiras


concepções desta proposta:

Todavia, apesar de me enfileirar no rol dos “mudancistas”, acho que o


honrado governo revolucionário goiano não pode, absolutamente, deixar em
desamparo a velha cidade que durante tantos anos séde da administração do
Estado. O seu futuro precisa ser acautelado por medidas oportunas, tendentes
a evitar seu descalabro, o seu desmantelo, o seu aniquilamento. Si a mudança
da capital é uma necessidade imperiosa, a defesa da vetusta cidade goiana
não é menor assunto e nem menor problema. (...) O progresso de Goiás não
pode ser edificado sobre as ruínas da cidade do rio Vermelho60 (...)
(MENDONÇA, 2013, p.352).

Mendonça (2013, p.355) afirma que preocupação com a autoimagem, diante da


opinião pública, levou Pedro Ludovico a comprometer-se, ainda que de forma lacunar, com o
amparo cultural e educacional da Cidade de Goiás, mesmo, após a definitiva transferência da
capital para a cidade de Goiânia. Naquele momento, politicamente falando, não havia como o
interventor desconsiderar que a antiga “(...) capital, se comparada aos demais municípios
goianos, atingiu um padrão educacional e cultural significativo” (MENDONÇA, 2013,
p.350). Assim, ao final de 1932, Ludovico publicou as seguintes palavras:

S. Exa. Se refere ainda à campanha não-mudancista, de uma parte dos


habitantes da velha Vila Boa. Acha-a natural e até humana; mas ela não o
fará mudar de opinião, mesmo porque não pode contrariar um todo para
obedecer a uma parte. São os interesses coletivos que reclamam a mudança.
A velha capital será protegida: - Para aqui virá um batalhão do Exército,
sendo que sendo que uma sua companhia deve chegar em breve, a fim de
preparar o alojamento da tropa; uma companhia da Força Pública aqui
também ficará, bem como o Lyceu e a Escola Normal61 (MENDONÇA,
2013, p.352).

As rupturas no regime das oficialidades político-administrativas na Cidade de


Goiás coincidiram com o período de formação das bases do pensamento intelectual, cultural e
ideológico da artista, naturalmente, susceptíveis aos posicionamentos tradicionais da família.
Portanto, compreender este cenário de turbulências políticas e improbabilidades no campo
cultural vilaboense, que atingiram diretamente os horizontes da vida urbana na Cidade de
Goiás, a partir dos anos de 1930, tem por finalidade situar a conjuntura do mundo social
vivido por Goiandira do Couto no início de sua vida pública. Para Schwarcz (2013, p.67),

60
Jornal “Lavoura e Comércio”. “A mudança da capital de Goiás”. Por: Jota Jamegão; Uberaba, 21 de
novembro de 1932 apud MENDONÇA (2013).
61
Jornal “Correio Oficial”. Por: Pedro Ludovico Teixeira; Goyaz-Capital, dezembro de 1932 apud
MENDONÇA (2013 p.352).
75

instar os contextos históricos eleva a intenção biográfica a outro patamar. Mesmo porque,
retirar o biografado do esquecimento e/ou do jogo seletivo da memória oficial exige que o
historiador indicie as problemáticas que o envolvem, frisa a autora.
Guiados por este entendimento, aventamos a hipótese de que as práticas
individuais da artista, incluindo sua linguagem plástica, estão emaranhadas às primeiras
iniciativas de preservação da cultura e das tradições vilaboenses, considerando o quadro de
abatimento instaurado na Cidade de Goiás em razão da iminente mudança da capital para
Goiânia. Acredita-se que o processo de trocas culturais e simbólicas entre a protagonista e a
antiga capital do Estado, a partir da década de 1930, ficará demostrado nas páginas seguintes.

2.3 Goiandira do Couto no Desenho da Trama

Goiandira do Couto elegeu a Cidade de Goiás, em 1921 como seu lócus


preferido, dela, jamais saiu para viver, buscar ou complementar sua formação intelectual e
artística62. Iniciou seus estudos formais no princípio da década de 1920, simultâneas às
primeiras noções de arte apresentadas, em casa, pela mãe. Finalizou o ensino secundário em
meados dos anos de 1930, auge das tensões político-culturais no estado de Goiás,
protagonizando práticas individuais supostamente alinhadas às tentativas de preservação do
espaço cultural vilaboense, conforme detalharemos adiante.
Investigar o trajeto da formação intelectual de Goiandira do Couto implica em
compreender como essa experiência pessoal reforçou o processo de construção da pessoa
pública. Presumimos que suas primeiras matrizes institucionais, família e escola, foram
decisivas para estabelecê-la, socialmente, na Cidade de Goiás como agente
produtora/protetora de cultura. No depoimento concedido à pesquisadora, Taís Helena
Marchado Ferreira, em 2009, a artista relembrou o seu itinerário na educação formal
revisitando efemérides, simbolicamente, instituídas entre lugares, pessoas e oficialidades.

62
“Vale dizer que seu irmão, João do Couto, nascido em 1923, formou-se na Faculdade de Belas Artes de São
Paulo, estudou crítica de arte com Sérgio Millet, entre outros cursos de história da arte, arte contemporânea e
cultura brasileira, todos na Universidade de São Paulo. Participou de números instituições culturais e científicas
em São Paulo, assessorias de governos estaduais, foi desenhista em várias instituições, ilustrador de diversas
revistas, livros, trabalhos científicos. Seus trabalhos de gravura e desenhos artísticos (bicos-de-pena) trazem uma
representação realista arquitetônica e paisagística das mais rigorosas entre os artistas que trabalham com tal
linguagem em Goiás, de técnica apurada, explorando ao máximo o alto contraste, monocromático (preto e
branco) quase sempre representando os casarios de Goiás (COELHO, 2008, p.26).
76

Estudei com aula particular de Dona Angélica Pereira. As aulas eram onde é
atualmente o Gabinete Literário Goiano. E, depois, eu fui estudar onde
atualmente é o Cine Teatro São Joaquim. A minha professora foi Dona
Maria Camargo. Ela era irmã de um grande professor de música meu, que é
pai de Ely Camargo, aquela cantora (...). (...) isso era aula particular, depois
entrei pro Grupo Escolar. O Grupo Escolar era do governo (...) perto do Cine
Teatro. Depois, foi lá no hotel. Antes o Hotel foi Grupo Escolar do Estado de
Goiás. Então, era capital ainda. (...) lá eu tinha aula, lá eu fiz minha primeira
comunhão, dia 14 de maio de 1924, era aniversário da nossa diretora,
escritora, grande escritora, Ofélia Sócrates. Daí, foi meu científico, fui
estudar no normal, lá no Jardim de Infância. Aí fez aquele prédio lindo, que
tem na propriedade do quartel. Que lá dentro do Alcide Jubé é o Palácio da
Instrução, que foi feito na administração do Dr. Brasil Caiado e o secretário
geral era de Jaraguá, César Bastos. Então, aí se criou o Jardim da Infância, a
Escola Complementar e a Normal. Aí eu fui para Escola Complementar, fui
no primeiro ano, até me formar em 35. Me formei em 1935 (COUTO apud
FERREIRA, 2011, p.51-52).

O relato associa-se aos vestígios de um tempo vivido como se eles fossem suas
testemunhas63. Para Pollack, esse é um fenômeno jacente da memória construída em
coletividade, isto é, inerente à vida pública e, por isso, “passam a fazer parte da própria
essência da pessoa” (1992, p.201). Essência, nesse caso, igualmente projetada ao espaço
público por evocações paralelas e pertinentes ao roteiro da graduação acadêmica. Portanto,
faz-se necessários alinhamentos que “podem obviamente dizer respeito a acontecimentos,
personagens e lugares reais, empiricamente fundados em fatos concretos”, esclarece o teórico
(1992, p.202). Também por esses horizontes enxergamos o estreitamento da experiência
social singular vivida por Goiandira do Couto, na Cidade de Goiás, desde o tempo que “(...)
Então, era capital ainda” (FERREIRA, 2011, p.51). Desse modo, baseando-nos nos dados
apresentados por Unes (2008, p.81-83) sobre a cronologia da vida pública da artista, nas
entrevistas concedidas por ela, nos testemunhos escritos e na produção historiográfica
vislumbramos analisar, mais de perto, esse período da sistematização sociocultural da
protagonista que se deu em conjunto com o surgimento da sua primeira fase artística (pinturas
a óleo).
Em plena adolescência, aos 14 anos de idade, Goiandira ingressou na Escola
Complementar, curso com duração de dois anos, o qual tinha a finalidade de preparar os

63
A rememoração de Goiandira do Couto sobre as alterações espaciais durante o governo de Dr. Brasil Caiado,
encaixam-se quase que igualmente com a exposição detalhada por Genesco Ferreira Bretas na obra, História da
Instrução Pública em Goiás, especificamente no subitem, “Autonomia da Escola Normal do Estado” (1991,
p.514-520). Nesta sessão, o autor trata das intervenções administrativas e pedagógicas, as quais provocaram os
trânsitos geográficos das instituições públicas, fato instalado nas lembranças da artista. Cf. (BRETAS, 1991).
77

alunos provenientes dos grupos escolares para admissão na Escola Normal Oficial de Goiás64
(BRETAS, 1991, p.518). Nos jornais que circulavam naquela época, encontramos registros de
sua participação na vida cultural da Cidade de Goiás65, bem como nos registros fotográficos.
Na imagem a seguir, ao centro da primeira fila, Goiandira do Couto em meio
aos ritos, aos símbolos e às representações oficiais vilaboenses. Tais práticas aludiam o
empoderamento do cotidiano social e, respectivamente, o calendário cultural da Cidade de
Goiás, até os anos de 1930. Pelo que parece, os revezes políticos que impactaram a vida
urbana da antiga capital na referida década cooperaram, em certa medida, para a projeção
público-cultural de Goiandira do Couto, que sobressairia, também, na futura capital goiana
devido a seu talento e lastros culturais. Todavia, ela escolheu viver na cidade de Goiás.
Temos, portanto, uma explicação plausível para desdobrar os acontecimentos transitórios,
referentes à mudança da capital, articulados à participação de Goiandira do Couto direta ou
indiretamente.

Figura 08 - Festa Cívica no Largo da Matriz, Cidade de Goiás, 1932 (inédita).

Fonte: Acervo de Guilherme Antônio de Siqueira cedida por Rosarita Bueno Medeiros.

64
Parafraseando Bretas (1991), esta instituição de ensino foi instalada na Cidade de Goiás, em 1903 e manteve-
se em anexo do Liceu até 1925. Em 1929, passou a funcionar no chamado “Palácio da Instrução Pública”,
autonomamente.
65
“Transcorreu, a 6 do andante, o natalício do amigo Dr. Luiz Ramos de Oliveira Couto, comprometidíssimo
Procurador Geral do Estado, e uma das mais conceituadas intelectualidades goianas. Recebeu os cumprimentos
em sua casa entre música, poesia e o reconhecimento de inúmeros amigos” Jornal “O Democrata”, Goyaz,
19 de abril de 1930. Coluna Social. Anno XIII, n° 656, p.03. Cf. AFFSD.
78

Os vínculos de Goiandira do Couto com as instituições escolares da Cidade de


Goiás ajustaram-se às representações do pilar da família, tradicionalmente, historicizada à
vida pública desta urbe. Sua desenvoltura cultural, inerente à educação elitista recebida no
espaço privado, se notabilizou nos espaços formais de educação por onde ela passou,
garantindo-lhe, portanto, posições de representatividade conforme observamos no registro
fotográfico da figura 08. Em 1931, Goiandira do Couto havia começado seus estudos na
Escola Normal Oficial de Goiás e, vinculada a esta instituição, ela participou da primeira
amostra pedagógica de desenhos e trabalhos manuais desenvolvidos ao longo daquele ano
letivo. Ao rememorar esse acontecimento, disse: “(...) quando eu estava estudando no curso
normal, apresentei noventa e tantos trabalhos, quase cem trabalhos. Tirei o primeiro lugar e
ganhei um prêmio da prefeitura” (COUTO apud LUZ, 2007, p.261). A partir da primeira
premiação, outras se seguiriam em seu devir artístico que construiu sua imagem pública
justaposta às relações culturais e artísticas estabelecidas na/com a Cidade de Goiás ao longo
do século XX66.
Seu reconhecimento público a partir de 1931, nos leva a crer que o entusiasmo
do debut cultural serviu-lhe de estímulo para aprimorar suas técnicas de pictóricas. Seus pais
acompanhavam-na e a orientavam com gosto. Sobre isso, nunca é demais lembrar, que
Goiandira do Couto atribuía ao seu espaço privado a estruturação/formação deste começo:
“(...) eu estava pintando e eles junto olhando, gostando: - “Está bonito, minha filha. Minha
filha, aqui não está com muita luz, precisa colocar mais luz nesse aqui, escurecer mais aqui”
(COUTO apud BRITTO, 2009, p.10). Mas, para Coelho (2008, p.28), essencialmente a
condição de autodidata favoreceu-lhe habilidades inatas para ajustar e/ou corrigir as questões
técnicas no ato do processo de elaboração de seus quadros.
Aspectos como cor, luz, sombra e perspectiva foram, segundo o autor,
domínios aprimorados durante os procedimentos de figuração da paisagem, do casario urbano
e natureza morta, gêneros recorrentes das suas pinturas a óleo. Independente destas questões,
eis que em 1933, aos 16 anos de idade, Goiandira do Couto participava da primeira exposição

66
Na reportagem “Goiandira: e a areia colorida se faz arte”, para o jornal “Diário da Manhã”, o artista
plástico e professor da Universidade Federal de Goiás, Carlos Sena, falecido em 2015, emitiu o seguinte parecer:
“Goiandira do Couto foi a primeira mulher pintora do Estado de Goiás. Aos 16 anos, encarou a pintura como
ofício, alcançando sua maturidade artística aos 52 anos (...). Goiandira do Couto e Octo Marques foram os
pintores pioneiros na representação do paisagismo no estado de Goiás e ajudaram muito a criar uma identidade
visual goiana no século 20” (Jornal “Diário da Manhã”, “Goiandira: e a areia colorida se faz arte”. Por:
Licínio Barbosa; Coluna: Opinião Pública. Goiânia, sábado, 3 de setembro de 2011, p.04). Fonte: acervo da
autora.
79

coletiva de arte, organizada pela Escola Normal, com a obra Lírios (1933)67, em óleo sobre
vidro (COELHO, 2008, p.26). Esse evento, sem dúvidas, oficializou seu ingresso na vida
pública e na carreira artística.
Percebe-se que as instituições de ensino, ora representadas pela Escola Normal
Oficial, deram continuidade ao compasso da vida cultural na Cidade de Goiás apesar dos fatos
ocorridos no início da década de 1930. Vale ressaltar que, a transição política seguia seu curso
sob as constantes promessas68 do interventor, Pedro Ludovico Teixeira de resguardar à cidade
“algumas centelhas de progresso ou algum sinal de vida e incentivos”69. Sem entrarmos no
mérito do tom pejorativo do discurso, supomos que estas palavras reacenderam a crença de
alguns moradores de que antiga capital poderia culturalmente manter-se como “(...) polo da
civilização e da cultura do Centro Oeste” (ALBERNAZ, 1992, p.150). Muito provavelmente,
com o intuito de modificar o quadro do provável abatimento instalado na cidade, outras
práticas culturais surgiram no ano seguinte.
Desta vez, representantes da coletividade encabeçada por alguns membros do
clero local decidiram seguir o mesmo rumo das ações implementadas por Luiz do Couto,
quando reintroduziu o símbolo do mito fundador, em 1918. Os constituintes desse grupo
deliberaram, portanto, por intervir na paisagem urbana da Cidade de Goiás. Então, em 1934,
no Largo do Rosário, um ato “cívico” foi protagonizado por esta coligação, a qual
nomearemos de guardiões da tradição.

A 5 de agosto de 1934 por Mons. Rdo. Pe. Abel Camelo, representado S.


Excia. Dom Emanuel Gomes de Oliveira, Arcebispo de Goyas, foi lançada a
pedra fundamental do novo Santuário, em homenagem Nossa Senhora do
Rosário, após a missa conventual das 8 hs... Achavam-se presentes o Rdo.
Pe. Superior dos Dominicanos, o Rdo. Frei Germano Lhech, o Rdo. Frei
Bernardo Gandim, Rdo. Frei Gonzalvo Carneiro Leão, irmão Alvaro Criado,
autoridades civis, muitas pessoas gradas e boa massa popular. A contento de

67
Por questões metodológicas, referente ao encadeamento da biografia de Goiandira do Couto, optamos por
trabalhar apenas com as obras em estilo paisagem em um capítulo específico (Capítulo III). No entanto, dada a
relevância da fase com óleo, apresentaremos no anexo I desta tese, a tela Lírios e outras envolvendo a temática
de natureza morta, com o objetivo de mostrar possíveis alterações e domínio técnico nas diferentes fases
artísticas vividas pela protagonista deste estudo.
68
“O sr. Dr. Interventor tem afirmado que, mesmo que se realize a projetada mudança, nem por isso a velha
Goyaz ficará privada de muitos estabelecimentos e instituições que, não sendo indispensáveis à formação da
nova Capital, constituem expressões de progresso e elementos de vitalidade para a velha Vila-Boa. Isso mesmo o
nosso preclaro dirigente fez sentir com a publicação inserta no “Correio Oficial” de junho último”.
(MENDONÇA, 2013, p.358).
69
“O Sr. Dr. Pedro Ludovico Teixeira, a par da sua ideia de remover a séde do Governo para uma cidade
moderna e construída a propósito, quer cumprir solemne promessa feita à velha Vila Boa, onde se tem S. Exa e
demais inexoráveis próceres do mudancismo enterrados os seus preciosos cordões umbilicais. A promessa feita é
de deixar aqui algumas centelhas de progresso ou sinal algum de vida e incentivos”. (MENDONÇA, 2013,
p.357).
80

todos foram iniciados os trabalhos que a excelsia Virgem do Rosário


esparamol-o há de proteger para que em breve erga-se seu novo e majestoso
santuário. Antes de iniciar-se a demolição do antigo Santuário de Nossa
Senhora do Rosário nos dias 3,4 e 5 de maio solenizou-se o segundo
centenário da Igreja do Rosário. Revestiu-se do maior brilhantismo e
respeito a festa do dia 05. Às autoridades religiosas, civis, forenses e
militares uniu-se a população de Goyaz em peso, enchendo o largo fronteiro
à nova Igreja. Em frente à fachada engalanada do novo Templo os diversos
Oradores Dr. Joaquim Ferreira dos Santos, ar. Antônio Jurema de
Guimaraes, srt. Goiandira do Couto e Dr. Joaquim Jubé Junior enalteceram
o ideal das energias espirituais imorredouras que concretizam o culto da
Virgem e o Catholicismo, ideal do qual as Egrejas multisseculares
simbolizam a perenidade vencedoura (Revista Trimestral de História e
Geografia, TOMO XII, 1966, p.40, v.)70 (grifo nosso).

A presença, em destaque, de Goiandira do Couto entre as autoridades civis e


eclesiásticas, ambas representadas pelo sexo masculino, confirma seu talento artístico singular
respaldado no know how familiar, que de fato, deu-lhe cabedal para romper com as fronteiras
de gênero, contundentemente, estabelecidas nesse período.
No que diz respeito à forma arquitetônica arrancada abruptamente, por incrível
que pareça, ela harmonizava-se com o estilo arquitetônico colonial e eclético herdado dos
tempos coloniais. Resta-nos, portanto, buscar entendimento das possíveis motivações deste
ato, o qual impactou, irreversivelmente, o conjunto arquitetônico da Região do Rosário, lugar
povoado desde os tempos da fundação da antiga capital, no século XVIII71.
Em diálogo com os estudos de Chaul (1997, p.207), presumimos que a insígnia
da modernidade72 versada pelos mudancistas sobre Goiânia, em oposição à Cidade de Goiás -
símbolo do velho e do atraso -, pode ser o fio condutor para entendemos a crise de identidade
social dos vilaboenses como o princípio ativo dos movimentos culturais protagonizados pela
elite local naquela época. Conforme teoriza Pollack (1992, p.205): “memória e identidade são
valores disputados em conflito sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que
opõem grupos políticos diversos”.

70
AFFSD – Revista Trimestral de História e Geografia, TOMO XII, com 67 páginas datilografadas em espaço 2.
Goiás, 09 de maio de 1966.
71
Cf. (COELHO, 1997, p.91-98); e (GALVÃO JÚNIOR, 1997, p.03-04).
72
“A modernidade para os arautos de 30 consistia no progresso do Estado, por meio, do desenvolvimento da
economia, da política, da sociedade e da cultura regionais. É importante destacar que a representação da
modernidade se edificava em oposição ao passado que encarava a decadência e o atraso de Goiás ao longo de sua
história. (...) Em nome da modernidade não só se combatia a Primeira República com as oligarquias retrógadas,
como também se propunha uma nova era político-social e econômica para o Estado, uma época de prosperidade
e progresso” (CHAUL, 1997).
81

Nessa direção, a despeito das visíveis lacunas na memória social vilaboense, os


guardiões da tradição deram início à alteração na paisagem urbana da antiga capital,
provavelmente, motivados pelos embates políticos no campo de disputas simbólicas73.
É possível, mesmo que hipoteticamente, se pensar no monumento em
construção, a partir de 1934, na Cidade de Goiás, como uma forma de reinterpretação do
espaço, tendo em vista os compromissos ludoviquistas de preservá-la, culturalmente, nos
horizontes políticos da propalada modernidade goiana. Nesse sentido, Pollack (1992, p.204)
afirma que “a construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos
outros”. Sendo assim, é plausível dizer que, naquele momento, os guardiões das tradições
representavam uma coletividade submetida às flutuações identitárias em consequência da
perda do histórico status de epicentro do estado de Goiás. Ainda sobre essa questão, o teórico
acrescenta:

(...) a memória é um fenômeno construído social e individualmente, quando


se trata de memória herdada, podemos também dizer que há uma ligação
fenomenológica muito estreita entre memória e o sentimento de identidade.
Aqui o sentimento de identidade está sendo tomado no seu sentido mais
superficial, (....) que é o sentido da imagem de si, para si e para os outros.
(...) para acreditar na própria representação, mas também para ser percebida
da maneira como quer ser percebida pelos outros (POLLACK, 1992, p.204).

Os testemunhos visuais a seguir traduzem, parcialmente, a dimensão


problemática desse processo de reorganização da identidade social vilaboense no que tange
aos enquadramentos com a memória cultural da paisagem urbana, ora estigmatizada como
símbolo de “tempos passados”.

73
“Parece constituir-se num consenso entre a historiografia goiana o fato de que a Revolução de 1930 em Goiás
foi um movimento importado, carente de um programa claro e definitivo, de repercussões limitadas no contexto
do Estado. O que alimentava os ideais da oposição revolucionária se reduzia mais a uma repulsa à ordem política
estabelecida pela oligarquia dos Caiados, e seus métodos impermeáveis e autoritários do exercício do poder, do
que propriamente um compromisso de ruptura total com as antigas estruturas e hábitos. Esta repulsa era
estendida à antiga capital - Goiás -, então centro do poder, profundamente identificada com essa oligarquia. E, se
no Estado de Goiás, a revolução não teve uma participação notável, nem provocou alguma transformação social
que mereça destaque, os fatos sugerem que ela teria sido um marco importante para a edificação de Goiânia. (...)
Toma corpo aqui uma “ideologia de progresso” (...). Mas essa ideia de progresso não se restringe à ordem
econômica. (...) Vislumbra-se, assim, um progresso também no âmbito da política e dos costumes”
(CARVALHO, 2002, p.157-160).
82

Figura 09-A - Foto da Festa em louvor a Nossa


Sra.do Rosário dos Pretos. Ao fundo, antiga igreja de Figura 09-B - Igreja de Nossa Sra.do Rosário, em
Nossa Sra. do Rosário dos Pretos (sem data). estilo neo-gótico, década de 1950.

Fonte: IPHBC, Goiânia - GO. Fonte: Paulo Brito do Prado, 2014. Acervo: Elder
Passos de Camargo.

Formalmente, as imagens das figuras 09-A e 9-B impressionam pela


discrepância estética. Vemos que a tentativa de “preservar” ampliou os interditos culturais,
em torno da paisagem urbana da Cidade de Goiás por meio da extinção do antigo (estilo
colonial) para recolocar no lugar uma arquitetura que, possivelmente, fizesse inferência ao
“moderno” (estilo neogótico74). Cumpre-nos dizer, que o novo monumento (figura 09-B)
construído para perpetuar as práticas do tradicional culto em louvor a Nossa Senhora do
Rosário dos Pretos (figura 09-A), nem de longe, aproximava-se do estilo arquitetônico
pensado para representar a chegada da modernidade em Goiás. A relação da arquitetura com o
discurso da mudança e, obviamente com o poder, inspirou-se no que tinha de mais novo na
arquitetura naquela época: o estilo art dèco75. Segundo Coelho (2002, p.108), não foi “por

74
“O Neogótico, mais reconhecido como revivalismo gótico, iniciou no século XVIII, na Inglaterra e pretendia
recuperar as formas gótica da Idade Média, indo na contrapartida ao estilo clássico dominante naquele período.
O primeiro edifício neogótico significativo construído na França foi a Basílica de Sainte-Clothilde, em Paris.
Iniciada em 1846 pelo arquiteto de origem alemã François-Chistina Gau, ela só veio a ser consagrada em 1857.
Já na Alemanha, ressurgiu o interesse pela Catedral de Colônia, iniciada em 1248 e que estava inacabada na
época. O trabalho reiniciou em 1824 e terminou em 1880 tonando-se a catedral ápice da arquitetura neogótica e o
edifício mais alto do mundo naquela época. No Brasil, o estilo encontrou terreno fértil no reinado de Dom Pedro
II. Uma das construções neogótica brasileira mais antiga é a Catedral de Petrópolis, Rio de Janeiro. Construída
entre 1884 e 1925, ela abriga os túmulos do Imperador e de sua família. O nascimento da arte gótica está ligado à
expansão ocidental e à afirmação do poder real”. Disponível em: <https://danielamachado.wordpress.com/2008/0
4/24/o-neogotico>. Acesso em: 02 jun. 2015.
75
“Foi um movimento internacional de design, destacando-se 1925-1939. O nome Art Dèco veio da Exposição
Internacional de Artes Decorativas e industriais Modernas, em Paris, 1925. Este foi um movimento popular
internacional de design. Afetou as artes decorativas, a arquitetura, design de interiores e desenho industrial,
assim como nas artes visuais (...). Foi de certa forma uma mistura de diversos estilos e movimentos, tais como:
Construtivismo, Cubismo, Bauhaus, Art Nouveau, Modernismo e Futurismo. Embora muitos movimentos
83

uma questão de modismo, ou opção” que esse estilo caracterizado por linhas horizontais
imponentes e pela sobriedade na ornamentação das fachadas foi adotado pelo governo de
Ludovico, mas, sim porque a sensação de monumentalidade dessas formas reforçava o
aparente discurso de demarcação das fronteiras político-ideológicas entre a antiga e a nova
capital.
Eis que, nesse momento, licenciando-nos das palavras de Pollack (1992,
p.203), porque convém perguntar: “qual é a ligação real disso com a construção da
personagem”? Ora, não é sem explicação que o episódio do soerguimento do “novo”
santuário se alinhava aos jogos de poder travados no campo das representações, da memória e
das identidades sociais. Obviamente, é correto ponderar sobre a participação de Goiandira do
Couto, como coadjuvante no respectivo “ato cívico”, ocorrido em 1934. Contudo, refletir
sobre seu papel como protagonista, ou melhor, como agente eficiente do respectivo processo
histórico, é fundamentalmente importante, pois, desde então, a sua representação pública
indissociou-se das práticas individuais ou coletivas em defesa da cidade e das tradições
vilaboenses.
A rigor desta explicação, chegamos em 1935, ocasião em que Goiandira do
Couto, aos 20 anos de idade, formava-se como professora normalista. Dedicou-se a esta
profissão, juntamente com a carreira artística, até meados dos anos de 1970.
A emblemática fotografia da formatura, em 1935, testifica-nos a oficialização
de mais um dos começos da artista num contexto de recomeços e incertezas para a Cidade de
Goiás. Lançamos mão desta fonte como forma de historicizar, metodologicamente, os
desdobramentos políticos ao processo construtivo de uma “identidade totalmente conciliada
como ideal social de si mesmo”, pontua Fabris (2009, p.46). Cabe-nos, portanto, por esses
arredores, tecer análises.

tivessem criado raízes na arquitetura, o Art Dèco foi meramente decorativo, visto como funcional e ultra
moderno. De forma geral este período representa a transição entre a arquitetura produzida pelo Art Nouveau e do
ecletismo para o modernismo. Na arquitetura Art Deco, as fachadas têm rigor geométrico e ritmo linear, com
fortes elementos decorativos em materiais nobres (...)”. Disponível em: <https://brasilarqui.wordpress.com/5-art-
deco>. Acesso em: 11 nov. 2015.
84

Figura 10 - Goiandira do Couto. Formatura da Escola Normal Oficial de Goiás, 1935.

Fonte: Acervo de Guilherme Antônio de Siqueira e publicada por Ferreira (2011, p.52).

Os olhos, diz o adágio popular, são janelas para a alma. Mas, nesse caso, o
trabalho do fotógrafo foi capturar, segundo Fabris (2009, p.46), “a autotransformação em
imagem num movimento interativo (...) com o tecido social”. Esta pode ser a razão pela qual
contemplamos eventualmente diferenças entre a imagem apresentada no subitem anterior
(figura 06), a qual deixou-nos transparecer que o pilar de pedra (a família) movia, quase que
completamente, as representações “tal qual em si mesma”. Diante da imagem da figura 10,
85

constatamos que a simbologia da indumentária em preto e branco, a circunstância formal da


fotografia, as poucas, porém contundentes experiências na vida pública dá-nos a impressão de
que finalmente aplainaram-se às bases culturais da artista.
Ainda sobre a imagem, percebe-se que a conquista no âmbito profissional
conjugava-se com a projeção adquirida através da arte, fato que sedimentou,
consideravelmente, a trajetória público-individual de Goiandira do Couto, na Cidade de
Goiás. Sobre isso, Fabris (2009, p.46) teoriza o importante percurso da fotografia de retrato,
especialmente, “a passagem do ‘tal qual em si mesmo’ para o “enquanto si mesmo” atribuindo
a este paradigma o cabedal para as reflexões e análises historiográficas que nos permitem,
através da fotografia, discutir as questões relacionadas à identidade, ou seja, “cisão profunda
entre o sujeito e a própria imagem” fabricada socialmente. Nessa direção, ressaltamos que a
postura sóbria explicitada no retrato de fotográfico76. Sua pose na figura 10, além de
inaugurar a chegada à fase adulta, evidencia-nos um elo entre sua imagem pública e as
subjetividades individuais, ainda mais, intricadas aos rastros de cultura deixados por
Goiandira do Couto na Cidade de Goiás.
A primeira experiência no magistério entrelaça-se às ações afirmativas pela
permanência das instituições públicas preconizadas nos discursos proferidos por Ludovico.
Conforme já expusemos, entre elas, três em específico: “a companhia da Força Pública aqui
também ficará, bem como o Lyceu e a Escola Normal (MENDONÇA, 2013, p.352)”. (grifo
nosso). É possível que estas palavras tenham sido apropriadas como promessa, pois:

Goiandira do Couto, um dos mais famosos espíritos da intelectualidade


feminina de nossa terra, teve há poucos dias, um gesto que muito a dignifica:
sabedora de que era necessário que se criasse na Companhia Isolada da
Polícia Militar aqui estacionada uma escola para ensino primário e para a
educação cívica dos soldados daquela unidade, se propôs, num gesto de
brilhantismo, sem qualquer espécie de indenização ser professora dos
soldados que a compõem. A talentosa filha de Luiz do Couto – herdeira
legítima do patriotismo do seu ilustre pai e não menor talento – dirigiu um
ofício ao distinto capitão Lindolpho Emiliano dos Passos, comandante
daquela companhia, e em resposta por esse ilustre militar lhe foram dirigidos
outros ofícios (“Folha de Goiaz” 1936, apud “O Bandeirante”, 1995, s/p)77.

76
Termo utilizado para discernir retrato pintura de retrato fotográfico. Fabris (2009) esclarece que: “(...) na
dimensão do retrato fotográfico como “coisa”, cujo sentido é dado por intenção do observador (...). (...)
consistem no reenquadramento na fragmentação, na transformação da imagem original. (...) Outras de caráter
conceitual, que levam a adentrar pelos meandros de um gênero peculiar de retrato, expondo a função central da
imagem fotográfica: conferir identidade de um grupo, determinar uma situação social, estruturar um contexto no
qual o conjunto é mais importante que o indivíduo isolado (FABRIS, 2009, p.56).
77
Cf. Jornal “Folha de Goiaz”, “Um Gesto de Mulher Goiana”, Cidade de Goiás, n°. 35, 29 de março de 1936
apud Jornal “O Bandeirante”, “O ideal de uma artista", Cidade de Goiás, março de 1995 (s/p.). Fonte: Acervo
de Taís Helena Machado Ferreira, cedido em cópia digital.
86

É visível que, em 1936, a recepção pública já havia legitimado a personalidade


de Goiandira do Couto entre as “notáveis” referências da tradição cultural vilaboense. Em
conjugação com texto jornalístico encontramos um de seus depoimentos, que nos transmite a
ideia de que existiu um provável consenso social nesse sentido:

Xiiii!!!! Minha Nossa Senhora, que absurdo Goiandira dar aula pra soldado.
A moça mais chique, de família, prendada, dar aula pra soldado? Como ela
rebaixou! O soldado era discriminado: se você vinha aqui eu passava pra cá,
pra não passar perto de você (COUTO apud FERREIRA, 2011, p.60).

Entretanto, antes de pormenorizarmos essa inusitada experiência no magistério


e suas representações, convém trazer à tona o que, possivelmente, venha justificar as causas
pelas quais a artista se propusesse prestar esse serviço voluntário na Companhia Isolada da
Polícia Militar. Nos estudos de Mendonça (2013), especialmente as discussões apresentadas
sobre os meandros de iminente crise no mudancismo condicionado78, proposto como esteio
central do processo de transição político-administrativa, encontramos as prováveis fagulhas
que aclaram o “súbito” “gesto de brilhantismo” de Goiandira do Couto.

Esse proclamado esforço governista contra a decadência vilaboense,


contudo, não convencia a todos: “a decadência de da cidade, transferida à
sède do Governo, é tão evidente que o próprio acto a previu e, pretende, em
vão, prevenil-a. No art. 2°, do cit dec. 3.359, como ficha de consolação e
para amortecer o effeito ou repercussão causados79”. (...) O tópico aponta a
percepção de que a decadência da Cidade de Goiás restaria inexorável
(MENDONÇA, 2013, p.390).

O pesquisador, Jales Guedes Coelho Mendonça (2013, p.414) refere-se


às deliberações ocorridas em agosto de 1935. Nesta data, foi promulgada a Constituição de
Goiás. Visto que os constituintes, em resposta às representações públicas, a exemplo do que
diz o excerto acima, reiteraram o artigo 2° do decreto 3.359/1933, o qual previa a salvaguarda
dos compromissos econômicos e culturais do governo estadual para com a Cidade de Goiás.
Todavia, a desconfiança, em virtude da inoperância destas ações, começou a repercutir na
imprensa local. Por isso, alguns argumentos incisivos de que a Cidade de Goiás era

78
Reiteramos que, segundo Mendonça (2013), entende-se por mudancismo condicionado os “compromissos
assumidos pelo interventor, por mais de uma ocasião, posteriormente gravados em normas legais e
constitucionais, de que não abandonaria a municipalidade de Goiás, após a transferência, preservando-a da
decadência” (p.340).
79
O autor esclarece que o presente fragmento legislativo proveio do “Ministério da Justiça e Negócios Interiores.
Processo n° 1698/34. Recurso da empresa Guedes, Ratto & Cia contra ato da interventoria de Goiás, Secretaria
de Estado. Diretoria do Interior, 1ª Sessão. Arquivo Nacional”.
87

visivelmente escamoteada das reponsabilidades legais de Pedro Ludovico, em detrimento à


construção de Goiânia, foram explicitados na publicação de 10 de novembro, de 1935, do
jornal “A Colligação”. Lê-se:

Foi apresentada à Assembléia Legislativa um projeto de lei concedendo


favores aos operários, residentes nesta capital, e queiram se mudar para
Goiânia. Defendendo os interesses da cidade de Goiaz, tão prejudicada pela
campanha mudancista, os deputados Jacy de Assis e Alfredo Nasser, na
Comissão de Justiça, rejeitaram o projeto, proferindo o seguinte voto: Um
dos motivos de combate à mudança da capital (...) foi o desamparo da cidade
de Goiaz, condenada à estagnação e sem medidas de proteção e de garantia
de sua vida e de seu progresso. (...) ele pretende é o aliciamento, o seu
afastamento, a criação de dificuldades à vida de Goiaz, cada vez mais
arrastada ao abandono. Este projeto não tem nenhuma finalidade social, e
nem demonstra simpatias a causa do operariado; sua finalidade é aniquilar as
últimas energias da cidade abandonada com a obra mudancista, com o
afastamento até dos seus operários. Até esta data, a assembléia não recebeu,
por parte do Governo, uma só iniciativa que prove seu interesse pela
proteção de Vila Boa; a mudança se está operando a custa dos últimos
dinheiros públicos, sem um gesto de amparo a esta cidade (...) (“A
COLLIGAÇÃO”, 1935, p.02).80”

Nesta mesma direção, Luiz do Couto publicou no jornal “Folha de Goiaz”,


palavras que podem ser entendidas como um chamamento coletivo aos “nascidos da terra”.
Deparamo-nos com um discurso abalado pela frustração ao constatar o desprezo das
autoridades instituídas pelo Estado Novo à cidade das tradições subjetivamente representada
pela existência de um passado “glorioso”. Por isso, com o intuito de valorizar o documento
apresentamos o seu fac-símile na figura 11. Observando as questões teórico-metodológicas,
transcrevemos, parcialmente, o testemunho de Luiz do Couto, tendo em vista os aspectos mais
contundentes do seu artigo, “Tú Não Morrerás”, considerado o prenúncio dos horizontes de
futuro retraçados para a Cidade de Goiás, a partir da segunda metade do século XX.

80
Jornal “A Colligação”, “Contra a destruição de Vila Boa”, Cidade de Goiás, 10 novembro, de 1935, n. 45
(p.02). Cf. AFFSD.
88

Figura 11 - Jornal “Folha de Goiaz”, “Tú não morrerás!”, n°. 35, Cidade de Goiás, 1936.

Fonte: Acervo de Jales Guedes Coelho Mendonça, cedido em cópia digital (inédito).

TRANSCRIÇÃO

A velha e sempre nova cidade fundada por Bartolomeu Bueno, às margens do rio
Vermelho, de facíllimo acesso, desde que haja técnicos honestos que, de facto e de verdade estudo os
seus arredores, (...) guarda comsigo, como patrimônio sagrado, a energia e patriotismo de seus
habitantes, a mais ainda a vitoriosa audácia do paulista ousado que através de todas as amarguras
plantou as suas tendas de bandeirante na maravilhosa terra do índio (...). Tu não morrerás! (...) Um
povo como o desta capital, não se vence, porque é invencível pela sua altura cultural e moral: esmaga-
se porque a força é força – não enverga o aço: quebra-o. Vão tirar as regalias desta incomparável
cidade mediterrânea. Não foram ainda tiradas, mas o podem ser a qualquer momento por um simples
decreto. (...) Não nos acovardemos. Sabemos, dentro dos nossos próprios recursos, luctar sem soberba
e viver sem desfalecimentos. Nenhum mal queremos a futura capital nova; que ella prospere, se
desenvolva, seja grande e feliz, e em um futuro próximo possa servir de paradigma às maiores cidades
do Brasil. Mas, esse nosso anceio muito longe está do facto de se despresar, humilhar a terra mais
maravilhosa, mais exuberante, mais formosa, mais cults que é a Cidade de Goiás, que se houvesse bôa
vontade seria uma das mais encantadoras do paíz não só pelas condições tipographicas como pelas
infinitas belezas naturaes que cobrem inigualável explendor. Bôa vontade e nada mais, e com despesas
diminutas a velha cidade de Anhanguera trunpharia (...) entre todas das unidades federativas. Mas,
sobre minha terra natal, cahio o implacável braço daqueles que a desamam, obscurecendo suas
admiráveis possibilidades para leva-la ao aniquilamento. Engano, Goiás não desaparecerá. Goiás
viverá (...). Aqui todos deram-se as mãos (...) todos os corações pulsam nos mesmos rithmos, todas as
almas se confundem em uma só para a vitória da justa causa de um povo que lucta para viver em paz e
que possue a noção clara de seos destinos (“FOLHA DE GOIAZ”, 1936, p.01).81

81
Jornal “Folha de Goiaz”, n°. 35, “Tú Não Morrerás!” Por: Luiz do Couto; Cidade de Goiás, domingo, 29 de
março, de 1936, p.01. Fonte: Acervo de Jales Guedes Coelho Mendonça, cedido em cópia digital (inédito).
89

Estamos diante de uma parcela das insatisfações que, supostamente,


representam as demandas da coletividade vilaboense e suspeitamos que elas estejam
relativamente em consonância com as ações principiadas pelos guardiões das tradições, em
1934. Embora, algo, em específico, chamou-nos a atenção. Confrontando as datas dos artigos
publicados no jornal “Folha de Goiaz”, “Um Gesto de Mulher Goiana” e “Tú Não Morrerás!”,
ambos de 1936, concluímos que houve intenção por parte dos representantes da família
Couto, Goiandira e Luiz do Couto, em publicizar as razões e, na sequência, as estratégias
concretas de proteção da Cidade de Goiás contra as tentativas de “aniquilamento”.
Na frase: “Sabemos, dentro dos nossos próprios recursos, luctar sem soberba e
viver sem desfalecimentos”82, Luiz do Couto parece aludir a inciativa da filha que se
voluntariou junto ao capitão da Companhia Isolada da Polícia Militar, Lindolpho Emiliano
dos Passos, alguns dias antes das respectivas publicações no jornal “Folha de Goiaz”.
Esclarecemos, uma vez mais, que o ofício original enviado pela artista, bem como parte do
artigo: “Um Gesto de Mulher Goiana” foi republicado pelo extinto periódico, O Bandeirante,
em 1995, sob o título, “O ideal de uma artista".
Objetivando fundamentar o envolvimento da protagonista com a preservação
cultural e institucional na Cidade de Goiás, desde os anos de 1930, cumpre-nos, assim,
destaca-lo, integralmente:

Ilm°. Cap. Lindoplho Emiliano dos Passos, DD. Comandante da Companhia


da Polícia Miliar nesta cidade.
A Polícia Militar de nosso Estado é uma corporação em tudo e por tudo
digna de apreço e dos cuidados de todos os goianos. Não pode ficar,
portanto, à margem do problema educacional. A disciplina dos Quarteis e a
formação do bom soldado dependem de alto em alto grau da alfabetização
dos que pobremente vestem a farda de mantenedores da ordem e defensores
da sociedade. Sei que a Companhia da Polícia Militar, sob seu digno e
honesto comando, não possui uma escola. Mas, essa escola é imprescindível,
a bem do Estado, a bem da Força Pública e a bem dos próprios soldados que,
instruídos, melhor cumprirão seus deveres. Goiana que sou, amando
loucamente a minha terra, o meu povo e as suas organizações civis e
militares, venho perante V.S. que é inquestionavelmente uma das figuras
mais brilhantes da Polícia Militar de Goiás, oferecer os meus serviços de
professora (normalista) à Companhia aqui instalada dando aos soldados
analfabetizados aulas três vezes por semana, no espaço de duas horas cada
aula. O meu trabalho será absolutamente gratuito (grifo original). Não
receberei nem vencimentos, nem presentes pelo serviço que eu prestar.
Quem serve à sua terra e aos seus filhos cumpre apenas um dever sagrado,
eu quero cumprir esse dever. Há de estranhar V. S. que seja uma moça que
semelhante oferecimento faça. Mas, V.S., inteligente como é, compreenderá
que para a grandeza de nossa terra, para a cultura do nosso povo, desde o

82
Idem.
90

potentado ao humilde, não há divisão de sexos, não há idade, existe somente


o trabalho comum para o engrandecimento do nosso berço natural,
engrandecimento esse, que todos devem colaborar na medida de suas forças
e das suas energias. Estou certa que não se negará a aceitar o meu
oferecimento. Apresento a V.S. os meus protestos de estima e consideração,
saúde e fraternidade. (grifo nosso)
Goiás, 11 de março de 1936.
Goiandira Ayres do Couto
Normalista83
(“FOLHA DE GOIAZ” apud “O BANDEIRANTE”, 1995,
s/p).

Baseando-nos na interpretação do que foi sublinhado, estamos convencidos de


que a inciativa de Goiandira do Couto era uma manifestação de enfrentamento à iminente
crise do mudancismo condicionado.
É importante pontuar que a argumentação e a atitude, vistas por ela mesma
como inusitada, explicitam pelo documento o estatuto realístico da identidade social
construída no jogo das rupturas individuais, objetivando permanências de interesse
aparentemente coletivo. Por esse motivo, suspeitamos que a intenção, ao instalar a escola
primária na Companhia da Polícia Militar, era fortalecer a instituição, listada entre as
promessas entre as promessas de Pedro Ludovico, desde 1932, de que ela permaneceria na
Cidade de Goiás mesmo após a efetiva transferência da capital. Cremos, ainda, que havia uma
velada expectativa de que a implantação desta instituição de ensino primário transversalmente
reafirmaria o potencial educacional da antiga capital e, portanto, culminaria no cumprimento
das promessas governistas relacionadas à preservação do Lyceu e a Escola Normal Oficial,
alvo das primeiras reivindicações de Luiz do Couto, conforme apresentamos no subitem
anterior. Sendo assim, cogitamos a hipótese de que o interesse precípuo (tanto de Luiz do
Couto quanto de Goiandira do Couto) era preservar os ícones das tradições educacionais na
Cidade de Goiás, ameaçados pelo “o implacável braço daqueles que a desamam”, sob a
estratégia de mobilizar a opinião pública local, isto é, a oficialização dos modos de resistência
aos dilemas do mudancismo. Á priori, o requerimento da artista obteve a seguinte resposta:

E então, no dia 14 de abril de 1936, o ideal de uma mestra foi concretizado,


recebendo a comunicação através de oficio enviado pelo cmt. da 1ª Cia. da
Polícia Militar, Cap. Lindolpho Emiliano dos Passos, informando a
instalação oficial da Escola Regimental para o dia seguinte. À oportunidade,
o progenitor da mestra, Dr. Luiz do Couto, proferiu efusivo discurso e em

83
Cf. Jornal “Folha de Goiaz”, “Um Gesto de Mulher Goiana”, Cidade de Goiás, n°. 35, 29 de março de 1936
apud Jornal “O Bandeirante”, “O ideal de uma artista", Cidade de Goiás, março de 1995 (s/p.). Fonte: Acervo
de Taís Helena Machado Ferreira, cedido em cópia digital.
91

seguida o da insigne professora, que começava então desenvolver sua missão


(“O BANDEIRANTE”, 1995, s/p)84.

Nenhum dos dois periódicos examinados (Folha de Goiaz e O Bandeirante)


trouxeram - parcial ou integralmente -, os discursos proferidos por ambos os membros da
família Couto. No entanto, é possível “reimaginar” o que pode ter acontecido em mais esse
“ato cívico” protagonizado por Goiandira do Couto, na década de 1930. O fato foi
rememorado por Lindolpho Emiliano dos Passos, ao jornal “Folha de Goyaz”, anos mais
tarde. Nas linhas desse relato de memória observa-se o considerável lucro simbólico
capitaneado pela artista, na Cidade de Goiás, particularmente, entre as instituições. Sobre esse
aspecto, construiremos a narrativa do capítulo seguinte. Retomando as memórias do aludido
ex-capitão da Companhia Isolada da Polícia Militar, principalmente, no que diz respeito ao
que ele avaliou como um “momento histórico que não pode ser esquecido”, ressaltamos:

Me recordo ao ato da fundação da Escola Regimental de Alfabetização, no


âmbito da Companhia Isolada da Polícia Militar, sob o meu comando, nesta
Cidade de Goiás em 1936. Esse invulgar acontecimento, que muito
contribuiu para a formação moral e cívica dos meus comandados, só foi
possível graças à cooperação da devotada professora normalista, Senhorita
Goiandira Ayres do Couto, que ofereceu para lecionar, gratuitamente, aos
praças da Companhia, na escola que ajudaria a fundar; e, sob a regência
dessa ilustre e culta mestra (...). A escola foi festivamente inaugurada pelo
presidente da Assembleia Legislativa, deputado Hermógenes Ferreira
Coelho, presentes também, o prefeito da capital, coronel Joaquim da Cunha
Bastos, deputados, professor Ferreira, Dr. Luiz do Couto, pai da professora
Goiandira e pessoas gradas. Procedida a leitura da ata dos trabalhos e
chamada dos 20 soldados-alunos inscritos, alguns oradores fizeram uso da
palavra, enaltecendo o acontecimento cívico e as virtudes da professora
Goiandira (“CIDADE DE GOYAZ”, 1986, p.04)85.

À baila destas representações reportamo-nos a Schwarcz (2013, p.58-59) que


propôs reflexões válidas sobre o desafio de estudar trajetórias de vida equilibrando a linha
tênue que expõe as particularidades do biografado à estrutura histórico-social. Segundo a
autora, analisar detidamente a relação simultânea destas expressões paralelas possibilita-nos
entrecruzar à biografia as amarras sociais do personagem e, por conseguinte, tangenciar uma
“realidade pluralizada por trás das definições homogeneizadoras” (p.59), acrescenta. Os
caminhos e descaminhos da atuação de Goiandira do Couto na Escola Regimental, Ferreira
(2011, p.61) afirma que o processo de alfabetização e as aulas de noções matemáticas e

84
Idem.
85
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Reminiscência”. Por: Lindolpho Emiliano dos Passos; Cidade de Goiás, agosto de
1986, p.04. Cf. AFFSD.
92

cívicas foram interrompidas, no ano seguinte, por razões que estariam, ainda, latentes na
memória da artista. Em 2009, quando concedeu entrevista à pesquisadora, ela formulou a
seguinte resposta sobre o tema:

E sabe por que terminou as aulas no quartel? Terminaram assim, porque


mudou-se a capital, foi em 36 para 37, a capital mudou, levou polícia, os
soldados foram todos. Ficou pouquinho soldado, não tinha condição de dar
aula para eles mais. Eles tinham que fazer o serviço da polícia, não tinha
como lecionar mais. Foi por isso que terminou a aula. Foi por causa da
mudança da capital (COUTO apud FERREIRA, 2011, p.63).

Versão que se confirma nas palavras do articulador oficial da explicitada


escola, Lindolpho Emiliano do Passos, em 1986: “Sempre regida por sua fundadora, a escola
subsistiu durante a permanência da 1ª Companhia, na capital. Recolhida à sede do Batalhão,
em Goiânia”86. A hipotética estratégia transversal dos Couto, de fortalecer o Lyceu e a Escola
Normal, sucumbiu-se diante da concretude da transferência. Tais argumentos entrelaçam-se às
amplas discussões tramadas por Mendonça (2013, p.524), sobre o descumprimento da
Constituição de 1935, que segundo o autor, era a “fonte normativa legitimadora da
transferência”.

O governo ludoviquista interpretou que não precisava de mais nada além do


preceito mudancista gravado na constituição de 1935, nem mesmo a
aprovação de uma “lei” pela Assembleia Legislativa. Segundo o pensamento
do governador, caberia tão somente, ao chefe do poder Executivo declarar a
melhor ocasião para a retirada dos poderes na Cidade de Goiás. Nada mais
(MENDONÇA, 2013, p.533).

A apresentação de alguns detalhes políticos da transferência tem por objetivo


suscitar reflexões sobre a condição cultural da Cidade de Goiás, após a tomada dessas
medidas. E, com isso, sedimentar o campo das reflexões à vida urbana dos remanescentes
para, assim, pensar os desdobramentos de Goiandira do Couto, diante do quadro de relativa
ruptura da modernidade goiana com as representações do passado tradicional87. A vida

86
Idem.
87
Conforme dados biográficos levantados por Ferreira (2007, p.32), no ano de 1936, Luiz do Couto torna-se
membro-fundador do Instituto Histórico Geográfico de Goiás. Após a transferência, com a intenção de reunir os
letrados do Estado de Goiás em torno de uma associação, Pedro Ludovico Teixeira investe o professor Colemar
Natal e Silva de poderes para “(...) instalar a Academia Goiana de Letras, pensava-se em um ambiente de
pessoas que tivesse lídimo interesse e representação de nossa cultura, podendo ultrapassar até mesmo os
meandros da literatura. Nessa fase da consolidação, a comissão organizada acatou a sugestão do poeta Luiz
Ramos de Oliveira Couto no que tange ao número de cadeiras, que para ele, deveriam ser 21 e seus respectivos
patronos. A comissão depois de várias considerações acatou a sugestão do poeta. Dias após a escolha do
primeiro presidente efetivo, pelo Interventor Federal Pedro Ludovico Teixeira, em catorze de abril de 1939, o
93

pública da artista não se arrefeceu com o abatimento da cidade. Portanto, ainda segundo
Mendonça (2013), estudar a situação a que restou reduzida a Cidade de Goiás, depois da
mudança da capital, é uma problemática que a historiografia precisa debruçar-se. Diante dessa
lacuna, assumiremos os riscos de redizê-la à luz da pessoa-personagem, Goiandira do Couto,
já que as fontes indicam-nos um diálogo profícuo. Portanto, afirmamos que a intenção é
problematizá-las no capítulo subsequente.
Nesse sentido, reexaminando as fontes, deparamo-nos com a seguinte
afirmação proferida por Lindolpho Emiliano dos Passos, em 1986: “(...) os méritos da
abnegada professora Goiandira não ficaram esquecidos. Estão gravados nos anais da Polícia
Militar” (“CIDADE DE GOIAZ”, 1986, p.04)88. Desse modo, constatando a permanência
memorável de Goiandira do Couto nesta ortodoxa instituição, propomo-nos a investigar os
sensíveis entrecruzamentos de sua trajetória noutras entidades articuladas, a partir dos anos de
1940, sob o propósito de ressignificar culturalmente o lugar de importância da antiga Vila
Boa, no contexto identitário estadual89. Subjetivamente, os meandros dessa readaptação
urbana inscreveram Goiandira do Couto como uma das principais protagonistas do processo
de reelaboração cultural do passado e das tradições vilaboenses que, por conseguinte, a partir
dos anos de 1950, adquiriram notoriedade nacional.

poeta Luiz do Couto renuncia à associação, já que não concordava com várias posturas do interventor. Tal fato,
ocorreu no dia 22 de abril do mesmo ano, durante a 4ª sessão preparatória” (FERREIRA, 2007, p.81).
88
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Reminiscência”. Por: Lindolpho Emiliano dos Passos; Cidade de Goiás, agosto de
1986, p.04. Cf. AFFSD.
89
“[...] Cidade-evolução, cidade-monumento, cidade-cultura, cidade-mãe, enfim, – Goiaz está presente em todas
as emoções cívicas de nossa história, desde as remotas quadras da tumultuária colonização lusa até a edificação
de Goiânia. A sua própria sucessora, Pedro Ludovico a concebeu dentro dos espessos paredões de seu Palácio do
Conde dos Arcos, de cujos compartimentos assimétricos e de desenhos bizarros partiam as ordens e os decretos
que iriam influir na vida de todos os quadrantes do território goiano. Esse sentimento de valorização pessoal que
cada indivíduo naquela cidade possui é defensável e traduz um pormenor por certo de sadio patriotismo, uma vez
que não existe patriotismo de boas raízes sem o natural apego do homem ao lar [...]. Essas razões recomendam
Goiaz como um excelente ponto de turismo, porque ali se sente plenamente o brasileiro típico do Estado, [...].
Acho, com a maior sinceridade, que à antiga capital devem ser encaminhados os turistas que venham ter ao
Estado, os quais, após sentir a vibração trepidante de Goiânia e Anápolis, encontrarão na cidade de Anhanguera
algo que muito podem se orgulhar os goianos. [...]. Para se conseguir esse objetivo [...], há uma coisa para se
fazer: intensificar o intercâmbio social entre a velha e a nova capital - duas cidades que têm que marchar de
mãos dadas, no futuro” (JORNAL “CIDADE DE GOIAZ”. “A cidade de Goiás como centro turístico”, 10
março, de 1940. N°. 75, s/p). Fonte: AFFSD.
94

CAPÍTULO II

PILARES DA TRADIÇÃO: Goiandira do Couto e as Instituições

O “costume” não pode se dar ao luxo de ser


invariável, porque a vida não é assim (...).

(Eric Hobsbawm)

Duas discussões primordiais orientam este capítulo. A primeira apresenta as


diretrizes institucionais que respaldaram o reordenamento cultural vivido pela Cidade de
Goiás, entre as décadas de 1940 a 1960; a segunda amplia a discussão, introduzida no capítulo
anterior, a respeito do processual envolvimento de Goiandira do Couto com prováveis
instituições artístico-culturais com o desejo de resignificar a identidade urbana vilaboense
destituída da condição de centro, nos anos de 1930, conforme já foi discutido.
Evidentemente estas organizações contribuíram de modo eficaz para à
ascendente projeção cultural protagonizada pela artista em estudo, legitimando-a, inclusive,
na posição de guardiã das tradições locais. Para desfiar os fios que entrelaçam essa trama, faz-
se necessário refletir, conjuntamente, sobre o processo de modernização econômica do estado
de Goiás, que seguiu as diretrizes da política nacional - implantadas no período delimitado -
conhecida como a Marcha para o Oeste90.

Indústria e agricultura já apresentavam um significativo grau de integração


inter-setorial em praticamente todos os ramos localizados do país. A
expansão da fronteira agrícola em Goiás ocorreu em consonância com as
transformações estruturais na economia do Sudeste do país. A ocupação
regional se fez, porém, calcada na ação política governamental no sentido da
conquista do Oeste. Nos anos 40, a ideologia da Marcha para o Oeste tornou-
se a principal bandeira da ocupação e colonização do espaço regional. O
Estado Novo, por meio do mito da conquista da fronteira, recriou o culto ao
“espírito bandeirante” no processo de desbravamento e ocupação dos sertões
(BORGES, 2000, p.71).

90
“O verdadeiro sentido de brasilidade é a Marcha para Oeste. No século XVIII, de lá jorrou a caudal de ouro
que transbordou na Europa e fez da América o continente das cobiças e tentativas aventurosas. E lá teremos de ir
buscar: os vales férteis e vastos, o produto das culturas variadas e fartas; das estradas de terra, o metal com que
forjara os instrumentos da nossa defesa e de nosso progresso industrial”. (VARGAS, 1938, p.124).
95

Ora, pelo que se percebe, o advento da modernidade ludoviquista esbarrou em


outras percepções que, de certo modo, reavivaram o tradicionalismo cultural dos remotos
tempos goianos. Ao que parece, a diáspora constituída nos anos de 1930, por meio das
disputas político-ideológicas entre a Cidade de Goiás (velha) e a nova capital, Goiânia,
aparentemente, desfazia-se diante da interdependência cultural entre ambas as cidades goianas
que, nesse caso, representavam o discurso da “modernização conservadora91” implantada no
Brasil Central, em princípios da década de 1940. A expansão das práticas agrícolas
concentrou seus esforços na unidade do território nacional alicerçada, sobretudo, à imperiosa
perspectiva progressista dos grandes centros industriais da época, explica Borges (2000, p.72).
A retórica “desenvolvimentista” do Estado-Nação varguista se consolidou ao reintroduzir o
lirismo da “missão” bandeirante, afirmando que o emergente desenvolvimento político e
econômico do Brasil dar-se-ia, tão somente, pelo desbravamento das fronteiras do Oeste do
país92.
Esta proposta, a renovação apregoada pela modernidade goiana, assentava-se,
simbolicamente, nas tradições históricas arraigadas à Cidade de Goiás; os nexos com o início
oficial do território goiano reintegraram, singularmente, a cultura da antiga capital ao discurso
político. Mesmo porque, a Marcha para o Oeste não tratava apenas de um projeto político-
econômico, mas sim, de um arrojado instrumento ideológico intencionado, sobretudo, na
reconstrução da identidade brasileira por meio da integração territorial.
91
Termo apropriado a partir da obra “Goiás nos quadros da economia nacional: 1930-1960”. O autor dedica-se
no terceiro capítulo, “A Fronteira Agrícola” (p.71-91), a uma exposição detalhada sobre este paradoxo. Cf.
BORGES, 2000).
92
A pesquisa desenvolvida por Coelho (2010): “Marcha para o Oeste: entre a teoria e prática”, traça um
paralelo entre o pensamento artístico-literário de Cassiano Ricardo e o discurso do governo federal estabelecido
de 1930-1945 (Estado Novo) que, segundo o autor, previa a incorporação dos “espaços vazios”, como um
critério para alavancar uma economia nacional forte e centralizada. Nesse sentido, suspeitamos que as ações
políticas ocorridas, especialmente a partir anos de 1940, tiveram repercussões significativas de cunho político-
cultural e, por esta razão, tenham impactado o sentido de valoração das tradições históricas da Cidade de Goiás
tanto na esfera nacional quanto estadual. A partir das explicações dadas pelo referido estudo, é possível
entendermos as noções que pautaram a redescoberta do passado como projeto de futuro. Do ponto de vista
artístico-cultural, Coelho (2010) esclarece que: “a Marcha para Oeste foi considerada por alguns críticos como
obra fundamental da sociologia brasileira da década de 40, no dizer de Corrêa (1976), é um “ensaio que tanto
tem de admirável pelas particularidades pessoais do seu estilo, como pela novidade ao estudo do bandeirantismo
e sua influência na formação política e social do Brasil” (p.20). Mas, poderíamos acreditar apenas que o ensaísta
buscaria explicar quais elementos das bandeiras influenciaram a formação da sociedade brasileira, ou o autor
buscava justificar ideologicamente o Estado, explicando o presente ao apropriar de uma reinterpretação do
passado? O que parece é que esse intelectual em particular busca construir uma explicação histórica fundada na
tradição, para justificar e enquadrar a situação política do momento em que escreve em uma continuidade
temporal; explicação que procura sustentar-se em sua idealização da aventura Bandeirante rumo ao Oeste,
aventura esta, que se explica pela união entre autoridade e liberdade, que forma um par que garante a democracia
tipicamente brasileira. Neste sentido, Cassiano Ricardo lança mão de recursos – sobreposições de mitos,
elementos cromáticos e da tradição paulista – para re-construir uma idealização do passado e direcionar um
sentido histórico que justificaria o exercício da liberdade sob a tutela de um Governo forte, Governo este, que
refletiria a herança da autoridade do líder na formação e organização do Estado brasileiro” (p.61-62). Cf.
COELHO (2010)
96

Essa espiral de expectativas, objetivando o amplo empoderamento do Estado


Novo, apropriou-se, estrategicamente, das representações do passado colonizador com o
propósito de orientar as diretrizes do presente rumo à “modernidade” nacional. Por essa
razão, acreditamos que seja razoável afirmar que a Cidade de Goiás, a seu modo, integrou-se
ao projeto ufanista de Pedro Ludovico Teixeira sem que houvesse qualquer alteração à sua
identidade urbana, conforme desejavam os antimudancistas e/ou guardiões das tradições
locais. Parafraseando Delgado (2003), essa atmosfera foi responsável pelas primeiras
concepções das “cidades históricas”93 brasileiras que, em virtude da ideia de progresso
associada à Marcha para o Oeste (1940-1960)94, ressignificou o lugar de importância dessas
urbes.

A declaração e classificação de algumas cidades como históricas atribui


territorialidade à história que as instituições dotadas do poder de consagrar
os símbolos nacionais querem perpetuar, engendrando os “lugares de
memória” onde a estabilidade e preservação do espaço favorecem “o
relembrar e reencontrar do pertencimento, princípio e segredo da
identidade” que se pretende uniformizar e impor como nacional e regional
(DELGADO, 2003, p.396-397).

Realçar alguns apontamentos sobre o contexto nacional e, imbricá-los às


reflexões suscitadas pela autora, encaminha-nos ao adensamento das questões centrais que
balizam este capítulo; o papel das instituições culturais locais, cuja participação da
protagonista desse estudo, Goiandira do Couto, confirma-se por meio de documentos, atuando
em práticas culturais, aparentemente, entrosadas com as tendências e os poderes nacionais.
Suspeitamos, ainda, que os reais interesses expansionistas de Getúlio Vargas, em nenhum
momento, tiveram lugar no debate e/ou foram colocadas à prova por alguns daqueles
conhecidos representantes da comunidade dissidente de Vila Boa, tal como aconteceu em
1932. Temos a impressão de que “boas novas” causaram em alguns dos seus “distintos”
moradores um sentimento de que havia chegado o “sopro de esperança” para sublimar as
frustrações vividas em de 1937.

93
“Especificamente, as “cidades históricas” encontraram-se no genius loci um triunfo para fazer face à erosão do
seu tecido econômico e à perda de competitividade” (...). A cultura, o passado e o patrimônio são recursos que
(...) assumiram uma posição central na nova sintaxe do espaço urbano, dando origem a uma “metalinguagem do
patrimônio”, e propiciando que o passado seja refuncionalizado por meio de ações que podem variar, desde
políticas urbanas de reordenamento dos lugares, estetização das paisagens urbanas e monumentalização das
arquiteturas, até reinvenção de tradições e folclorização de determinadas práticas culturais” (TAMASO, 2007,
p.02).
94
“Nos anos 60, completava-se a integração inter-setorial da economia brasileira. Agropecuária e indústria, a
partir daí, não mais constituem compartimentos estaques dentro da economia nacional. Pelo contrário, trata-se de
unidades de atividades produtivas que fazem parte de uma mesma divisão social do trabalho” (BORGES, 2000,
p.17).
97

Figura 12 - Convite dos Festejos Alusivos ao Aniversário de Getúlio Vargas. Cidade de


Goiás, 1941.

Fonte: AFFSD.

Vemos no acinzentado documento da figura 12, uma programação que parece


saudar a chegada dos “novos” horizontes propostos pelas políticas expansionistas do poder
federal. Extraímos, das entrelinhas do convite (figura 12), que a intenção dos representados
95
guardiões vilaboenses - famílias tradicionais, autoridades civis, políticas e religiosas -, era
demostrar irrestrito apoio da população, em geral, ao governo e às diretrizes do projeto
político-econômico capitaneado por Getúlio Vargas, a partir daquela década.
A experiência de instituir marcos simbólicos vinculados aos começos oficiais
da região Oeste do país não era algo alheio à população local. O cruzeiro em homenagem ao
“Anhanguera” é um exemplo sensível e tangível desta identificação e, como era de se
presumir, comprovamos a presença dos Couto endossando as novas inciativas governistas.

95
Informamos que Zacheu Alves de Castro, listado entre os demais da comissão organizadora do evento, era
prefeito do municipal nesta ocasião.
98

Nesta solenidade, Goiandira do Couto aparece, para além de organizadora, ao


lado do irmão, desenvolvendo o talento artístico que preconizou suas primeiras aparições
públicas. Embora, neste evento, uma exposição de pinturas não estivesse inclusa na
programação, podemos afirmar que as artes plásticas não tardaram em figurar as ressonâncias
idealizadas, culturalmente, pelo Estado Novo. É oportuno pontuar que, sobre esse domínio
artístico em âmbito local, dedicaremos mais vigor a estas questões nas páginas adiante. Ainda
assim, dada à importância do contexto, revisitamos as reflexões de Corrêa (2003), por
entender que a autora expõe aspectos peculiares os quais conjugam com algumas das
hipóteses levantadas por essa pesquisa e, portanto, tempestivamente, merecem a devida
evidência:

(...) a produção artístico-cultural da cidade de Goiás, com raríssimas


exceções de Veiga Valle, Hugo de Carvalho Ramos e Cora Coralina, eram
manifestações que aconteciam de forma solitária, sem refletir nas demais
cidades do Estado e sem serem mostradas ou reconhecidas além das
fronteiras. (...) Os movimentos de vanguarda nas artes plásticas do Brasil não
chegaram à Vila Boa. Isso, contudo, propiciou uma reação localizada: as
artes plásticas, principalmente, adquiriram características regionais e se
firmaram no cenário vilaboense. Artistas locais (...) do século passado e dos
dias atuais, com ou sem formação acadêmica, limitam-se a reproduzir
paisagens naturais e arquitetônicas nas suas telas. O cenário vilaboense é
transposto para as artes plásticas mantendo, nas telas, o bucolismo e o clima
românticos locais (CORRÊA, 2003, p.250).

De fato, pelo que apresentamos no capítulo anterior, o ingresso de Goiandira


do Couto nas artes plásticas se deu empiricamente acompanhada pelos ensinamentos da mãe,
Maria Ayres do Couto, e no espaço doméstico, aspecto peculiar que rendeu-lhe, segundo a
crítica, o título de artista autodidata. O “dom” artístico impressionou a comunidade local
conduzindo-a ao reconhecimento público, porém, ainda, restrito aos domínios da Serra
Dourada. As releituras ao plano político nacional - Marcha para o Oeste -, no que tange às
suas bases culturais, levam-nos a crer que houve na Cidade de Goiás inciativas profícuas no
sentido de organizar uma agenda artístico-cultural que promovesse/divulgasse a cidade, os
artistas “da terra” e o modo como dialogavam a arte com as tradições locais.
Retrilhar o caminho das primeiras instituições empenhadas na (re)valorização
da cultura e das tradições vilaboenses é de suma importância. Mesmo porque, de acordo com
a documentação histórica - jornais, convites e programações destes eventos – evidencia-se o
99

engajamento de Goiandira do Couto, juntamente com outros pioneiros da época96,


movimentando a vida cultural da Cidade de Goiás que, na visão de Corrêa (2003), foi “palco
de uma arte que possui caraterísticas marcadamente locais, preservando uma cultura que não
absorveu o moderno” (p.250). Por esse motivo, afirmamos que a vertente preservacionista,
inspirada nas evocações de um passado “glorioso” da antiga Vila Boa, tornou-se o principal
parâmetro para a criação da OVAT, em 1965, a qual foi (e ainda é) uma entidade composta
por moradores locais. Entre suas prioridades, destacamos:

Art. 2° - A OVAT tem por finalidade promover todo e qualquer movimento


artístico cultural de Vila Boa e como meta prioritária, a guarda e zelo de seus
aspectos tradicionais e culturais, de seu aspecto físico, de seus usos,
costumes, festas populares e religiosas. Proteger obras de arte antiga e
contemporânea, como também aspectos artísticos e culturais expostos ou não
em museus ou pertencentes a particulares (ESTATUTO da OVAT, Livro n°
A-1, fl. 01, 1978).

Este 2º art. do estatuto que rege as ações da OVAT explicita o amplo interesse
pela atuação e gestão cultural empreendida pela entidade, na Cidade de Goiás, desde os anos
de 1960. A pleno termo, essa instituição articulou um sólido processo de “Invenção das
Tradições” cuja atuação da personagem central deste estudo valeu-se das posições de membra
fundadora, legitimadora simbólica (devido a seu prestígio social e reconhecimento público
local) e mentora estético-criativa do mais representativo legado das reinvenções concebidas
por esta entidade: a Procissão do Fogaréu97, tema central do terceiro subitem deste capítulo.
Por essa razão, os caminhos historicizantes dessa trama enxergam um enlace
entre a trajetória artística de Goiandira do Couto e o consistente processo de ressignificação
cultural da Cidade de Goiás, o qual se consolida, substancialmente, a partir da “missão”
empreendida pela OVAT na década de 1960. Os estudos de Hobsbawm e Ranger (1997)
amparam a hipótese de que a OVAT concretizou o pensamento preservacionista introduzindo
práticas que muito se assemelham à definição dada pelos historiadores ingleses:

96
“E como representantes dessa vertente que não desmerece o legado do passado, surgem, na arte pictórica, Octo
Outurniro Marques, com suas cenas do cotidiano e flagrantes visuais da paisagem vilaboense, e Goiandira do
Couto que, (...) apresenta uma pintura arquitetônica de ruas, becos, casario e monumentos da antiga e atual
Goiás” (CORRÊA, 2003, p.250).
97
Discorreremos adiante, mais especificamente, sobre o envolvimento da artista com esta representação do
catolicismo popular que se tornou, desde os anos de 1960, a principal tradição inventada pela OVAT. A título de
esclarecimento preliminar, atinamos à seguinte definição: “A Procissão do Fogaréu da cidade de Goiás, festa
paralitúrgica que acontece todos os anos no decorrer da Semana Santa, é um exemplo concreto de (re)invenção
de tradições: de criação de valores culturais, de estratégias, de articulação e jogos de poder que as permeiam. É
um evento que projeta Goiás – cidade e Estado – para o Brasil e para o mundo. A Procissão representa uma das
cenas da Paixão de Cristo, com participação dos farricocos: figuras enigmáticas que são os destaques do cortejo”
(CARNEIRO, 2008, p.85).
100

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente


reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas de natureza
ritual e simbólica visam inculcar certos valores e normas de comportamento
através da repetição, o que implica automaticamente, uma continuidade em
relação ao passado histórico apropriado (HOBSBAWM e RANGER, 1997,
p.9).

Discutiremos, nesta sessão, em um subitem específico, os tentáculos dessa


organização nas práticas culturais locais. A priori, trazer a participação de Goiandira do
Couto implica apontar os horizontes em torno da sua produção artística que lhe conferiu
críticas semelhantes à do escritor José Mendonça Teles (2005): “suas telas, construídas com
areias coloridas da Serra Dourada, trazem a radiografia da cidade, com suas praças, ruas,
becos, igrejas e casarões coloniais mostram a artista antenada na terra de seus antepassados”
(p.91). Mas, a qual “terra” o escritor se refere? Pela descrição das referências radiografadas,
percebemos que se trata de uma terra inventada pela ganância que se reinterpretou na política
econômica do Estado Novo que objetivava ostentar um poder centralizado pela
“recolonização” da fundamental riqueza do sertão: suas terras.
Suas obras geram certo consenso entre os críticos de arte, elas nos instigam
deduzir que a função artístico-social da pintora esteve ligada aos guardiões das tradições
vilaboenses, que foram inventadas, a partir do passado colonial desta cidade, com ênfase na
valorização da cultura europeia em detrimento às demais culturas que protagonizaram esse
mesmo passado. Acerca disso, a recepção de Elder Camargo de Passos, presidente e fundador
da OVAT, demonstra-nos a confluência da estética coutiana com os princípios que regeriam a
entidade pela qual Goiandira do Couto destacou-se como ativa integrante:

O colorido suave, delicado como a personalidade da artista, fez-se sentir na


transposição para seu trabalho de sua sabedoria adoçada com a poesia e
embevecida com a musicalidade do clima de aconchego que a velha Goiás
inspira entidades de notável sensibilidade (MENEZES, 1998, p.133-134)
(grifo nosso).

As sensibilidades mencionadas permitiram-na reinventar imagens urbanas


susceptíveis aos contrastes de luz e sombra. Esta particular forma de representar a Cidade de
Goiás demonstra que sua produção visual estabeleceu-se no jogo de ausência e presença; um
reflexo parcial da realidade que se vê e que intenciona parecer a “verdade” da paisagem
vilaboense que se tem na atualidade. Obviamente, as que as subjetividades não verbais da arte
de Goiandira do Couto devem ser investigadas a partir do conjunto das estruturas sociais,
101

culturais e institucionais da artista; esperando que, por meio delas, possamos entender o
entalhamento constituído no seu modo de ver a Cidade de Goiás, o qual nos parece discursar
por uma visão anacrônica da antiga capital. Segundo Freitas (2004), esse é um exercício
próprio do historiador cultural da arte, pois:

Enquanto o historiador da arte privilegia apenas a invenção formal de uma


história erudita das grandes obras de arte, o historiador cultural por sua vez,
ao permitir-se interpretar aquelas imagens artísticas repetitivas e não
inovadoras, acaba por contribuir, entre outras coisas, à compreensão das
mentalidades coletivas (FREITAS, 2004, p.6).

O olhar que lançamos para as imagens, sobretudo, as de cunho artístico que


embasam esta pesquisa, é cultural. Nessa direção, as palavras do autor possibilitam-nos,
ainda, imbricá-las ao conceito de Hobsbawm e Ranger (1997), “Invenção das Tradições”,
lente teórica que nos ajudará compreender o papel das instituições, a exemplo da OVAT, suas
estratégias e práticas culturais e, sobretudo, em que medida elas contribuíram para a
visibilidade nacional e internacional, tanto para Goiandira do Couto quanto para a Cidade de
Goiás, particularmente, ao final da década de 1960. Conjectura-se que arte e tradições
“inventadas” fizeram parte do jogo de luz e sombras em torno da ressignificação cultural e
identitária da Cidade de Goiás, ocorrido na segunda metade do século XX.
Os apontamentos apresentados aclaram aspectos relevantes do percurso
institucional vilaboense, interligado à figura pública de Goiandira do Couto, considerando que
ambos, cidade e artista, fundiram-se como símbolos da cultura e das tradições de Goiás, não
apenas enquanto município, mas sim, com mais vigor, em nível de Estado. Essa sessão visa
expor as problemáticas referentes à construção da ideia de “cidade histórica” e tradição que
conjectura-se orbitar em torno de Goiandira do Couto, enquanto artista plástica e moradora
pertencente ao seleto grupo das famílias tradicionais.

3.1 Vieses e Revezes da Mudança: arte e cultura projetando tradições

A historiografia goiana clássica, ao ser reexaminada à luz das informações


trazidas pelos documentos (jornais, panfletos e obras/textos memorialistas) e/ou pelas análises
provenientes das produções historiográficas que se apropriam do viés cultural, possibilita-nos
meios para relativizar os argumentos que versam sobre o quadro de ressentimento, ostracismo
e abandono instalado na Cidade de Goiás, após a definitiva transferência da sede da capital
para Goiânia em 1937.
102

Buscamos, então, a releitura dessas hipóteses. Assim, por mais sutis que
pareçam ser os primeiros movimentos culturais encabeçados pelos moradores remanescentes,
optamos, nesse estudo, por interpretá-los como modos subjetivos de resistência em favor da
vida urbana na Cidade de Goiás. É inegável que a identidade citadina da antiga capital, até os
anos de 1930, mantivesse uma relação estreita com a condição de centro político-
administrativo. Conquanto, tendo em vista as teorizações de Hobsbawm e Ranger (1997), o
retorno às tradições do período colonial, suscitadas no ideal da “Marcha para o Oeste”,
instigou a continuidade das experiências do passado, o que, de certa forma, refundou no
espaço urbano vilaboense a prerrogativa de núcleo, isto é, lugar de começos, portanto,
propício às “reações, a situações novas, que ou assumem a forma de referência a situações
anteriores, ou estabelecem seu passado através da repetição quase obrigatória”
(HOBSBAWM e RANGER, 1997, p.10). No caso da Cidade de Goiás, identificamos uma
progressiva assimilação dessas duas síndromes.

Vila Bôa (Monumento Histórico) O panorama mental dessa unidade da


República localizada no coração do Brasil, tem se exaltado na obra de seus
mais ilustres filhos. A administração pública, que sabe transformar
esquecidos recôncavos em fontes de energia produtiva, saberá colaborar
também nessa iniciativa de sentido generoso. Porque dar a Vila Bôa o
reconhecimento de monumento histórico, é fixar na expressão de um
símbolo emocionante do sentimento patrício e na [ilegível] de gratidão na
síntese de um núcleo que serviu de vértice à concepção realizadora dos
heroicos fundadores de Goiaz (“CIDADE DE GOIAZ”, 1943, p. 01)98.

A voz da impressa vilaboense, representada no fragmento trazido pelo jornal


“Cidade de Goiás”, pronuncia os sentimentos da população, ou parte dela, perante a inusitada
possiblidade de reversão do quadro de “abandono” instalado na antiga capital em virtude da
mudança da sede político-administrativa do Estado de Goiás para Goiânia, na paradigmática
década de 1930. Direcionando-nos pelo pensamento dos historiadores ingleses (1997, p.13),
percebe-se que o texto jornalístico alude a uma eventual coesão social, amalgamada às
pretensões de conservação do velho como forma de instituir “novos” padrões que atendessem
às aspirações político-econômicas sistematizadas para o estado de Goiás, a nível nacional99. À

98
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Vila Bôa (Monumento Histórico)”. Goiás, 30 de abril de 1943. Ano VI; N° 229,
p.01. Fonte: AFFSD.
99
“O movimento de 1930, (...), não alterou a estrutura fundiária e agrária do país. Pelo contrário, o compromisso
político do Governo Vargas, com os grandes proprietários rurais e o pacto de poder entre a burguesia industrial e
o setor agrário tradicional (...) transformaram o projeto de desenvolvimento nacional em um processo de
“modernização conservadora”, que promoveu o avanço das forças produtivas e das relações capitalistas de
produção no setor urbano-industrial sem alterar o status quo agrário. (...) Em Goiás, o avanço da fronteira
agrícola e o aumento do número de estabelecimentos rurais, após 1940, não alteram as bases fundiárias no
103

priori, esse compromisso com a “modernidade conservadora” cingiu-se à cidade e à cultura


vilaboense, incorporando o sentido de identificação de uma sociedade: seu passado em
tradições oficiais; vislumbrando, a partir dele, (re)criar uma imagem representativa da origem
histórica do povo goiano integrada ao ideal populista de nação. Nesse sentido, a ideia de
monumentalização, preservação e patrimonialização da Cidade de Goiás difundiu-se,
incialmente, nos horizontes das instituições municipais (prefeitura e impressa local),
conforme explicita o documento transcrito. E, à posteriori, nos anos de 1950, transformar-se-
ia em plataforma política do poder público federal, por meio do Departamento do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional100 (DPHAN), assevera Delgado (2003, p.401).
Ainda segundo a autora, esse processo de reconhecimento histórico-cultural
despertou suspeitas no coletivo social vilaboense. O senso comum, influenciado, certamente,
pela memória dos “tempos da mudança101”, entendeu a proposta de “Monumento Histórico”
e “Tombamento de Bens Isolados” na Cidade de Goiás como uma ação negativa, ou seja,

Estado. Pelo contrário, o caráter da especialização desenvolvida na agropecuária reforçou o latifúndio como
forma de propriedade e “refuncionalizou” a tradicional estrutura de produção no campo a serviço do mercado”
(BORGES, 2000, p.127-129).
100
“O órgão federal do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional recebeu diferentes denominações desde a sua
fundação. De acordo com o decreto n° 25 de 30 de novembro de 1937, foi organizado o Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Em 1946, o órgão foi transformado em diretoria sob a sigla de
DPHAN. Em 1970, passou a ser Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Em 1979, o órgão foi
transformado em secretaria e assumiu novamente a sigla de SPHAN. Em 1990, a SPHAN foi extinta e criou-se o
Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC). Com a medida provisória n° 660, de setembro de 1994, a
denominação foi alterada novamente para o nome atual, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
doravante IPHAN” (DELGADO, 2003, p.400).
101
Expressão utilizada comumente para referir-se à transferência da capital para Goiânia, em 1937. Nos estudos
de Delgado (2003, p.403-404), encontramos uma seleção interessante de memórias sobre esse fato. Nos relatos
destacados, a percepção da mudança afunila-se ao sentimento de desolação e abandono vivido, nos “tempos da
mudança”, os quais foram rememorados pelos moradores depoentes e/ou repassados a eles através da oralidade.
Tomando como exemplo, sublinhamos o depoimento de Olímpia Azevedo Bastos, concedido à autora, em
novembro de 2001. Lê-se: “Eu me lembro do caminhão levando tudo do Fórum, eu vi tudo daqui de casa: os
caminhões saindo, o povo chorando e a banda de música tocando o dobrado. Eu tinha 19 anos. Eu lembro bem.
Teve uma decadência muito grande” (PASSOS apud DELGADO, 2003, p.403(entrevista)). Nota-se que o
sentimento de frustração aparece intimamente ligado à perda da identidade de centro/sede do poder político
estadual. Subjetivamente, analisamos o relato sob a ótica das relações oficiais de poder que, nesse caso, parecem
estender-se ao conjunto das tradições culturais da Cidade de Goiás quando enfatiza: “Teve uma decadência
muito grande”. Considerando esse aspecto, afirmamos que o processo de ressignificação cultural da referida
cidade, ocorrido entre os anos de 1940 a 1960, apresentou duas concepções distintas de resistência. De um lado,
as instituições e seus representantes (re)inventando formas de valorizar e exaltar o passado colonial,
provavelmente, aportados na tendência nacional de expansão para o Oeste. Do outro, isto é, dos populares, o
sentido de resistência aplica-se ao receio de que a preservação do passado perpetuasse o “abandono” da antiga
capital. Esse entendimento torna-se mais visível, a partir dos anos de 1950, ocasião em que foram tombados os
primeiros bens culturais (arquitetônicos) do centro histórico vilaboense, conforme dados do IPHAN, obtidos na
14ª Superintendência Regional. De maneira geral, e sem emitir juízos de valor sobre as opiniões dos
protagonistas, concluímos que o processo de reelaboração cultural da Cidade de Goiás trata-se de um fato
histórico de suma relevância e, por isso, redunda os horizontes da episteme histórica pretendida para este
capítulo.
104

temiam que esta medida determinasse a estagnação urbana local102. Assim, estamos
convencidos de que o estereótipo do atraso incitou o referido estado de desconfiança, ainda,
abalado pelas experiências (perdas) vividas em 1937. Esse sentimento, por sua vez, contribuiu
para que às representações sociais103 vinculadas ao “mito da cidade degradada” se
reinterpretassem no discurso popular dividindo opiniões, explica Delgado (2003, p.404).
Entretanto, a aparente discrepância entre o discurso institucional (público e civil), com relação
àquele proferido pelos populares, começa a fazer sentido quando nos deparamos com pistas
semelhantes ao trecho da entrevista concedida por um morador e publicada pela pesquisadora
em sua tese:

A cidade sempre sofreu o trauma, a síndrome da mudança. Os que ficaram,


(...), foi por opção. Os que ficaram, ficaram por amor, aqueles que
permaneceram, passaram a dedicar grande amor pela cidade. Após o trauma
da mudança, eles elegeram a cidade como principal referencial cultural.
Permaneceram grandes intelectuais (CASTRO apud DELGADO, 2003,
p.404).

Buscando explorar algumas ambivalências discursivas, partimos da seguinte


reflexão: a quem o entrevistado se refere como “eles”? Pois, em sua fala, ao mesmo tempo em
que constatamos unanimidade nos interesses daqueles que ficaram, observamos a distinção
dada a alguns: os intelectuais. Noutro relato enfatizado por Delgado (2003), encontramos
elementos que, de certo modo, reiteram o engajamento de atores operando nas práticas em
prol da ressignificação cultural da Cidade de Goiás, também, como reação à mudança.

Depois do período da mudança da capital, quando teve um resfriamento com


a mudança da capital, aí a cidade cresceu mais culturalmente, eu acredito
que para amenizar o sofrimento da mudança. (...) Na parte cultural foi criado
o Goiás Clube, o antigo Goiás Clube, era uma associação de moças e
senhoras. Foi reação da mudança (PASSOS apud DELGADO, 2003, p.418).

102
“O tombamento representava o atraso, manter essas pedras, dificuldade de andar, de transitar. (...) Então, a
visão que se tinha de tombamento era essa, estaríamos permanentemente condenados. O sonho de Goiás era
asfalto, aço, argamassa, esse era o sonho. A cidade queria crescer, se igualar à Goiânia. O grande sonho era se
igualar à capital” (Delgado, 2003, p.404).
103
Entende-se por “representações sociais”: “uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada,
com um objetivo prático, e que contribuiu para a construção da realidade comum a um conjunto social (...). É
tida como um objeto de estudo tão legítimo (...) devido a sua importância na vida social e à elucidação
possibilitadora dos processos cognitivos e das intenções sociais” (JORDELET, 2001, p.22).
105

Novamente, testemunhamos que cultura foi o caminho encontrado para a


superação do “trauma” vilaboense. Contudo, persiste a inquietude: houve um envolvimento
da coletividade social nesse processo, ou foi uma bandeira hasteada por um grupo específico?
Com base nas indagações levantadas, abrimos um parêntese para dizer que não
estamos nos distanciando do objeto central desse estudo e, tampouco consideramos evasivas
as exposições preliminares trazidas aqui. Metodologicamente, dilatar o campo de visão
analítica tem por objetivo embasar a seguinte hipótese: que as primeiras inciativas ligadas à
valorização histórico-cultural (o passado oficial, as tradições e os respectivos símbolos do
tradicionalismo) da Cidade de Goiás (re)institucionalizou relações de poder através da
constituição de uma elite administradora desse processo. Conjecturamos, ainda, que a
principal intenção desse provável grupo era recolocar, de alguma forma, a antiga capital no
status quo das representações concernentes ao Estado de Goiás, já que os tempos da
modernidade revestiam-se da roupagem conservadora. Diante destes argumentos,
relembramo-nos das palavras de Luiz do Couto, o qual, aliás, pode ser listado entre os
“grandes intelectuais” que “permaneceram” na antiga Vila Boa, conforme alude o primeiro
depoimento em destaque. Sobre os seus escritos, ao serem lidos, soam como arautos
destinados aos antimudancistas investidos da “missão” de guardiões das tradições
vilaboenses:

Tu não morrerás! Tu não morrerás porque és a própria vida, na sua eterna


vibração (...); tu és força em movimento impulsionando um povo que sabe
querer, que sabe realizar o que quer, não pode ser vencido na sua triumphal
marcha para o amanhan, na grandeza de seus fins, na nobreza de seus
destinos. (...) Muito mais vale uma idéa fixa que a tranquilidade de um
raciocínio ponderado (...) (“FOLHA DE GOIAZ”, 1936, s/p.)104. (grifo
nosso)

A essa altura, esgotadas as tentativas, junto ao governo de Pedro Ludovico, de


manter a Cidade de Goiás como polo cultural do Estado, subentende-se um suave
descolamento das expectativas de compensação previstas nos dispositivos legais do
“mudancismo condicionado”105. Assim, nos parece aceitável formular que os guardiões das
tradições locais, os quais eram constituídos da participação de Goiandira do Couto, conforme
tratamos no capítulo anterior, razoavelmente, apropriaram-se do vocativo, “Tu não

104
Jornal “Folha de Goiaz”, n°.35, “Tu não morrerás!”. Por: Luiz do Couto; Cidade de Goiás, domingo, 29 de
março, de 1936. Fonte: Acervo de Jales Guedes Coelho Mendonça, cedido em cópia digital (inédito).
105
Cf. MENDONÇA, Jales Guedes Coelho. A invenção de Goiânia: o outro lado da mudança. Goiânia: Editora
Vieira, 2013 (p.392-393).
106

morrerás”, para empreender sobre o prenúncio dos novos horizontes avistados para a antiga
capital: Cidade de Goiás: berço da cultura goiana.
Considerando que essa linha de pensamento é defendida, especialmente, pelos
guardiões da OVAT, encontramos o presente termo intitulando a palestra proferida por
Regina Lacerda, renomada escritora e folclorista do Estado de Goiás, na sessão solene de
reabertura do Gabinete Literário Goiano, em 04 de fevereiro de 1968. A referida conferência
obteve publicação, juntamente com a programação do referido evento, pelo “Departamento
Estadual de Cultura”, de acordo com dados trazidos no próprio documento disponível no
AFFSD. Nos estudos de Mônica Martins Silva (2008), A Escrita do Folclore em Goiás: uma
história de intelectuais e tradições (1940-1980), encontramos detalhada discussão sobre a
participação/envolvimento desta notável folclorista em inúmeros movimentos e projetos de
valorização cultural tanto da cidade quanto do Estado de Goiás, particularmente, entre as
décadas de 1940 a 1960.
Voltando ao pronunciamento da folclorista Regina Lacerda, nota-se que ela
teceu suas considerações concatenadas às alusões de Silva e Souza e José da Cunha Matos
para explicar como se processou a formação cultural desse “patrimônio tão caro que trazemos
conosco através dos tempos”, afirmou Lacerda (1968, p.02). A ordem do discurso encaminha-
se enaltecendo o período aurífero explicando que a riqueza encontrada nos tempos coloniais
não se resume apenas ao metal precioso, mas sim na sociedade e no “nível cultural de seus
membros” (Idem, 1968, p.03). Percebe-se nítida valorização de uma casta específica da
sociedade, tida pela oradora como a “legítima formação intelectual” e, portanto, “berço da
cultura goiana”, (Ibidem, 1968, p.03). Como adendo, relembramos que a origem dos Couto
encontra-se amalgamada a esses princípios.
O discurso avança para o século XIX, descrevendo a vida social e artística
vivida na Cidade de Goiás, com ênfase na difusão da impressa, da música erudita, dos
encontros filosóficos e literários e, sobretudo, dos debates políticos em torno dos ideais
abolicionistas e republicanos. A esse respeito, foi trazida à memória Antônio Felix de
Bulhões, “figura ímpar (...) que, nascido em 1845, veio encontrar ambiente propício para o
desenvolvimento de sua privilegiada inteligência”, acrescentou Lacerda (1968, p.09). O nome
de alguns Bulhões em certos alguns estudos da historiografia goiana, o nome dos Bulhões
figura e integra rol das oligarquias dominantes da conjuntura política em Goiás (1878-1912).
Prosseguindo na metodologia adotada pela oradora, finalmente, sua exposição
tem entrada no século XX. Parafraseando suas palavras, o referido século, trata-se de um
período marcado pelo movimento literário, o qual pode ser considerado o coroamento da
107

agitação intelectual vivida no passado. Foi lembrado, ainda, que, nesse tempo, surgia a
primeira academia Goiana de Letras que, a propósito, admitiu, em seu quadro, uma
componente feminina, representada na pessoa de Eurídice Natal e Silva. Entre outros nomes
em destaque, no campo literário, ressaltou-se o de Luiz do Couto, lembrado, também, por suas
contribuições na educação, assim como referenciou a pessoa do memorável Professor
Ferreira. Ao destacar o importante papel do Gabinete Literário, Regina Lacerda ressalvou que
nem mesmo a transferência da capital subtraiu esse patrimônio de “herança secular, que
permaneceu guardada com carinho pelos desvelos de Consuelo Caiado” (1968, p.16). Só para
constar, a mencionada guardiã do reduto vilaboense das letras, era filha de Antônio Caiado,
mais conhecido com Totó Caiado, o qual ocupou o cargo de senador durante a Primeira
República e atuou diretamente nos enfrentamentos contra a Revolução de 1930.
Nos encaminhamentos finais da folclorista, ela congratula a iniciativa dos
reorganizadores da instituição, Dr. Aimoré Velasco e Circe Camargo Ferreira, e estimula a
formação de organizações semelhantes à OVAT, porque, no seu entendimento, a refundação
do Gabinete Literário fertilizou a probabilidade de que:

(...) noites de arte se sucedam frequentemente, pois é ainda aqui que se


buscam nomes para abrilhantarem a vida intelectual e artística de
Goiânia, Anápolis, Brasília e outras cidades. Um dia é Goiandira, outra
vez Cora Coralina, ainda outra Octon Marques que, (...) têm sido convidados
para programas literários e de arte fora desta Cidade. Que a Cidade de Goiás
não seja apenas procurada por turistas à busca de paisagens, de história
contada pelos velhos edifícios, museus e arquivos ou objetos do artesanato
local. Que não seja apenas “berço da cultura”, mas um núcleo que irradie
vida cultural a outros centros (LACERDA, 1968, p.17-18). (grifo nosso)

A formulação das palavras de encerramento da conferência proferida por


Regina Lacerda aclara as razões pelas quais dedicamo-nos a discorrer sobre este referencial
empírico - a palestra publicada em 1968 - cujo título tornou-se a matriz das crenças
difundidas pelos guardiões das tradições locais para representar a Cidade de Goiás
empoderada, neste caso, estrategicamente, pela produção cultural das personalidades do
passado e do presente destacados pela folclorista. Diante tais evidências, acredita-se ser
possível alinhavar a continuidade da trajetória pública da personagem central, Goiandira do
Couto, às instituições culturais locais imbuídas do ideal de reelaboração da identidade urbana
da antiga capital. Durante a investigação empírica, encontramos pistas do envolvimento da
108

artista106 com a provável primeira instituição feminina promotora de práticas e eventos, cujo
objetivo era reascender a vida social vilaboense. Referimo-nos ao citado “Goiás Clube”,
fundado em 1938.

O “Goiás Clube”, prestigiosa organização feminina desta cidade vai entrar


no seu quarto ano de vida. Lutando com toda sorte de empecílios vai essa
entidade rompendo anos desta terra. (...) Para comemorar sua fundação, a
diretoria do “Goiás Clube” vai oferecer um esplêndido baile, a rigor, nos
seus salões distribuindo para isso convites para a nossa sociedade.
Formulando votos para que uma vida muito longa tenha o “Goiás Clube”
cumprimentamos as suas gentis associadas pela passagem desse aniversário
(“CIDADE DE GOIAZ”, p.01-04)107.

Observa-se que a organização adquiriu, em poucos anos, aparente


representatividade na sociedade, sobretudo, para a parcela frequentadora de bailes em estilo a
rigor. Entre tantas atividades culturais promovidas pela entidade, uma delas, de acordo com o
depoimento informal de lideranças da OVAT, o “Baile da Bola” entrou na memória dos
eventos emblemáticos agenciados pela instituição, embora a patente criativa e o papel de
liderança, na realização da referida festa, foram credenciados à Goiandira do Couto. O título
da festa era análogo aos trajes e à decoração do ambiente.
De fato, nas pesquisas de Ferreira (2011, p.94-95), encontramos o depoimento
da artista descrevendo, em minúcias, o acontecimento que, inclusive, fora realizado na
residência dos Couto. Esse aspecto ratifica a permanência da identidade festiva familiar,
conforme apresentamos no capítulo anterior. Soubemos que a mencionada associação possuía
sede própria. Mas, não encontramos rastros de quando passou a funcionar nas suas
dependências oficiais, antes localizada ao lado da atual sede do Ministério Público Estadual,
prédio da antiga Casa de Fundição do Ouro (1752-1883)108, no centro histórico da Cidade de

106
“Teve lugar, em dias da semana transacta, a eleição para renovar a Diretoria do “Goiás Clube”, entidade
feminina que tem alto destaque em nossa sociedade. Por expressiva maioria foi eleita Presidente a Srt. Goiandira
Ayres do Couto, entretanto, por motivos justificados recusou o cargo acima referido. Processada nova eleição,
foi reconduzida àquele posto a srta. Dolci Caiado de Castro, que, por várias vezes consecutivas, tem obtido, nas
urnas do “Goiás Clube”, a confiança das suas consocias”. (JORNAL “CIDADE DE GOIAZ”, “Eleição no
“Goiás Clube”. Goiás, 1° de julho de 1951. Ano XIV; N°. 506, p.01). Fonte: AFFSD.
107
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Aniversário do “Goiás Clube”. Goiás, 29 de março de 1942. Ano IV; N° 171,
p.01-04. Fonte: AFFSD.
108
“D. Marcos de Noronha, primeiro governador da Capitania (1749-1755), dedicou grandes esforços à
construção, por ordem régia de duas casas de fundição, uma em Vila Boa e outra no norte, em São Feliz, arraial
pouco expressivo na produção de ouro. A grande distância entre as duas casas de fundição era proposital,
visando facilitar acesso dos moradores, evitar as longas e dificílimas viagens entre o norte e o sul do território
goiano, diminuir o contrabando e aumentar as rendas da Real Fazenda, como explicou o próprio governador, em
carta de 1751 à Corte” (PALACÍN; GARCIA e AMADO, 1995, p.96).
109

Goiás. Não há referências, ao certo, sobre as razões pelas quais o referido baile, realizado
aproximadamente na década de 1940, aconteceu na Casa de Goiandira.
Em uma de suas inúmeras entrevistas, Goiandira do Couto descreveu o
memorável baile criado e organizado por ela:

Eu fiz um à noite, o Baile da Bola. Tirei os quadros todinhos da varanda, não


tinha um lá na parede. (...) Tirei tudo, a parede inteirinha era bola grande (...)
e tudo eu que preguei sozinha. Tinha que ser tudo material leve [...] Tudo,
tudo, tudo. (...) Ah! Eu só gosto de festa, eu gosto de fazer festa, acho bom,
invento as coisas” (COUTO apud FERREIRA, 2011, p.94-95).

O encantamento por suas habilidades e subjetividades criativas torna-se uma


marca recorrente nos depoimentos de Goiandira do Couto. Diante deste minucioso
testemunho oral da artista, nota-se que a imprecisão quanto às razões pelas quais o evento
ocorrera na residência dos Couto e não na sede oficial do Goiás Clube, ainda, persiste.
Todavia, o que consideramos relevante neste episódio, ao historicizá-lo, é compreender que,
mais uma vez, tanto a casa quanto a artista se notabilizam entre as sociabilidades vilaboenses,
em tempos de trânsitos culturais e identitários. Ainda sobre os propósitos do “Goiás Clube” e
seu crescente prestígio social, identificamos noutro documento que, se mantendo fiéis aos
propósitos da entidade, ou seja, o foco nos movimentos culturais, as associadas atuavam
transversalmente em parceria/colaboração com outras instituições, neste caso, administradores
no campo educacional da Cidade de Goiás. Vejamos o que nos diz os resultados:

Teve lugar, no dia 07 último, a primeira apuração de votos para a escolha da


mais bela senhorita de Goiás. Os resultados obtidos foram:
Adélia Rezende 1220 votos
Iracema C. Castro 125 votos
Dolcy C. Castro 10 votos
Solani Lobo 10 votos
Goiandira do Couto 05 votos
Denise do Couto 05 votos
A segunda apuração será efetuada sábado próximo, dia 14, à
qual seguirá uma animada soireé dansante em benefício do Caixa Escolar
Mestre Nhola (“CIDADE DE GOIAZ”, 1947, p.01)109.

Mesmo sendo Goiandira do Couto uma personalidade consagrada na vida


pública local devido a seus méritos artísticos e educacionais, a opinião pública, nesta ocasião,
decidiu priorizar no quesito “beleza”, outra jovem representante da “fina flor” da sociedade

109
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Concurso de Beleza”. Goiás, 08 de junho de 1947. Ano IX, N°. 345, p.01. Fonte:
AFFSD.
110

vilaboense. Mas, essa eventual preferência não desmerece a representação social da artista.
Muito pelo contrário. Subjetivamente, demonstra-nos, mais uma vez, o seu significativo
envolvimento com os interesses da cidade que ela definia em uma palavra: “tudo” (BRITTO,
2008, p.208).
Em entrevista concedida à Ferreira (2011, p.90), Goiandira do Couto, ao relatar
suas performances culturais entrelaçadas às vivências calcadas neste cenário urbano,
novamente, generalizou: “Eu gostava de tudo o que eu fazia” (FERREIRA, 2011, p.90).
Desse modo, e, considerando a relação institucional da pintora com a rede pública de ensino
local (desde 1944)110, conjecturamos que a finalidade do concurso pode ter sido, para ela,
provavelmente, mais motivadora do que o efêmero título do mesmo. Afinal, Goiandira do
Couto encontrava-se, na data do “Concurso de Beleza”, muito próxima de completar seus
trinta e dois anos de idade, e, portanto, mostrou-se apta física e emocionalmente para se doar
em favor dos objetivos que motivaram o evento promovido e concorrido, quase em sua
totalidade, pelas próprias organizadoras e aspirantes ao título de “mais bela senhorita de
Goiás”.
Outro movimento cultural que pode ser elencado entre aqueles que se fizeram
tradicionais na Cidade de Goiás, é o carnaval. Parafraseando o testemunho dado por Elder
Camargo Passos a Delgado (2003, p.418), as décadas de 1930 e 1940 foram aquelas que
destacaram os carnavais mais animados que já aconteceram na Cidade de Goiás. Esta
informação ratifica-se, cientificamente, nas produções de Santana (2010) e Ferreira (2011).
Ambas as pesquisadoras se preocuparam em enfatizar as especificidades deste festejo popular
para os vilaboenses e convergem, em suas exposições, ao apontar, que entre os chamados
“brincantes”, o nome de Goiandira do Couto é tido como notório. Novamente, ela se destacou
na coletividade como uma das “personagens reais” que protagonizou os memoráveis
carnavais da antiga Vila Boa.

Há dois membros da comunidade vilaboense, que devido a seus


envolvimentos com os eventos sócio-culturais na comunidade,
principalmente com festividade comentada, denominei de “Personagens
Reais”. O primeiro personagem trata-se de senhor Zacheu Alves de Castro.
Nasceu na Cidade de Goiás em 1898, onde faleceu em 1957. Figura

110
Analisamos a evidência da nomeação de Goiandira do Couto como uma “resposta” à influência das diretrizes
sinalizadas pelo governo federal de que o passado não estaria tão velho assim. Pois, através dele apontavam-se os
novos horizontes do futuro, materializados com a “Marcha para o Oeste”. Acerca disso, consoante Hobsbawm e
Ranger (1997), frisamos que as tradições são práticas de continuidade. Destarte: “Por ato recente do interventor
federal, foi nomeada para professora do Ginásio Oficial de Goiás, desta cidade, a srta. Goiandira Ayres do
Couto, filha do Dr. Luiz do Couto”. (Jornal “CIDADE DE GOIAZ”, “Srt. Goiandira do Couto”. Goiás, 30 de
abril de 1944. Ano VI, N°. 229, p.01). Fonte: AFSSD.
111

carismática na cidade cujas ações sempre foram voltadas com dedicação ao


povo vilaboense. Possuía loja comercial e foi prefeito muito respeitado na
cidade (1940-1943) além de folião número 1 (...). Montou o bloco do Zacheu
formado de instrumentistas e denominado “Os Turunas da Zona”. A segunda
pessoa destacada como personagem real, é Goiandira Aires do Couto, devido
a seu grande envolvimento com os eventos da cidade. (...) Nascida em
Catalão em 1915, passou a residir na Cidade de Goiás a partir dos seis anos.
No Carnaval não encontrou rival. Participante ativa de vários carnavais
(desde a decisão do tema, até a concepção final da fantasia) (SANTANA,
2010, p.04-05).

No tocante às afinidades entre os notáveis foliões, chamou-nos a atenção o


“dom” weberiano da dominação carismática111. Ao acessarmos essa categoria de análise,
objetivamos discutir a oblíqua especificidade da rotinização do carisma112, a qual atua como
instrumento de preservação do status quo do indivíduo. Consoante o teórico, seu saldo é a
legitimidade social (WEBER, 1999, p.343). Todavia, antes de dialogarmos com os princípios
supracitados, gostaríamos de expor uma explicação apresentada por Ferreira (2011), a respeito
dos fazeres de Goiandira do Couto no Carnaval vilaboense.

Goiandira participava sempre de todos os bailes. Suas fantasias, ela mesma


criava e confeccionava. Em 1938, criou o bloco chamado Bloco da Banda de
Lá que era formado por amigos, mulheres e homens, e todo ano era ela quem
escolhia o tema, elaborava suas fantasias antecipadamente. Segundo a
própria Goiandira, um detalhe curioso era que todos só descobriam qual
fantasia iriam usar no dia, quase na hora do baile: “Eu fazia, pintava e tudo”
(FERREIRA, 2011, p.86).

Oportunamente, caracteriza-se a admissibilidade da dominação carismática na


artista através da memória intercambiada pela oralidade, nos registros visuais e escritos113

111
“(...) em vez de atuar conforme seu sentido genuíno, de forma revolucionária, diante de tudo que seja
tradicional ou se fundamente na aquisição ‘legítima’ de direitos, como acontece in statu nascendi, atua
exatamente no sentido contrário, como fundamento de ‘direitos adquiridos’. E precisamente nesta função alheia
à sua índole torna-se ele um componente da vida cotidiana, pois a necessidade, a qual ele assim atende, é
universal [...] exatamente neste ponto situa-se, inevitavelmente, a entrada no caminho do estatuto e da tradição”
(WEBER, 1999, p.333).
112
Entende-se que por rotinização “(...) a conservação do conceito de carisma somente se justifica pelo fato de
que sempre se mantém o caráter do extraordinário, não acessível para cada qual, nas relações entre os
carismaticamente dominados e os preeminentes por princípio, e que o carisma precisamente por isso serve para a
função social na qual é aplicado. Mas, evidentemente, esta forma da penetração do carisma na vida cotidiana
significa sua transformação em uma estrutura permanente, a mais profunda transformação de seu caráter e de sua
atuação” (WEBER, 1999, p.344).
113
“Goiandira do Couto sempre se constituiu em figura de projeção nos carnavais vilaboenses. Como animada
foliã, seu concurso foi disputado pelos blocos que se organizavam e até hoje não se dispensam a sua participação
e presença nos salões. Filha do imortal poeta e jurisconsulto, Luiz do Couto, herdou do pai a alegria contagiante.
Por isso a reportagem foi visitá-la em sua residência, a fim de ouvi-la falar dos carnavais que brincou.
Perguntada qual o carnaval que mais ficou em sua lembrança, respondeu: “Todos ficaram e muitos ainda espero
que ficarão”. (...) Enquanto discorria sobre a festa popular de Momo, Goiandira mostrava aos repórteres grande
número de fotografias, onde se viam algumas do ano de 1937 e de 1939, onde ela, ainda garota, posava ao lado
112

guardados no/pelo tempo que, neste caso, colocaram-se à disposição do ofício e dos
propósitos do historiador que deseja ser seu intérprete. Quanto às imagens, norteamo-nos
pelas teorizações de Freitas (2004, p.04-07), pois nos propõe enxergá-las, na produção
historiográfica cultural, metodologicamente, estruturada aos acontecimentos históricos. Em
outras palavras, pensá-las, tridimensionalmente, a partir do que está contido dentro, fora e no
entorno da imagem, é um procedimento que consideramos ser imprescindível aos
encaminhamentos dedutivos dessa pesquisa. Sintetizando o ensinamento do autor, trata-se de
uma abordagem tríplice que vê o formalismo visual como indissociável das sensibilidades,
semântica e social, interiorizadas na imagem, quando tratadas como testemunhas da história.
Eis, mais um depoimento. Vejamos:

Figura 13 - Desfile do Bloco da Banda de Lá. Cidade de Goiás, década de 1940.

Fonte: Acervo de Nice Monteiro Daher.

Uma quase nítida representação do fato narrado. A foto (figura 13) fora tirada,
exatamente, durante o desfile dos blocos carnavalescos da Cidade de Goiás, nos anos de 1940.
O Bloco da Banda de Lá114 é flagrado pelo registro fotográfico devidamente uniformizado

de seus companheiros, alegre e brejeira” (Jornal “Cidade de Goiaz”, Goiandira: “Todos os Carnavais me
ficaram”. Fevereiro de 1981, p.04). In (FERREIRA, 2011).
114
Não sabemos precisamente as razões pelas quais Goiandira do Couto escolheu este nome para batizar o bloco.
Porém, suspeitamos que provenha da expressão popular, muito utilizada pelo senso comum vilaboense, para
situar-se no espaço urbano da Cidade de Goiás, o qual é composto tanto do lado de lá (margem esquerda) quanto
113

pela criatividade de sua mentora, Goiandira do Couto, que posicionada quase no centro da
imagem, segue igualmente vestida como a ala feminina do bloco representando, naquele
momento apoteótico, muito mais que a si mesma. E, por conseguinte, fica-nos subentendida a
visão fáustica de uma artista, sua estética para além dos pincéis e, sobretudo, o seu caráter
diferenciador que, por sua vez, substancia-se entre as tradições que se buscavam instituir na
Cidade de Goiás naquela época. Desse modo, as teorizações weberianas levam-nos a enxergar
o indivíduo atribuído de carisma como uma personagem da criação coletiva estruturada, na
maioria das vezes, às concepções culturais (e nas respectivas relações de poder) que regem o
mundo social em análise (WEBER, 1999, p.357-358). Se efetivamente o é, arriscamos dizer
que o processo de ressignificação cultural da Cidade de Goiás, de forma enviesada, legitimou
o nome de Goiandira do Couto simbolicamente entre os seres, fazeres e saberes relacionados
às tradições que se pretendiam (re)criar 115.
Vale lembrar, que essas combinações abalizavam-se na ideologia baseada na
existência de berço cultural glorioso. Nisso, compartilhando das ideias de Hobsbawm e
Ranger (1997), verifica-se que a instituição desse conjunto de práticas consistiu-se do
pensamento de continuidade do passado por ações representativas forjadas pela inventividade
de seus atores no presente. De tal modo, constatamos que “inventam-se tradições quando
ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas, tanto do lado da demanda quanto
do lado da oferta” (HOBSBAWM e RANGER, 1997, p.12). Diante tais problematizações, o
que ponderamos condiz com as realidades vividas e praticadas na Cidade de Goiás, entre os
anos de 1940 a 1960.
No campo artístico, estamos certos de que esse discurso/prática se reproduziu.
Possivelmente, não tão visível quanto nas manifestações populares. Contudo, não menos
importante. Mesmo porque, foi esse o lugar onde nasceu a “vertente preservacionista”,
patenteada aos artistas vilaboenses, Octo Marques (1915-1988) e Goiandira do Couto que, por
sua vez, realçou-se no meio artístico nacional e internacional figurando a paisagem histórica
da Cidade de Goiás utilizando-se deste estilo pictórico genuinamente local. Entretanto, antes

do lado de cá (margem direita) do Rio Vermelho. Para maiores esclarecimentos históricos e histográficos,
conferir: (TEDESCO, 2009).
115
“No cinema Progresso [primeiro cinema falado do Estado e inaugurado em 1937, na Cidade de Goiás],
Wadjou Rocha Lima costumava promover um concurso para eleição da “Rainha do Carnaval”, como ainda relata
Goiandira na entrevista, oferecendo a cada pessoa que comprava sua entrada, uma cédula onde seria colocada o
nome de uma candidata ao título, e ela mesma foi eleita diversas vezes rainha do carnaval, a foliã mais animada,
a fantasia mais bonita, o que lhe rendeu o título, ainda relembrado em reportagens sobre os antigos carnavais de
Vila Boa e de sua “eterna rainha” (....). No carnaval de 1981, houve um baile promovido pelo Lions Clube, com
o tema: “Lembranças de Carnaval”, homenageando “grandes figuras dos carnavais de Vila Boa”. Entre os
homenageados se destacavam o maestro João Ribeiro e Goiandira do Couto. Neste carnaval, Goiandira diz ter
sido a última vez que foi Rainha” (FERREIRA, 2011, p.90).
114

de adentrarmos na discussão que privilegia a segunda fase artística da protagonista, datada de


1967, daremos sequência à narrativa em torno da reestruturação cultural e identitária da
Cidade de Goiás tendo em vista a relação indissociável, quase imantada, entre a referida
cidade e a artista plástica goiana.
A aparição da arte moderna no Estado de Goiás pode ser considerada mais uma
influência exógena que cruzou o mundo cultural vilaboense, mas sem impactar
significativamente a arte/cultura local. Chegamos a esta conclusão depois de verificar que no
currículo artístico de Goiandira do Couto, ela e Octo Marques participaram da “II Exposição
de Pintura, Escultura e Arquitetura da Sociedade Pró-Arte de Goiás”, em 1946. Este fato
atrai a atenção, por se tratar da primeira exibição pública da artista fora dos limites da Cidade
de Goiás, constata que os respectivos fundadores da “vertente preservacionista” - uma
experimentação artística pictórica aparentemente contrastante com a proposta do Modernismo
brasileiro116 - inseriram-se entre aqueles considerados idealizados da primeira tentativa de
inclusão deste movimento artístico no espaço goiano117. Tal verdade nos causou mais
inquietação ainda. Pois, evidenciamos neste movimento, ocorrido após o Batismo Cultural de
Goiânia118, uma identidade tipicamente ambígua em comparação com as origens

116
As artes plásticas foram a base do pensamento modernista brasileiro e sinônimo de um “novo estilo” de
linguagem e cultura envolvendo especialmente as questões político-culturais do Brasil, nos anos de 1920. Não
seria possível defini-lo em uma nota de rodapé. Para aprofundamentos preliminares, indicamos: Cf. RIBEIRO,
Marília Andreas. O Modernismo Brasileiro: arte e política. Revista ArtCultura, Uberlândia, v. 9, n. 14, p.115-
125, jan.-jun. 2007. Disponível em: <http://www.artcultura.inhis.ufu.br/PDF14/Marilia%20Andre%20Ribeiro.
pdf>. Acesso em: 02 mar. 2016. Reiteramos que, por se tratar de tema complexo, amplo e fértil, sugerimos
ainda: Cf. SANTOS, Paula Cristina Guidelli dos; SOUZA, Adalberto de Oliveira. As Vanguardas européias e o
modernismo brasileiro e as correspondências entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira. CELLI –
COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009,
p.789-798. Disponível em: <http://www.ple.uem.br/3/celli_anais/trabalhos/estudos_literarios/pdf_literario/083.p
df>. Acesso em: 02 mar. 2016.
117
"A Sociedade Pró-Arte de Goiás inicia suas atividades em novembro de 1945, apresentando ao público a
orquestra recém-formada pelo maestro Érick Pipper, endossada por uma coletiva intitulada: “I Exposição de
Pintura, Escultura e Arquitetura de Goiás”, composta por apenas dez trabalhos. Eventos dessa natureza foram
realizados em 1946 e 1947, durante comemorações de aniversário da Pró- Arte, com exposições bem mais
concorridas. Além da música, a associação colaborou com a literatura e incentivou as artes plásticas durante todo
o período de sua existência. O objetivo era favorecer e unir os artistas, para divulgar a arte. Entre os associados
estavam Octo Marques, Goiandira do Couto, Antônio Henrique Péclat, Jorge Félix de Souza, Regina
Lacerda, José Edilberto da Veiga, Brasil Grassini, Amália Hermano, Professor Crunwald Costa (Costinha) e
Érick Pipper, regente da orquestra" (GOYA, 2010, p.202).
118
O Batismo Cultural de Goiânia é o marco que encerra o ciclo mudancista compreendido entre os anos de
1932 a 1942. Vale lembrar que os últimos anos desta década foram impactados pela eloquência da Marcha para
o Oeste. Sobre esses acontecimentos, sabemos dizer que ele pautou-se por atividades artísticas, culturais e
religiosas com a finalidade de apresentar ao Brasil a consolidação física de Goiânia, bem como a representação
plural da identidade moderna que o Estado de Goiás vivia/viveria a partir de então. Programado para acontecer
entre os dias 1° a 11 de julho de 1945, o ápice das atividades concentrou-se no dia 05, devido aos intensos
festejos dotados de alto grau simbólico das conotações de poder. Historicizando essas representações, notamos
inúmeros paradoxos com os arquétipos referentes às tradições do berço, tangíveis na apregoada modernidade
proferida, de igual maneira, pelas autoridades estadual e federal envolvidas na fundação deste novo tempo.
Afirmamos que sejam do ponto de vista político, econômico e, sobretudo, cultural estas apropriações que
115

representativas da vanguarda brasileira e, tampouco inspirou-se nas antíteses do discurso


dialético da mudança da capital introduzido regionalmente, com mais vigor, entre os anos
1932 e 1937. É oportuno dizer que não temos interesse em aprofundamentos sobre o
Modernismo e suas formas de identificação noutros Estados da federação. Todavia, o lacunar
e o contraditório circunscritos à fronteira artístico-cultural goiana, principalmente, entre a
Cidade de Goiás e Goiânia, instigou-nos à busca extenuante por respostas. Eis que surge uma
interpretação satisfatória:

O advento do modernismo nas artes plásticas em Goiás não coincide com a


mudança da capital. As iniciativas para dotar a nova capital de espaços que
privilegiassem a produção e exposição de artes plásticas, como a criação da
Sociedade Pró-Arte de Goiás, fundada em 22 de outubro de 1945, estavam
mais ocupadas em criar esses espaços do que propriamente desenvolver
ações com o objetivo de atualização ou renovação estéticas. Nesse caso
tratava-se de uma inciativa, que visava criar condições para que os artistas se
aproximassem, quebrassem o isolamento entre eles e pudessem, com isso,
aspirar minimamente à existência de um meio artístico. Considerando essa
situação, podemos dizer que nesse momento não estavam em pauta
discussões estéticas, questionamentos de códigos visuais e a instauração de
movimentos inovadores” (COSTA, 2006, p.39-40).

As ressonâncias político-econômicas entrecruzaram-se, mais uma vez, aos


designíos culturais e simbólicos da Marcha para o Oeste e, por esta razão, a fusão do estilo
moderno com o tradicional soou como aceitável aos articuladores da Sociedade Pró-Arte.
Mesmo porque, a citada entidade “não nasceu com o espírito imbuído da atitude de
destruição, do combate à mentalidade acadêmica tradicional, que ditava os preceitos estéticos
em Goiás. Antes, tratava-se de uma iniciativa que intentava a aproximação entre os artistas
que trabalhavam isoladamente em Goiás”, sustenta Vigário (2014, p.132). Ainda segundo a
autora, mesmo dentro desses moldes o “entrosamento” artístico institucional durou apenas
quatro anos119.
Razões não nos faltam para crer que essa ideia híbrida materializada com a
constituição da Sociedade Pró-Arte foi, num primeiro momento, suficiente para unir os
artistas, mas não para consolidá-los em seu seio. Mesmo porque, temos indícios consistentes
para afirmar que, do ponto de vista temporal, tanto o Romantismo quanto a suposta tentativa

coexistiram nos marcos, nos símbolos, nos poderes e nas instituições outorgadas da investidura moderna.
Sugerimos aprofundamento neste tema e suas respectivas dicotomias, em: Cf. (ARAÚJO JUNIOR, 2011), e
(COSTA, 2007).
119
Ressaltamos que os dados biográficos oficiais informam que Goiandira do Couto, nesse ínterim, participou da
III Exposição de Pintura, Escultura e Arquitetura da Sociedade Pró-Arte de Goiás, ocorrida em 1947.
116

de espelhar-se em tendências do Moderno, mas não nos possibilita afirmar se era, de fato, um
movimento de vanguarda ou não, tiveram chegada tardia na Cidade de Goiás.
O Romantismo, indiscutivelmente, fez tradição entre os artistas plásticos
vilaboenses convidados para constituir a efêmera organização de artistas do estado de Goiás.
Pode-se abstrair dessa passagem da protagonista neste movimento de tendência modernista
(sutilmente avesso às suas convicções artísticas, culturais e políticas) uma amostra do precoce
prestígio e reconhecimento social daquela que foi notável representante de muitas tradições.
Nesse sentido, tratamos esta e outras razões convenientes como cabíveis justificativas para
que outra união se constituísse, paralelamente, entre Goiandira do Couto, Octo Marques,
Regina Lacerda, José Edilberto da Veiga e Ipiranga Curado, em 1947.
Esses expoentes da arte goiana se organizaram em um movimento artístico
independente que, de modo subjetivo, pode ser interpretado como um marco na história das
artes plásticas na Cidade de Goiás. Trata-se do I Salão de Pintura dos Amadores Vilaboenses.
O referido evento/movimento foi algo meticulosamente pensado pelos nomeados, certamente
com objetivo de consolidar a “vertente preservacionista” a fim de fazê-la visível ao público,
ao mercado de arte e aos “incontáveis continuadores de seus temas e técnicas”, acrescenta
Corrêa (2003, p.253). Era preciso, realmente, manter o foco na primordial empreitada dos
guardiões naquela época: preservar tradições e/ou (re)inventá-las em favor das mesmas. Por
esse motivo, acredita-se que, diante destas circunstâncias, pareceu-lhes um contrassenso
dissuadi-las para outras frentes e/ou fronteiras culturais. Nesse sentido, dada a relevância
histórica e metodológica do documento que descreve, em pormenores, as concepções da
primeira exposição coletiva dos artistas amadores da Cidade de Goiás, optamos por
transcrevê-lo na íntegra.

Sob a liderança dos amadores José Edilberdo da Veiga, Goiandira Ayres


do Couto, Regina Lacerda, Ipiranga Curado e Oto Marques,
arregimenta-se nesta Cidade uma plêiade de artistas pintores no sentido de
levar a efeito ainda esse ano, num dos salões do Ginásio Oficial de Goiás,
uma grande exposição de trabalhos a óleo, aquarelas e guachos, inaugurando
assim, o 1° Salão de Pintura de Vila Bôa. O movimento artístico em apreço
conta atualmente com vários simpatizantes, todos entusiastas da referida
iniciativa, que com prazer e admirável espírito empreendedor, vão
entregando-se à pintura. A população vilaboense começa a identificar-se
com simpatia a esse empreendimento enorme e a turma de amadores que
espelham-se pela nossa urbe e seus arredores para que a futura exposição de
arte, que virá enriquecer o nosso patrimônio cultural e artístico. Podemos
adiantar que a exposição alcançará grande êxito, pois, dos inúmeros quadros
confeccionados pelos artistas do pincel acima mencionados, já vários deles
foram adquiridos nesta cidade e fora dela, nos quais são retratados os
aspectos mais pitorescos de Goiás, executados com maestria e marcante
117

talento. Quadros admiráveis que escapam à classe dos amadores, onde se


encontra traços firmes de já pintores seguros da arte difícil de pintar
(“CIDADE DE GOIAZ”,1947, p.01)120. (grifo nosso)

Outros documentos foram consultados em busca de informações sobre os


saldos (crítica e recepção pública) decorrentes da realização deste evento na Cidade de Goiás.
Especificamente, nada fora encontrado. Algumas pistas nos jornais da época reforçaram as
suspeitas de que este empreendimento cultural engenhou-se do ideário prévio de alguns
membros dessa plêiade. Atinamo-nos, então, por verificar, inclusive, os dados referendados
na biografia oficial de Goiandira do Couto. A partir deles, constatamos que, após a extinção
da Sociedade Pró-Arte, em 1949, a artista-guardiã121 concentrou sua atuação cultural e
artística, até fins da década de 1960, exclusivamente na Cidade de Goiás. Esse não foi o
mesmo caminho tomado por José Edilberto Veiga. De acordo com Vigário (2014, p.132), a
tímida experiência do Modernismo em Goiás ainda inquietava alguns artistas. Dentre eles, o
referido representante do grupo de amadores vilaboenses. Essa ideia fixa pode ter sido o
combustível para sua adesão junto ao grupo fundador da Escola Goiana de Belas Artes, em 1°
dezembro de 1952, com sede na capital, Goiânia122. Todavia, este fato não representou o fim
do movimento local agremiado pelos supostos preservacionistas, em 1947. É certo que o
título do evento (o qual fora homonimamente apropriado pelo grupo) deixou de ser usual após
o aparente distanciamento do membro em destaque. Entretanto, o estilo e as convicções
subjetivas da “vertente preservacionista” mantiveram-se as mesmas, bem como os propósitos
de alavancar a vida urbana da Cidade de Goiás por meio da cultura.

A Associação Atlética do Banco do Brasil desta cidade, em cumprimento ao


seu programa de incentivo à cultura e às artes, abriu ao público uma
exposição de quadros de pintores vilaboenses em sua sede social. Essa
mostra vem atraindo grande interesse por parte do público, conforme se

120
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Primeiro Salão de Pintura dos Amadores Vilaboenses”. Cidade de Goiás, 01 de
junho de 1947. Ano IX, N.º 344, p.01. Fonte: AFFSD.
121
Nomenclatura que (também) nos utilizaremos, doravante, para referirmos à protagonista, Goiandira do Couto,
tendo em vista a cientificidade dos argumentos construídos nesta direção.
122
“Em 1° de dezembro de 1952, nascia a Escola Goiana de Belas Artes (EGBA), primeira instituição escolar de
ensino superior especializada no ensino artístico em Goiânia. Na ata de fundação, constam os nomes de oito
professores que fizeram parte do primeiro corpo docente da Escola, entre os quais, seus idealizadores: Frei
Nazareno Confaloni, Luiz da Glória Mendes, José Lopes Rodrigues, Henning Gustav Ritter, José Edilberto
Veiga, Jorge Félix de Souza, Antônio Henrique Péclat e Luiz Augusto do Carmo Curado. Com o seu regimento
interno integralmente aprovado pelo Conselho Nacional de Educação, a Escola surgia com a clara intenção de
integrar valores artísticos e a urgente necessidade de formar novos elementos, servindo de apoio para plano de
pesquisas e trocas de ideias, conforme aponta Costa (1955, p.9), a partir do regimento interno aprovado no
Artigo 1° e 2° e 3° da Revista Renovação. A elaboração desse regimento obedeceu ao modelo da Escola
Nacional de Belas Artes (ENBA), porém com inovações: a primeira escola a registrar, oficialmente, no Brasil, o
Curso de Desenho Aplicado” (VIGÁRIO, 2014, p.132-133).
118

constatou pela presença de cerca de mil visitantes na semana finda, merece,


de fato, o aplauso público pelas magníficas telas apresentadas, como,
também pelo seu sentido educativo e cultural. Contribuíram com seus
trabalhos para essa exposição: a srt. Goiandira Ayres do Couto, Regina
Lacerda, Otto Marques, Irmã Alfosina, Superiora do Orfanato São José, sr.
Jurandi do Amaral, D. Ruth Bustamente, srts. Diva Gonzaga e Joisa
Ferreira123 (“CIDADE DE GOIAZ”, 1959, p.01). (grifo nosso)

O diálogo cultural com uma instituição financeira demonstra-nos o relativo


êxito dos artistas-guardiões ao mediar trocas culturais com a comunidade vilaboense. Esse
intercâmbio, sob o ponto de vista dos artistas, sem dúvida, elevou o patamar de atuação desses
agentes, tanto do ponto de vista quantitativo quanto qualitativo. Pois, evidencia uma faceta
interessante e, ainda, não explorada pelas intervenções urbanas de cunho lúdico-cultural, ou
seja, a aproximação da arte preservacionista com o caráter educativo. O aperfeiçoamento
dessas estratégias reintroduz ao debate o papel da coletividade social nesse processo de
ressignificação cultural da Cidade de Goiás. A esse respeito, indícios levam-nos a crer que a
interatividade com a população local pautou-se por um modus operandi delimitado nas
esferas “invisíveis” do “jogo” e do poder.
Aos supostos ativos (guardiões das tradições) cabia-lhes o discurso sensível das
telas e sua ampla exposição; dos considerados passivos (coletividade social) esperava-se a
identificação. Para Hobsbawm e Ranger, essa reação persuasiva dos produtores de cultura é
uma prática intrínseca dos “grupos, ambientes e contextos inteiramente novos, ou velhos, mas
incrivelmente transformados, e exigiam novos instrumentos que assegurassem ou
expressassem identidade e coesão social, e que estruturassem as relações sociais”. Em suma,
expectativas coerentes quando se pretende agir pela chamada “intervenção consciente”, instrui
os autores (1997, p.271-273). Ainda focados no contexto desses “jogos” culturais,
encontramos, em Lima (1997), uma explicação pertinente para melhor entendermos a
cadência das continuidades e descontinuidades experimentadas pela artista-guardiã e alguns
coadjuvantes quando a questão se tratava de canalizar esforços em defesa da arte-tradição.

Alguns outros artistas representaram e representam episodicamente a cidade,


tocados pelas suas qualidades pictóricas, produzindo bons trabalhos
inspirados pela sua paisagem, mas, na maior parte das vezes, tratando-a
segundo um acervo formal íntimo que exige uma adaptação do motivo.
Outros, mais comedidos, enxergam essa paisagem segundo seu
temperamento, a maneira de Cézanne. Mas nenhum deles pintaram-na de
dentro, como fizeram Goiandira e Octo, isto é, com uma adesão formal e

123
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Exposição de Quadros”. Goiás, 01 de novembro de 1959. Ano XXII, N°. 726,
p.01. Fonte: AFFSD.
119

emotiva completa e sendo que nesse sentido chegaram a controlar seus


sentimentos íntimos, num respeito quase religioso ao motivo (LIMA, 1997,
p.24).

Era de se esperar que a arte de Goiandira do Couto estivesse provida de um


sentimento devocional à Cidade de Goiás. Dentre os variados modos de ver a paisagem
urbana da Cidade de Goiás, sendo algumas delas apontadas pelo crítico, percebe-se que a
visão da artista (e do seu parceiro) não apenas se distingue daquela compartilhada por seus
contemporâneos. Pelo visto, também não se equipara; é peculiar. Ademais, a ideia trazida pelo
autor de que a artista-guardiã enxerga a cidade “de dentro”, além de ser oportuna, ratifica o
que nos parece ser evidente por si mesmo, isto é, o compromisso subjetivo com uma
linguagem artístico-cultural portadora de tradições. Atrevemo-nos a dizer que Goiandira do
Couto tinha consciência de que seu estilo preservacionista, altamente simbólico, se
diferenciava no campo artístico regional. Assim, quando perguntada a respeito das diferenças
formais, temos a impressão de que ela esquiva-se dos enfrentamentos deixando subtendido
que a missão de sua arte não era padronizar-se e, tampouco, concorrer com seus pares.

Cada um no seu estilo, cada um de um jeito, eu não posso falar. (...) Eu sinto
o que vejo, o que estou vendo aí. Agora eu ter que adivinhar? Mas, eu não
destacaria nenhum nome nas artes plásticas em Goiás, não falo porque tenho
amizade com todos... Quando eu dou entrevista, a única coisa que peço é
para não tocarem em nome de outros pintores. Cada um sente de um jeito...
Como muitos já não gostam da minha arte, dizem que é muito caprichada,
muito detalhada, fotografia... Outros já gostam. Depende da pessoa
(COUTO apud BRITTO, 2009, p.01).

A rigor, cabe-nos historicizar a obra pictórica coutiana como um instrumento


formulador de crenças. Contudo, esta análise não pode ser descolada da trajetória pública de
Goiandira do Couto fundamentalmente envolvida nos movimentos culturais, em defesa das
“velhas tradições” submetidas às releituras das novas invenções introduzidas, via instituições,
cada qual em seu tempo próprio.
Nesse movimento dinâmico enxergamos o crescimento individual da
protagonista, sucessora de Luiz do Couto, portanto, empoderada simbolicamente e aclamada
por suas práticas e carisma. Não nos restam dúvidas que esses predicativos garantiram-lhe a
legitimidade coletiva para tornar-se, a seu modo, porta-voz das expectativas de uma sociedade
que se quer paradigmática. Sob essa ótica, é importante ponderar que, por mais que
suspeitemos da existência de atores ativos e passivos no processo reconstrução identitária e
cultural da Cidade de Goiás, concluímos que as propriedades da dominação carismática
120

merecem ser vistas pelo viés da negociação entre a comunidade e a artista-guardiã como um
caminho possível para se preservar a memória da cidade que existiu - berço da cultura goiana
-, uma vez que, por ela, pautar-se-ia as representações da urbe que se pretendia reconstruir: a
cidade-patrimônio. Afinal, é atributo das tradições espelhar-se no passado para projetar o
ideal de futuro, postula Hobsbawm e Ranger (1997, p.10).
Sob esse ponto de vista, recorremos a um aspecto importante relacionado às
prerrogativas desse provável agenciamento social ajuizado representativamente, com a artista
em estudo. Pelo visto, parece-nos estar embutida a mútua condição endógena dos
instrumentos, das concepções, dos atores e suas finalidades como critério das convenções
articuladas para se estabelecer nos “jogos” culturais e de poder protagonizados, na Cidade de
Goiás, especialmente, após o paradigma da mudança. Todavia, algumas arestas ainda
permaneciam latentes e, consequentemente, alvo da resistência coletiva em meio a essa
realidade transitória. Atrevemo-nos, inclusive, cogitar que uma linha tênue separava as
sensibilidades poéticas, lúdicas, nostálgicas e orgânicas da paisagem colonial vilaboense
engendradas de diversas formas nos discursos dos guardiões das velhas e novas tradições,
e/ou que mantiveram-se correlatos ao acentuado sentimento de apego histórico e patrimonial
que a população vilaboense, ao mesmo tempo, se apropriava. Considerando esses
pressupostos afirmamos que, a partir dos anos de 1950, a Cidade de Goiás passou a vivenciar
uma relação complexa com os representantes oficiais e, burocraticamente, instituídos pelo
poder público federal, para gerir o patrimônio cultural124.
Lembramos que estes atos, à época, eram de competência do Departamento do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - DPHAN. Tamaso (2007), no quarto capítulo de
sua tese, “O Paradoxal Início da Restituição”, deu relevo à atuação dessa instituição na
Cidade de Goiás. A autora promove uma digressão aos primeiros anos desse contato, ocorrido
em 1939, e evidencia a efervescência dos dissensos em relação às propostas de tombamento
e/ou elevação da cidade à categoria de “Monumento Histórico”. Foi-nos apresentada uma
discussão acalorada. Provavelmente, as incertezas que abatiam sobre a população naquela
época se intensificaram diante da linguagem dos pareceres técnicos e dos modos como esses
representantes oficiais reagiram ao “valorar”125 as edificações públicas, particulares e

124
“O patrimônio cultural deve ser entendido como um campo de lutas a que diversos atores comparecem
construindo um discurso que seleciona, se apropria de práticas e objetos e as expropria. (...) presentes nas
manifestações patrimoniais, sejam compartilhados de modo homogêneo por uma determinada coletividade. (...)
O patrimônio cultural, quando bem compreendido, expressa diferentes representações coletivas que estabelecem
múltiplas conexões entre si”. (VELOSO, 2006, p.438-440).
125
“Contrastando com outras cidades formadas ao influxo da mineração, Goiás não apresenta um sentido de
riqueza ou, ao menos, conforto nas suas edificações. A pobreza de recursos construtivos, consequentemente
121

religiosas que compunham a paisagem urbana local quase dez anos após os primeiros
intentos. A pesquisadora segue argumentando que esse lapso temporal causou um
distanciamento da comunidade com a instituição federal, subentendendo que durante esse
período não houve aproximações, ao menos, para esclarecer-lhes os sentidos e as diretrizes
das políticas públicas, adotadas pelo órgão, durante o mapeamento da cidade, visando
implementar os primeiros tombamentos (isolados) do patrimônio cultural material da Cidade
de Goiás126. Assim, com a retomada dos intentos iniciais, ocorridos por volta de 1948, seus
emissários enfrentaram a resistência da comunidade, ora por meio de ofícios às autoridades
políticas locais, outras vezes lançando mão da impressa para manifestar as insatisfações e os
desentendimentos empreendidos com esses outsiders à cultura vilaboense. Eis alguns
exemplos:

Aquele alto funcionário [se referindo a Edgar Jacinto Silva] não foi bem
compreendido e daí veio a suposição de que aquele departamento do
Governo Federal desejava interditar prédios e monumentos, invadindo os
direitos de posse e querendo transformar a cidade em tapera. Mas, não há
nada disso. O que realmente existe é que o SPHAN tomará providências para
restaurar todos os edifícios, sem nenhum ônus para os proprietários e os
entregará posteriormente livres de qualquer retribuição aos legítimos donos
como o fez com a Igreja da Abadia (TAMASO, 2007, p.123).

A citação expõe duas interlocuções curiosas. Primeiro, a permanência aflorada


da crise de identidade causada pelas intensas mudanças. Em segundo, e não menos relevante,
o rescaldo metódico das efervescências referentes à mudança da capital, em 1937,
frontalmente expostas através da suspeição de que, mais uma vez, agentes exógenos à cultura
vilaboense iriam espoliar a Cidade de Goiás e, por sua vez, a população. As ponderações do
jornalista nos levam a pensar nas sobreposições de ideias acumulando-se sobre um mesmo

talvez em um meio social incipiente e de organização precária, fez com que guardem um aspecto, até
certo, ponto rústico. Comprova este fato o pequeno número de casas assobradadas; pois que o “palácio” dos
Governadores é um casarão térreo onde a nobreza é apenas entrevista no hall de entrada. Ainda nesse sentido,
verifica-se nas casas de moradia a falta de forros, em quase todos os cômodos, e até mesmo, o emprego de pedra
tosca na pavimentação dos corredores de entrada” (Processo de Tombamento N° 345-T-42, Volume I, p.27 apud
(TAMASO, 2007, p.122) (grifo nosso).
126
Os tombamentos foram homologados, segundo Tamaso (2007, p.127), em 13 de abril de 1950. “Após analisar
o material levantado por Edgar Jacinto da Silva, o Chefe da Secção de Arte da D.E.T., Alcides da Rocha
Miranda, propõe, ainda em 1948, que sejam “inscritos nos Livros do Tombo, para os efeitos do Decreto-lei n° 25
de 30 de novembro de 1937, os seguintes logradouros, edifícios e obras de arte devidamente especificados”:
Largo do Chafariz, Rua João Pessoa (antiga Rua da Fundição), Igreja de N. Sª. da Boa Morte, Igreja N. Sª. do
Carmo, Igreja N. Sª. da Abadia, Igreja de São Francisco, Igreja de Santa Bárbara – todas incluindo imagens,
móveis e objetos de culto -, Casa de Câmara e Cadeia, Palácio dos Governadores, Antigo Quartel do XX°
Batalhão de Infantaria Militar (Quartel do Vinte), Chafariz da Boa Morte, esculturas pertencentes ao Palácio dos
Governadores (Armas de Portugal e dois bustos de pedra no palácio de Goiânia e Imagem de N. Sa. do Rosário
da antiga igreja, atualmente no Convento dos Dominicanos” (TAMASO, 2007, p.123). Cf. Idem.
122

tema e espaço fundamentalmente desprovido “de uma política de gestão efetiva dos bens
tombados que viesse a provocar alterações no desenvolvimento urbano” (DELGADO, 2003,
p.417). Fazemos essa menção, por entender que a suposta falta de perspectiva pode ser um
dos fatores que justifique a continuidade das manifestações públicas desqualificando as
intervenções técnicas e, consequentemente, refutando as presenças tanto dos gestores quanto
da própria instituição na Cidade de Goiás.

A população católica da cidade de Goiás protesta, junto à V. Excia, contra o


ato do engenheiro responsável pelo patrimônio histórico que está
promovendo alteração prejudicial na estrutura da Igreja da Boa Morte,
prejudicando as condições de funcionamento do culto católico do referido
templo. Agradecemos as providências de V. Excia para fazer cessar essa
afronta aos católicos pela modificação nessas obras de arte religiosa
(“CIDADE DE GOIAZ”, 1960, p.01)127.

Conforme o jornal, a nota pública é endereçada a Rodrigo Melo Franco, diretor


do DPHAN naquela data. Estudando o documento sob uma perspectiva comparada, notamos
que as balizas da cultura e da tradição subsidiam a tônica do aparente ciclo das investidas
populares. Acreditamos, conforme discutimos anteriormente, que as crenças engendradas nos
discursos de (re)valorização cultural da Cidade de Goiás podem estar, em certa medida,
atreladas ao proeminente apego da coletividade vilaboense pelo patrimônio cultural e, nesse
caso, material e imaterial128 há tempos coexistentes, embora, sobressalentes aos olhares e às
práticas culturais urbanas, mais epidermicamente, a partir dos anos de 1940.
Observando a tessitura da reconfiguração cultural desencadeada desde então, é
possível perceber o argumento do “culto católico” como uma relevante representação
derivada dos começos oficiais, no tocante ao enraizamento sociocultural da população
local129. Isso os torna, portanto, legítimos atores herdeiros das práticas de resistência ao
adverso.
Nesse sentido, Tamaso (2007, p.126-130) argumenta que coube às autoridades
políticas da época remediar essa relação. Até porque, as aspirações desse grupo de poder em

127
Jornal “Cidade de Goiaz”, “Protesto Contra o DPHAN”. Cidade de Goiás, 17 de janeiro de 1960. Ano XXII,
N°. 732, p.01. Fonte: AFFSD.
128
“A identificação e valorização do patrimônio cultural, especialmente daquele designado como imaterial, pode
ensejar o fortalecimento do espaço público, espaço privilegiado onde múltiplos grupos sociais e suas
manifestações culturais e identitárias podem ser reconhecidos como representações legítimas da cultura
brasileira. (...) Em suma, o conceito de referência cultural ressalta o processo de produção e reprodução de um
determinado grupo social e aponta para a existência de um universo simbólico compartilhado” (VELOSO, 2006,
p.443-444).
129
A tese de enraizamento cultural da população vilaboense foi apropriada a partir de: (MORAES, 2012, p.30-
45).
123

torno do processo de ressignificação cultural da Cidade de Goiás, ou seja, o foco no turismo;


implicava o envolvimento das instituições e dos populares nesse empreendimento
indistintamente. Sobre esse assunto, há consenso entre a autora e Delgado (2003, p.417) -,
ambas, pesquisadoras que debruçaram em estudos sobre o patrimônio vilaboense - quando
afirmam que o discurso político concebia o tombamento cultural da cidade entremeado à
valorização das tradições, sejam elas inventadas ou não, pois se tratavam de instrumentos
promissores para estimular o empreendimento das atividades turístico-culturais e, com elas,
ativar o soerguimento econômico da antiga capital.
Ressalta-se que, no auge das divergências da comunidade com o DPHAN, em
fins dos anos de 1940, os moderadores chegaram a conclamar publicamente a elite cultural, os
tidos filhos de Goiás, para “ponderar que a história e o turismo serão as vigas mestras do
reerguimento econômico de Goiás” (TAMASO, 2007, p.127). Acreditamos que, os chamados
filhos, interessaram-se mais em promover a cultura porque, através dela, adquiria-se
legitimidade social. Sendo assim, fincados na principal referência do legítimo, Goiandira do
Couto, um grupo de jovens, pertencentes à elite social, decidiram fundar a OVAT, em 1965,
instituição que concatenou os anseios institucionais, governamentais e populares ao
triangular, à história, ao turismo e à invenção das tradições, a fim de promover práticas que
veiculassem a Cidade de Goiás ao cenário cultural goiano.
O papel de Goiandira do Couto é emblemático nessa façanha político-cultural.
As motivações desse grupo gestor das “tradições” vilaboenses podem ser resumidas na
seguinte afirmação proferida pela artista-guardiã: “naquela época, eles queriam atrair pessoas
porque os turistas eram apenas “uns gatos pingados” (SILVA, 2008, p.63). Atentos a estes
aspectos, analisaremos a OVAT e outras relações de poder intrínsecas à sua constituição e
atuação na Cidade de Goiás, desde então.

3.2 - Institucionalizando Guardiões: a fundação da OVAT

Na década de sessenta, nós criamos a OVAT, que era um grupo de pessoas


ligadas à cultura e à arte e começamos a planejar o que seria Goiás para o
futuro. De que ela poderia viver? Nós partimos a pesquisar e ver que o
passado de Goiás era um passado muito rico em tradições, em arte, em
cultura e em história. Desde a fundação até 1937, a vida do Estado
desenvolveu aqui dentro. Então, quer queira, quer não queira, isso já é um
ponto fantástico. E nós tínhamos vários prédios que estavam abandonados,
que estavam deixados, emprestados a órgãos públicos, a escolas, a “n”
124

coisas. Nós começamos a fazer um levantamento histórico. Vimos que o


futuro de Goiás era o passado” (“O VILABOENSE”, 2006, p.10) 130.

Introduzimos a presente discussão com o depoimento extraído da memória do


presidente-fundador, Elder Camargo Passos, ora publicado no jornal local, “O Vilaboense”,
intui recrudescer às análises sobre as formas e as normas pelas quais se deram o
empoderamento da OVAT e, por sua vez, da elite sociocultural devidamente legitimada no
papel de guardiões das tradições vilaboenses. Nota-se que a visão institucional baseava-se,
fundamentalmente, em colocar em prática estratégias culturais que possibilitassem um
definitivo rompimento com circunstâncias daquele presente, por meio da valorização do
passado, pelo qual se projetaria um futuro glorioso para a Cidade de Goiás, semelhante à
realidade vivida antes do paradigma de 1937.
Sob essa perspectiva, encontramos, em Delgado (2003, p.418), indícios de que
os fundadores desta entidade se autodenominavam herdeiros do movimento antimudancista,
portanto, um grupo fiel às concepções tradicionais do passado. Eis o ordenamento temporal
conjecturando os pretensos resultados subordinados à persistência daquilo que existiu, mesmo
que de forma reatualizada, orquestrando o curso das ações do presente avistadas no horizonte.
A categoria de análise “Invenção das Tradições” aparece, assim,
indiscutivelmente, apropriada pelos atores e, por conseguinte, diluídas em suas práticas. Aliás,
o sentido dado ao passado não era de mera inspiração, mas sim, da reprodução
contextualizada e proposital de seus alvos. Tais reflexões nos fizeram relembrar o episódio
ocorrido em 1934, debatido no capítulo anterior. Analogicamente, naquela ocasião,
identificamos o primeiro formato da organização dos guardiões das tradições. O nomeado ato
“cívico” que reuniu representantes do clero, autoridades políticas, representantes da sociedade
civil e Goiandira do Couto, para instituir um símbolo gótico no lugar da igreja em estilo
colonial, alusiva à Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, explicitou-nos que, na visão
daqueles pioneiros, o projeto de futuro pensado para Cidade de Goiás tinha o intento de
aproximar-se, mesmo que de maneira equivocada, das representações concernentes à
modernidade goiana. Não nos restam dúvidas de que os novos guardiões dos anos de 1960
propuseram um viés contrastante.
Ao estudar mais detidamente o discurso do membro fundador, observa-se que a
preservação do patrimônio material constituía o sustentáculo do planejamento das ações
destes representantes, os quais mantiveram, como princípio elementar, a “invariabilidade” das

130
Jornal “O Vilaboense”, “40 ANOS DA OVAT, Promovendo a Cultura e Resgatando as Tradições”. Por:
Elder Camargo Passos; Goiás, jan/fev. 2006. Ano 13, N°. CXLVII; p.10. Tiragem: 8000 exemplares.
125

tradições preexistentes, especialmente no que tange às práticas religiosas e aos lugares


simbólicos a elas. A rigor, baseando-nos pelos enfrentamentos populares estabelecidos com o
DPHAN, afirmamos que o itinerário dos recém-instituídos guardiões foi atinar para a sensível
justaposição da preservação do patrimônio material (passado), à invenção do patrimônio
imaterial131 (presente) com a projeção turístico-patrimonial (futuro), ou seja, à convenção dos
elementos simbólicos por meio da inculcação de práticas cujo objetivo era a coesão social por
meio de comportamentos e valores que transmitissem sentidos de identificação
(HOBSBAWM e RANGER, 1997, p.17). Em se tratando dessas experiências na Cidade de
Goiás, via OVAT, as credenciais basearam-se no tradicionalismo e nas relações de poder132.
Historiando as origens da entidade, essas concepções nos parecem mais tangíveis:

(...) foi fundada em 1965, por um grupo de jovens intelectuais e artistas da


cidade de Goiás, com fim de preservar e soerguer o seu patrimônio
cultural, artístico e tradicional, são os fundadores da OVAT, Goiandira
Aires do Couto (brasileira, solteira e professora), Joiza Pereira Oliveira
(brasileira, casada e professora), Joice Pereira Oliveira (brasileira, solteira e
professora), Elina Maria da Silva (brasileira, casada e professora), Elder
Camargo de Passos (brasileiro, casado e advogado), Humberto Nascimento
Andrade (brasileiro, casado e comerciante), Antônio Carlos da Costa
Campos (brasileiro, casado e advogado), Eudes Pacheco Santana (brasileiro,
casado e advogado), Neuza Velasco (brasileira, casada e professora),
Erlande da Costa Campos (brasileiro, casado e bancário) e Hercival Alves de
Castro (brasileiro, casado e advogado) (ESTATUTO da OVAT, Livro n° A-
1, fl. 01, 1978) 133. (grifo nosso)

Há, porventura, associação entre preservar, soerguer e se autoafirmar? De


acordo com Hobsbawm e Ranger (1997, p.18), trata-se de um movimento próprio e de
aquiescência mútua dos envolvidos no “jogo” das atribuições. Fitos na argumentação dos
teóricos, uma vez estabelecido o predomínio das tradições inventadas, como variáveis
identificadoras de uma sociedade, contribui, sintomaticamente, para que alguns atores
encorajem-se a parecer serem mais iguais do que outros, embora, de alguma forma,
submetidos a um consenso coletivo. Mesmo porque, durante a prática dos ritos (tradições
locais), centenários ou não, se estabelece, no mundo social em questão, um hiato nos papéis
131
Referimo-nos à Procissão do Fogaréu, tema predominante nas discussões previstas para o próximo subitem
desse capítulo.
132
Parágrafo 4° - “Resolver todos assuntos que envolverem interesse da organização, podendo firmar acordos e
levantar campanhas que visem salvar, preservar ou adquirir obras artísticas ou culturais, como também
manifestações populares e religiosas, ligadas às tradições ou ao folclore local, e a preservação do aspecto físico
de suas ruas, praças, aprovando e ajudando na fiscalização do tombamento feito pelo IPHAN;”. Art. 5° do
Estatuto da OVAT Livro n° A-1, fl. 02, 1978. Fonte: Tabelionato de Registros de Pessoas Jurídicas, Títulos,
Documentos, Protestos e 2° de Notas. Praça Dr. Tasso de Camargo, n° 01, Centro – CEP: 76.600-000, Cidade de
Goiás-Go, doravante TABELIONATO 2º OFÍCIO. (grifo nosso)
133
Art. 1° do Estatuto da OVAT Livro n° A-1, fl. 01, 1978. Fonte: TABELIONATO 2º OFÍCIO.
126

atribuídos, pois no espaço das sociabilidades - culturais, artísticas, religiosas ou folclóricas -


institui-se a pseudo-sensação de equivalência, ou seja, circunstância onde se aplainam as
diferenças. Em outras palavras, tornam-se, fundamentalmente, importantes para a
permanência dessa modalidade de contrato social que “em cada um dos subespaços, os
ocupantes das posições dominantes e os ocupantes das posições dominadas estão,
initerruptamente, envolvidos em lutas de diferentes formas (sem, por isso, se constituírem,
necessariamente, em grupos antagônicos)”, elucida Bourdieu (2007, p.153).
Sobre essas reflexões, frisamos: que o contemporâneo grupo, elencado
nominalmente no excerto anterior134, fora constituído sob a envergadura de guardiões das
tradições vilaboenses. Além de aspirar feitos culturais grandiloquentes, adquiriu legitimidade
social para empreender suas ações, não somente por pertencerem à elite ou pela sensibilidade
aflorada quanto ao entendimento dos hábitos, dos costumes e da identidade urbana e social.
Suscitamos a hipótese de que a inserção do nome de Goiandira do Couto, personalidade
amplamente reconhecida como pilar simbólico das tradições vilaboenses, entre os
constituintes da entidade fundada em 1965, sugere-nos encaminhar essa narrativa alinhavando
as discussões sobre o poder cultural exercido pela OVAT, entrecruzado ao protagonismo e ao
simbolismo que a artista-guardiã constituiria aos propósitos institucionais.
Curiosamente Goiandira do Couto detinha, também, o papel de convalidá-los.
Pois, além da representatividade social, Goiandira do Couto era uma mulher madura, no auge
dos seus cinquenta e dois anos, entre uma maioria que, à época, possuía aproximadamente a
metade de sua idade.
Subjetivamente, avaliamos que a cautela adotada pela OVAT, ao estruturar sua
forma (propósitos) e formação (indivíduos), se deram em função dos recorrentes embates
vivenciados pelo DPHAN e pela comunidade local. Porquanto, embasamos essa afirmativa
nas discussões apresentadas no subitem anterior, no qual problematizamos que, desde a
chegada até o efetivo estabelecimento desta instituição na Cidade de Goiás, ocorrido por volta
de 1947 a 1950, a relação entre o citado órgão federal e a população vilaboense baseou-se em
tensões constantes, provavelmente creditadas à falta de legitimidade e/ou à equivalência
social daqueles que são de “fora”, aspecto que, por sua vez, tornou-se característica peculiar
ao modus vivendi dos habitantes locais, sobretudo, após o paradigma da mudança. Por mais
que argumentamos sobre os meandros da aparente “unidade” da OVAT com a coletividade
vilaboense, não podemos nos esquecer de que consistia, entre as metas desta instituição,

134
Para conferir, ver documento no anexo II.
127

aproximar-se das entidades ligadas à cultura na Cidade de Goiás, conforme expõe o artigo 6°
do Estatuto da OVAT que ora subscrevemos:

c) Contribuir com ações de conscientização junto a empresas, instituições e


pessoas, a necessidade aos benefícios da preservação da identidade cultural,
por meio de palestras e estudos. (...). e) Contribuir para a capacitação dos
profissionais ligados a instituições afins (ESTATUTO DA OVAT, Livro n°
A-1, fl. 06, 1978, alíneas “c” e “e”).

Subentende-se, no presente discurso, a necessidade de uma prévia


“conscientização” a respeito da identidade local para, finalmente, tornar-se “apto(s)” às
tarefas relativas à preservação e/ou deliberação sobre os bens culturais na Cidade de Goiás.
Ressalte-se que na ocasião da chegada do DPHAN (mais tarde renomeada de IPHAN), na
antiga capital, em fins dos anos de 1940, não havia uma instituição local disposta a
“capacitar” os representantes do órgão federal a atuarem na área da cultura conforme as
especificidades vilaboenses. Essa conjectura pode ser uma justificativa para os referidos
enfrentamentos entre a população local e a entidade federal.
Não obstante, o aparecimento da OVAT, em meados dos anos de 1960, dá-nos
a impressão de que os guardiões das tradições se colocaram perante esta instituição
(DPHAN), como interlocutora “das coisas de Goiás135”, a fim de um relativo ajustamento
entre ambas às entidades tendo em vista o interesse comum, ainda que de maneira distinta,
subjacente: atuarem no campo da cultura vilaboense. Considerando a OVAT e DPHAN, como
notórias portadoras de poderes (simbólico e efetivo), uma possível interface entre ambas
poderia representar, aos olhos dos integrantes da elite institucionalizada (OVAT), uma
“janela” para que os ideais de futuro traçados para a Cidade de Goiás, a partir de então,
estariam mais susceptíveis à concretude. Até porque, era sabido que ao DPHAN/IPHAN cabia
a legalidade do poder efetivo de identificar e gerir o patrimônio cultural (material) da Cidade
de Goiás. Embora estivessem convictos de que o exercício pleno dessas prerrogativas
dependia da chancela do poder simbólico, uma propriedade legítima dos membros
constituintes das famílias tradicionais da sociedade local. É nesse emaranhado de
particularidades que encontramos as bases para a formação e fundação da OVAT, em 1965, e,
consequentemente, as motivações que propiciaram a “reciprocidade” institucional entre os
representantes das duas entidades em análise.

135
Expressão do senso comum que denota posse e distinção no que diz respeito à cultura local. Termo recorrente
nos discursos dos guardiões da tradição, ainda, nos dias atuais.
128

Conforme Bourdieu (2007) compreende-se que em um estado de campo, o


poder pode ser visto por toda parte. Nesse sentido, arriscamos afirmar que a perda do status
de capital do Estado de Goiás instaurou-se, no mundo social vilaboense, uma cultura de
disputas simbólicas e ideológicas entre os nascidos na Cidade de Goiás, ou “filhos da terra”
(representados pela elite tradicional, ou seja, a OVAT), e o novo (referimo-nos ao órgão
governamental destinado à gestão dos bens culturais).
Visando explorar teoricamente os desdobramentos destas problemáticas sobre
as singularidades do objeto, insistimos no diálogo com o filósofo francês, Pierre Bourdieu
(2007): “(...) as diferentes classes e frações de classes estão envolvidas numa luta
propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social, mais conforme os seus
interesses, e imporem o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo, em forma
transfigurada, o campo das posições sociais” (p.11). Reavaliando o caráter volátil dessa
relação, o autor chama-nos a atenção para a existência de uma homologia entre esses dois
polos que, segundo ele, sistematiza um jogo de regras e formas eufemizadas. Ainda sobre a
complexidade desses “jogos”, o pensador considera o seguinte princípio:

O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de


fazer ver e de fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e,
desse modo a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico
que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (...) graças
ao efeito específico da mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer
dizer, ignorado como arbitrário (BOURDIEU, 2007, p.14).

As sutilezas do fazer cultural na Cidade de Goiás, essencialmente aqueles


vinculados às famílias tradicionais, que se nomeavam antimudancistas e defensores das
tradições locais, pavimentaram as vias suaves do reconhecimento, condutoras do
empoderamento, deste grupo, em específico.
Considerando esses aspectos, não nos restam dúvidas de que os constituintes da
OVAT se favoreceram destes atributos peculiares, variáveis da autoridade simbólica e
representação popular, para dirimir os conflitos entre o DPHAN/IPHAN, tendo em vista a
justaposição de interesses, objeto da mútua aproximação entre as respectivas instituições, a
partir dos anos de 1960. Historiar o provável êxito dessa parceria perpassa por uma
investigação apurada sobre algumas posições assumidas pelos guardiões das tradições locais,
de certa forma franqueadas pelo órgão federal, posto que se propuseram, regimentalmente, a
ir, além de guardar, zelar e promover as tradições e cultura na Cidade de Goiás para, ainda,
“proteger obras de arte antiga e contemporânea, como também aspectos artísticos e culturais
129

expostos, ou não, em museus ou pertences a particulares” (Art. 6° do ESTATUTO da OVAT,


Livro n° A-1, fl. 06, (alínea b), 1978).
Diante do que se lê, no artigo 6°, dois aspectos importantes se sobressaem:
primeiro, a regulamentação de objetivos ambiciosos demonstra-nos, de certo modo, a
significativa “permissividade” das representações constituídas sob a égide do poder público.
Segundo, parece-nos claro o entendimento, por parte dos representantes do poder efetivo, de
que o “jogo” das relações culturais na Cidade de Goiás dependia (e ainda depende) do
respaldo do poder simbólico emanado de uma “coletividade” representada pelos membros da
OVAT.
Entretanto, antes de adensarmos análises sobre essa evidente parceria,
entendemos que é de vital importância trazer à baila um marco no contexto sociocultural da
Cidade de Goiás, ocorrido em 1961, à promulgação do decreto-lei 3.635/61, que versa sobre a
transferência simbólica da capital do Estado para a Cidade de Goiás, por três dias, durante as
comemorações de sua fundação oficial. Consideramos a decorrência deste fato como essencial
para interligar a guardiã por tradição, Goiandira do Couto, aos “jovens intelectuais”,
considerados, em sua maioria, integrantes da elite local, ao arrojado projeto cultural proposto
pela OVAT, pragmaticamente, baseado na interface com as instituições governamentais e
religiosas (Igreja Católica) instaladas localmente.

3.3 Política Cultural ou Coalizão de Poderes?

Estudos apontam que a política cultural136 no Brasil se estabeleceu por


inciativa governamental, no âmbito do poder federal, objetivando, especialmente, o trabalho
de conservação do patrimônio artístico e cultural nacional. Ainda, segundo dados destas
pesquisas, a partir dos anos de 1970 o aparelhamento entre o Estado e os diferentes agentes
culturais civis operacionalizou uma noção de patrimônio associada ao conhecimento dos
grupos dirigentes em interface com os costumes das classes populares intuindo, mormente,
valorizar a produção cultural autônoma.

136
Previamente, consideramos importante esclarecer que: “política cultural é entendida habitualmente como
programa de intervenções realizadas pelo Estado, entidades privadas ou grupos comunitários com o objetivo de
satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas representações
simbólicas. Sob este entendimento imediato, a política cultural apresenta-se assim como o conjunto de
iniciativas, tomadas por esses agentes, visando promover a produção, distribuição e o uso da cultura, a
preservação e a divulgação do patrimônio histórico e o ordenamento do aparelho burocrático por elas
responsável” (COELHO, 1997, p.293).
130

Todavia, indícios revelam-nos que, na Cidade de Goiás, essa reciprocidade de


interesses desencadeou-se nos primeiros anos da década de 1960. A partir das reflexões
apresentadas por Tamaso (2007), especialmente daquelas que norteiam o tópico, “A
transferência simbólica da capital”, notamos que o diálogo com o pensamento de Bourdieu
(2007) sobre “O Poder Simbólico” subsidiam condições para rediscutirmos as problemáticas
que, por porventura, pareçam-nos correlatas à trama que envolve a implementação de
políticas culturais na antiga capital frontalmente entrosadas com o seu passado/presente o que,
por sua vez, explicita-nos as supostas variáveis que contribuíram para institucionalizar os
guardiões das tradições vilaboenses, em 1965, nominalmente, citados na estatuinte que rege a
entidade137.
Não obstante, ficou evidente que a efervescência da vida cultural desta urbe
colonial adquiriu maior robustez quando os olhos do Estado Varguista se voltaram para o
Oeste, a partir dos anos 1940.
Vimos ainda que, por intermédio do DPHAN, o governo federal interagiu com
a Cidade de Goiás, para viabilizar a ideia de patrimônio e tombamento dos prédios públicos e
privados cujas ações suscitaram “um campo de lutas a que diversos atores comparecem
construindo um discurso que seleciona, que se apropria de práticas, de objetos e as expropria”,
conclui Veloso (2006, p.438). Independente dos antagonismos apresentados a partir dessa
relação. É visível o aspecto literalmente lacônico e/ou omissivo, por parte do governo
estadual, no que diz respeito às políticas de compensação à Cidade de Goiás, no auge dos
anos de 1950.

Esta cidade, que por longos anos foi a capital do Estado, naturalmente, está
dotada de grande número de edifícios pertencentes ao patrimônio estadual.
[...] Lamentavelmente, com a mudança da capital, deixaram de receber os
indispensáveis cuidados e caminham aceleradamente para a ruína. [...] é
mister que o governo do Estado tome providências a respeito, sob pena de
ver esse patrimônio irremediavelmente perdido. Alguns milhares evitarão a
grande perda (TAMASO, 2007, p.141).

É importante mencionar que as diretrizes econômicas pensadas para o Estado


de Goiás, nacionalmente, por meio da expansão agrícola motivada pelo advento da Marcha
para o Oeste, mantiveram-se em acordo com o crescimento industrial brasileiro. Borges
(2000, p.85) acrescenta que, em meados da década de 1950, houve uma intensificação das
práticas agropecuárias e a construção da capital federal, seguindo a tendência político-

137
Para amplo conhecimento destas diretrizes, informamos que o estatuto da OVAT encontra-se, parcialmente,
no anexo II.
131

ideológica de “valorização” do Brasil Central, e consubstanciou o progresso capitalista do


Estado de Goiás.
Mas, ao que parece, a prosperidade desfrutada pelo governo estadual não teria
sido tão equitativa com as bases culturais desse projeto desenvolvimentista de integração
nacional, representada pela Cidade de Goiás, a qual fora adicionada ao processo político para
dar sentido ideológico à expansão recolonizadora do Oeste do país. Novamente, a sensação de
perda expõe confrontos silentes, porém latentes, no que diz respeito à relação da cidade com o
governo do Estado de Goiás. É possível que essa sistemática cotidiana possa ter sido um dos
implicadores que levaram ao distanciamento de Goiandira do Couto e Octo Marques, da
Sociedade Pró Arte, para se dedicarem, com maior veemência, aos propósitos da arte e cultura
embasadas na vertente preservacionista estritamente no âmbito da Cidade de Goiás, conforme
já discutimos.
Ora, se radiografamos que o contexto relacionado à sobrevivência do
patrimônio cultural edificado, possivelmente, tenha influenciado as decisões e os rumos da
atuação cultural da artista, atribuímos o encadeamento das “susceptibilidades” da vida
política, ao fato da recolocação histórica e simbólica da cidade e do Estado de Goiás,
novamente, em fios transversais. Consoante Tamaso (2007, p.142), assim que Mauro
Borges138, filho do interventor federal, Pedro Ludovico Teixeira, assumiu o governo do
Estado de Goiás em 1961 e, em sua primeira visita como então governador139, foram
implementadas as primeiras ações administrativas para a promulgação do referido decreto-lei

138
“Mauro Borges Teixeira nasceu em Rio Verde (GO), no dia 15 de fevereiro de 1920, primogênito de Pedro
Ludovico Teixeira e Gercina Borges. Casou-se com a gaúcha Maria de Lourdes Dornelles Estivallet. (...). Ao
lado da trajetória individual, outro elemento contribuiu na trajetória política de Mauro Borges: sua vinculação a
uma memória familiar que se aproxima da história da região, pela ação de Pedro Ludovico, memória consagrada
pela historiografia e pela memória coletiva, a principal liderança política em Goiás. Assim, não foi casual o
encontro de Mauro Borges com a política. Logo, desde muito cedo, acompanhou de perto os meandros do poder,
nas articulações e nos posicionamentos assumidos por seu pai em favor da Revolução de 1930, construção de
Goiânia, resistência ao movimento paulista de 1932 e instalação do Estado Novo. Os estudos iniciais foram
realizados na cidade natal. Com a mudança da família para a Cidade de Goiás, cursou humanidades no Lyceu. A
seguir, em 1938, foi para o Rio de Janeiro e ingressou na Escola Militar de Realengo, da qual saiu aspirante-a-
oficial da arma de infantaria, em 1941. O fato coincide como momento de mudança na organização do Exército,
ocasionada pela instalação do Estado Novo” (FAVARO, 2015, p.26).
139
Em entrevista concedida à Tamaso (2007, p.142), em março de 2003, o ex-governador Mauro Borges narrou
a efeméride de sua chegada ao Palácio Conde dos Arcos, antiga sede do governo estadual: “Quando nós
chegamos lá, eu me lembro bem, as portas estavam abertas, as janelas abertas pareciam uma casa em abandono,
não tinha ninguém tomando conta, nós entramos lá e vimos uma porção de pequenos animais, cachorros ... onde
eram os jardins, cavalo pastando... dentro da casa... no Palácio... uma coisa horrível. Eu achei estranho aquele
abandono. Causou-me certa revolta o descaso de lá, das autoridades, quanto à conservação daquele velho
Palácio. E aí mandei imediatamente fechar, botar cadeado nas portas, mandei imediatamente fazer uma reforma
geral no Palácio... pintar tudo... pra poder voltar o que era aquele velho casarão. [...] E foi até uma sugestão da
Lourdes de transferir provisoriamente... ela falou “Mauro, por que você não faz como Minas Gerais que leva a
capital para comemorar o Tiradentes... a capital se muda para Ouro Preto... por que você não faz aqui em Goiás a
mesma coisa”? Eu falei: ótima ideia a sua, eu vou fazer isso”.
132

3.635/61, o qual previa a transferência simbólica da capital, bem como a salvaguarda da


cidade “sob a proteção especial do Estado”, reza o documento. Consideramos o teor dessa
legislação de suma importância para os encaminhamentos analíticos que aglutinam os
possíveis interesses motivadores que levaram a deliberada constituição institucional dos
vilaboenses “nascidos da terra”, representados na formação dos constituintes da OVAT.
Lendo e relendo o texto legislativo, publicado pelo jornal “O Popular”, de
1962, percebe-se que o presente documento (figura 14) fornece pistas para entender as razões
que motivaram os atores-autores da iniciativa de fundar uma entidade propagandeada como
genuinamente orgânica e voltada às questões culturais da Cidade de Goiás.
Consequentemente, cremos que tais medidas institucionalizaram o poder simbólico tanto dos
agentes, a exemplo da personagem central (Goiandira do Couto), quanto da própria instituição
que goza, ainda na atualidade, desse atributo. Avaliamos este aspecto como crucial à
historicização da trajetória da OVAT, a fim de (re)dizê-la, pois, parece-nos visível o
cruzamento desse(s) fato(s) em relação ao epicentro investigativo desta pesquisa: Goiandira
do Couto, a cidade e suas tradições “inventadas”.
Com base nesses argumentos, apresentamos a seguir, o fac-símile do referido
jornal (figura 14), e sua respectiva transcrição na integralidade dada à relevância deste
registro. Contudo, metodologicamente, importa-nos pontuá-lo por alguns termos da Lei
3.635/61 que, supostamente, estimulou a organização de uma entidade embrionária à OVAT,
nomeada como “Comissão Vila Boa”, a qual conjecturamos ter sido percussora da
aproximação dos agentes culturais vilaboenses (os guardiões das tradições) com o órgão
federal, o DPHAN, designado à salvaguarda e gestão do patrimônio cultural local. Ademais,
acreditamos que este documento, além de oficializar a Cidade de Goiás como a capital
simbólica do Estado de Goiás, estabeleceu algumas medidas de compensação devido às
perdas de 1937 tendo, por sua vez, normatizada a concepção de “berço da cultura goiana” na
medida em que esta expressão incorpora-se às formalidades do texto legislativo.
133

Figura 14 - Jornal “O Popular”, publicação do Decreto-lei 3.635/61, 1962.

Fonte: Acervo da família de Maria Dulce Loyola.


TRANSCRIÇÃO

Texto Completo da Lei que Colocou a Cidade de Goiás Sob Proteção Especial

De acordo com a decisão contida na Lei 3.635, de 10 outubro de 1961, instalaram-se


hoje, solenemente, na Cidade de Goiás, os Poderes Legislativo e Judiciário,
completando assim a gestão do Govêrno na velha e tradicional cidade, que durante
vários anos abrigou a capital político-administrativa do Estado. A referida Lei
publicada no Diário Oficial de 23 de novembro de 1961, regulamentava ainda diversos
outros aspectos da Cidade de Goiás, protegendo-a e amparando-a, “sob proteção
especial do Estado”.
E a seguinte a integra da Lei n° 3635:
134

“Assembleia Legislativa do Estado de Goiás decreta e eu promulgo a seguinte lei:


Art. 1° - sem quebra da autonomia assegurada ao município pela Constituição da
República, a Cidade de Goiás, como antiga capital e berço histórico e
cultural do povo goiano, fica sob a especial proteção do Estado.
Art. 2° - Anualmente, entre 25 e 31 de julho, a Assembleia Legislativa funcionará e o
Governador despachará na cidade de Goiás, onde na mesma época, o
Tribunal de Justiça realizará sessão solene especial de homenagem à antiga
Capital do Estado.
Art. 3° - Dentro de 15 dias contados do início da vigência desta Lei, deverão estar
funcionando, por designação do Chefe do Poder Executivo, grupos de
trabalho que, até o dia 13 de outubro, de 1961, elaborem e submetam a
aprovação do Govêrno planos completos e minuciosos de amparo aos
interesses econômicos do município de Goiás e de conservação do
patrimônio artístico, histórico e cultural da antiga capital do Estado (Artigo
32 do Ato das Disposições Transitórias anexas à Constituição Estadual dos
rios próximos à cidade).
Art. 4° - Aprovado cada plano pelo Governador, submeterá este à Assembleia
Legislativa os projetos de Lei que se fizerem necessários à sua execução.
Art. 5° - É criada a “Comissão Vila Boa”, órgão de consulta e cooperação com o
Governo do Estado, no estudo das medidas de defesa do patrimônio
artístico, histórico e cultural da cidade de Goiás.
Parágrafo único - O Chefe do Poder Executivo, em decreto, estabelecerá
a constituição e modo de funcionamento da Comissão.
Art. 6° - A partir do exercício de 1962, o Orçamento do Estado consignará dotações
especialmente destinadas:
I - à abertura e conservação de estradas primárias, em estrita cooperação com
a prefeitura municipal de Goiás para escoamento da produção agrícola
(VETADO);
II - à conservação de monumentos históricos e de edifícios públicos;
III- à aquisição de velhos edifícios de valor histórico, de arquitetura colonial
autêntica, para conservação como exemplares sobreviventes aos primitivos
tempos da cidade;
IV - à conservação de templos religiosos que possuam em custódia relíquias
históricas;
V - A restauração e manutenção do Gabinete Literário Goiano, sob os
auspícios do poder público, a ele recolhendo-se livros raros e de especial
valor histórico da lavra de autores goianos ou escritos sobre a terra e a
gente goiana140.
Art. 7° - Revogam-se as disposições em contrário. Esta lei entrará em vigor na data da
sua publicação (grifo nosso).

O notório reconhecimento da Cidade de Goiás como “berço histórico e cultural


do povo goiano”, reza o artigo 1° da figura 14, pressupõe-nos que os feitos engendrados em
favor da visibilidade cultural da antiga capital, mesmo tardiamente, se comparadas às
propostas do “mudancismo condicionado”, foram oficializadas. Esta prerrogativa, por sua
vez, reiterou tanto o franco processo de tombamento dos monumentos históricos desta urbe

140
Para constar, relembramos que o episódio da palestra proferida pela folclorista, Regina Lacerda, analisada na
sessão anterior, aconteceu, aproximadamente, sete anos da promulgação da Lei 3.635 e tratou-se de uma
solenidade de reabertura do referido Gabinete Literário Goiano, a qual fora organizada pela OVAT que, à época,
estava pouco mais de três anos em franca atuação cultural na Cidade de Goiás. Os feitos institucionais serão
apresentados com a evolução das problemáticas.
135

colonial, - “assinou o decreto n° 48 “transformando o Palácio Conde dos Arcos em


Monumento Histórico e residência de inverno dos Governadores” -, quanto ao “coroamento”
concretizado a partir da legitimidade oficial, outorgando-lhe o poder simbólico, tendo em
vista que: “Anualmente, entre 25 e 31 de julho, a Assembleia Legislativa funcionará e o
Governador despachará na Cidade de Goiás, (...) o Tribunal de Justiça realizará sessão solene
especial em homenagem à antiga capital do Estado”, atesta o artigo 2° (figura 14). Do ponto
de vista filosófico, Bourdieu (2007) explica que essa justaposição de instrumento e
comunicação estrutura-se para atribuir ao poder o seu devido valor representativo, portanto,
consensual.
O novo mundo vilaboense, tangível por meio das ações contundentes de Mauro
Borges, demonstra-nos que o espaço fora aberto à “cooperação” das entidades públicas e civis
na Cidade de Goiás, tendo em vista alguns objetivos precípuos relembrados pelo próprio
propositor em entrevista: “proteção especial pelas razões da tradição etc...; da influência
política de tantos anos na vida do Estado, como também porque a cidade teria que se
desenvolver, não só o valor histórico. Então, tinha que protegê-la para que ela crescesse”
(TEIXEIRA apud TAMASO, 2007, p.144). Por esse depoimento, resta-nos depreender que as
instituições públicas locais (DPHAN e Prefeitura Municipal) detentoras do seu lugar de fala,
poderiam alinhar o discurso da preservação histórica com o foco no turismo, visando o
progresso econômico da Cidade de Goiás de modo sustentável.
Mas, onde ficaria o lugar das tradições? Lembremo-nos que esse tema tratava-
se de um apelo evocado, simultaneamente, pela elite e pela coletividade vilaboense. Desse
modo, tal questionamento fertiliza a suposição de que havia lacunas no entrosamento das
categorias entendidas como responsáveis por empreender a retomada do desenvolvimento da
Cidade Goiás. São elas: história, patrimônio e turismo. Essas “ausências” foram
sensivelmente captadas pelos idealizadores da OVAT que, por sua vez, fundaram a referida
entidade estruturada, essencialmente, nesse tripé, conforme esclarece o célebre presidente-
fundador, Elder Camargo de Passos:

Nós pensávamos o que poderíamos fazer para que Goiás fosse um polo
chamativo turístico. Ela tinha várias festas religiosas, folclóricas inseridas
nas religiosas, mas nós tínhamos que salvar um segmento que desse
continuidade e também marcasse. Optamos pela Semana Santa que já vinha
desde 1700, porém já “estrupiada”. Daí, quando nós passamos a levantar,
depois de escolhido o tema, lendo os livros da irmandade [o entrevistado
refere-se a Irmandade dos Passos], como é que funcionava. Aí, que nasceu a
volta da Procissão do Fogaréu, que ela tinha desaparecido. Ela já tinha
existido aqui em Goiás (PASSOS apud FERREIRA, 2011, p.70).
136

Nota-se que o chamariz turístico se materializou numa representação


teatralizada em “sintonia” com as tradições de cunho religioso. A importância de Goiandira
do Couto nesse processo é um dado indiscutível. Afinal, a OVAT e o seu principal legado
cultural (Procissão do Fogaréu) surgiram nas dependências da “Casa de Goiandira”. Mais
uma vez, identificamos a residência dos Couto no epicentro das práticas culturais vivenciadas
pelo mundo social vilaboense. Cremos que seja oportuno destacar um de seus memoráveis
relatos sobre estas ilações. Lê-se em depoimento fornecido pela artista.

As reuniões da OVAT eram realizadas aqui em minha casa. O nome OVAT


também surgiu aqui. Lembro-me, eu aqui sentada, Elder, Humberto, Antônio
Carlos e outros. Estávamos aqui e decidimos colocar o nome, cada um deu a
sua sugestão, até que se decidiu Organização Vilaboense de Artes e
Tradições. Também, participavam Elina Maria, Joiza e Joíce...141 Lembro-
me que Eudes, inclusive ele quem tocou o clarim na primeira Procissão, ele
ensaiava aqui em casa. Eram todos jovens naquela época. Sempre fui
professora. (...) Lecionei para muitos desses jovens e os que não foram
alunos meus, eram meus amigos e por isso frequentavam a minha casa. Elder
não saía daqui de casa, era como se fosse um filho meu. Então nós sempre
fazíamos coisas para Goiás, eram as serenatas, as pesquisas sobre história de
Goiás em jornais, livros. Decidimos pesquisar a Semana Santa, recuperar
antigas procissões, atrair a atenção das pessoas (COUTO apud BRITTO,
2008, p.206).

Os detalhes narrados, a nosso ver, reiteram as intersecções entre a artista-


guardiã, sua casa e a OVAT. Em que pese ao simbolismo de Goiandira do Couto, na formação
desta entidade, estamos convencidos de que o seu papel fora tão relevante quanto a tríade
ideológica - história, patrimônio e turismo - pela qual os fundadores pautaram-se desde a sua
origem142.
As referidas “pesquisas” criaram uma rede discursiva vinculada direta ou
indiretamente ao processo de invenção de tradições que receberam, inclusive, a sanção da

141
Causou-nos curiosidade o relativo desenlace dos nomes de Elina Maria, Joíza e Joice, logo após a artista ter
se referido a alguns membros fundadores da OVAT. Investigamos e descobrimos que a primeira tratava-se de
uma forasteira com grande potencial criativo. As duas últimas, eram irmãs e vilaboenses, porém não
constituintes às famílias tradicionais. Ainda assim, todas tiveram importante atuação, assim como os demais
membros, nos começos desta entidade. Esta entrevista foi publicada por Britto (2008), sob o título: “O Tecido do
Tempo”.
142
Essa mesma visão reafirma-se quando lemos as memórias transcritas de Hercival Alves de Castro, membro
fundador, sobrinho paterno do ex-prefeito municipal, Zaqueu Alves de Castro, mencionado nesta tese como um
dos símbolos do Carnaval vilaboense, na primeira metade do século XX. Enquanto fundador da OVAT, declarou
em entrevista: “Após diálogos e reflexões nós definimos um projeto: uma organização que canalizasse e
englobasse todos esses anseios, uma organização que não visasse apenas o resgate de período, de um fato, de
uma comemoração, mas das tradições como um todo. Nossas reuniões eram realizadas sempre na casa de
Goiandira. (...) Sentíamos em sua casa, em condições de expandir, sentimentos que às vezes não possuíamos em
nossa própria casa” (CASTRO apud BRITTO, Entrevista: “Tempo reencontrado”, 2008, p.210). Cf: (BRITTO,
2008).
137

Igreja Católica. Nesta mesma entrevista, a artista-guardiã, responsável pela criação e


confecção estética deste rito (re)construído na contemporaneidade, declarou ter se inspirado
“naqueles livros históricos, religiosos, para criar os desenhos. (...) desenhei todas as roupas.
Eu desenhei os personagens e depois Elder levou para Dom Abel consentir” (COUTO apud
BRITTO, 2008, p.206). A título de esclarecimento, a referida autoridade religiosa foi o bispo
da Diocese de Goiás, cuja sede era e, ainda é, localizada na antiga capital, entre os anos de
1960 a 1966.
As análises sobre o empírico, ou seja, os croquis apresentados para anuência do
representante máximo da Igreja Católica local serão devidamente expostos e analisados no
próximo subitem, intitulado: Esboços da Tradição: concepções estéticas da imaterialidade
cultural.
Nessa discussão seguinte, visamos o aprofundamento na relação
passado/presente que, a nosso ver, foi responsável por refundar as nuances identitárias do
tradicionalismo que, a partir dos anos de 1960, passaram a representar a Cidade de Goiás para
o Estado e, posteriormente, para a Nação, quando as perspectivas de berço, cultura e tradição
atingiram o grau máximo desses significados através da Procissão do Fogaréu. Consoante
Delgado (2003), “no processo de invenção de tradições em Goiás, atribui-se conteúdos
simbólicos a determinadas práticas culturais sacralizando-as como genuínas (...) por
testemunharem a identidade regional cuja origem configura-se na cidade ancestral” (p.420).
Entretanto, conforme aludimos, dilataremos esses e outros aspectos nas discussões que
encaminham-se no ritmo das continuidades e descontinuidades do fazer histórico.

3.4 O Turismo Histórico e a Invenção de Tradições

Este alinhamento de horizontes que nos instiga a prosseguir nesse caminho


sinuoso, mantendo o foco da discussão no que atribuímos ser prioritário para esta sessão, a
retórica da política de coalizão institucional sistematizada pela OVAT e os enlaces relativos
ao empoderamento compreendido a partir da sua formação/fundação, em 1965, tornam-se
tangíveis quando nos deparamos com as nomeadas “realizações” da entidade.
No documento produzido - e impresso para distribuição gratuita - na ocasião
em que se comemoraram os quarenta (40) anos da OVAT, foram elencadas cronologicamente
sua ativa atuação “nos eventos culturais, cívicos e religiosos, possuindo como meta preservar
e valorizar as festividades vilaboenses” (OVAT, 40 anos Promovendo a Cultura e
Resgatando as Tradições, 2005, p.09).
138

Para Silva (2008, p.62), o texto produzido para o encarte comemorativo do


quadragésimo aniversário é carregado de tramas discursivas que enaltecem seus associados
pioneiros, ao passo que exalta os fatores que contribuíram para que a história e a cultura da
Cidade de Goiás extrapolassem os limites geográficos da Serra Dourada.
Sob seu ponto de vista, manipulando o documento, é perceptível o sentido
autocongratulatório do presente/passado ensejado de metas para o futuro. Culturalmente
falando, é visível o redesenho discursivo intuindo apresentar uma Cidade de Goiás
reconfigurada após o surgimento da OVAT. Essa particularidade aparece nos “feitos”
inventariados pela instituição cultural que optou por descrevê-los em um retrospecto
demasiadamente extenso. Afinal, trata-se de um itinerário cronológico que inicia-se com a
criação da entidade, em 1965, e, em razão dos quarenta anos, comemorados em 2005, foram,
também, dedicados e inscritos com as festividades alusivas aos noventa anos da artista-
guardiã, Goiandira do Couto, evidenciando, de certo modo, que a intrínseca vitalidade
institucional entrelaçava-se à trajetória de vida da fundadora homenageada.
Diante destes marcos, consideramos de suma importância enfatizar algumas
dessas efemérides, especialmente para demonstrarmos a deliberada aproximação da OVAT
com as instituições que, consensualmente, conferiram-lhe o poder simbólico sobre o
patrimônio, o turismo e a religiosidade popular na Cidade de Goiás. Desse modo, reportemo-
nos ao que nos informa o documento:
139

Figura 15 - Páginas do Encarte Comemorativo OVAT, 40 anos Promovendo a Cultura e


Resgatando as Tradições, 2005.

Fonte: acervo da autora.

Os ícones barrocos emoldurando o logotipo da instituição, na figura 15,


antecipam a perspectiva das realizações subscritas de modo segmentário:

1965 - Criação da OVAT


 Levantamento histórico da Semana Santa vilaboense e a sua
comemoração;
 Montagem e apresentação do áudio visual “Documentário histórico
e tradicional da Cidade de Goiás”, sendo apresentado em Goiás,
Goiânia, Anápolis e diversos municípios de Goiás como divulgação
e valorização da nossa cultura;
1966 - Resgate da Procissão do Fogaréu e da dramatização do
Descendimento da Cruz;
1967 - Montagem e apresentação da peça teatral “Goiás que a história
guardou” de Elina Maria. (...)143
 Participação nas paradas de 7 de setembro vivenciando temas com
quadros vivos sobre escravatura, Anhanguera e os índios goyazes;
1968 - Comemoração do sesquicentenário (150 anos) de elevação de Vila
Boa de Vila Boa a Cidade de Goiás;
 Palestra de reabertura do Gabinete Literário Goiano;
1969 - Catalogação, montagem e abertura do Museu de Arte Sacra da Boa
Morte, com maior acervo do escultor goiano Veiga Valle; (...)

143
Para maiores detalhes sobre essa encenação teatral, bem como a respeito da referida roteirista, conferir:
(PRADO, 2014).
140

1970 - Montagem dos roteiros de visitação do Museu das Bandeiras, Museu


de Arte Sacra da Boa Morte, Palácio Conde dos Arcos, Igreja da
Abadia, do Carmo e São Francisco; (...)
 Recital de músicas medievais com grupo Roberto de Regina na
Igreja São Francisco;
 Convênio com o Centro de Documentação Histórica da USP para
pesquisa histórica em Goiás; (...)
1974 - Comemoração do centenário de morte do escultor e pintor goiano
José Joaquim da Veiga Valle, trasladação de suas cinzas para o
Museu de Arte Sacra da Boa Morte e recital com seus descendentes;
 Realização do I Encontro de Artes da Cidade de Goiás com
apresentação do Conjunto da Câmara de Pernambuco e Belkiss
Spenciere Carneiro de Mendonça, curso sobre folclore, coletiva com
artistas goianos premiados e apresentação dos artistas Marcia de
Windson e Ivan Lins;
1977 - I Recital de Modinhas no Palácio Condes dos Arcos com a soprano
Maria Augusto Calado;
 Participação nas comemorações dos 250 anos da fundação da Cidade
de Goiás da fundação da Cidade de Goiás. Ocasião em que a OVAT
recebeu medalha de prata pelos relevantes serviços prestados a
cultura vilaboense;
 Montagem da exposição com 15 obras de Veiga Valle no Museu de
Arte de São Paulo – MASP e recital de músicas goianas por ocasião
da homenagem a Cidade de Goiás pela comemoração dos 250 anos
da cidade promovida pela Ordem Nacional dos Bandeirantes de São
Paulo; (...)
1978 - Reedição de “A música em Goiás”, coletânea de partituras de autores
goianos; (...)
 Aquisição de vitrines para o acervo do Museu de Arte Sacra da Boa
Morte; (...)
1981 - Realização do II Encontro de Arte da Cidade de Goiás com cursos de
cultura artística, exposição de fotografias de artistas plásticos
vilaboenses, Orquestra Sinfônica de Goiás e revista Show
Vilaboense, de Nice Monteiro Daher; (...)
1984 - Elaboração do catálogo comemorativo dos 15 anos do Museu de Arte
Sacra da Boa Morte;
 Comemoração do centenário de nascimento de Luiz do Couto; (...)
1987 - A OVAT recebe o “Troféu Goiastur”, destaque do Turismo - pelas
realizações da Procissão do Fogaréu; (...)
1995 - Participação do Projeto cultural “Goiás-Portugal” com pesquisas na
Torre do Tombo e no Arquivo Histórico Ultramarino. Apresentação
Cultural em Lisboa; (...)
1998 - Participação com verbetes sobre artistas plásticos vilaboenses no
livro: “Da caverna ao museu” de Amaury Menezes, Fundação
Cultural Pedro Ludovico; (...)
2002 - Participação, a convite do ICOMOS do Brasil, em Salvador-BA,
proferindo palestra sobre a Procissão do Fogaréu no Seminário
Internacional “Patrimônio Intangível na Américas”;
2005- Comemoração dos 90 anos da pintora Goiandira Ayres do Couto e dos
40 anos de atividades da OVAT (OVAT, 40 anos Promovendo a
Cultura e Resgatando as Tradições, 2005, p. 13-21).
141

Em conformidade com os dados catalogados, observa-se que os atores


institucionais, paradoxalmente, “ganharam” relevo por meio das expressivas ações da OVAT,
em diferentes campos da cultura, voltadas, em sua maioria, para a projeção turístico-
patrimonial da Cidade de Goiás através das suas tradições. As estratégias de atuação desta
organização vilaboense esboça-nos uma aparente dominância em comparação com as
instituições previamente alocadas no espaço urbano em debate. No que concerne à Procissão
do Fogaréu consideramos “ponto pacífico” que esta tradição inventada representa o
coroamento das prematuras ações encabeçadas pelos antimudancistas, desde o momento em
que as expectativas de ressarcimento à antiga capital caíram em total descrédito. Porém, tal
como adiantamos, analisaremos mais detidamente esse tema, no próximo tópico.
A prioridade é esmiuçar a relação da OVAT com o DPHAN, se deve às
“realizações” atribuídas aos guardiões das tradições no campo do patrimônio cultural,
conforme lê-se no documento, parcialmente, transcrito acima, sobretudo, no que tange à
elaboração de roteiros turísticos, convênios interinstitucionais, aquisição de bens móveis para
os bens tombados e, pelo que parece, a gestão dos mesmos. Sobre esse aspecto, gestão dos
bens culturais, chamou-nos a atenção a inciativa da organização e fundação do Museu de Arte
Sacra da Boa Morte, em 1968, conforme certificamos no testemunho comemorativo transcrito
acima e na reportagem do jornal “O Popular”, publicada no ano de 1995:

O prédio que abriga o Museu da Boa Morte foi construído por obra da
associação dos Homens Pardos, no século XVIII, em 1789. Inicialmente,
ocupou a função de Igreja da Nossa Senhora da Boa Morte. Os alicerces
foram edificados sobre o que restou da casa de Bartolomeu Bueno da Silva.
Com as reformas, este ano, vestígios de cerâmica confirmaram sua história.
O Museu da Boa Morte fica na Cidade de Goiás, localizando-se na Praça dos
Jardins, próximo ao Palácio Conde dos Arcos, e é todo construído em taipa
(pau-a-pique), pedra, adobe numa multiplicidade de materiais. Foi fundado
em 4 de outubro de 1968. O edifício é tombado pelo Patrimônio Histórico,
via IBPC - Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural e pertence à
diocese de Goiás. Sua montagem teve a participação de Elder Passos de
Camargo (historiador e mentor), Goiandira do Couto (artista plástica),
Nice Luís Brandão, João Dimas e Antolinda Borges Baía, diretora há 28
anos (“O POPULAR” (Caderno 2), 1995, p.03) 144 (grifo nosso)

É nítida a evocação das raízes no passado colonial, acerca das possíveis origens
do lugar, associadas ao discurso retórico da OVAT, de acessão ao escultor pirenopolino, José
Joaquim da Veiga Valle (1806-1874). O acervo de obras sacras, de sua autoria, foi

144
Jornal “O Popular”, “Vida Nova para o Museu da Boa Morte”. (Caderno 2) Goiânia, segunda-feira, 23 de
janeiro de 1995 (p.03). Fonte: AFFSD.
142

incorporado às referências culturais inculcadas, desde a fundação da OVAT, como


constitutivas do panteão das tradições “inventadas” localmente. Destacamos, ainda, que o
excerto revela-nos o “jogo” dos trânsitos institucionais praticados pela referida entidade, o
qual, nas linhas, explicita o endosso da diocese local e, nas entrelinhas, implícita a sansão do
DPHAN, quando enxergamos a materialidade do feito, ou seja, a idealização e organização
deste espaço de memória sendo atribuída aos guardiões das tradições devidamente nomeados.
Nessa perspectiva, que é a mesma de Hobsbawm e Ranger (1997, p.09),
ressaltamos: as ações dos novos guardiões, indiscutivelmente, basearam-se na continuidade de
um passado glorioso, quer seja ele de curta ou longa duração. Sendo assim, encontramos
indícios para afirmar que a iniciativa de organização do Museu de Arte Sacra da Boa Morte,
em 1969, esteja, possivelmente, amalgamada às primeiras idealizações desta natureza,
agenciadas na década de 1930, por alguns expoentes da elite cultural vilaboense que,
igualmente aos guardiões de 1965, se deram conta de que, por meio do passado, era possível
projetar a Cidade de Goiás para o futuro. Constamos essa visão, a partir das palavras por
Browm (1937), expressas no periódico, “A Razão”

A voz dos sentimentos de tradição de nosso povo fala, neste instante, à alma
da nossa mocidade entusiástica do velho Liceu de Goiaz. A iniciativa desse
punhado de jovens idealistas espelhando aos quadrantes dos rincões de nossa
terra a energia cívica dos antepassados, é prova de que a geração que
aponta no horizonte das atividades coletivas promete guardar o valioso
patrimônio passado com zelo e patriotismo. Goiaz ainda não tem um
museu. Somos um povo! As nossas relíquias shistóricas que vibram as fibras
de nascimento, estão isoladas aqui e acolá, sem o culto da coletividade e
sem o bafejo miraculoso que dá às gerações novas alento e força cívica. A
mocidade estudiosa do Liceu vai realizar a aspiração sadia de unir o
passado ao presente pela fala muda, porém significativa de nossas
preciosidades shistóricas, culturais e econômicas; o museu precisa tudo e
de tudo. Lá foi ouvida a voz idealista e sincera dos moços, Dr. Luiz do
Couto, valor intelectual, de primeira plana, abriu a volumosa e vetusta
porta do glorioso templo do passado e ofertando ao museu a histórica
cadeira de Damiana da Cunha, a catequista que salvou as populações do ódio
selvagem dos caiapós, sacrificando-se às vicissitudes da rudeza da tarefa de
apaziguar os ânimos das tribos que interceptavam o caminho do litoral para
as Minas de Cuiabá. (...) Felizmente sabemos já, é necessário reunir e
selecionar nossas possibilidades para que possamos em uma exploração
racional abrir a arca dos nossos tesouros porque, como estão, seremos
sempre, apezar que rico não há mais o poder. (...) Agora que iniciamos a
construção do monumental edifício cívico recolhendo em sacrário o que é
nosso e diz-nos respeito, contamos com a pródiga manifestação de
solidariedade de nossa gente, em entregando aos moços o que seja nosso
orgulho porque saberemos guardar em culto cívico o patrimônio que as
143

gerações passadas nos legaram. Somos a Geração Nova” (“A RAZÃO”,


1937, p.01)145 (grifo nosso).

Observando a data de publicação da matéria jornalística nota-se que a


transferência da capital era iminente. Portanto, explicitamente, os horizontes de
ressignificação cultural da antiga capital foram, de fato, introduzidos pela elite (os guardiões
pioneiros), no bojo da mudança, e concretizada por atores oriundos desta mesma classe, os
fundadores da OVAT, abalizados pelos mesmos eixos estruturantes.
Goiandira do Couto foi atuante e integrante de ambos os grupos mencionados.
Interessados em saber sobre os rumos desta empreitada, buscamos, noutros jornais da época,
informações sobre o desfecho desta iniciativa, e nada foi encontrado. Em conversa informal
com alguns gestores do patrimônio cultural, na Cidade de Goiás, ao que tudo indica, o
empreendimento foi interrompido em virtude da transferência da capital. Certamente, os bens
angariados destinaram-se para Goiânia, juntamente, com Lyceu de Goyaz, e, possivelmente,
perderam-se no tempo. Contudo, pelo que parece, os propósitos iniciais de instalação de um
museu, na Cidade de Goiás, não esmaeceram-se nos ideais da elite146.
O fato é que, a montagem e a inauguração do Museu de Arte Sacra da Boa
Morte, pelos guardiões da OVAT, aproximadamente, três décadas depois de sua idealização
original, demonstra a relevância simbólica que os desígnios antimudancistas representavam
aos fundadores da entidade em estudo. E, mesmo declarando-se um grupo sem fins lucrativos,
com base nas ações sublinhadas, não nos restam dúvidas de que o capital simbólico fora
apropriado exclusivamente pela instituição em estudo. Testificamos, ainda, que as normas
estatutárias147 da OVAT apresentam-se como outro instituto norteador do visível
empoderamento institucional. O referido regimento parte do pressuposto de que as ações
institucionais priorizam a “defesa” das tradições, dos interesses da “cidade” e, por sua vez, da
coletividade.
A partir daí pode-se depreender que o status ocupado pelos guardiões das
tradições pressupõe-se, inclusive, de um peculiar ajuste fino por parte DPHAN,
possivelmente, em virtude dos embates com a população local, há quase duas décadas,

145
Cf. Jornal “A Razão”. “Organizemos nosso Museu”. Por: Celso P. Browm; Goiaz, 05 de setembro de 1937,
n°. 43, Ano II; p. 01. Fonte: AFFSD.
146
A ausência de um espaço específico, dedicado à preservação da memória, numa cidade histórica, permaneceu
latente na Cidade de Goiás até a chegada do DPHAN, em 1948. Segundo Tamaso (2007, p.123-125), durante as
observações técnicas, foi enviado um ofício, datado de dezembro de 1948, solicitando consulta “as autoridades
desse Estado sobre a possibilidade de cessão do edifício da antiga Casa de Câmara e Cadeia, a fim de que no
mesmo fosse instalado “Museu Arquivo” (p.123). O DHPAN já havia criado o MUBAN, aproximadamente em
1949, assim como detalha estudos da pesquisadora e antropóloga Isabela Tamaso (2007, p.123-125).
147
Para maiores esclarecimentos, conferir estatuto da OVAT no anexo II.
144

contadas a partir de 1948, quando o órgão federal tentou implantar as primeiras ações
político-patrimoniais na Cidade de Goiás. Finalmente, entendemos que estas “divergências”
subsidiaram, inclusive, a oficialização pública do modo de atuação da OVAT, a qual não
hesitou em defender seu espaço adquirido, inclusive, com ou sem a coparticipação da Igreja
Católica. No que se refere a esses termos, notabilizamos:

Art. 24° - A OVAT poderá fazer qualquer promoção artístico cultural como
também o levantamento e realizações de festas tradicionais e folclóricas
ligadas a tradição cultural da cidade. Como também promoções para a
preservação de aspecto físico da cidade em que a legislação do
tombamento prevê; Art. 25° - A Semana Santa da Cidade de Goiás,
primeiro empreendimento da OVAT, deverá ser mantido, preservados seus
aspectos artístico cultural com ou sem a participação dos poderes civis e
da igreja (ESTATUTO DA OVAT Livro n° A-1, fl. 04, 1978)148. (grifo
nosso)

Novamente, esta situação de trânsito institucional evidencia-nos o alcance das


práticas da OVAT, relembradas, desta vez, no depoimento proferido por Goiandira do Couto,
vista por este estudo, indiscutivelmente, como uma artista-guardiã.

Restaurei demais, aqueles santos tudo restaurado fui eu. Foi restaurado, eu
fiz de tudo. Essa riqueza de santo aqui em Goiás, tantos. São imagens, dedo
quebrado, eu fazia o dedinho e punha pés (...)o último que eu retoquei, que
eu reformei foi da Igreja do Carmo, mas foi só pretinho, parecia São
Benedito (...) só passei uma tinta porque ele estava sujo e velho, isso há
muitos (COUTO apud FERREIRA, 2011, p.112-113).

A salvaguarda dos bens culturais não deveria ser de competência do DPHAN?


Obviamente a assertividade das ações dos guardiões das tradições possibilitaram-lhe usufruir
da posição de “especialistas da produção simbólica (produtores a tempo inteiro)” embora, por
sua vez, “nunca é completamente independente da sua posição no jogo, mesmo que o poder
propriamente simbólico da nomeação constitua uma força relativamente autónoma”, aduz
Bourdieu (2007, p.150).
O testemunho da memória, nos deixa convencidos de que Goiandira do Couto
protagonizou o papel de guardiã das tradições por um ideal cada vez mais tangível na junção
da tríade arte, cultura e poder, na Cidade de Goiás, a partir dos anos de 1965, data da
fundação da entidade (OVAT) que reelaborou o discurso oficial via tramas de sensibilidades.
Sobre as competências restauradoras da artista-guardiã não nos foi possível o acesso às

148
Estatuto da OVAT Livro n° A-1, fl. 04, 1978. Fonte: TABELIONATO 2º OFÍCIO.
145

informações e/ou à imagem sacra mencionada. Neste caso, a cognição dos imperativos
contidos no depoimento revelam a organicidade da divisão dos papéis nos trânsitos artístico
em prol dos horizontes nas tradições. Essas questões remetem às referências e aos referentes
que, supostamente, tenham influenciado o pragmatismo praticado pela OVAT. Nesse sentido,
encontramos no passado colonial vilaboense os ícones que sustentam a historicidade
perscrutada e estandartizada nas figuras de José Joaquim da Veiga Valle149 e o padre João
Perestrello150.
Quanto ao protagonismo de Elder Camargo Passos, presidente fundador da
OVAT, de acordo com Delgado (2003, p.421), estendeu-se para o campo das representações
público-pessoais, atribuindo-lhe o título de célebre “historiador” da cidade. Ainda, consoante
a autora, eram-lhe recorrentes os convites para proferir palestras, escrever livros e elaborar
folders. Desse modo, acreditamos que a apropriação deste espaço intelectual foi algo decisivo
para inculcar, no (in)consciente coletivo vilaboense, os ícones ligados à tradição que
fundamentalmente forjaram as bases ideológicas e a rede discursiva desta instituição,
estritamente, de acordo com as subjetividades construídas sobre os referidos representantes.
Sobre Joaquim da Veiga Valle e Pe. Perestrelo, o primeiro trata-se de um importante escultor

149
“José Joaquim da Veiga Valle nasceu em Pirenópolis (Meia Ponte), em 09 de setembro de 1806. Seu pai era
da família Pereira da Veiga e sua mãe da Pereira Valle. Seu pai foi influente na época como capitão de
ordenanças, ocupou cargos e empregos públicos. Na pesquisa bibliográfica, nada foi encontrado acerca da
infância de Veiga Valle, no entanto, sabe-se que, aos quatorze anos de idade, teve início sua produção artística
como escultor. Produziu até o ano de 1870, próximo ao ano de seu falecimento, em 1874. Aprendeu seu ofício
com o padre português Manoel Amâncio da Luz” (p.209). Cf. (MACHADO, 2014, p.204-224). Buscamos,
ainda, nas discussões de Siqueira (2008), acréscimos à presente: “(...) Artista de extrema importância para a
história da arte brasileira, Veiga Valle foi descoberto na metade do século XX por João José Rescala e, mais
tarde, sai realmente do anonimato com a criação do Museu de Arte Sacra da Boa Morte, que se constituiu na
maior referência em obras de arte goianas do século XIX. Uma das obras de arte que integram o acervo do
Museu consiste em uma pintura do Cristo Flagelado que saía, inicialmente, na Procissão do Fogaréu. Era uma
pintura de corpo inteiro em tamanho natural de aproximadamente 1,75 cm, cânones 8,0 (...) feita em tecido, com
aplicação de têmpera. O estandarte com a efígie do Cristo Flagelado foi exposto na abertura do Museu e,
segundo relatos de Elder Camargo de Passos, quando foi encontrado, ficava guardado junto com as alfaias e
paramentos da igreja, e já havia sido corroído pelas traças. Segundo suas informações, quando a senhora Darcília
de Amorim o entregou para a diretora do Museu, Antolinda Borges Baía, ele já estava sem a parte de baixo e,
então, a exímia artista plástica, Goiandira Ayres do Couto, colocou a franja na altura dos braços (já que a
parte da cintura para baixo havia sido danificada) (...) (p.142) (grifo nosso). Cf. (SIQUEIRA, 2008).
150
Este personagem é evocado pela OVAT especificamente para conferir-lhe o pioneirismo da prática que
envolve o ritual da Procissão do Fogaréu. Os interlocutores da mencionada organização vilaboense “diziam que
a Procissão do Fogaréu foi introduzida na Vila Boa de Goyazes, em 1745, pelo padre espanhol, João Perestrello
de Vasconcelos Spindola. De acordo com tal versão, o padre Spindola fundou em Goiás a Irmandade do Senhor
dos Passos e foi responsável pela ereção da mesma em altar lateral dentro da igreja matriz”, esclarece Silva
(2003, p.09). Não temos interesse em ampliar o debate sobre a desconstrução desta verdade conforme o autor
assim o faz em sua pesquisa, orientada pela professora e pesquisadora, Cristina de Cassia Moraes, referência na
historiografia goiana nas pesquisas relacionadas às confrarias e irmandades em Goiás, no século XVIII. Embora,
nuançar sobre essas questões torna-se inevitável a fim de garantirmos a cientificidade pensada para a narrativa
que pretendemos encadear no próximo subitem, o qual privilegiará análises sobre a concepção estética da
Procissão do Fogaréu, credenciada à Goiandira do Couto, artista que supostamente era vista pela OVAT como
símbolo, no presente, das tradições do passado. Cf. (SILVA, 2003).
146

membro da aristocracia oitocentista. Já o segundo, membro do clero nos tempos colonias.


Portanto, desde a sua fundação, a OVAT passou a conclamá-los, historicamente, como os
interlocutores da memória cultural e urbana da Cidade de Goiás.
Faz-se necessário abrir um parenteses para pensar sobre a relevância de Veiga
Valle, tendo em vista o que reza o artigo 23°, do estatuto da OVAT, que diz: “fica instituído
como patrono da OVAT o artista José Joaquim da Veiga Valle e sendo a Organização
obrigada a promover na data de seu nascimento, 9 de setembro, uma promoção artístico,
cultural ou folclórica, em comemoração a ela (...)” (ESTATUTO DA OVAT, 1978, fls. 04)151.
Discorrer sobre Veiga Valle, como patrono desta entidade, é o mesmo que
demonstrar as concepções tradicionais e, sobretudo, parciais que regem os preceitos culturais
da instituição em estudo, os quais, em sua medida, reverberam-se nas práticas e nos olhares
lançados pelos novos guardiões assentados “nas coisas de Goiás”.
Os estudos de Machado (2014) perpassam por uma discussão que apresenta as
singularidades do artista nascido em Pirenópolis, porém radicado na Cidade de Goiás, desde
1841, período em que se dedicou amplamente à arte de esculpir peças sacras, função e local
que o consagaram definitivamente. No plano pessoal, o seu envolvimento com os movimentos
em defesa da liberdade e independência nacional e sua visão de mundo, tida
como“progressista”, contribuíram, possivelmente, para sua aproximação com José Rodrigues
Jardim que, durante 1831-1837, viria, ocupar o cargo de governador da Província de Goiás, ao
passo que tornar-se-ia sogro152 do então patrono da OVAT. A pesquisadora problematiza
alguns aspectos da vida e obra do artista, os quais soam como pistas para se entender as
razões que levaram a organização cultural vilaboense (OVAT) a escolher o afamado escultor
goiano, porém pirenopolino153, para representar os valores e a identidade institucional. As
reflexões de Machado (2014, p.210-211), dão o devido destaque a algumas ações culturais de
Veiga Valle enquanto viveu na Cidade de Goiás. Mesmo tendo recebido a patente de major
pelo então governador da Província, José Rodrigues Jardim, não há registros de seu
engajamento na carreira militar. Ainda assim, a popularidade adquirida tanto pelo status de

151
Estatuto da OVAT Livro n° A-1, fl. 04, 1978. Fonte: TABELIONATO 2º OFÍCIO.
152
A obra literária, “Chegou o Governador”, do escritor goiano, poeta e folclorista, Bernardo Elis, relata, por
uma visão romanceada, o envolvimento amoroso entre a filha do governador da Província de Goiás, Joaquina
Porfíria Jardim, com quem Veiga Valle contraiu matrimônio. Mesmo por uma abordagem ficcional, a obra
cotejada problematiza aspectos da vida privada e o complexo desenrolar dos fatos num mundo social regido por
determinações culturais muito estáticas, no qual o controverso e o contrastante podem ser vistos como
ressonâncias que se instalaram do período colonial para o imperial, temporalidade em que se localiza o que se é
dito por verossimilhança, atributo pelo qual se baseia o desenrolar desta trama. Cf. (ELIS, 1987).
153
Termo utilizado aos nascidos na cidade de Pirenópolis, município do Estado de Goiás. Trata-se de mais uma
das “cidades históricas” goianas fundadas no século XVIII, auge do ciclo do ouro.
147

parentesco com a maior autoridade política provincial, bem como pelo seu ofício artístico
initerrupto, possibilitou-lhe assumir funções na esfera política e judiciária local. Com o passar
do tempo, estas múltiplas funções impediram-lhe de dedicar-se, integralmente, à sua arte, em
estilo barroco.
Conquanto, este aparente entrave serviu, paradoxalmente, como instrumento de
valorização monetária e simbólica de suas obras, as quais passaram a ser vistas não apenas
como representação de fé, mas, sobretudo, como sinônimo de poder econômico-social,
evidentemente, restrito às elites das quais ele era constituinte. Resta dizer, que Veiga Valle
não foi um renomado santeiro desprovido de crenças no âmbito do religare. Consoante
Machado (2014), “em 1833, Veiga Valle entrou para a Irmandade do Santíssimo
Sacramento154. Nessa sociedade só participavam membros da elite, que organizava
festividades religiosas, (...) obras de caridade e culto aos santos. (...) Essas irmandades
financiaram artistas no Brasil durante o barroco” (p.209-210). No tocante à elite vilaboense,
nota-se que as tradições herdadas dos tempos coloniais reconfiguraram-se por continuidades e
descontinuidades temporais, muito embora, seja perceptível que tanto no período imperial
quanto no republicano, não se perdeu de vista o eixo fincado na perspectiva de berço, a qual
sistematizou e, ainda, sistematiza as práticas culturais deste grupo em específico. Estas
análises sugerem a hipótese de que a associação entre a arte barroca, a Igreja e uma intensa
vida pública são os prováveis indicativos para que a OVAT tenha evocado este ícone da arte
sacra no Estado de Goiás, como bastião desta entidade fundada em 1965, período que
notabiliza-se pela intensa produção cultural calcada na (re)invenção das tradições vilaboenses.
Não obstante, prevalece a inquietude: onde pretendemos chegar com essa breve
exposição biográfica e suas respectivas associações? Pode-se conjecturar um pressuposto
eventualmente aceitável para estas imbricações. Sendo Goiandira do Couto, naquela época,
um símbolo vivo das referências tradicionais do passado colonial, ativamente engajada nas
tradições locais expressas, inclusive, através da sua arte preservacionista, evidencia-se, que
sua presença/participação entre os constituintes da OVAT, além de sedimentar a organização
em seus propósitos culturais, a imagem público-individual da artista, estreitamente, ligada aos
rastros de Luiz do Couto, certamente, traria a legitimidade social e discursiva àqueles
intencionados em forjar tradições “inventadas” institucionalmente.

154
Para maiores detalhamentos sobre a presença desta irmandade na Cidade de Goiás, no período colonial,
verificar em “As irmandades do Santíssimo: o culto ao Santíssimo Sacramento da Eucaristia”, discussão trazida
por: (MORAES, 2012, p.114-132).
148

Desse modo, sendo a população local tipicamente arraigada às suas tradições e,


sobretudo, sendo defensora efetiva, era-se necessário cuidado ao engendrar esse processo
inventivo o qual reuniu história, tradição e turismo, considerando que este último poderia
representar um iminente foco de resistência coletiva155. Portanto, a OVAT, quando pretendeu
“(re)inventar” uma tradição baseada na retórica do que existiu no passado cultural religioso
(glorioso)156, utilizou-se do carisma de Goiandira do Couto para equiparando-a à Veiga Valle,
pois lhe coube a responsabilidade de criar uma estética alegórica à Procissão do Fogaréu, a
qual fosse capaz de se fazer tão sacra e, consequentemente, crível à devoção católica popular,
assim como eram, e ainda são, as imagens confeccionadas pelo patrono-guardião, Joaquim
José da Veiga Valle.
Desde 1966, data oficial da primeira aparição da Procissão do Fogaréu na
Cidade de Goiás, ambas as representações artísticas (as esculturas sacras e a teatralidade
plástica) fundam-se nas celebrações religiosas praticadas durante a Semana Santa desta urbe
que guarda sob variadas formas, a memória de suas tradições oficiais. É possível testemunhar
estas sensibilidades por meio de depoimentos semelhantes ao que se segue:

Quando menina, olhava impressionada a Procissão dos Farricocos refletida


no Rio Vermelho. Parecia-me, na imaginação de criança, um relâmpago
queimando em seu próprio fogo. Sempre a Semana Santa transcorre em um
período de lua cheia. (...) Num instante, o rio refletia a faísca de chamas, a
lua antológica e mansa nascendo da barrigada da morraria. Era uma visão

155
Ademais, temos clareza de que, para a entidade, o apelo turístico era o principal foco motivador deste
empreendimento. Embora, observa-se que o discurso oficial, ou seja, “o resgate das tradições” foi vinculado no
âmbito público. Elder Passos de Camargo, presidente da OVAT, quando perguntado sobre o que motivou a
reinvenção da Procissão do Fogaréu e outras cerimônias da Semana Santa, respondeu categoricamente: “Nós da
OVAT, eu, Goiandira, Hercival e outros, nos preocupávamos quanto ao futuro de Goiás, turisticamente, o que
poderia ser feito. A OVAT surgiu de pessoas que já participavam das outras festas, Semana dos Passos, Semana
das Dores, Semana Santa (...). Naquela época [década de 1960] não e falava em turismo, turismo era algo,
podemos dizer, completamente desconhecido, mas já existiam pessoas que vinham visitar Goiás. Pensamos no
que poderia atrair os visitantes. Goiás sobreviveria através de uma faculdade? Nós achávamos que não, devido
estar próximo à Goiânia que possuía o Campus Universitário (...). Goiás poderia viver da agricultura? Não,
muito pequeno. Da pecuária? Também não. O que poderia ser então a vida futura de Goiás? O passado. O futuro
de Goiás era o passado” (PASSOS, Elder Camargo de. “O futuro de Goiás é o passado”. (p.195-196)
(entrevista). Cf: (BRITTO, 2008).
156
A amplitude das ações concernentes à OVAT interpenetra-se ao processo de revitalização cultural, urbanística
e econômica da Cidade de Goiás, não restritas apenas à Procissão do Fogaréu. Reiteramos que não é interesse
deste estudo o viés antropo-religioso. O olhar estritamente cultural mapeia os tentáculos desta organização em
constante interface com a protagonista, Goiandira do Couto. Como forma de torna-las, empiricamente, tangíveis
por meio da interferência (cooperação) desta entidade, nas tradições religiosas locais, é que ora destacamos o seu
discurso explicativo/descritivo, publicado nas seguintes palavras: “Outras cerimônias foram resgatadas e
revitalizadas como o Lava-Pés, a Adoração da Cruz seguida da Procissão do Enterro e a Procissão da
Ressurreição. Os personagens representados nas cerimônias são: 1. Fogaréu: Quarenta farricocos, fanfarra,
hospedeiro e figurantes; 2. Lava-Pés: Jesus e os doze apóstolos; 3. Sexta-Feira da Paixão: oito guardas romanos,
Nossa Senhora, Maria Cleófas, Maria Madalena, Verônica, três carpideiras ou heús, José de Arimatéia,
Nicodemos, São João, Abraão, Isaac, doze moças e doze rapazes que cantam o Perdão” (OVAT, 40 anos
Promovendo a Cultura e Resgatando as Tradições, 2005, p.09).
149

mágica, mística, fantástica que jamais é possível esquecer. Anos depois, vi


em Sevilha (de onde a Procissão veio para Goiás no século 18) a mesma
serpente, a mesma língua de fogo, mas só na lembrança. Lá não existia o Rio
Vermelho, nem meu avô que me levava pelas mãos. Também não estava
presente o estandarte do Cristo Flagelado de Veiga Valle, não se
conseguia ver os irmãos da Irmandade de Nosso Senhor Bom Jesus dos
Passos e suas vestes roxas (violetas de dor!) (...). Belos espetáculos, mas
diferentes não só no aspecto psicoemocional, como na geografia, na
passional-dramático, que é tão próprio do povo brasileiro e do interior do
país (...). A Procissão do Fogaréu agrada, encanta, envolve pessoas de
todas as idades, culturas e crenças. (...) Por tudo isso, a procissão desta
Quarta-Feira Santa oferece a cada pessoa, no mínimo, duas visões. Uma
pessoal, intransferível, conforme sua história e identidade; e a outra reflete a
pujante angústia moradora em toda humanidade. (...) Impressiona sempre.
Aí reside toda sua sedução. A dramaticidade e passionalidade são
insuperáveis (BRITTO, 2008, p.191) (grifo nosso)

O tom poético desta lembrança, atribuída pelo autor a uma ex-moradora da


Cidade de Goiás, traz-nos uma ideia signficativa do encantamento causado pelas formas e
sentidos desta representação paralitúrgica, ao passo que nos ratifica algumas das hipóteses
levantadas. Dentre elas, a relação simbólica entre Veiga Valle, Goiandira do Couto e um
projeto das elites representadas, no testemunho oral, pela menção à Irmandade Bom Jesus dos
Passos157, associação centenária, ainda ativa na atualidade, cuja maioria dos membros da
OVAT são dela filiados. Entretanto, não sabemos dizer exatamente sobre a relação deste
vínculo com os objetivos institucionais. Contudo, atentando para o estatuto da OVAT, no
artigo 11, que versa sobre os deveres dos associados, encontramos imbricações análogas
àquelas estabelecidas nos termos de compromisso de algumas irmandades setecentistas: “b)
empenhar-se no sentido da concecussão dos objetivos da OVAT; (...) f) colaborar com o
engrandecimento moral, cultural e material da associação, cumprindo as determinações de seu
estatuto (...)”158.

157
Segundo Moraes (2012, p.115), as Irmandades do Santíssimo Sacramento e do Bom Jesus dos Passos
ocuparam, semelhantemente, no século XVIII, espaços sagrados na igreja matriz em devoção à Senhora
Sant`Ana, padroeira da Cidade de Goiás, lugar de culto da elite branca. Sobre esta associação, a autora define e
explora alguns aspectos peculiares a que convém explicitá-los: “O culto em louvor de Jesus Cristo se
intensificou popularmente de maneira intensa no século XVIII. Nos Guayazes, ao menos em parte, as
responsáveis pela propagação desse culto foram as irmandades do Senhor Jesus dos Passos (...). Numa palavra, a
irmandade de Vila Boa já existia em 1751, com consistório próprio, dentro da igreja matriz de Santa Ana, o que
veio a ser corroborado ao nos depararmos com um cartaz de propaganda e um ofício de 1973, em que
convidavam para as comemorações do centenário de transladação da imagem do Senhor dos Passos da igreja
matriz para a de São Francisco de Paula de 228 anos de existência da citada irmandade. (...) Ao se tratar da
origem étnica (e confessional) dos irmãos e irmãs, a primeira regra para o ingresso na irmandade, estipulada nos
três termos de compromisso, exigia que fossem brancos, sem nota ou infâmia de Direito em fato(...) (MORAES,
2012, p.132-135).
158
Estatuto da OVAT Livro n° A-1, fl. 08, alíneas b e f, 1978. Fonte: TABELIONATO 2º OFÍCIO.
150

Aparentemente, percebe-se que estas “coincidências” reforçam a ideia de que a


busca por legitimidade estruturou-se na esfera dos possíveis. Embora, haja razões suficientes
para crer que o epicentro destas ações constava em assemelhar/aproximar, no tempo presente,
a figura personalíssima de Goiandira do Couto ao escultor Veiga Valle, tendo em vista que a
pretensão dos idealizadores da Procissão do Fogaréu, ápice das ações culturais
empreendidadas pela OVAT, era vislumbrá-la rompendo os horizontes subjetivos de futuro
para a Cidade de Goiás. Assim aconteceu. Todavia, antes de se pensar sobre essa perspectiva,
propomo-nos a radiografar as representações tangíveis desta manifestação imaterial da cultura
vilaboense, concebida por meio das criações artísticas emanadas das singularidades
constituídas das representações de ausência e presença, ligadas à pessoa-personagem da
artista-guardiã, em estudo.
Nas páginas à vista, lampeja-se a inventividade estética do rito (re)criado pelas
mãos desta descendente do mito fundador da Cidade de Goiás, o Anhanguera, o qual fora
reintroduzido, simbolicamente, na paisagem urbana vilaboense por seu pai, Luis do Couto, em
1918. Tema devidamente abordado no capítulo anterior. Assim, hipoteticamente falando,
consideramos esse indício é mais um elemento agregado ao discurso dos guardiões, no que se
refere às afirmações sobre a Procissão do Fogaréu, tidas como uma tradição proveniente do
“berço da cultura goiana”. Ainda segundo os argumentos do referido grupo, tratava-se de
uma prática desativada há tempos e que precisava ser revitalizada, pois “(...) não por acaso,
Goiás ostenta o título de berço da cultura goiana e, se não bastasse, é o berço da cultura de
toda uma região que forma o coração do Brasil” (“O VILABOENSE”, 2006. p.10).159
Compete-nos, por sua vez, lançar olhares sobre os atributos estilísticos desta
representação paralitúrgica, concebida por Goiandira do Couto160, via OVAT, os quais
formalizaram a sistemática deste jogo retórico de ver, sentir e redescobrir a Cidade de Goiás a
partir da década de 1960.

159
Jornal “O Vilaboense”, “40 anos da OVAT”. Por: Elder Camargo Passos; Cidade de Goiás, jan/fev. de 2006.
Ano 13, N°. CXLVII, p.10. Fonte: AFFSD.
160
“O guarda-roupa foi criado, desenhado e executado pessoalmente pela artista plástica Goiandira Ayres do
Couto, cujos materiais foram adquiridos através de fundos arrecadados com a população da cidade e uma
pequena verba da loteria estadual” (Idem, 2006, p.10). Percebe-se, que a lei estadual, 3.635/61, a qual colocou a
Cidade de Goiás sob a proteção do governo do Estado, estendeu-se, mesmo que de forma “pequena”, à
preservação dos bens imateriais reinventados, sobretudo, diante das novas concepções governistas engendradas
para o Oeste do país particularmente a partir dos anos de 1940.
151

3.5 Concepções Estéticas da Imaterialidade Cultural

Introduzimos as análises sobre patrimônio imaterial replicando uma indagação


de Veloso: “Como desvencilhar-se das armadilhas da mercantilização desvairada que hoje
reina na produção cultural e estatística da sociedade contemporânea”? (2006, p.443).
A inquietude coteja a discussão sobre a imaterialidade à medida que nos
propomos debruçar sobre os aspectos simbólicos e políticos agrupados nesta modalidade do
patrimônio cultural. Trata-se de um terreno acidentado porque, conforme esclarece a autora,
sua identificação e fortalecimento através das práticas de produção e reprodução podem, de
maneira transversal, conflitar-se. Afinal, uma linha tênue segue as relações sociais na
interface do patrimônio imaterial com seus agentes políticos e a paisagem social. Resta-nos
ainda investigar os modos de apropriação “seja pelo grupo produtor das manifestações
culturais, seja pelas elites locais”, salienta Veloso (2006, p.444). Embora, seja oportuno
lembrar que, por este horizonte, a OVAT representa, simultaneamente duas instâncias
enfatizadas pela pensadora. Importa-nos destacar que as especificidades mencionadas não
inviabilizam o métier do historiador; muito pelo contrário. Os possíveis “nós” existentes
numa trama soam como avisos intermitentes, cuja argumentação empregada à narrativa
historiográfica cultural só se faz eficiente quando pousamos o olhar com a finalidade de
enxergar os modos representativos com que os grupos sociais se organizam no mundo.
Abalizados por este princípio teórico, em diálogo com as categorias tradição,
cultura e poder, propomo-nos, nesta sessão, repensar algumas certezas cunhadas pela ética
dos guardiões das tradições vilaboenses, precipuamente aquelas que se encontram figuradas
na estética discursiva idealizada por Goiandira do Couto. Anteriormente, estes interventores
culturais “empenhados” na salvaguarda dos horizontes de uma cidade abalada pelas
discordâncias políticas buscaram, nas riquezas imateriais do passado, meios para projetar a
materialidade cultural existente na antiga capital do Estado de Goiás, com a finalidade de
soerguê-la especialmente do ponto de vista econômico. Este intento desencadeou um
imponderável lucro simbólico e, com ele, o controle, por parte da entidade autora, das
demandas culturais urbanas destinadas, na maioria das vezes, a revisitar representações e
personagens ligadas ao passado “glorioso” da Cidade de Goiás.
Este cenário justifica a decisão por analisar os esboços da tradição (os croquis
com os personagens inventados para compor a Procissão do Fogaréu), pois os consideramos
modelos empíricos da espetacularização dos valores tradicionais vilaboenses ensejados a
152

partir das crenças que regem a fé popular161. Atentos a essas questões, cremos que não seja
por acaso, que os membros da OVAT, na ocasião do seu quadragésimo aniversário, tenham se
autodenominado “bandeirantes” da cultura162. Possivelmente, diante do êxito obtido ao
explorar a vastidão do universo cultural das tradições locais, estrategicamente, organizadas
em uma instituição que aparentemente camuflou-se numa representação endógeno-coletiva,
que inclusive favoreceu da conjuntura urbana e política ensejada da ressignificação cultural,
visivelmente, factível à absorção das construções propostas pela entidade naquela época.
As palavras de Hobsbawm e Ranger (1997) autorizam a explicação científica
de alguns argumentos empíricos aqui apresentados.

Mais interessante, do nosso ponto de vista, é a utilização de elementos


antigos na elaboração de novas tradições inventadas para fins bastante
originais. Sempre se pode encontrar, no passado de qualquer sociedade, um
amplo repertório desses elementos; e sempre há uma linguagem elaborada,
composta de práticas e comunicação simbólica. (...) não devemos esquecer a
ruptura da continuidade que está às vezes bem visível (...). Tal ruptura é
visível mesmo em movimentos que deliberadamente se denominam
“tradicionalistas” e que atraem grupos considerados por unanimidade
repositórios de continuidade histórica e da tradição (...). Aliás, o próprio
aparecimento de movimentos que defenderam a restauração das tradições,
sejam eles “tradicionalistas” ou não, já indica essa ruptura. Tais movimentos,
comuns entre intelectuais desde a época romântica, nunca poderão
desenvolver, nem preservar um passado vivo (...); estão destinados a se
transformarem em “tradições inventadas” (HOBSBAWM e RANGER, 1997,
p.14-16).

Hobsbawm e Ranger (1997) neste fragmento formulam análises que coadunam


com as práticas empreendidas pelos “tradicionalistas” locais, aqui nomeados como guardiões
da tradição, quando se propuseram, em meados dos anos de 1960, a restaurar as permanências

161
“Começamos a estudar a Semana Santa, para ver o que havia anteriormente. Por ouvir dizer das pessoas mais
velhas, ficamos sabendo da existência da Procissão do Fogaréu que havia desaparecido. Diziam que existia a
Procissão do Fogaréu aqui em Goiás, que mulher não podia acompanhar... Então começamos a pesquisar sobre
ela. (...) E no grupo, fui eu quem ficou responsável pela pesquisa sobre o Fogaréu. Comecei a pesquisar e a
primeira coisa que fiz foi ler os livros de ata da Irmandade, mas não encontrei nenhuma referência. Depois
encontrei um livro de receita e despesas e na leitura identifiquei em vários anos uma rubrica, pago a um
furnicoco – não era farricocos – pela saída na procissão e constatei que realmente existia a figura dos farricocos.
Conversei com minha avó, que era muito religiosa, e ela (...) também me contou que a Procissão era realizada na
Quinta-Feira, no dia das Endoenças, e citou a figura dos farricocos, que era um homem encapuzado (...). Depois
de todas as pesquisas, nós nos reunimos e fomos montando a celebração. O que já existia, nós aproveitamos para
aprimorar” (PASSOS, Elder Camargo de. “O futuro de Goiás é o passado” (p.196-197) (entrevista). Cf:
(BRITTO, 2008).
162
"A OVAT se orgulha de ser uma das responsáveis por manter essas tradições pulsando no cotidiano
vilaboense e uma das entidades precursoras na preservação do patrimônio imaterial brasileiro. Tudo começou em
1965 quando onze vilaboenses acreditavam que era possível acordar algumas manifestações que, outrora, se
encontravam adormecidas. Aos fundadores, nesse percurso, foram se associando outros bandeirantes na busca de
reviver práticas que caracterizavam o modo de ser dos moradores de Vila Boa” (Jornal “O Vilaboense”, “40
anos da OVAT”. Cidade de Goiás, jan/fev. 2006. Ano 13, N°. CXLVII, p.10. Fonte: AFFSD.
153

do passado sob a roupagem daquele presente. É importante frisar que as constatações


suscitadas são pautas proferidas, inclusive, pelos membros da OVAT que, entre rupturas e
permanências, detalham o processo amalgamado na tradição e no turismo, assim como as
questões relativas ao desenvolvimento econômico da Cidade de Goiás apresentadas
anteriormente.
Todavia, no que tange às especificidades das invenções vilaboenses, é de vital
importância a pensar esses aspectos para melhor compreendermos a pertinência do olhar
artístico, ao costurar o pragmatismo institucional às balizas mencionadas. Levantamos esta
reflexão, diante da curiosa resposta dada por Elder Camargo de Passos (membro-fundador e
presidente da entidade) que, ao ser perguntado sobre o caráter religioso e o debut da Procissão
do Fogaréu (re)inventada, sua explicação reedita a teoria dos historiadores ingleses
supracitados:

Não, a preocupação foi manter uma tradição, um folclore, uma paraliturgia.


Tanto que ela não é ipis literes como era realizada antigamente. Antigamente
ela não possuía paradas, ela entrava pela porta principal das igrejas e saía
pela lateral. Depois nós adaptamos e porque não tinha mais como fazer
assim. Mas isso não impede que algumas pessoas a vejam como
eminentemente religiosa. (...) Fizemos a primeira Procissão do Fogaréu, em
1966, com três farricocos. Depois, passou de três para dez, para vinte e
depois para quarenta. (...) Quanto ao farricoco foi assim: nós sabíamos o
nome de furnicoco, fomos procurar no dicionário o que era e encontramos
farricoco. No dicionário existia figura, no dicionário ilustrado, (...) a partir
dela Goiandira fez um desenho maior. (...) Depois de alguns anos, com o
aumento do número de farricocos, nós decidimos colocar um único
farricoco vestido de branco para carregar o Cristo, mas não tem motivo
especial, é apenas para se destacar em meio aos outros. Mas não tem
significados, nós procuramos colocar cores que provoquem um colorido
mais bonito (PASSOS apud BRITTO, 2008, p.194-199). (grifo nosso)

Ainda na direção das deliberadas rupturas promovidas pela OVAT, visando


instaurar um regime de continuidade à Procissão do Fogaréu, sublinhamos:

A OVAT foi criada (...) com a finalidade de recriar as comemorações da


Semana Santa nos moldes em que o padre espanhol, João Perestrello de
Vasconcelos Espíndola, introduziu em Goiás, em 1745. Houve, como não
podia deixar de ser, muitas alterações. Entre elas, o número de farricocos
(símbolo dos carrascos de Cristo); “Antes era somente um” - conta Elder
Camargo de Passos - “e optamos pelo aumento dos farricocos, que agora são
oito, para melhorar o aspecto visual da festa”. Antigamente, só homens
participavam das procissões. Hoje, tanto mulheres como crianças podem
participar. Essa modificação ficou por conta da pintora Goiandira Ayres
do Couto, também fundadora da OVAT. “Quando criança” - conta ela -
154

“tinha muita vontade de participar das procissões, mas não podia”(“JORNAL


DE BRASÍLIA”, 1978, F-0907)163. (grifo nosso)

Há, em boa medida, subsídios para analisar o legado inventivo da OVAT, a


Procissão do Fogaréu, enquanto manifestação cultural patente das criações artísticas
coutianas. Vê-se que as tradições (re)inventadas, na Cidade de Goiás, pedra angular dos fins
turísticos almejados pela instituição em estudo e pelo poder público municipal, reiteram o seu
caráter mutável, quando identificamos a supressão de alguns paradigmas formais da
religiosidade popular setecentista. Estamos, assim, convencidos de que o protagonismo de
Goiandira do Couto fora crucial tanto para (re)implantar a conjectura da tradição, quanto no
que se refere à recriá-la dentro de um formato híbrido-cultural. A propósito, não podemos
esquecer que essas práticas foram, sem resistência, apropriadas pela coletividade como um
rito religioso centenário, assim como são comprovadamente outras celebrações revividas
durante Semana Santa nesta localidade (MORAES, 2012, p.247-257).
A rigor, cabe-nos, portanto, apresentar as alegorias que (re)inventaram esta
“verdade”, a qual contou com as sensibilidades individuais de Goiandira do Couto ao
repensar artisticamente a participação das mulheres e crianças nesta celebração (re)elaborada.
Provavelmente, não foi por acaso que a artista-guardiã tenha incluído personagens que
representam o feminino e o infantil na teatralização de um episódio, evidentemente, simbólico
às crenças da fé cristã: a prisão do Cristo pelos soldados romanos.
As imagens que se seguem, ilustram o formato desta encenação,
inegavelmente, criativa e subjetiva, a qual é caracterizada, pela mídia164 e pelos membros da

163
Jornal “Jornal de Brasília”, “Fogaréu de Farricocos nas ruas da velha Goiás”. Por; José Andersen; Sérgio
Habib. Brasília, 02 de abril de 1978, F-0907. Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?
bib=Tematico&PagFis=40502&Pesq=>. Acesso em: 09 dez. 2015.
164
Não há como escamotear o papel da imprensa no estabelecimento do discurso da OVAT entre os diferentes
segmentos sociais e culturais, dentro e fora do Estado de Goiás. A reprodução do discurso tradicional, as quais
associam práticas precípuas à cidade colonial fundada por bandeirantes paulistas, ou seja, lugar do berço da
cultura goiana. Foi, a partir dos anos de 1967, que propagação midiática se intensificou e, com isso, os
resultados esperados pela elite cultural começaram a dar seus primeiros sinais correlatos: turistas. Dada à
relevância desses discursos jornalísticos, selecionamos alguns deles, de distintas temporalidades, para exposição
e reflexão: “O Bispo e dezenas de fiéis católicos de Goiás, já estão na construção de uma alegoria viva da Paixão
e Morte de Cristo, a qual, segundo a Organização Vilaboense de Artes e Tradição, poderá suplantar as
manifestações de arte e de fé no estilo dos hábitos que são preservados na Espanha, na Itália e em Portugal. A
alegoria mostrará os capuzes vermelhos dos farricocos, os uniformes dos guardas romanos e a simbolização do
antigo e do novo testamento através das principais figuras, tais como: Isac, Abrão, João Evangelista, José de
Arimatéia e as 3 Heús (Jornal “O Popular”, “Semana Santa em Goiás terá comemorações em novo estilo”.
Goiânia, 4 de março de 1967, s/p. Fonte: AFFSD). “Tendo em vista bem divulgar as cerimônias religiosas da
Semana Santa na Cidade de Goiás, publicamos abaixo o programa oficial a ser cumprido êste ano na Vila Boa,
cuja colaboração estêve à cargo de uma comissão especial - OVAT - fundada com a finalidade de fazer reviver,
nos moldes antigos, as festas tradicionais da ex-Capital do Estado (Jornal “Folha de Goiás”, “Semana Santa em
Vila Boa: programa oficial”. Cidade de Goiás, 04 de março de 1967, s/p. Fonte: AFFSD). Finalmente,
“Tradicional encenação de inspiração espanhola, trazida pelo padre Perestrelo, no século 18, a Procissão do
155

OVAT, não apenas como um cortejo; mas, sobretudo, como um “espetáculo” que exalta o
culto às origens tradicionais da antiga Vila Boa de Goyaz.

Figura 16-A - Maria Madalena, 1967. Figura 16-B - Heú, lápis de cor, 1967.

Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011 (p.77).

As representações criadas com lápis de cor aquarelado sobre papel sulfite,


figuras 16-A e 16-B, nos remetem, imediatamente, às ponderações trazidas por Meneses
(2003, p.12). Consoante sua acautelada discussão, é requisito para historiador que opta por
aproximar-se do discurso visual que visa, sobretudo, indagar o seu potencial cognitivo, dar
“maior atenção e um interesse em cobrir não só o maior número possível de usos e funções,
mas também contextos mais complexos” (p.12).
Afirmamos desse modo, que as análises introdutórias deste subitem se
estabeleceram justamente com o intuito de atingir esse propósito. Pois, estamos convencidos
de que, além de ilustrar uma pretensa encenação sacra, os esboços da tradição, primeiramente

Fogaréu, na Cidade de Goiás, mantém-se no posto de uma das manifestações mais importantes do calendário
religioso do Brasil. A cada edição, aumenta o cortejo que acompanha os farricocos pelas ruas estreitas e calçadas
de pedra da antiga Vila Boa. Este ano, milhares de pessoas do interior de Goiás, Goiânia, Brasília, São Paulo e
de países como Suíça, Alemanha e até da Nicarágua marcaram presença (...)” (Jornal “O Popular”, “Espetáculo
da Fé”. Goiânia, 29 de março, de 2002, p.07. Fonte: acervo da autora).
156

apresentados nas figuras 16-A e 16-B, representam a inserção de um instituto cultural que
prima pela centralidade destas manifestações. E, quando perguntado sobre o temor de uma
possível descaracterização desse símbolo das tradições (re)criadas pela OVAT, Elder
Camargo de Passos respondeu: “Acredito que, enquanto estivermos à frente da Procissão do
Fogaréu, isso não vai acontecer” (PASSOS apud BRITTO, 2008, p.203).
A partir desses desdobramentos, observamos as imagens em discussão, como o
retrato das concordâncias estabelecidas pelos guardiões da tradição. Se, de fato, não era
permitida a participação feminina nas procissões do século XVIII, notamos que a opção de
Goiandira de Couto foi evocá-las ao cortejo faustoso da Procissão do Fogaréu, artisticamente,
pela personagem Maria Madalena, que, na narrativa bíblica, simboliza o arrependimento. E,
a(s) Heú(s)165, conhecidas, popularmente, como carpideiras ou prateadoras, possivelmente,
inclusas no rito como representantes metafóricas das diversas dores humanas visíveis através
do feminino que, de alguma forma, mantinham-se vulneráveis à exclusão166.
Analisando os aspectos formais das imagens, destacamos, na figura 16-A, o
manto-azul celeste que recobre o corpo envolto em vestes esmaecidas que, mesmo sem rosto,
mostra-se, pela a postura ereta, tratar-se de uma personagem (mulher) relativamente jovem.
Levando em conta as pesquisas prévias feitas pela OVAT, acreditamos que a figuração alude
à assunção de uma nova postura comportamental da referida personagem. Porquanto, de
acordo com a narrativa bíblica, Maria Madalena protagonizou o episódio de livramento da
pena capital, - sanção aplicada às mulheres hebraicas flagradas em práticas consideradas
lascivas àquela cultura -, pela interferência emblemática do Cristo junto aos seus julgadores.

165
Já expusemos que a Procissão do Fogaréu e outras celebrações da Semana Santa, na Cidade de Goiás,
passaram a ser controladas pela OVAT, mais diretamente, a partir de 1966. Diante desta prerrogativa, a
assinatura da entidade, a (re)invenção e a ressignificação cultural, podem ser vista noutras manifestações
religiosas praticadas neste período. Nisso, inclui-se a (s) personagem (s) Heú (s). Siqueira (2014) ratifica-nos
esta característica quando reporta às celebrações da “Sexta-Feira Santa”, ocasião em que entoa-se o tradicional
“Canto do Perdão”: “Posteriormente, foi introduzido na cerimônia o toque da matraca, o Canto da Verônica, o
Canto das Heús e Via Sacra (...). O “Canto do Perdão” na Cidade de Goiás é, portanto, um réquiem, um ritual de
exéquias que se divide em seis momentos: a) a oração da via sacra, pelas rezadeiras da cidade; b) o canto de
algumas estações da Via Sacra (...); c) o toque da matraca e o Canto da Verônica; d) o canto das Heús; e) o
Canto das Sete Palavras (os anjos); f) o Canto do Perdão (Os pescadores). Diferentemente das cerimônias que
ainda são e das que eram realizadas nas outras igrejas, o Canto do Perdão na Igreja D`Abadia é mantido graças
ao esforço de jovens que tentam manter viva essa tradição” (p.149). É relevante mencionar que estes referidos
“jovens” (que de fato o é) são, em sua maioria, membros da OVAT. Portanto, representam a renovação da
entidade, dos seus princípios e das suas tradições. Cf. (SIQUEIRA, 2014, p.145-167).
166
“Nas pesquisas, constatamos que mulheres, tradicionalmente, eram proibidas de participar da Procissão do
Fogaréu. Mas, em 1966, como é que você proibiria uma coisa dessas? Até hoje ainda não tivemos uma mulher
vestida de farricoco na Procissão, também existe a questão do peso da tocha, é necessário caminhar descalço,
ficar parado algum tempo, a roupa que esquenta, etc” (PASSOS, Elder Camargo de. “O futuro de Goiás é o
passado” (p.200) (entrevista). Percebe-se que a “exclusão”, também, reconfigurou-se. O excerto da entrevista,
bem como sua íntegra, encontra-se em: (BRITTO, 2008).
157

Observando as formalidades contidas na figura 16-B, percebe-se uma imagem


controversa. Mesmo mantendo a peculiaridade da ausência do rosto, os traços artísticos,
porém, revelam-nos uma senhora com vestes e manto em cores sóbrias, porém vivas. Chama-
nos à atenção a postura encurvada das carpideiras provavelmente porque, para a artista, a
estética do lamento simboliza-se, também, na linguagem corporal. Constatamos, na pesquisa
de Ferreira (2011, p.78), o esboço da personagem Verônica, na qual a crença católica cristã
atribui a ela o status de guardiã da relíquia dogmática nomeada de “Santo Sudário”167. No
caso da Cidade de Goiás, já existia um “sudário”, caracteristicamente, barroco: o “Cristo
Flagelado”, de autoria creditada à Veiga Valle168.
A rigor, faltava-lhe, portanto, a personagem que, pela tradição, indissociava-se
dele. Nesse arcabouço, novamente, sobressai a importância carismática de Goiandira do
Couto em cumprir esta tarefa, e evidencia-nos uma intencional justaposição dos interesses
institucionais da OVAT com o aporte popular.
Nesta direção, a hipótese suscitada de que os guardiões locais tenham ajustado
a imagem da tradicional artista plástica à do referido escultor sacro, para legitimar as
(re)invenções simbólicas atreladas à Procissão do Fogaréu, adquirem, desse modo, relevante
plausibilidade. Assim, atendo-nos aos esboços originais expostos, patenteados por Goiandira
do Couto e referendadas pela Igreja Católica local, é possível afirmar, ainda, que a

167
“Uma peça de puro linho, com exatos 4,36 m de comprimento, 1,10 m de largura e delicados 0,34 mm de
espessura, tornou-se, ao longo dos séculos, a maior relíquia do catolicismo. E também o maior enigma da
história da cristandade. O tecido surrado, estreito e comprido, com manchas envelhecidas de sangue, queimado
em algumas áreas, traz estampada em suas fibras a tênue figura de um homem barbudo e despido de,
aproximadamente, 1,81 m de altura. Em toda a extensão da imagem impressa no pano, é possível ver as marcas
de ferimentos produzidos por chicotes, lanças e espinhos. A flagelação sofrida por quem deixou impressa sua
imagem foi tão brutal que, por si só, teria matado uma pessoa mais frágil. Não matou, mas abreviou sua
permanência na cruz, acreditam, cientistas de várias áreas que, há mais de um século, estudam o lençol
mortuário. Para os fiéis, não há dúvida: o pano realmente é o Sudário que envolveu o corpo de Cristo e foi
enterrado com ele, depois deixado na tumba quando de sua ascensão aos céus. Para os que não creem, tudo não
passa de uma fraude fabricada na Idade Média. No período feudal, o descobrimento de relíquias era uma das
atividades mais vantajosas para a Igreja Católica que assim aumentava seu domínio sobre a grande massa de
devotos da Europa que, em sua maioria, era constituída por servos analfabetos e supersticiosos”. Cf. Disponível
em: <http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/56/artigo273622-1.asp>. Acesso em: 01 abr. 2016.
168
Não nos restam dúvidas de que a Procissão do Fogaréu na Cidade de Goiás adotou uma cultura própria de
ressignificação constante do seu ciclo criativo. Embasamos esta afirmativa nas discussões formuladas até aqui e,
noutro dado informativo, que, pela pertinência, optamos por subscrevê-lo: “Em abril de 1989, conta-nos Maria
da Veiga, que ela estava na Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos e que o senhor Elder Camargo de
Passos, presidente da OVAT, e a senhora Antolinda Borges, pediram para que ela pintasse um novo Cristo para a
Procissão do Fogaréu, pois o atribuído a Veiga Valle passaria a ser acervo do Museu de Arte Sacra, ficando o de
sua autoria substituindo o do seu bisavô. Foi entregue a Maria da Veiga o sudário e ela o levou para seu ateliê e,
assim, criou um semelhante ao original. Maria relatou que: (...) Pintei em quatro horas. Saí de Goiânia (...), fui
para Goiás (...) e fui atrás de Elder na casa de sua mãe dona Altair para entregá-lo, pois eu estava com o
sudário original, e o da minha autoria, sendo que naquela noite o sudário que eu pintei saiu no Fogaréu”
(SIQUEIRA, 2008, p.148).
158

contribuição da OVAT, no que se refere ao ingresso real e simbólico das mulheres nesta
tradição (re)inventada, demonstra-nos uma eventual reatualização das permanências,
sensivelmente, incrustradas ao ethos da cultura local.
Sobre essas questões pressupõe um pensamento reflexivo sobre uma
conjugação rigorosa de normas manejáveis que desbordam do estético para o visual, conforme
sustenta Freitas (2004, p.03). Aliás, consoante Meneses (2003, p.15), as sensibilidades
capturadas de uma imagem exprimem o caráter metalinguístico intrínseco à
tridimensionalidade de suas funções - formal, social, semântico - que, por sua vez, são
igualmente atestados por Freitas (2004, p.04) como dimensões metodológicas essenciais ao
conhecimento historiográfico que se atreve a dialogar com esses testemunhos, sobretudo, com
aqueles de cunho artístico.
Nesse sentido, voltando a explorar a inserção dos prováveis “excluídos” das
celebrações vilaboenses, eis que, nos indícios iconográficos da tradição inventada na Cidade
de Goiás, encontramos a alusão ao personagem bíblico “Isaac”, filho de Abraão, o qual, à luz
da ética religiosa cristã, é visto como o “Pai da Fé”.
Ao fixarmos na imagem a seguir, (figura 17), vemos que recorrente ausência da
face recorrente, fora substituída pela postura perfilada e cabisbaixa da personagem que,
segundo o texto bíblico, quase serviu ao sacrífico religioso (fé), ato litúrgico previsto na
tradição hebraica antes Cristo169.

169
“A história de Abraão é a história do esforço e do labor. Aos olhos de Johannes de Silentio, é impossível
obter inteligência sem labor. Porém, se isso fosse possível, Abraão seria apenas um vulto. Ocorre, contudo, que
Abraão não somente deu o que tinha de melhor para Deus: existe algo muito maior nesse processo, isto é, existe
a angústia. O que acontece nessa história é que podemos (...) vê-la sob duas perspectivas: pela ética e pela
religião. Segundo a ética, Abraão quer matar (e por isso é assassino); já para a religião ele faz um sacrifício (e
por isso é um homem de fé). A angústia reside exatamente aí, isto é, em ver, pela perspectiva religiosa, que o que
faz Abraão é um sacrifício. Além disso, a fé torna esse ato ainda mais difícil. Com efeito, o sacrifício de Abraão
não é apenas um mero sacrifício. Para nosso autor, falar de Abraão implica necessariamente uma atitude de
coragem, visto que não é possível aos fracos imitá-lo. Kierkegaard (1979, p.126-127) ironiza a filosofia
sistemática que se achava tão difícil e profunda, afirmando que difícil mesmo é seguir o caminho de Abraão. (...)
Assim como a tragédia grega, também a história de Abraão não possui um fio condutor racional. Esta história se
encaixa bem na ideia de oculto e de reconhecimento que Aristóteles elaborou em sua Poética. Já o drama parece
ter se emancipado do destino e colocado muito de consciência na sua representação, porém, na visão de Silentio,
oculto e reconhecimento são necessários ao drama moderno, senão cairemos na estetização do nosso tempo. Se
na comédia temos um oculto sem sentido, no herói trágico vemos claramente uma relação com a ideia. Nosso
autor não vai se interessar aqui pelo oculto do cômico, antes deseja desenvolver o oculto na estética e na ética
para, dessa forma, mostrar a absoluta diferença entre o oculto estético e o paradoxo: “Assim, a estética exigia o
oculto e recompensava-o; a ética exigia a manifestação e punia o oculto” (...) (PAULA, 2008, p.63-67).
159

Figura 17 - Isaac, 1967. Lápis de cor aquarelado sobre papel sulfite.

Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011 (p.77).

Aqui identificamos o apontado simbólico feixe de lenha, na mão esquerda do


figurado, representa o modo como Goiandira do Couto optou por evocar não apenas esta
notável figura dramática dos contos do “Velho Testamento”, mas, também, o suposto
acontecimento do qual “Isaac” e seu pai foram os protagonistas. Obviamente que, ao aludir
esta narrativa à artista-guardiã não negligenciaria o outro personagem (“Abraão”) dela
constituinte, tendo em vista o simbolismo secular que os indissociam.
Não obstante, certifica-se, na representação seguinte (figura 18), um homem de
aparência senil, provavelmente, acenando à peculiar paternidade tardia do personagem bíblico
anterior, cujas vestimentas em cores quentes serviram para destacar, ainda mais, a releitura do
figurante da festa popular que, novamente, aparece com o rosto desfigurado.
160

Figura 18 - Abraão, 1967. Lápis de cor aquarelado sobre papel sulfite.

Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011 (p.77).

Não se sabe dizer exatamente as razões da digressão artística relacionada à


narrativa bíblica com as tradições herdadas do mundo colonial, que resultaram na capacidade
de reviver, na Procissão do Fogaréu do tempo presente, personagens anacrônicos ao foco da
encenação, conforme visualizadas nas figuras 17 e 18. Em face à referida evidência, cumpre-
nos concordar com a visão de Carneiro (2008, p.88) quando afirma que: “O ritual da
Procissão do Fogaréu é uma “Festa de Representação” de duplo sentido, visto que constituiu
um espetáculo de cunho religioso que se transforma em festa profana”, assim como é definida
pelos seus próprios idealizadores, reafirmamos.
O fato é que o insólito na Procissão do Fogaréu apresenta um ambiente de
contrastes formais, em comparação com os registros de memórias sobre as procissões
161

praticadas no passado vilaboense170. Tendo em vista o enredo deste jogo semântico-simbólico


que mescla nuances de cor, luz, sombras e poder aparelhados aos atributos folclóricos que
residem (dentro e fora) das imagens destacadas nas figuras 16 (A e B) até a figura 18, bem
como aquelas que, ainda, apresentaremos nas próximas páginas deste subitem, com o objetivo
de pensar a imaterialidade das tradições vilaboenses. Porquanto, o contexto das análises em
curso remete-nos às reflexões trazidas por Silva (2008), cujos entendimentos dialogam com as
implicações que ora trazemos à baila.

Essa manifestação é atualmente um dos principais eventos dos roteiros de


turistas que se interessam em conhecer um pouco da história e da cultura de
Goiás. Alguns pesquisadores têm considerado a Procissão do Fogaréu como
uma tradição inventada ao relacionar o surgimento da OVAT (...), em 1965,
com o processo da criação do enredo e dos personagens da procissão (...).
Essa é uma questão relevante já que possibilita confrontar as versões de uma
tradição oral (...). Essa maior visibilidade da OVAT, que tem possibilitado
discutir o seu papel na construção de conteúdos simbólicos para Goiás, pode
ser interpretada a partir de sua ressignificação na sociedade vilaboense, visto
que, nos últimos anos, atualizou o seu discurso e reafirmou o seu papel
histórico na preservação da cultura e das tradições da Cidade de Goiás
(SILVA, 2008, p.61).

Nesse terreno acidentado, compreendemos que os documentos visuais da


Procissão do Fogaréu consubstanciam as inquietações manifestadas pela autora, ao passo que
adensam as discussões veiculadas à circulação e recepção dessas imagens como modos de
interlocução responsáveis pelo crescimento exponencial do poder e do lucro simbólico
capitaneado pela OVAT no campo cultural vilaboense. Logo, enfatizamos que a interpretação

170
“Às cinco horas da tarde houve o sermão, e finalmente começou a procissão, que seguiu para a Matriz,
passando por todas as ruas da cidade. Centenas de pessoas, mulatos, negros, escravos na maior parte, abriram o
cortejo, fazendo exercícios de penitência que lhes haviam sido impostos na confissão. Traziam a parte inferior do
tronco envolta num vestido de mulher, o rosto escondido por um pano, o peito nu. Alguns carregavam cruzes de
mais de dois metros de cumprimento, outros estavam cingidos de cadeias, que arrastavam. Outros, por sua vez,
traziam ao ombro pesadas vergas de ferro, em torno das quais enlaçavam o braço, ou carregavam pesadas pedras
sobre a cabeça. Muitos se flagelavam, mas isso parecia ostentação, pois se açoitavam cuidadosamente e
lentamente, que não podiam notar grandes consequências, embora se esforçassem por expressar as dores por
mímicas” (POHL, 1976, p.145). Capturamos ainda, nas “Reminiscências” de Albernaz (1992), outra
representação sobre uma provável procissão que ocorria, também, às cinco da tarde, na Cidade de Goiás, lugar
onde a autora nasceu no início do século XX: “No domingo que precedia à Semana Santa festa do Senhor dos
Passos, com procissão organizada pela irmandade (...). Na sexta-feira da mesma semana, festa de Nossa Senhora
das Dores - Maria procura Jesus. Procissão às cinco horas da tarde, da qual participavam só moças, que a
transformavam num desfile de elegância e competição; surgiam as toaletes especiais como vestidos de noivas, de
bailes e de formaturas. As moças se revezavam carregando o andor naquele mesmo trajeto usado pela procissão
dos Passos e das Dores, cantando o motete das Dores. A banda de música sempre presente, acompanhava em
toda a procissão em todo o trajeto” (p.38). Cf. ALBERNAZ, Ondina de Bastos. Reminiscências. Goiânia: Kelps,
1992. Finalizando, sobre a Quarta-Feira “santa” encontramos em Moraes (2012), a presença da Irmandade Bom
Jesus dos Passos nos festejos deste dia, em particular: “Na quarta-feira santa, a mesma irmandade realizava outra
procissão, chamada de Passos da Paixão, criada para relembrar os incidentes da jornada de Jesus Cristo até o
local de seu sacrifício” (...) (p.147-148).
162

dos discursos visuais nos possibilita entender como as tradições inventadas, ao serem
praticadas no cenário urbano colonial da Cidade de Goiás, a nosso ver, contribuíram para
potencializar o fascínio e o encantamento subjetivos171; os quais, diametralmente, aparentam
estar consignados aos membros e às ações promovidas pela entidade, à medida que
consideramos o lugar de autoridade ocupado pela OVAT, num curto espaço de tempo, a
despeito de uma cidade, culturalmente secular.
Portanto, faz parte do senso comum a relevância das imagens para a
consolidação desse processo e, respectivamente, os “ganhos” institucionais, mesmo que
desiguais, em relação aos demais envolvidos. Afinal, o que precede ao ideário da Procissão do
Fogaréu, além dos esboços da tradição (croquis) criados por Goiandira do Couto, configura-se
no lastro das tentativas, em grande parte, protagonizadas pela artista, de ressignificar
culturalmente a Cidade de Goiás sob as bases da vertente preservacionista. Trata-se afinal de
documentos iconográficos representativos à primeira forma de visualização material tanto das
aspirações dos novos guardiões, quanto da “festa” em forma de tradição, bem como dos
modos/meios utilizados para a referida coalisão institucional, sistematizada, pontualmente,
para respaldar os começos da OVAT. Vale assinalar, que o “espetáculo da fé” possui outros
ícones a serem apresentados, os quais, em momento algum, passam-nos a impressão de serem
documentos que não se esgotam de significados atinentes às problemáticas abordadas. Nesse
sentido, convém expô-los em análise:

171
Sobre essa relação espaço e cultura, no que concerne às imbricações do patrimônio imaterial no material,
Veloso (2006), acentua que: “A identificação e valorização do patrimônio cultural, especialmente daquele
designado como imaterial, pode ensejar o fortalecimento do espaço público, espaço privilegiado onde múltiplos
grupos sociais e suas manifestações culturais e identitárias podem ser reconhecidos como representações
legítimas da cultura brasileira. A ideia de referência cultural, além de permitir a ênfase nos laços sociais entre os
indivíduos, reforça a possibilidade de formação de grupos (...). Em suma, o conceito de referência cultural
ressalta o processo de produção e reprodução de um determinado grupo social e apontam para um universo
simbólico compartilhado” (p.443-444).
163

Figura 19 - João Figura 20 - José de Figura 21 - Nicodemos,


Evangelista, 1967. Arimatéia, 1967. 1967.

Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011 (p. 77).

Os critérios que nos levaram a reunir essas três personagens privilegiam


análises sobre o núcleo masculino que, segundo os relatos bíblicos, tiveram contato direto
com o Cristo, antes e depois, de sua prisão e seu sacrifício. Ainda de acordo com o texto
bíblico, provavelmente, examinado durante os “levantamentos históricos”172 feitos pela
OVAT, os representados desempenharam funções emblemáticas constitutivas da encenação
revisitada pela Procissão do Fogaréu.
Assim, pontuamos as instâncias relacionais destas personagens, explicitadas
nas figuras 19 a 21, com o aparente protagonista do aludido rito173. Mesmo porque,
considerando essas evocações, do ponto de vista de instituição idealizadora, construções
artísticas cujas intencionalidades, a nosso ver, camuflam-se em metáforas e metonímias
diluídas nas conjecturas dos horizontes vislumbrados para a Cidade de Goiás - história,
turismo e tradição - expendidos até aqui.
Observando detidamente esses aspectos, vê-se que a imagem de “S. João
Evangelista” (figura 19) segue o viés artístico adotado por Goiandira do Couto: cores vivas,
ausência da face e a presença de um símbolo que remete aos feitos ou fatos ligados aos
personagens. Consta que, nas referências do mundo cristão, “S. João Evangelista” foi um dos

172
Expressão utilizada pela entidade, quando na ocasião dos “40 Anos da OVAT”, ao elencar as realizações
conferidas à organização, durante este lapso temporal, conforme subscrevemos na sessão anterior. Cf. OVAT, 40
anos Promovendo a Cultura e Resgatando as Tradições, 2005, p.13 (catálogo comemorativo).
173
Ainda neste subitem explicaremos o porquê da relativização conferida ao protagonismo do Cristo na
Procissão do Fogaréu.
164

doze apóstolos, e a pena trazida na mão direita, seguramente, alude à atividade de escriba
diante do consenso ao lhe atribuírem a suposta autoria de um dos quatro livros do “Novo
Testamento” que, em conjunto, são intitulados pelas doutrinas cristãs do evangelho.
Analogicamente, é possível que estas conjecturas sobre o ato de ressignificar pavimentou o
caminho das tradições (re)inventadas na Cidade de Goiás, as quais tornaram-se “doutrinas”
assimiladas pelo inconsciente coletivo e proferidas, inclusive, pelos guardiões da tradição,
enquanto verdades sobre a cultura local.
Observada essa premissa, justificamos em Meneses (2003), a tentativa de
recrudescer as análises encadeadas, as quais vão ao encontro da seguinte afirmativa: “aos
estudos de manifestações ‘imagéticas’ da cultura se acrescentou a necessidade de
compreender os mecanismos variadamente, localizados de produção de sentido” (p.16-17).
Estamos convictos de que os esboços da tradição são instrumentos passíveis de produção e
reprodução de sentidos, cumpre-nos analisar a imagem na figura 19, homônima ao
personagem constituinte do elenco da Procissão do Fogaréu, “José de Arimatéia” (figura 20),
considerado como membro da Suprema Corte Judia (Sinédrio), função, simbolicamente,
evocada pelo manto vermelho rubro174 que o envolve. Segundo relatos, em razão da sua
estirpe social, um paradigma previsto na norma jurídica daquele povo fora quebrado. “José de
Arimatéia” teria reclamado o corpo de Cristo para o devido sepultamento, embora, segundo a
lei, aos apenados com a crucificação esse privilégio não lhes fosse permitido.
A crença dessa exceção possibilitou enquadrar a participação do personagem
“Nicodemos” (figura 21), nesta simbólica passagem do mundo cristão. A ele que, também, era
membro do Sinédrio judaico, coube-lhe a reponsabilidade de retirar o corpo da cruz, conforme
demonstra a representação a fim de encaminhá-lo aos procedimentos fúnebres. Ainda segundo
as crenças cristãs, houve, em vida, um encontro de “Nicodemos” com o Cristo, de onde veio
uma das inferências simbólicas ao renascer-se, reinventar-se.
Metaforicamente, é razoável aduzir que a célebre frase do texto evangelístico:
“necessário vos é nascer de novo (João 3:7)”175, remete às inspirações pretéritas do ufanismo
antimudancista, retroalimentadas, discursivamente, pelos novos guardiões vilaboenses, na
década de 1960. Haja vista que o processo de ressignificação cultural, baseado na Invenção
das Tradições, ambicionava reconfigurar o quadro paradigmático instalado na Cidade de

174
“COR VERMELHA: O Direito assegura a vida e a liberdade, por isto o anel de bacharel é o rubi vermelho,
que é a cor do sangue e a cor da vida. O rubi é a pedra simbólica do bacharel em direito, o seu simbolismo
representa a vida, a segurança e a paz, já o vermelho representa o sol, o sangue, o amor do direito pela
humanidade e pela paz”. Disponível em: <http:// www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=
15157&tip=UN>. Acesso em 06 abr. 2016.
175
Frase constitutiva do diálogo entre Jesus e Nicodemos relatado (na íntegra) no evangelho de João (Jo, 3:1-18).
165

Goiás, desde 1937, intuindo reaver, de algum modo, o status urbano de epicentro do Estado
de Goiás. Suspeitamos que esse visível diálogo da OVAT com as sensibilidades oriundas dos
enfrentamentos ocorridos nos anos de 1930, denota, também, contato direto com os
remanescentes ideológicos deste movimento, a exemplo da pessoa-personagem, Goiandira do
Couto.
Relativo à estas questões, passaremos a analisar o principal ícone da Procissão
do Fogaréu, considerado uma das criações mais subjetivas e, ao mesmo tempo, mais
entranhadas de ambiguidades. Essas características são, a nosso ver, emissárias intermitentes
de simbologias apropriadas pela OVAT para ultrapassar as fronteiras do tempo e do espaço
vilaboense. Referimo-nos à figura enigmática do “Farricoco” (figura 22), que no
entendimento da mentora e do grupo em geral, tinha a função de desempenhar um papel
análogo aos soldados romanos, designados à captura do Cristo, neste caso, pelas ruas da
Cidade de Goiás, à meia noite da “Quinta-feira das Endoenças”.
A imagem deste personagem promove uma ruptura, própria do rigor peculiar
de Goiandira do Couto, os demais foram representados bem ao gosto do simbolismo bíblico,
para cria-lo, simultaneamente humano, mítico e profano. Este dado expressa a notória
capilaridade das tradições refeitas na atualidade, mescladas à experiência de culto às origens,
cujo enredo de cunho religioso relaciona-se aos costumes praticados pela coletividade
vilaboense, há séculos, como é o caso da Semana Santa na Cidade de Goiás. Todavia, para os
idealizadores, a proposta de espetáculo teatral era clara. Especialmente, quando se
compreende quais eram os propósitos/sentidos do “Farricoco” para a OVAT. Assim, ao ser
questionado sobre a relação deste personagem com divindade, o Cristo, a resposta dada pelo
presidente-fundador, Elder Camargo de Passos, ratifica algumas das hipóteses derivadas desse
contexto.

A não ser no final da Procissão quando o Cristo é preso. No caso do Fogaréu


é curioso como o farricoco supera a figura do Cristo. Talvez, possa ser,
porque o Cristo já é uma figura muito divulgada, há milênios, não existe
mais aquele mistério. A própria religião, há alguns anos atrás, quis colocá-lo
mais próximo de nós, o identifica com os menos favorecidos, os humildes...
Já a figura do farricoco por si só impressiona, é cercada de mistério,
cria um clima todo medieval, todo espetacular para a cerimônia
(PASSOS apud BRITTO, 2008, p.195).
166

Pelo que parece, a percepção da criação objetivou empreender o turismo


metamorfoseando o sagrado por uma alegoria “fetichizada”176, que se tornou, nitidamente, o
emblema de um projeto que consagrou a ressignificação cultural da Cidade Goiás, em eco,
desde a transferência da capital goiana, ocorrida no ano de 1937. Antes de aprofundarmos
nesta premissa, avaliamos como essencial a visão da figura do ícone que representa a sinfonia
atemporal das expectativas daqueles que protagonizaram o papel de guardiões das tradições
vilaboenses.

Figura 22 - Farricoco, 1967. Lápis de cor aquarelado sobre papel sulfite.

Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011 (p. 75).

Mesmo diante do ver e ler os discursos da tradição, a interrogação continua


sempre presente. Observando o ponto auge do repertório representativo das tradições, o
farricoco roxo (figura 22), certamente aludindo à cor símbolo da centenária Irmandade Bom
Jesus dos Passos, reverbera visualmente o que fora proferido pelo presidente-fundador, isto é,
o protagonismo do Cristo substituído pelo personagem figurado. Persiste suspeitas de que seja
um modo de reatualizar o poder, os padrões e os valores da centenária irmandade, de origem
elitista, visivelmente atrelada às práticas artístico-culturais promovidas pela OVAT, a partir

176
“(...) risco de se transformar o patrimônio cultural ou bem patrimonial em uma mercadoria como outra
qualquer, ou, simplesmente, em puro fetiche, quando o patrimônio cultural, com suas complexas redes de
práticas e significados, se transforma em mero produto, ou objeto “coisificado”, ou fetichizado” (VELOSO,
2006, p.437).
167

da década de 1960, conforme explanamos anteriormente. Pesquisas anteriores atestam que


não conseguiram comprovar a relação do padre Perestello com a Procissão do Fogaréu e,
muito menos, com referida confraria.
Contudo, a ativa participação da Irmandade Bom Jesus dos Passos nas
celebrações tradicionais da Semana Santa na Cidade de Goiás, desde o século XVIII, é
comprovada, segundo Moraes (2012, p.247). A valorização da imagem do farricoco visava
agrupar um conjunto de “sistemas simbólicos” Bourdieu (2007, p.09); uma vez que o alvo
intencionado pelos seus idealizadores era, sobretudo, comunicar a existência de
singularidades na cultura popular vilaboense, criando uma marca que, indiscutivelmente,
respaldou o real intuito da OVAT ao instituir o patrimônio imaterial na Cidade de Goiás:
empreender o turismo.
Parafraseando Veloso (2006, p.445), existe uma linha tênue que separa a
utilização do fecundo universo da imaterialidade cultural - campo portador de conhecimentos,
saberes e fazeres das memórias de um povo e de um lugar - em práticas que possam reduzi-
las, às formas objetivadas, a fim de transforma-las em objetos ou produtos de mercantilização
efetiva (turismo) ou simbólica (poder cultural) das tradições. Neste caso, segundo a autora,
como resultante desse processo sobressaem às concepções fincadas “em entretenimento para o
consumo, em espetacularização, a ênfase é posta no fetiche” (p.446), em detrimento das
relações sociais a partir dos indivíduos produtores da cultura.
Subentendemos que a mercantilização da cultura na Cidade de Goiás, nos
moldes propostos pela OVAT, sustenta que “ser tradicional” e, isso engloba atores ativos e
passivos do processo de (re)invenção das tradições locais; razão pela qual possivelmente, a
imagem institucional dos guardiões das tradições vilaboenses introjetou-se ao inconsciente
coletivo como a “voz da razão”, quando o assunto se refere ao conhecimento e aos domínios
culturais locais nas diferentes temporalidades. O estudo de Paz (2008), intitulado,
“Farricoco: leve um para casa - ética e estética do souvenir”, em certa medida, firma
pressupostos que assistem essa discussão.

À medida que “ser tradicional” se torna o diferencial para o posicionamento


da cidade como destino turístico, a mercadoria a ser oferecida é a tradição e
é preciso “parecer tradicional”. Daí o esforço para a manutenção dos
procedimentos artesanais, a despeito da plena realização de uma escala
industrial na produção dos farricocos. É sob a estética do souvenir que a
imagem do farricoco circularia atemporalmente. (...) Se, por um lado a
circulação atemporal dos objetos na forma de mercadorias mostra o quanto a
lógica capitalista tende a esvaziar os costumes e a coisificar – portanto,
reduzir – tudo e todos; de outro, porém, ressignificação e objetificação
168

poderiam ser entendidas como dinâmicas próprias da cultura e, daí, a


configuração social dos interesses comerciais poderia ser vista como
legítima, estimulando o gesto metonímico do turista, que leva um farricoco
para a casa como se levasse Goiás (PAZ, 2008, p.176-177).

A paridade do excerto com as reflexões enunciadas particulariza as eventuais


intenções da OVAT no que se refere aos meandros da dinâmica cultural subsidiada pelo
projeto de (re)inventar tradições e, a partir delas, premiar o passado, o qual atravessaria as
expectativas de um futuro renascido. Eis o encantamento que possibilitou a OVAT a negociar
com a coletividade social vilaboense, a condição de fazer-se/tornar-se sua interlocutora.
A partir de 1966, o farricoco possibilitou a realização deste desejo
institucional: ocupar espaço central nas manifestações culturais e tradicionais da Cidade de
Goiás, como é o caso da Semana Santa. Ora, mas esse não era um dos objetivos da coalizão
entre as instituições detentoras do poder simbólico e efetivo na Cidade de Goiás? É possível
afirmar que a promulgação da lei 3.365 (figura 14) incitou a valorização ao patrimônio
cultural local ao passo que facultou o empoderamento da OVAT em detrimento das demais
instituições envolvidas nesse processo? Veloso (2006) explica que para abalar os não ditos, é
preciso estar atento aos artifícios das inciativas que promovem o patrimônio cultural
imbricado aos matizes que “revelam e velam valores e interesses e são, sobretudo, um campo
de lutas” (p.446), em constantes afirmações e disputas.
Assim, se por um lado o estabelecimento institucional da OVAT trouxe um
aparente eufemismo à relação do DPHAN, no que tange às políticas de intervenção urbano-
patrimonial, com população local, conforme expõe Delgado (2003, p.441-442)177, nem todas
as aproximações institucionais da OVAT, com o passar do tempo, seguiram o mesmo fluxo.

177
“(...) mudanças discursivas e estratégicas, no campo do patrimônio, consubstanciaram-se em políticas
públicas. Na cidade de Goiás, a implementação da política do IPHAN de intervenção no planejamento do
desenvolvimento urbano teve início em 1981, por meio do convênio assinado entre o IPHAN, o Estado de Goiás
e a Prefeitura. Daí resultou o “Plano de Desenvolvimento Econômico com Preservação do Patrimônio” e
também a criação do Departamento de Infraestrutura e Urbanismo, incluindo-se na estrutura burocrática da
Prefeitura, pela primeira vez, um órgão responsável pelo planejamento urbano que propunha “incorporar na
administração da cidade questões de preservação do patrimônio, sem impedir o desenvolvimento econômico”,
conforme resumiu o arquiteto Gustavo Neiva, que participou da elaboração do Plano de Desenvolvimento (...).
Esse período foi destacado pelo presidente da OVAT, Elder Camargo de Passos, como um marco do
estreitamento dos vínculos entre o IPHAN e a comunidade local, fenômeno atribuído à atuação da arquiteta
Belmira Finageiv na diretoria da 14ª Superintendência Regional: A doutora Belmira encampou muito a nossa
ideia e comungava conosco os mesmos objetivos. Ela teve à frente do IPHAN durante muitos anos, então pra
isso facilitou muito o nosso relacionamento com o IPHAN, através da Dra. Belmira (...) [Elder Camargo de
Passos.(entrevista concedida e citada por Delgado; grifo da autora)]. Nesta narrativa da história do patrimônio na
cidade de Goiás, as políticas advindas de uma orientação do IPHAN em âmbito nacional, são discursivamente
construídas como resultado do trabalho de uma pessoa que “comungava” com os objetivos da OVAT e
que teria “encampado” suas concepções. Portanto, no jogo de disputas no campo do patrimônio, o órgão
federal emerge, nessa versão, como um mero instrumento de implementação de políticas gestadas por um grupo
de moradores da cidade” (DELGADO, 2003, p.441-442) (grifo nosso).
169

É pertinente relembrar que a junção da OVAT com a igreja católica se deu


durante o bispado de Dom Abel, que governou a diocese de Goiás entre os anos de 1960-
1966. Sendo que, o ano de 1965, corresponde à data da fundação da entidade e, 1966, à estreia
da Procissão do Fogaréu nas comemorações alusivas à Semana Santa na Cidade de Goiás. No
entanto, em 1967, iniciou-se, na Cidade de Goiás, a longa liderança episcopal do dominicano
Dom Tomás Balduíno178, representante de uma geração de bispos católicos uma geração de
líderes católicos que se identificaram com as doutrinas missionárias, voltadas para uma igreja
promotora de transformação social, oriundas dos movimentos revisionais do Concílio
Vaticano II (1961-1965) e da Conferência Medelín (1968)179.

178
Buscamos em uma entrevista desse clérigo, nascido em 1922 e falecido em 2014, uma definição de si que
interpenetra em uma representação de sua trajetória religiosa, indiscutivelmente, engajada em demandas de
políticas sociais. O Instituto de Humanas da Unisinos perguntou sobre quando e por que baseou-se a escolha
religiosa. A resposta abarca o que concebemos como uma definição satisfatória ao intento desta nota explicativa.
“Desde menino eu já tinha vontade de ser padre. Talvez por influência familiar dos tios padres por parte da
minha mãe, ou de um tio padre por parte do meu pai. Na cidade onde morava, Formosa-GO, havia uma
comunidade de religiosos dominicanos franceses. Admirava estes monges pela vida missionária deles, pelo
sacrifício de rodar boa parte do estado de Goiás a cavalo. Então, me engajei na Igreja, e quando era adolescente
fui encaminhado para o seminário, depois para o noviciado em Uberaba. Mais tarde estudei em São Paulo e
cursei Filosofia; na França, mais tarde, estudei Teologia, porque faltam professores no Brasil. Nessa época
tivemos uma influência interessante dos precursores do Concílio Vaticano II. Fui ordenado padre na França e, ao
voltar ao Brasil, depois de um certo tempo de lecionar nas faculdades de Filosofia, meu provincial me designou
para a missão indigenista. Esse foi o início de uma nova etapa. Não que eu escolhesse, mas fui levado a isso
pelas circunstâncias, porque eu era o superior da missão, e a partir de um certo momento, na década de 1960, fui
procurado pelos lavradores que estavam sendo pressionados pelos proprietários da terra no estado do Pará.
Acabei me envolvendo com esse mundo. Depois também trabalhei com os povos indígenas. Tive mais contato
com o povo Xikrin, do Alto do Itacaiúnas; aprendi a língua convivendo com eles.(...) O que me marcou
profundamente foi a questão da injustiça social no sentido de o governo do estado do Pará vender terras sem
levar em conta a população que estava dentro daquele território. Houve conflitos e eu participei deles no início,
porque depois fui transferido para Goiás, como bispo diocesano, onde fiquei durante 31 anos. Lá me deparei
novamente com a questão da terra, porque é uma região de muito latifúndio, de dominação da elite dos caiados.
Nesse tempo que vivi em Goiás, ajudei a inaugurar duas fundações importantes para a Igreja e para a sociedade:
o Conselho Indigenista Missionário – Cimi, que foi substituindo pouco a pouco as antigas missões de caráter
paternalista; e a Comissão Pastoral da Terra, que surgiu graças a Medellín e ao Concílio Vaticano II, nos anos de
1972 e 1973. O Cimi surgiu como opção pelos pobres, mas considerando os pobres como sujeitos, autores e
destinatários de sua própria caminhada, como protagonistas de sua própria luta. Quer dizer, mudou, naquele
tempo, completamente a postura da Igreja com relação aos povos indígenas e com relação aos camponeses. As
experiências que se tinham eram de criar organizações, confrarias de operários, trabalhadores rurais ligados
religiosamente à Igreja. Na posição da Comissão Pastoral da Terra, que nasceu em 1975, houve uma revolução
Copernicana, assim como houve no Universo Indígena Pastoral Indigenista de respeitar a condição de sujeito dos
trabalhadores rurais e não de objeto de nossa ação caritativa” (Dom Tomás Balduíno. “90 anos de
transformação na Igreja”). Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/516656-90-anos-de-transfor
macao-na-igreja-entrevista-especial-com-dom-tomas-balduino>. Acesso em: 12 abr. 2016.
179
“O Concílio Vaticano II (1961-1965) significou, para a Igreja Católica, um divisor de águas, o fim de uma
época e o início de outra, pois encerrou, de certo modo, a longa fase inaugurada com o Concílio de Trento (1545-
1553), fase de ruptura com o nascente mundo moderno e de confronto com as correntes espirituais, culturais e
políticas que emergiam do conjunto da Renascença e, de modo particular, da Reforma Protestante. O catolicismo
latino, com o rosto que perdurou até a década de 1960, foi fruto direto da reforma católica selada pelas
orientações doutrinais e institucionais do Concílio de Trento. (...) O Concílio Vaticano II, por outro lado,
quebrou a ingênua visão de um monolitismo de posições dentro da Igreja Católica, mergulhando todo o
episcopado em amplo debate, revisão e aprofundamento das estruturas internas da Igreja Católica, das suas
relações com a demais Igrejas, comunidades cristãs e religiões, e com os não-crentes, a cultura e sociedade
modernas e o mundo em geral. O Concílio reformou as estruturas internas da Igreja, remodelou sua liturgia,
170

Não obstante, as disputas de narrativas acerca dos modos como a OVAT


instituía as tradições religiosas, na Cidade de Goiás, passaram a ser alvo das críticas
encabeçadas pelo referido bispo e outros representantes da igreja local. A densidade dessa
questão levou-nos a uma investigação extenuante, da qual derivou o afrouxamento e a tensão
entre os polos citados que haviam, inclusive, se propagado pela impressa. Vejamos o que nos
diz o testemunho encontrado no “Jornal de Brasília”, 1978:

Goiandira que, na recriação dos festejos, confeccionou os figurinos, falou de


como se escolhia os figurantes para as comemorações. Segundo ela, eram
eleitos exclusivamente pelo físico. Hoje em dia a coisa não mudou muito. Os
figurantes de destaque, por exemplo, são representantes do que seria a nata
da sociedade local. Um pároco, que preferiu se manter anônimo, declarou,
aliás, que dos festejos da Semana Santa a periferia da cidade se mantém
quase totalmente à margem. Somente a elite, segundo ele, tem interesse em
manter de pé o que chamam de “tradição”. E que de tradição popular os
festejos sacros de Goiás Velho têm muito pouco. Ou quase nada. São, em
suma, espetáculos de um faraônico anacronismo. Habitantes e turistas
misturam-se aos festejos muito mais por curiosidade e curtição do que por
outra coisa. Na quarta-feira santa, por exemplo, é a vez da Procissão dos
Fogaréus. Por volta das 23:30 horas, todas as luzes são apagadas. Na praça
da Matriz, as tochas são distribuídas - pega quem quiser. (...) Após rufar os
tambores, surgem os farricocos que, a passos largos, percorrem, inclusive, as
mais estreitas ruelas (simbolizando a procura do Cristo) (“JORNAL DE
BRASÍLIA”, 1978, p. F-0907)180.

Nas linhas e nas entrelinhas, o documento desmistifica o romantismo ensejado


ao discurso dos guardiões das tradições sobre o retorno ao passado e explicita o controle
elitista tramado numa rede de influências que abarca o social, o econômico e o cultural que,
no cruzamento dos discursos e das representações, parecem estar sendo consumidos por uma
ínfima parte, ou seja, aqueles que afirmam ser representantes “dos filhos” e das “coisas de
Goiás”181.

alterou a secular vinculação ocidental com língua em latim (nos estudos e na liturgia) e deslocou o eixo da missa
do celebrante para a assembleia de fiéis e sua participação. Na eclesiologia, o acento foi colocado no “povo de
Deus”, na igual dignidade de todos os batizados agrupados em Igrejas locais, em meio ao qual o ministério
hierárquico encontra seu lugar como estrutura de serviço aos batizados” (BEOZO, 2005, p.49-51). Sobre a
Conferência de Medelín conferir: BEOZO, José Oscar. Medellín: inspirações e raízes. Disponível em:
<http://www.servicioskoinonia.org/relat/202.htm>. Acesso em: 13 abr. 2016.
180
Jornal “Jornal de Brasília”, “Fogaréu de Farricocos nas ruas da velha Goiás”. Por: José Andersen; Sérgio
Habib. Braqsília, 02 de abril 1978, F-0907. Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?
bib=Tematico&PagFis=40502&Pesq=>. Acesso em: 09 dez. 2015.
181
Ainda sobre essa questão da excludência, as palavras das lideranças da OVAT recosturam-se, mesmo que de
maneira sutil, às angústias levantadas pelo suposto padre anônimo: “Muitos me perguntam se é só a elite quem
participa, que veste de farricoco. Digo que são pessoas de todas as classes sociais, idades e profissões. Existe
uma fila, uma lista de espera para ser farricoco. Eu acho melhor contar com os já experientes porque eu faço
apenas um ensaio, então, quem já possui experiência é mais fácil porque eu não preciso ficar repetindo”
PASSOS, Elder Camargo de. “O futuro de Goiás é o passado” (p.200) (entrevista). Cf: BRITTO, 2008).
171

Recorremos novamente à Paz (2008, p.179), pois, consoante suas análises, é


possível reiterarmos que a imagem do profano, representada pelo farricoco, secularizou-se no
sagrado e assumiu o protagonismo não apenas do ritual paralitúrgico, mas, sobretudo, da
função metalinguística de se portar como emissário do poder institucional da OVAT, no
quesito produção criativa, interligada à sua influência na cultura popular vilaboense. A
plausibilidade desta afirmativa advém dos dados trazidos pelo documento e pode ser
igualmente aferida na observação cuidadosa com que este ser místico empoderou-se
simbólica e quantitativamente, ao longo do tempo, deste espetáculo inventado para/por
subjetivas paixões.
Nesse sentido, nunca é demais lembrar que, no discurso dos guardiões, os
começos da Procissão do Fogaréu, no século XVIII, como percussor o Padre Perestello,
apenas um farricoco saía no cortejo. Em 1966, este número subiu para três. Nos anos
seguintes para dez e, na atualidade, formam um séquito de quarenta, conforme reconta o
registro fotográfico que se segue (figura 23). Aliás, os dados apresentados expõem a
preocupação, quase ininterrupta, dos guardiões das tradições em tornar a “cidade berço da
cultura goiana” cada vez mais atrativa. Teoricamente falando, convém destacar que os
atributos sociológicos da imagem nos conferem direitos à “observabilidade” da interação
social. Essa categoria de analise é vista por Meneses (2003, p. 18), como um dos principais
fundamentos para o historiador cultural se distanciar das considerações superficiais
concernentes à natureza do documento visual. Portanto, o que se vê imagem fotográfica da
figura 23, é um testemunho que muito excede a pura e simples mimese.

Figura 23 - Concentração dos Farricocos, Cidade de Goiás, 2016.

Fonte: Acervo do fotógrafo Guilherme Antônio de Siqueira.


172

Aqui se vê um encontro paradoxal de ganho e perda de identidade. As


máscaras cônicas compondo as indumentárias multicoloridas os tornam anônimos de um
único nome. Porém, de múltiplos sentidos. Para alguns, o carrasco. Na visão de outros, um
enigma. Entretanto, cremos que, para a OVAT, sejam seres flamejantes que orientaram e,
ainda, orientam o caminho da Cidade de Goiás em direção ao futuro. Conquanto, tratava-se de
uma proposta que não contemplava significados de inclusão e/ou representação social dos
menos favorecidos.
A linguagem cultural e artística esboçada na Procissão do Fogaréu denota, com
clareza, que as pretensões da OVAT não acompanhavam as ideologias paradigmáticas da
Igreja em Goiás, dirigida por um bispo simpatizante do Concílio Vaticano II, Dom Tomás
Balduíno, aspecto que justifica o profundo estranhamento entre as partes.
Esta hipótese nos induziu buscar outras pistas que apresentassem a versão da
entidade em estudo sobre este campo das tensões com a Igreja. Determinadas publicações e
testemunhos orais dos fundadores contemplam algumas destas indagações e, ainda, sobram
informações quanto ao fato da divergência no governo episcopal do bispo dominicano
supracitado. É razoável subscrever (parcialmente) dois depoimentos que, a nosso ver, se
mostram curiosamente discrepantes. Haja vista que ambos os entrevistados foram indagados
na mesma direção: qual era ou como foi a relação da OVAT com a Igreja? Eis a primeira
resposta:

Nós nunca encontramos resistências por causa do Fogaréu. Nós tivemos não
resistências, mas críticas, principalmente na época de Dom Tomás Balduíno
depois de uns três anos que ele estava aqui [década de 1970]. A OVAT e a
Irmandade dos Passos, nós quem resistimos. A única participação da Igreja
na Procissão do Fogaréu era a homilia, como ocorre até hoje. No começo,
quem falava era o vigário, Monsenhor Angelino, depois que passou a ser o
Bispo. A OVAT e a Igreja possuíam algumas opiniões divergentes, mas
sempre tivemos autonomia para realizar a celebração e nunca fomos
proibidos de promovê-la. As questões discordantes eram discutidas nas
reuniões de avaliação da Semana Santa. A Igreja não possui nenhuma
participação no Fogaréu, é uma paraliturgia e nós abrimos espaço para
que eles falem aos fiéis (PASSOS apud BRITTO, 2008, p.199-200).

No cabedal da proposta comparada, expomos as palavras do segundo depoente,


contemporâneo do primeiro;

Com a vinda de Dom Tomás, ele um dia chamou Elder para apresentar o
áudio-visual da Semana Santa para ele. Ele assistiu e disse que era um bonito
trabalho. Só que não havia mais, não dirá colaboração, mas aquela
convivência harmoniosa, porque a visão social de Elder era uma, e eu que
173

ficava numa situação constrangedora porque eu achava que estávamos


resgatando uma riqueza cultural e ao mesmo tempo também admirava a luta
político-social da Igreja e a Teologia da Libertação. Mas, com o tempo, as
relações foram ficando mais tensas, e durante as celebrações da Semana
Santa, Dom Tomás inovava, tirava o harmônio e colocava violão, retirava
uma música daquelas das antigas e inseria músicas modernas, essas
pequenas coisas... É até interessante porque ele preservava o costume,
mantinha a celebração, mas inovava, a realizava de forma diferente: o
conteúdo era o mesmo, mas mudava a forma. Ele alegava que as
manifestações de Goiás não estavam mais de acordo com o Concílio
Vaticano II, que os cânticos em latim não contribuíam para a participação
popular, que a Igreja fazia questão da qualidade do que da quantidade, e que
aqueles cânticos eram de uma outra Igreja, de uma Igreja triste, voltada para
si, voltada para a morte, para a condenação e o medo.... Não era o Cristo
Libertador, era o Cristo Martirizado. Assim, ele impôs muitas
mudanças, mas a OVAT sempre resistiu (CASTRO apud BRITTO, 2008,
p.215).

Estes depoimentos atestam, mesmo por semânticas diferentes, a crise entre a


Igreja e a OVAT. Algumas variáveis nos permitem analisar esse aparente ponto de tensão
quase imperceptível nas representações evocadas na Procissão do Fogaréu. De início, tem-se a
remontagem desse suposto culto às origens, baseado num repertório, fundamental, isto é, o
tradicionalismo cultural e religioso, causando franco esvaziamento na Igreja, desde o anúncio
das diretrizes do Concílio Vaticano II.
Na sequência, abstraímos, a partir do segundo depoimento, que a celeridade
deste agravamento ideológico-institucional coincidiu com a transição episcopal na Cidade de
Goiás por um representante sensivelmente impactado pela citada “Teologia da Libertação”182.
Pode-se considerar que as clivagens da Igreja não eram desfavoráveis às práticas centenárias
da Semana Santa no âmbito local desta urbe. Mas sim, no projeto de (re)inventar tradições,
focalizadas no espetáculo, geminadas criativamente por Goiandira do Couto, convalidadas

182
“(...) foi a partir da década de 1960 que dois acontecimentos importantes influíram para um maior
envolvimento de uma parte do clero católico com a questão social no Brasil: o Concílio Vaticano II e o Golpe
Militar de 1964. Esse segmento dentro da Igreja Católica brasileira que passou a se posicionar mais firmemente
contra os problemas econômicos e sociais que estavam atingindo o país e, quando os militares tomaram o poder
e implantaram um regime autoritário dentro do país, passaram a ser duramente perseguidos. Assim foi que surgiu
uma relação dialética no Brasil entre os religiosos envolvidos com a questão social e a realidade brasileira:
quanto mais eles denunciavam e agiam em relação aos problemas no país como a fome, o desemprego, a questão
agrária e a repressão dos militares, mais perseguidos eles eram, situação que ao invés de diminuir o ímpeto
dessas pessoas, aumentava sua determinação em combater aquela situação. Foi nesse contexto do aumento do
envolvimento da Igreja Católica com a realidade de seus fiéis, no processo de agiornamento em relação ao
secular, com o agravamento das questões sociais na América Latina e o surgimento dos opressivos regimes
militares na América Latina, que se organizou, dentro da Igreja Católica, o movimento da Teologia da
Libertação. O envolvimento pastoral com a questão social já vinha se organizando em boa parte do mundo
católico mesmo dentro da doutrina social da Igreja, mas em 1968 durante a Conferência de Medellín (II
Conferência Geral do Episcopado Latino-americano) esse envolvimento ficou mais sistematizado com uma
diretriz básica: a opção preferencial pelos pobres” (CAMILO, 2011, p.02).
174

pelos guardiões como um todo e apropriadas pelo poder público183. Subjetivamente, eis
aclarados os porquês da resistência institucional. Dom Tomás Balduíno propusera uma
clivagem na principal representação do empoderamento cultural, econômico e simbólico
desses atores. Não nos restam dúvidas de que a crescente indústria do turismo184 e seus
“fetiches” certamente se ressaltaram mais que o “sagrado” aos olhos do bispo reformador.
Novamente licenciando-nos do pensamento de Veloso (2006), observamos que
o “fetiche” contamina o campo semântico do patrimônio cultural transformando-o em “coisa
sagrada” e, com o passar do tempo, torna-se privativa. Evidentemente que a Procissão do
Fogaréu desencadeou uma crise com o clero local em virtude de um provável impedimento da
fruição do público, sobretudo, no “lugar de fala”, aspecto indispensável aos discursos sobre o
patrimônio imaterial, teoriza a autora (p.448). Compreende-se que a contingente elitização
185
sociocultural adotada pela OVAT - na condução dos festejos religiosos da Semana Santa

183
“Esteve ontem em nossa redação uma comissão de pessoas representativas da Cidade de Goiás, da qual
faziam parte o Prefeito Municipal, Sr. Jerônimo de Carvalho Bueno, a Professora Goiandira do Couto, o Padre
Luiz, o Professor Sebastião Peleja, diretor do Departamento de Turismo de Villa Boa, o pintor Octo Marques e a
Srta. Regina Lacerda. Em contato com nossa reportagem, o prefeito Jeronimo de Carvalho Bueno, informou-nos
que instalou o Departamento Municipal de Turismo (...). Disse que o Departamento desenvolverá um intenso
trabalho a fim de que [ilegível] seja intensificada em Vila Boa dando oportunidade para que seja cada vez maior
o número de visitantes na antiga capital do Estado. A comissão esteve no Palácio reivindicando um prédio para a
instalação do Departamento Municipal de Turismo no que obtiveram êxito, sendo que a Secretaria Estadual de
Viação e Obras Públicas vai providenciar a reforma do referido prédio melhorando assim suas acomodações. A
professora Goiandira do Couto, na oportunidade, disse dos preparativos para a Semana Santa e afirmou que as
festividades da Vida, Paixão, Morte e Ressureição de Cristo deste ano, serão bem movimentadas e despertarão
grande interesse” (Jornal “Folha de Goiás”, “Vila Boa tem Departamento de Turismo”. Goiânia, 02 de março
de 1967, s/p). Fonte: AFFSD.
184
“Hoje, a população de Goiás Velho quase duplicou, mas a exploração, partida de muitos lados é quase
inevitável. Nos bares e nos poucos restaurantes, os preços sofrem vertiginosos acréscimos. O que de certa forma,
não deixa de ser compreensível. Afinal, somente na Semana Santa Goiás Velho recebe um número maior de
visitantes. E até as peças de barro - artesanato típico do local - passam a ser vendidas por um preço maior. E a
exploração atinge até o Balneário Cachoeira Grande, distante da cidade cerca de nove quilômetros. É a própria
prefeitura que tem domínio sobre o balneário. (...) Os turistas compram muita roupa leve. E muitos foram
informados de que o clima ali seria ameno durante o dia e frio durante a noite. (...) E o que pensa disso tudo a
escritora e doceira Cora Coralina, cuja fama, ultrapassou os limites do município? “Antigamente - diz ela - os
vilaboenses dedicavam três semanas para reverenciar a memória do Cristo. Tudo tinha cunho eminentemente
religioso. Naquele tempo todos ouviam e seguiam o que os padres diziam. (...) Quando hoje vou à missa o que
vejo é uma prática totalmente fora da realidade. Os padres se perdem falando de coisas que não atingem o povo –
que por sua vez, não pode acompanhar suas abstrações. Quando surgiu o Concílio do Vaticano, a Igreja
estava marginalizada. Ele foi um passo à frente para acompanhar a evolução da sociedade. A igreja aqui
ainda se mantém quase no mesmo estágio. As solenidades perderam seu cunho religioso. Hoje, são
solenidades folclóricas e nada mais”. É exatamente durante a Semana Santa que a casa de Cora Coralina
recebe mais visitantes. Sua casa, aliás, é um verdadeiro ponto turístico. Tanto que nos folhetos da Goiastur,
está devidamente indicada num pequeno mapa da cidade ao lado de museus, igrejas e também das casas
dos pintores Octo Marques e Goiandira” Jornal “Jornal de Brasília”, “Fogaréu de Farricocos nas ruas da
velha Goiás” (subitem: Turismo Predatório). Por José Andersen; Sérgio Habib. Brasília, 02 de abril de 1978, F-
0908). Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=Tematico&PagFis=40502&Pesq
=>. Acesso em: 09 dez. 2015. (grifo nosso).
185
Sobre a elitização dos festejos da Semana Santa e, consequentemente, da Procissão do Fogaréu, Elder
Camargo Passos, à luz de suas “pesquisas”, justificou: “No início o Fogaréu era vivido pela elite da Igreja. A
Igreja era elitizada, a população em geral participava, mas não em lugar de destaque. A Semana Santa era
elitizada, a Irmandade dos Passos foi fundada pela elite, só depois foi ficando mais popular. Você observa os
175

vilaboense, desde 1965 - pode ter impelido o extravasamento do suposto pároco anônimo,
supratranscrito do “Jornal de Brasília”, o qual teria definido as tradições (re)inventadas pela
entidade dos guardiões das tradições locais como “espetáculos de um faraônico
anacronismo”.
Vale a pena lembrar que essa subjetiva apoteose às tradições percorria, e ainda
percorre, as ruas da Cidade de Goiás guiadas pelo mais representativo emblema institucional,
o farricoco. Nas palavras dos guardiões, esse ícone foi criado para extrapolar os limites
institucionais ou simbólicos, restrito à Procissão do Fogaréu. Alguns porta-vozes afirmam que
a intenção se vincula à busca de sentidos mais abrangentes: “temos que reconhecer que ele é
um símbolo, ele não é apenas uma figura religiosa, ele é um símbolo da cidade, e a OVAT
deve se preocupar com isso, onde estamos inserindo nosso símbolo. (...) O farricoco é uma
referência” (PASSOS apud BRITTO, 2008, p.203).
A abordagem estético-artística, contudo, sobressai. Mas, ainda assim,
interpenetra-se a orientação identitária trazida no primeiro testemunho:

O farricoco e a Serra Dourada são, na minha opinião, os dois símbolos de


Goiás. O farricoco é uma atração que divulga Goiás. É o mistério, é algo
diferente que existe só aqui. Se existisse o farricoco em todos os lugares, as
pessoas não viriam para Goiás. E há também a importância da cena e do
cenário em que se realiza a Procissão: se não fosse Goiás, a procissão
certamente seria diferente, o cenário de Goiás é parte importante na
Procissão do Fogaréu, que a torna única (COUTO apud BRITTO, 2008, p.
207-208).

A sensibilidade no olhar da artista-autora, Goiandira do Couto, quando valoriza


o cenário para a realização da cena que aponta para as singularidades da Procissão do Fogaréu
na Cidade de Goiás. Pode até ser que o personagem central (farricoco) desta manifestação
cultural, visivelmente, articulada entre “jogos” dinâmicos de poder, tornou-se, com o passar
do tempo, uma atração que, de fato, divulga/identifica, ao modo idealizado pela elite
tradicional, a Cidade de Goiás. Todavia, afirmar que o farricoco “(...) é algo diferente que
existe só aqui” (BRITTO, 2008, p.207) não corresponde com os indícios encontrados. A
forma deste personagem reaparece em liturgias sacras tradicionais praticadas no território
cultural ibérico na atualidade.
A historiografia cultural goiana não encontrou subsídios para endossar o
discurso da OVAT de que as origens da Procissão do Fogaréu provêm destes domínios

nomes dos irmãos: era governador, desembargador, militares... Na origem ela não é popular, não possui esse
chamado e nem essa aproximação. (...)”, reiterou o membro-fundador. (BRITTO, 2008, p.202)
176

espaciais e culturais, desde o século XVIII. Entretanto, acredita-se que, à luz dos vestígios da
memória, escritos e visuais, cabe-nos afirmar que as tradições (re)inventadas, a partir dos anos
de 1960, na Cidade de Goiás, muito provavelmente, pautaram-se nas representações culturais
delineadas nas linhas e nas visualidades das imagens ulteriores.

Figura 24 - Reportagem do Jornal “O Globo”, “Procissões dos Fogaréus e do Entêrro


Reviveram a Semana Santa do Rio de Antigamente”, 1965, s/p.

Fonte: Acervo de Elder Passos de Camargo.

Não parece coincidência que a Cidade de Goiás passou a reviver as “suas”


tradições um ano depois das redescobertas culturais experimentadas pela cidade do Rio de
Janeiro, em 1965, ano da fundação da OVAT. Relembramos que neste mesmo período, o
177

grupo que compunha a recém-criada entidade dedicava-se às pesquisas186 e aos “levantamos


históricos”, os quais inspiraram Goiandira do Couto esboçar a estética dos croquis referentes à
Procissão do Fogaréu (goiana), conforme já explanamos. A retomada do passado vilaboense,
para se chegar ao futuro, muito se aproxima do que é detalhado na reportagem no fac-símile
da figura 24.
Acentuamos que diante da impossibilidade de transcrevê-la na íntegra, mas,
reconhecendo a sua relevância, destacamos as ideias centrais da reportagem. Lê-se:

O Rio reviveu, ontem e anteontem duas procissões tradicionalmente


incorporadas no seu calendário religioso, a dos Fogaréus – que há cem anos
não se realizava – e a do Entêrro, que levavam às ruas dezenas de milhares
de pessoas e se processavam à luz de tochas embebecidas em petróleo,
conduzidas por funcionários da Limpeza Urbana, com as ruas do centro da
cidade às escuras. As procissões foram prejudicadas, em parte, pelo diretor
do trânsito, Coronel Fontelele, que, à última hora, ordenou a inversão do
itinerário, que fora anunciado com vários dias de antecipação. (...) Na quinta
feira, cerca das 20 h e 30 m, saiu da igreja Nossa Senhora do Bom Sucesso,
em frente ao Ministério da Agricultura, a Procissão do Fogaréus. Mais do
que a do Encontro, a procissão não tem qualquer caráter litúrgico; fazendo
parte das tradições do Rio antigo, revivida agora pela Secretaria de Turismo.
Simbólicamente, lembra o episódio narrado nos Evangelhos da marcha dos
soldados romanos para prenderem Cristo. (...) abriram o cortejo, à frente da
Bandeira da Misericórdia, de 5 insígnias de episódios da Paixão de Cristo,
do quadro “Ecco Homo”, ladeados de 400 encapuzados de túnica negra e
grupos de farricoco, isto é, os antigos encarregados dos enterros da
Irmandade da Misericórdia (“O GLOBO”, 1965, s/p)187.

Semelhantemente, entende-se que o próximo documento visual (figura 25)


complementa entendimentos quando comparado às descrições transcritas da figura 24. Com
esse método, objetivamos sustentar as ilações em torno das características de
representatividade e inventividade constituintes nas celebrações da Semana Santa na Cidade
de Goiás, a partir dos anos de 1960, para fins turísticos.

186
O fato do “reavivamento” das tradições cariocas foi noticiado por diferentes jornais daquela época. O fac-
símile (figura 22) trata-se de um recorte específico do jornal “O Globo” de abril de 1965, preservado por Elder
Camargo de Passos. Contudo, em depoimento, ele cita outro periódico ratificando que o contato com os
discursos jornalísticos daquela época, indiscutivelmente, subsidiou o formato das representações evocadas para o
projeto de ressignificação cultural da Cidade de Goiás, na década de 1960. Vejamos: “Outra informação
importante foram as matérias publicadas no jornal “Correio da Manhã” [16/04/1965] que, ao descrever as
Comemorações do 4° Centenário da cidade do Rio de Janeiro, nos forneceram uma certa ideia para organizar a
Semana Santa de Goiás. (...) Lendo as reportagens eu vi que todas as cerimônias que eles faziam antigamente,
nós também possuíamos aqui” (BRITTO, 2008, p.203).
187
Transcrição parcial do documento da figura 22, Jornal “O Globo”. “Procissões dos Fogaréus e do Entêrro
Reviveram a Semana Santa do Rio de Antigamente”. Rio de Janeiro, 17 de abril de 1965. Fonte: Acervo de Elder
Camargo de Passos.
178

Sendo assim, a Igreja local, identificada com a proposta de um “Cristo


Libertador”, ressalvava as narrativas da Procissão do Fogaréu e outros cortejos administrados
pela OVAT188, não somente porque aludiam ao tradicional “Cristo Martirizado”; mas, por,
supostamente, utilizá-lo para escamotear o agenciamento desta e de outras representações
sacro-profanas para empreender o projeto de ressignificação cultural da Cidade de Goiás,
baseado em referências que remetem, de algum modo, ao passado colonial e,
consequentemente, aos legados do colonizador. Ademais, subentende-se que a existência de
uma orquestrada atuação cultural compelindo, paradoxalmente, entre as sutilezas da
triangulação - história, cultura e turismo -, uma elitização do patrimônio cultural vilaboense
através de lugares, pessoas e símbolos subjetivamente escolhidos pela OVAT189. Por se tratar
de uma instituição produtora de crenças, prosseguimos com o exercício hermenêutico que
conjuga o ver, para comparar e, finalmente, analisar o discurso que se revela. É de
fundamental importância observar o discurso visual que se segue como um todo, e, sobretudo,
nos detalhes, pois cada representação que compõe o cenário da rememoração constituinte
daqs práticas do catolicismo popular europeu, ao ser comparada à estética do cortejo que se
revive na Cidade de Goiás, na atualidade, possibilita-nos curiosas análises:

188
Recapitulamos que, no conjunto das ações da OVAT, relacionadas aos festejos populares da Semana Santa,
na Cidade de Goiás, estão a Procissão do Fogaréu (preparativos na quarta-feira de “Trevas” e a saída, à meia
noite, da quinta-feira das Endoenças) e a dramatização do Decendimento da Cruz (sexta-feira da Paixão),
conforme elenca o encarte alusivo ao quadragésimo aniversário da entidade (p.13). Cf. OVAT, 40 anos
Promovendo a Cultura e Resgatando as Tradições, 2005, (catálogo comemorativo).
189
Aventamos a hipótese de que a direção das análises tramadas por Delgado (2003) passou a ser concepções da
Igreja após a assunção do bispo libertário, Dom Tomás Balduíno, justificando os pontos de tensão ideológica-
cultural entre ambas as instituições. Para a autora: “(...) esse grupo se auto-representa como guardião da cultura
vilaboense e portador de virtudes que são compartilhadas por todos os membros e que os singulariza em relação
aos outros moradores da cidade, evocando o trabalho pioneiro realizado nas entidades culturais e o
pertencimento às famílias tradicionais da cidade, cujos antepassados se destacaram quer nas artes, quer na
política desde tempos remotos e cujos descendentes não abandonaram Goiás. O monopólio dos principais cargos
nas entidades culturais constitui estratégia fundamental para o exercício do poder simbólico que, na acepção de
Pierre Bourdieu, institui princípios de visão, divisão e classificação social. (...) Elder Camargo de Passos expõe
que o grupo sofre “oposição” e seus componentes são acusados de se comportarem como “donos” da cidade:
Esse grupo que também não é benquisto na cidade... tem a parte benquista, mas também tem a parte que não
gosta, que acha que nós queremos ser donos de tudo, queremos mandar em tudo. Por quê? Porque nós tempos
visão, nós tempos organização, muito serviço, arregaçamos as mangas e pegamos e fazemos. Agora, sempre tem
os que criticam e não realizam. Falar é fácil. Criticar é fácil [grifo da autora] (DELGADO, 2003, p.427-428)
179

Figura 25 - “...Y Mandó Azotarle”. Cartaz da Semana Santa de Granada, Espanha 2014.

Fonte: Acervo da OVAT.

A imagem da figura 25 comprova relativa influência do rito europeu, mediando


o “jogo” discursivo das utopias criadas pela OVAT, com relação às práticas e às memórias do
que se quer ou não preservar. Isso não quer dizer que as “tradições” representadas na
Procissão do Fogaréu tenham, de fato, rastros no século XVIII. Muito pelo contrário.
180

Segundo Hobasbawm e Ranger, “(...) não é necessário recuperar nem inventar tradições
quando os velhos usos ainda se conservam” (1997, p.16). Desse modo, é possível dizer que a
suposta tradição centenária vilaboense se enquadra nas representações reveladas pelas figuras
24 e 25. Entre rupturas e permanências, depreende-se que o processo de Invenção de
Tradições na Cidade de Goiás alicerçou-se em três bases fundamentais: na criatividade
estética de Goiandira do Couto, nos antecedentes coloniais da cidade e, sobretudo, no discurso
retórico propalado pela entidade guardiã das tradições vilaboenses. Esses indícios explicam o
protagonismo dos personagens encapuzados (farricocos) durante as celebrações da Paixão e
Morte de Cristo, em âmbito local.
Reexaminando a figura 25, nota-se que o papel central do cortejo em Granada é
ocupado pelo “Cristo Martirizado”. O guarda romano, à esquerda, compõe o cenário de
pompa, em torno da dor, de forma tão estática que quase se confunde com as esculturas em
tamanho real dispostas no altar suntuoso e aparentemente móvel. Sobre os farricocos, em
particular, observa-se que, mesmo ocupando o primeiro plano da imagem, o papel
desempenhado por eles, no conjunto da representação encenada, é de coadjuvante. Esse
sentido semântico-social do personagem coaduna às definições de Câmara Cascudo (1954),
no Dicionário do Folclore Brasileiro, que, por palavras, complementa sentidos a imagem em
análise (figura 25), ainda que se tratando de uma manifestação concernente às religiosidades
do mundo europeu:

Afastando o povo com matraca (...) seguiam as Procissões dos Passos. (...)
Esses encarregados de anunciar o desfile religioso ou defender a ordem das
filas contra a intrusão dos meninos e vadios sofriam ataques, pedradas,
obrigando as Irmandades a substituí-los, posteriormente, nas Procissões dos
Fogaréus ou dos Passos. Dizia-se também Farricoco aos irmãos condutores
de andores, desde que envergassem vestimenta típica, ainda corrente nas
procissões de Sevilha, de aparatosa impressão popular. (...) Tomava parte
das extintas procissões das cinzas, caminhando à sua frente, armado de um
comprido relho, com que ia fustigando o pessoal que impedia sua marcha
(CASCUDO, 1954, p. 257-258 e 471).

No caso da Cidade de Goiás, o lugar de centralidade não é ocupado pelo Cristo,


afirmaram os guardiões da OVAT. Mesmo assim, há inferência ao martírio. Provavelmente,
em virtude das tradições e, subjetivamente pela relevância ou peso da representação de Veiga
Valle, autor do “Cristo Flagelado”, no escopo institucional190. A referida obra é o objeto da

190
“Art. 23° - Fica instituído como patrono da OVAT o artista José Joaquim da Veiga Valle (...)”. Estatuto da
OVAT Livro n° A-1, fl. 04, 1978. Fonte: TABELIONATO 2º OFÍCIO.
181

perseguição dos farricocos por um itinerário que contempla os principais monumentos sacros
da paisagem urbana colonial vilaboense191.
Destarte, diferentemente do que apresentou (Britto 2008), a representação
desses personagens na Procissão do Fogaréu, na Cidade de Goiás, assemelha-se aos soldados
romanos. Embora, nas releituras clássicas desse episódio emblemático para a cultura cristã, os
militares romanos “vestiam uma espécie de saia curta, com coletes de armaduras e escudo e
lanças nas mãos” (CARNEIRO, 2008, p.101). Todavia, pelo que temos visto até aqui, a
Cidade de Goiás não prima exatamente pelo clássico, e sim, pelo potencial inventivo, criativo
e retórico das suas tradições. Desse modo, a inquietude é respondida pela própria autora. E,
assessorada pelas revelações da imagem na figura 26, configura visual e textualmente a
harmonia nas afirmativas dos guardiões, Elder Passos e Goiandira do Couto, que elegeram em
seus depoimentos o farricoco como símbolo da cidade “berço da cultura goiana”.

A imagem do farricoco é o destaque da Procissão do Fogaréu. Nem a beleza


das tochas na escuridão, nem os toques dos tambores ou do clarim, nem a
dramatização, superam a marcante presença dos farricocos. As vestimentas
dos farricocos são espécies de túnicas de diversas cores, com apenas uma
branca, com faixas largas de cor bege na cintura, e capuzes em forma de
cone com babados até os ombros da mesma cor da túnica (CARNEIRO,
2008, p.100).

Portanto, nessa mesma direção, as presenças na figura 26 endossam as palavras


sobreditas pela pesquisadora. Os discursos unificam-se com a mútua leitura e expressão.

191
“O Fogaréu inicia-se às 24h com a cidade às escuras. Os protagonistas são os farricocos e o povo, que saem,
silenciosamente, ao som de tambores e em passos rápidos com tochas nas mãos. Após o cântico do Moteto
Exeamus, os farricocos e os acompanhantes partem da Igreja da Boa Morte em direção à Igreja do Rosário, que
simboliza o cenáculo, local onde se realizou a Santa Ceia do Senhor. Na Igreja do Rosário, param e encenam a
procura por Jesus. Canta-se o Moteto Domine e há um pequeno diálogo entre o dono do cenáculo (hospedeiro) e
os farricocos. (...) Depois desse diálogo, continuam o trajeto, iluminados apenas pelas tochas, para a Igreja de
São Francisco que representa o Monte das Oliveiras onde é feita a prisão do Cristo. Ao toque do clarín e
tambores, um farricoco levanta o estandarte de linho no qual o corpo açoitado de Cristo foi pintado (...). Após
um breve silêncio, inicia-se a homilia do bispo, que dura aproximadamente trinta minutos. Em seguida a
Procissão parte para a Igreja da Boa Morte [local do seu começo], que representa o lugar do julgamento de
Cristo pelos sumos sacerdotes Caifás e Anás. Tal Igreja é a última instância da Procissão” (CARNEIRO, 2008,
p.94-95). Cf. (BRITTO, 200).
182

Figura 26 - A Perseguição dos Farricocos pelas ruas da Cidade de Goiás, 2012.

Foto: Guilherme Antônio de Siqueira. Fonte: Acervo do fotógrafo.

É fácil perceber que a multifacetada identidade do farricoco vilaboense


redunda, de fato, em “mistério”, assim como definiu Goiandira do Couto. Ninguém pode ser
mais representatividade que a artista para deliberar sobre sua arte.
A fotografia (figura 26) revela os principais recursos do estilo artístico da
notável guardiã que reúne cor, luz, brilho e sombras para representar, subjetivamente, o vasto
repertório das tradições do berço. Esses contrastes como ferramentas essenciais do enredo
narram um projeto arrojado que, semelhantemente aos farricocos da figura 26, se direcionam
a consagração de seus fins: alcançar o objeto desejado, isto é, o reconhecimento público da
Cidade de Goiás com propriedades adequadas para extrapolar fronteiras culturais e,
sobretudo, espaciais. Esse simbolismo materializa-se e unifica-se no ponto alto da celebração
da Procissão do Fogaréu, a prisão do Cristo, capturado pelas visualidades que discursam neste
mesmo tom na figura 27 adiante. É necessário parar, olhar, ouvir e sentir “como parte viva de
nossa realidade social”192, sustenta Meneses (2003, p.29).

192
Preocupados em não incorrer no equívoco metodológico da utilização de frases soltas, atribuídas aos teóricos
escolhidos para dialogar com este estudo, optamos por expor o contexto das análises do autor correspondente à
afirmação em destaque cuja problematização refere-se ao uso, à contingência e à apropriação científica do
discurso visual. “(...) ver com restrições a proposta de desconsiderar as imagens como testemunho histórico, pois
183

Nesse sentido, pode-se ver na imagem que se segue a representação de como os


modos de consenso entre guardiões vilaboenses preencheram o vácuo dos dissensos,
instalados com a transferência da capital, em 1937, utilizando-se das práticas de Invenção de
Tradições para recuperar, de algum modo, a condição de status declinada à Cidade de Goiás
desde a referida data.

Figura 27 - Os Farricocos e o “Cristo Flagelado”, 2012.

Foto: Guilherme Antônio de Siqueira. Fonte: acervo do fotógrafo.

elas seriam a própria história, e, em lugar de alternativa excludente, propor a manutenção de ambas mascara a
necessidade de tomar as coisas visuais antes de mais nada como coisas, que podem prestar-se a diversíssimos
usos — entre os quais os documentais, conforme as situações e não por essência ou programa original. Também
aos objetos visuais não convém a ideia positivista de documento (ainda que de origem): documento é aquilo
capaz de fornecer informações a uma questão do observador, qualquer que seja sua natureza tipológica, material
ou funcional. É preferível, portanto, considerar a fotografia (e as imagens em geral) como parte viva de nossa
realidade social. Vivemos a imagem em nosso cotidiano, em várias dimensões, usos e funções” (MENESES,
2003, p.29).
184

O simbolismo na imagem anterior (figura 27) mostra que tanto os seres míticos
das sombras, quanto os guardiões da OVAT, carregam um troféu. Finalmente, o rito atinge o
seu clímax, a Cidade de Goiás reunifica-se no tempo e no espaço sob o aporte das suas
tradições, e a arte rege sinfonia do culto às origens. Contemplamos o encontro do pilar de
pedra - Goiandira do Couto - personificado através de sua criação, o farricoco; com um dos
representantes dos pilares da tradição - Veiga Valle - evocado na figura do “Cristo
Flagelado”. Indiscutivelmente, é um momento emblemático para OVAT, cujas estruturas
cimentam-se nessas bases acampadas nos territórios da cultura, marcados e demarcados por
disputas e relações de poder. Evidenciam-se as razões pelas quais os idealizadores da
Procissão do Fogaréu reiteraram que não se trata de um ato religioso; e sim, de um
“espetáculo” que o público prestigia “para assistir à beleza da cerimônia: a beleza do fogo, as
pessoas correndo, os encapuzados” (COUTO apud BRITTO, 2008, p.207), na cidade que,
nesta hora, torna-se a ideal.
A representação de si pelo outro, ou seja, a recepção da imagem pública
institucional fortaleceu os novos intentos patenteados pelo grupo que reúne, em torno de seus
membros, os papéis de guardiões, produtores e gestores da cultura vilaboense. É importante
frisar, que mesmo diante dos abalos com a Igreja, a relação de coalizão institucional manteve-
se fluida e consolidada tanto com o poder público, em virtude dos dividendos trazidos pelo
turismo, quanto com o DPAHN/IPHAN, no que se refere à implementação das políticas
públicas relativas ao patrimônio cultural (material e imaterial), consoantes aos interesses da
“coletividade”193.
Pensando nessa direção, compreende-se que, no “jogo” cultural tramado pela
OVAT, o ápice de uma cena inventada não traduz, de fato, o encerramento dela. Mesmo
porque, é no hiato de um desfecho que se (re)articulam recomeços.
Atentos a esses valores, vislumbra-se para as discussões seguintes,
aprofundamentos nas ações institucionais da OVAT, localizadas em um arrojado
empreendimento e, para explicá-lo, lançaremos mão do conceito, projeto de futuro, o qual

193
Delgado (2003) aborda as relações discursivas do patrimônio com os novos rumos da política oficial (local e
nacional) entrecruzada às tendências do turismo cultural desbordadas nos primeiros anos da década de 1970. Já
expusemos os meandros pelos quais estabeleceu-se essa política na Cidade de Goiás. Porém, entendendo a
relevância destas transformações, mesmo diante da resistência da Igreja, apresentamos as diretrizes do poder
público federal que, a nosso ver, reforçaram o poder simbólico conferido a OVAT, encabeçando os rumos
futuros da cultura na Cidade de Goiás. Eis um fragmento do documento: “O rápido desenvolvimento urbanístico
e viário do país, sua crescente industrialização e, sobretudo, a valorização imobiliária daí decorrente impuseram
a implantação de medidas enérgicas e abrangentes. Procura-se, a partir de então, conciliar a preservação dos
valores tradicionais com o desenvolvimento econômico das regiões. (...) A industrialização de regiões até
então abandonadas e a abertura de estradas, facilitando acesso às áreas afastadas, provocam demanda
populacional e difusão do turismo” (MEC-SPHAN/Pró-Memória (1980) apud DELGADO, 2003, p.438).
185

fora formulado por Argan (1995, p.23), para discorrer sobre a fabricação, no presente, a
experiência do passado, intuindo legitimar, nas cidades - ou frações dela -, um valor
permanente. Todavia, para chegarmos a estes horizontes devemos perpassar novamente pela
dimensão da arte produzida por Goiandira do Couto. A partir de 1967, a artista-guardiã inicia
sua segunda fase artística, na qual o uso da técnica com areia e cola à base d´agua consagrou-
lhe uma carreira internacional.
Pintando a paisagem urbana colonial da cidade extraída da junção dos pilares
de pedra e da tradição, Goiandira do Couto projetou-se, cultural e artisticamente, ao mesmo
tempo em que edificou as estruturas pictóricas para a sequência das inventividades sobre a
Cidade de Goiás, também, calcadas nos pilares de areia. Afinal, os horizontes urbanos da
Cidade de Goiás, idealizados pictoricamente pela artista, correspondem aos limites
delimitados pela coalizão do poder cultural local para empreender o referido projeto de
futuro, ou seja, a patrimonialização mundial desta urbe, ocorrido em 2001. Embora
circunscrita ao perímetro urbano proveniente do passado histórico colonial vilaboense, é uma
paisagem urbana cognoscível aos guardiões das tradições como o berço cultural do Estado de
Goiás.
186

CAPÍTULO III

PILARES DE AREIA: A Constituição Imagética da Cidade-Ideal

“A vida é boa, nós podemos fazê-la sempre


melhor e o melhor da vida é o trabalho. É o que
você faz, operária nobre da arte, dando voz as
areias perdidas da Serra Dourada, hoje,
supervalorizadas no seu engenho e arte. Pelas
suas mãos artistas e dedos privilegiados, você
manda no seu poder artístico o nome da nossa
velha Goiás aos recantos mais longínquos da
terra”.
(Cora Coralina)

Escrever sobre cidades é de fato um ideal, assevera Pesavento (2007). Percebê-


la pelo binômio do visível e do sensível, ainda segundo a autora, requer dos pesquisadores
dedicação a esta temática acautelando-se, primeiramente, de indagar: o que perguntar
exatamente? As problemáticas suscitadas no subitem anterior, cujos desdobramentos
mantiveram-se acoplados ao processo de ressignificação cultural da Cidade de Goiás,
mostraram-nos que OVAT, ao produzir um ethos inventado, à luz das tradições locais,
reconfigurou crenças sobre o passado, no presente, a fim de conjecturar o futuro
hipoteticamente enviesado aos discursos visuais idealizados por Goiandira do Couto. É
objetivo deste capítulo, analisar a cidade representada nas telas da artista-guardiã, como ela a
interpreta, o que, mostra, enfatiza ou esconde. Em outras palavras, é (re)discutir a estética, a
arte da protagonista a partir das representação de uma cidade-ideal em óleo, mas,
principalmente, em areia.
Explanar sobre o processo de Invenção das Tradições, conforme o fizemos no
capítulo anterior, orientou o caminho que justifica o presente avanço a uma discussão
relacional entre as obras pictóricas de caráter verossímil à paisagem urbana colonial da
Cidade de Goiás, idealizadas pela artista-guardiã, tanto em óleo sobre tela quanto em areia
sobre fibra de madeira, produções correspondentes à primeira e à segunda fase artística da
protagonista, com o título de Patrimônio Histórico Mundial logrado pela cidade no ano de
187

2001 através da UNESCO194. Hipoteticamente, compreendemos que assim como ocorreu na


ressignificação cultural da Cidade de Goiás, entre as décadas de anos de 1940 a 1960, a arte
pictórica de Goiandira do Couto norteou, igualmente, os rumos e crenças de uma cidade-ideal
a ser patrimonializada em princípios do século XXI. Metodologicamente buscamos inquirir a
produção artística de Goiandira do Couto para confrontá-la como outros discursos visuais e
artísticos a fim de identificar em que medida as linguagens trazidas pela artista-artesã sobre a
sua cidade-ideal influenciaram na escolha do que foi ou não patrimonializado na Cidade de
Goiás no recente entresséculo. Por isso, faz-se necessário invetigação minuciosa a respeito da
diversidade de tons e semitons que figuram o jogo de luz e sombras existente no campo das
visualidades.
Esses princípios, evidenciam que os estudos culturais, ao se dedicarem à
temática das cidades, não negligenciaram a dimensão visual e muito menos as revelações
históricas que emanam desses documentos. Este arcabouço teórico nos permite extrair
algumas respostas sobre as práticas humanas de idealização da paisagem. Na Cidade de
Goiás, essa tendência se complexifica porque a relação indissociável com o passado é
exaltada nos termos das recordações culturais baseadas numa perspectiva oficial, sendo,
algumas delas, construídas, conforme vimos.
Desse modo, cabe ao historiador cultural da arte manter-se sensível aos
interditos metafóricos, localizados entre a utopia e a realidade; pois, a percepção do artista, de
modo geral, é, por natureza, impregnada de subjetivos significados. As imagens que
representam a paisagem urbana, colonial ou não, fertilizam a refundação contínua das cidades
ao reconstruir perspectivas idealizadoras dos espaços, das formas e da ênfase dada ao suporte
de símbolos e narrativas implícitas de comunicação histórico-ideológicas, repousamos em
Argan (1995, p.108). O autor acrescenta, ainda, que a estética idealista da cidade retrata o
caratér autoral das produções de imagens urbanas, mas “a cidade real jamais corresponde às
formas idênticas às dos modelos ideias” (p.75). Mesmo porque, as idealizações partem do
pressuposto da somatória dos elementos individuais, culturais e oficiais que se reconfiguram

194
“A UNESCO é um organismo integrado na Organização das Nações Unidas (ONU), criado, em 1946, a fim
de promover a paz mundial, através da cultura, educação, comunicação, as ciências naturais e as ciências sociais.
Os principais objetivos da UNESCO são: globalizar a educação; fomentar a paz, através do ponto anterior;
promover a livre circulação de informação entre os países e a liberdade de imprensa; definir e proteger o
Patrimônio da Humanidade Cultural ou Natural (conceito estabelecido em 1972 e que entrou em vigor em 1975);
e defender a expressão das identidades culturais. As questões às quais se dá prioridade são a educação, o
desenvolvimento, a urbanização, a juventude, a população, os direitos humanos, a igualdade da mulher, a
democracia e a paz”. Cf. Disponível em: <http://www.infoescola/com/geografia/unesco>.
Acesso em: 17 jan. 2015.
188

na força simbólica que a arte passa a ter na representação do real em constante (re)
construção.
A rigor, observando essas complexas dobras, é possível constarar as
interpretações artísticas se distinguem do real e do ideal, da mesma maneira que o mundo do
pensamento se diferencia do mundo dos fatos. Não obstante, elas são constatações são
provenientes das criações humanas, sendo, portanto, motivos de inquietação do historiador
cultural da arte (ARGAN, 1995, p.73). Ainda segundo as definições do autor (1995), a cidade
ideal, “mais que um modelo propriamente dito, é um módulo para o qual sempre é possível
encontrar múltiplos e submúltiplos que modifiquem sua medida, mas não a sua substância;
(...) sempre é possível desenhar o mesmo esquema numa dimensão maior ou menor” (p.74).
Mas, o que vem a ser a substância de qualquer cidade? Não importa a identidade, se ideal,
real, simbólica ou pragmática, a ‘substância’ que qualifica o sentido de ser cidade localiza-se
no âmbito das representações sociais. Elas estariam visíveis nas representações urbanas da
cidade em Goiandira do Couto ou suas obras se tratam de um vocativo às oficialidades?
O conceito de lugares de memória pode ser útil na tarefa de repensar a função
do centro histórico vilaboense a partir das criações artistico-culturias, sejam elas de cunho
material ou imaterial, consignadas ao modos artísticos como Goiandira do Couto pousou o seu
olhar guadião sobre a cidade e suas tradições. Subjetivamente, a retórica desses discursos nos
aproximam das teorizações de Nora (1993), assim definidas:

Lugares de memória, são antes de tudo, restos. A forma extrema onde


subsiste a consciência comemorativa numa história que a chama porque ela a
ignora. Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não existe
memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter os
aniversários, organizar as celebrações, pronunciar as honras fúnebres,
estabelecer contratos, porque estas operações não são naturais (...). Se
vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam
inúteis. E se em compensação, a história não se apoderasse deles para
deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam
lugares de memória. É este vai-e-vem que os constitui: momentos de história
arrancados do movimento de história, mas que lhe são devolvidos (NORA,
1993, p.12-13).

Nesta direção, aduzimos que a narrativa visual de Goiandira do Couto por


representar a monumentalidade do passado colonial refundou, no presente, o
preservacionismo estético-cultural inventando uma cidade ideal, pautada em possíveis
nuances de invisibilidade, as quais primaram pela estandartização das aparências do poder
colonial sob a ótica da inalterabilidade daqueles tempos. A identidade europeia, avoluma-se
189

por meio monumentos históricos edificados no passado colonial, na extensão do eixo que
compreende o Largo do Rosário ao Largo do Chafariz. As idealizações de Goiandira do
Couto, vistas pelo olhar guardião, transformaram o extensão deste eixo num lugar intacto
sugerindo subjetivos anacronismos visuais. Esta série de imagens concernentes à primeira
(óleo sobre tela -1933-1967) e à segunda fase artística da pintora (areia sobre fibra de madeira
- 1967-2004), expressam narrativas que mais se parecem apologias urbanas ao colonizador. A
escolha do métódo comparado com outras produções artísticas que, de igual modo inspiram-
se na paisagem urbana colonial vilaboense, visa rastrear revelações que nos possibilite
confirmar (ou não) as hipóteses aqui levantadas.
No entanto, cabe-nos perguntar: onde queremos chegar com essa discussão?
Ora, as expressões pictóricas de Goiandira do Couto não foram imaginadas aleatoriamente.
Revisitando os estudos sobre a formação urbana da Cidade de Goiás renovamos as condições
para sentir, transitar, observar e, sobretudo, diagnosticar as problemáticas oriundas da
idealização da paisagem pictórica vilaboense, à medida que avançamos pelos itinerários de
reconstrução desse passado em diálogo com o presente.
Os jogos culturais tramados no espaço central da Cidade de Goiás
consubstanciam-se, pensamos nós, nas telas da artista-guardiã à medida que o sentido de
valorização e de preservação deste cenário de sociabilidades exponham significados abstratos
sutilmente diluídos entre cores e texturas que privilegiam os lugares de memória de uma
cidade-ideal praticamente inalterada pelo tempo. Os valores históricos e simbólicos arraigados
nesse circuito provêm do empoderamento da paisagem pela presença das instituições
políticas, religiosas e culturais conforme a ideologia de elitização do espaço, central desde os
primórdios oficiais. Coube à elite cultural do século XX, ao prosseguir com o complexo e
amplo projeto de ressignificação cultural da Cidade de Goiás, reapropriar-se do discurso
preservacionista e tradicionalista contido das visualidades urbanas de Goiandira do Couto,
cuja perspectiva parece refundar, artisticamente, origens urbanas sob o ponto de vista dos
pilares que sustentam as (re)criações oficiais do passado na atualidade. No entanto, para
compreendermos melhor as escolhas, os referenciais de pertencimento, os juízos estéticos e as
possíveis intencionalidades advindas da idealização da paisagem urbana vilaboense, em
Goiandira do Couto, buscamos em Argan (1995), uma exposição que nos encaminha nesta
direção:

Ao dizer que a “artisticidade” da arte forma um só corpo com a sua


historicidade, afirma-se a existência de uma solidariedade de um princípio
190

entre a ação artística e a ação histórica; e a raíz comum é, evidentemente, a


consciência do valor da ação humana. Uma ação que determina o valor é
uma ação dotada de uma finalidade e cujo processo se controla: realiza-se no
presente, mas pressupõe a experiência do passado e um projeto de futuro. A
ação artística é uma ação que pressupõe um projeto (...) e o projeto é uma
finalidade que, realizando-se no presente, assegura à ação um valor
permanente (ARGAN, 1995, p.23).

Reafirmamos que, de fato, existiu um projeto. Compreendemos que o


mencionado tombamento histórico-mundial da Cidade de Goiás, em 2001, articula-se
diretamente com o projeto de futuro teorizado pelo autor. Por isso, quando optamos por
repensar a construção da cidade em Goiandira do Couto tinhamos clareza de que a discusssão
encaminhar-se-ia, diante desta prerrogativa, observando dois aspectos cruciais. Primeiro,
como o reacendimento da carreira artística da protagonista em sua segunda fase reconfigurou
os horizontes de sua vida pública, e como esses vetores impactaram diretamente no
(re)conhecimento internacional da Cidade de Goiás, através de suas obras com areia, antes
mesmo da oficialização do notável título ao florescer do século XXI. Segundo, como a
interlocução entre o passado colonial e a cidade-ideal veio ao encontro das apreciações
referentes ao trâmite burocrático-administrativo, forjado em jogos de poder pelos quais as
escolhas materiais e imateriais constituintes do processo de incrição da Cidade de Goiás como
bem cultural mundial (questões a serem pormenorizadas no capítulo seguinte), aspectos que,
por sua vez, dão-nos cabedal para afirmar que a retórica das tradições prevaleceram sobre esse
título histórico e político195.

195
No conhecido “Dossiê de Goiás”, documento responsável pela inscrição da Cidade de Goiás na lista do
patrimônio da humanidade, proposto pelas instituições civis e governamentais envolvidas no tombamento em
2001, deu voz e visibilizou o marco oficial da colonização para situar o contexto que levaram à ocupação e
desenvolvimento urbano local. Destacamos no discurso o nexo colonizador do século XVIII com a Marcha para
Oeste ocorrido no século XX como forma de demostrar o ciclo do poder colonial no interior do Brasil. Os
primeiros ocupantes são quase totalmente esquecidos. Baseados nessas explicações destacamos um fragmento
representativo deste documento, o qual corrobora esta reflexão. “A construção do território brasileiro foi
realizada a partir do espaço delimitado pela costa do Atlântico e pela linha do Tratado de Tordesilhas e
progressivamente estendida até os rios Prata e Paraguai, culminando com a ocupação do exterior. (...) Os
primeiros responsáveis por essa construção foram os bandeirantes paulistas que, em busca do ouro,
ocuparam o que constitui hoje os Estados de Goiás e Tocantins, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Essa difícil
marcha para o coração do país foi concluída com a instalação da capital federal em Brasília, em 21 de
abril de 1960. Das duas primeiras capitais que marcaram o começo desta aventura, Cuiabá (Mato Grosso),
perto do centro geográfico do Brasil, apenas Goiás conservou as suas estruturas urbanas e uma arquitetura que
remontam ao século XVIII, e a paisagem que cerca permaneceu idêntica àquela encontrada pelos bandeirantes.
Goiás é assim a última testemunha desse capítulo fundamental da História do Brasil. (...) é o último
exemplo de ocupação do interior do Brasil conforme praticado nos séculos XVIII e XIX. Exemplo frágil
que começa a se tornar vulnerável na medida em que a cidade está começando a retomar o seu desenvolvimento.
Exemplo admirável na medida em que a paisagem que a rodeia permaneceu quase inalterada” (p.02-05). CD
ROOM DO “DOSSIÊ DE GOIÁS”. SESSÃO: Formulário da UNESCO: “Justificação de Inscrição”; 5 ª edição,
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2010. (grifo nosso)
191

Esses meandros, aclaram a representatividade institucional e discursiva


daqueles que controlam a cultura, as artes e, sobretudo, os que fabricam as crenças na Cidade
de Goiás. Face as suspeitas pretendemos investigar se os caminhos que levaram à aquisição
desse importante reconhecimento histórico-cultural estão, subjetivamente, atrelados à tônica
visual de Goiandira do Couto que recontou o passado em suas telas por regimes de
historicidade não necessariamente falsos, mas, hipotéticos, parciais, legalistas, “invisíveis”e
memorialistas. Enfim, tradicionais.
A cidade-ideal de Goiandira do Couto, ao soerguer monumentos em areia,
solitários e imponentes, ativou a lembrança de uma memória urbana regida pelo controle do
passado colonial; ideia retransmitida no conceito de lugares de memória constituído de
significação simbólica de sua própria memória e identidade individual. Segundo Nora (1993,
p.23), a paisagem memorial recoloca os fundadores em seus lugares e nos impõe viver
submetidos ao seu ritmo. Portanto, a estética elitizada da cidade-ideal, consolidou o poder
cultural, representado pelos guardiões das tradições vilaboenses à medida em que as ações
voltadas à “preservar e soerguer o seu patrimônio cultural, artístico e
tradicional”(ESTATUTO da OVAT, Cap. I, art. 1°, 1978, fl. 01)196, de algum modo,
consagrou lugares de legítimo reconhecimento e visíveis hiatos que sugestionam a
unilateralidade do discurso histórico. Sendo Goiás, a cidade-patrimônio, o assunto do próximo
capítulo desta tese, dedicamos essa sessão à compreensão dos interditos na paisagem urbana
da cidade-ideal imaginada por Goiandira do Couto.
Argan (1995), ao definir a cidade-ideal afirmou existir, nessas imagens,
modelos múltiplos e submúltiplos que, na maioria da vezes, não seguem regras contínuas;
razão pela qual enxergamos, nos traços descontínuos e inalterados das produções de
Goiandira do Couto, indícios da (re)criação subjetiva de uma paisagem urbana que
eventualmente cristalizou-se no tempo. O foco do seu olhar nos lugares de memória, espaços
eleitos como símbolos das tradições e do poder reinterpretado pela elite cultural, além de
enaltecer o passado, induz o observador à crença de que a cidade idealizada possa ser a
expressão da realidade que existe no presente. O dialogo das telas da artista-guardiã com
outras criações artísticas que lhes são contemporâneas, repensa os regimes da historicidade
urbana que se presentificaram noutras criações artisticas que, também, elegeram a paisagem
vilaboense como o centro reiterado das suas idealizações visuais. Sobre essas variações
representativas da cidade e do tempo, Pesavento (2008) instrui:

196
Conferir no anexo I, Estatuto da OVAT. Livro n° A-1, fl. 01, 1978. Fonte: TABELIONATO 2º OFÍCIO.
192

O resgate do passado de uma cidade contido nos centros urbanos implica


lidar com vários tempos: o da cidade que se vê e a da que não se vê, oculta,
esquecida; o tempo que passa e o tempo que não passa, do qual é resultado o
resto que fica para ser mostrado; o tempo da cidade que se quer, dos desejos,
das utopias perdidas dos projetos não realizados, e o da cidade que se tem,
resultante de fracassos e vitórias. Destes tempos, o centro urbano é como
uma vitrine , um microcosmo do tempo que passou, mas que nem sempre se
deixa ver. Destas temporalidades o tempo mais difícil é o do esquecimento.
Tempo que finge não ter existido, soterrando as lembranças (PESAVENTO,
2008, p.06).

Nota-se que as diretrizes da autora estimula a busca de respostas aos


estranhamentos quanto aos rastros de invisiblidade e a inalterabilidade que a centralidade
urbana, em Goiandira do Couto, nos causam. Preliminarmente discutiremos sobre os aspectos
teóricos que se avizinham da compreensão da arte como manifestação do pensamento. As
imagens podem ser concebidas como reflexões sobre o mundo porque constroem subjetivas
camadas de verdades ao enunuciá-lo. O diálogo com os historiadores da arte, Jorge Coli
(2008) e Georges Didi-Huberman (2013), inclusive, garantirá a cientificidade necessária às
exposições historiográficas dos próximos subitens desse capítulo que se encaminhará
paralelamente às discussões sobre a segunda fase técnico-artística de Goiandira do Couto,
ocorrida em 1967, e o impacto desta reinvenção de si na sua trajetória pública que, até esse
período, estivera restrita ao âmbito local e regional. A partir do paradigma demarcado pelo
encontro com as areias multicoloridas a visibilidade da artista, bem como da cidade
representada por ela, projetou-se internacionalmente.
Perante esse acontecimento, conjecturamos que a acepção do olhar guardião,
que paira nas produções artísticas da referida pintora, norteou os “novos”197 alvos da política-
cultural empreendida na Cidade de Goiás, desde o advento dos anos de 1960, manteve-se
encaminhada pela triangulação: história, turismo e cultura entre invenção das tradições. Esta
proposta conciliou os interesses da OVAT e demais instituições público-locais ligadas à
cultura, conforme problematizamos no capítulo anterior. Finalmente, à guisa de conclusão do
presente, empreenderemos esforços no estudo comparado entre algumas produções em óleo e
areia de Goiandira do Couto com outras visões de cidade-ideal inspiradas, também, na antiga
capital do Estado de Goiás, objetivando certificar (ou não) algumas das hipóteses
preliminarmente apresentadas.

197
Apropriamo-nos deste termo relacionando-o ao projeto de futuro, categoria concebida por Argan (1995, p.
23), para nos referir à fabricação e invenção do passado vilaboense, entre 1918 (implantação da Cruz do
Anhanguera) e 1965 (criação da OVAT e, a partir dela, o Fogaréu), aspectos que, a nosso ver, engendraram a
versão histórica e alegórica tradicionalista que fora patrimonializada em 2001.
193

Reafirmamos que o intuito é aferir em que medida a arte preservacionista, suas


subjetividades e o protagonismo cultural da referida artista incluíram-se na produção das
crenças materiais e imateriais que fundamentaram o discurso convencionado como “Dossiê
de Goiás”, documento considerado uma radiografia da historicidade urbana vilaboense. No
entanto, indagamos: trata-se de uma imagem cultural verossímil? A resposta não é tão
simples. Para entendê-la, propomo-nos reacender esse debate pousando os olhos, mais uma
vez, nas digitais deixadas por Goiandira do Couto nesta recente versão oficial, (re)contada
segundo as elites, sobre a história, a cultura e as tradições da Cidade de Goiás possibilitou-lhe
o acesso ao seleto grupos das cidades reconhecidas como “Patrimônio Histórico da
Humanidade”.

4.1 Imagens Como Pensamento: releituras teóricas

Estamos sempre nos movendo de um lugar para o outro. Acompanhando o


registro desse processo humano, descobrimos, identificamos e visualizamos imagens deixadas
no tempo. Elas aparecem entre os principais recursos de linguagem utilizados para transmitir
intenções, ideias e práticas, que, por sua vez, passaram a ser entendidas como emissoras e
recpetoras de conhecimento.
Estes aspectos levantados, relembram que a “crise dos paradigmas” da história,
ocorrida mais precisamente ao final da década de 1980, ampliou o campo da ciência histórica
para o enfoque cultural permitindo com que as imagens, até então, restritas ao campo da arte,
assumissem lugar de testemunhas do tempo consignadas ao campo epistemológico da
representação. O historiador que, também, de modo representativo narra o passado, encontrou
nas sensibilidades desses documentos frestas para formular interpretações verossímeis acerca
do real acumulado no tempo. Apropriar das fontes visuais subentende que a intenção é dar
sentido ao mundo por meio de “uma representação que resgata representações, que se
incumbe de construir uma representação sobre o já representado” (PESAVENTO, 2005,
p.43). Sinteticamente, estamos lidando com veículos portadores de sistemas simbólicos e
sentidos polissêmicos, que requerem do historiador cultural astúcia na observação dos
detalhes mesmo que eles estejam fragmentados, lacunados ou inexatos. Tais características
devem ser vistas como aberturas para o (re)imaginar.
Seguindo essa direção, o texto de Coli (2008), História da Arte do século XIX:
revisões e abordagens, pauta-se no princípio de que a arte é, sumultaneamente, forma e
pensamento. Não importa a aparência ou estilo (quadros ou escultura), o pensador defende
194

que a principal materialidade de uma obra de arte está nos “pensamentos” condensados
durante o processo de criação do artista que, por sua vez, é reponsável por introduzir no
mundo cultural um ser pensante e, portanto, relativamente autônomo em relação ao seu
próprio criador (p.19). Ainda segundo a sua explanação, a representação do pensamento
material e objetivado do artista possibilitou a obra de arte ascender da condição de coisa para
tornar-se sujeita; razão pela qual exige dos estudiosos a utilização de recursos sofisticados
quando o assunto se trata do diálogo científico.
Vale a pena pontuar, ainda, que mesmo sendo testemunhas quase autônomas
em relação ao seu próprio criador, não podemos nos esquecer de que as produções artísticas
estão/são carregadas de pensamentos genéricos comunicados, na maioria das vezes, nas
particularidades que individualizam cada obra (p.20). Apesar de consideradas uma fusão
material e orgânica do criador na criação, Coli (2008) postula que, assumindo o papel de
personagem nuclear nos estudos culturais, a comunicação dos dados biográficos do criador,
por exemplo, se justificam “(...) para compreendermos a gênese da obra. Mas, passado esse
ponto, a obra começa a falar por si” (COLI, 2008, p.20). Por isso, ao serem arroladas como
testemunhas da história, as obras de arte - os registros visuais como um todo - exigem do
historiador prévia formulação de conceitos e rigorosa definição de métodos de análises para
finalmente vir a depor em favor da compreensão do que está culturalmente nelas implícito,
assegura Coli (2008, p.19). Afinal, trata-se de objetos sujeitificados justamente porque são
dotados desta ‘substância’.
Nota-se ainda a preocupação do autor em reiterar que a existência de uma obra
situa-se paralelamente ao mundo da experiência porque elas se encontram amalgamadas às
escolhas do artista, à função de receptáculo dos complementos emitidos pelo expectador e,
sobretudo, ao acúmulo de conhecimento e memórias que culminam “em processos que
escapam da solidez ‘real’ para alcançar uma intensidade etéria” (COLI, 2008, p.24). Tais
motivos chamam a atenção sobre a desenvoltura de Goiandira do Couto ao “dominar” a
plasticidade do tempo que reside em suas telas. Independente do uso da técnica - se tintas em
tom pastel ou areias multicoloridas - temos a impressão de que somos projetados para um
cenário cujo mimetismo flerta com as sensibilidades do passado tradicional vivido na antiga
Vila Boa e que, em parte, sobrevivem na Cidade de Goiás seja do ponto de vista material - os
monumentos e a arquitetura colonial sobrevivente - ou na cultura imaterial (re)inventada a
partir das ideologias e das práticas culturais engendradas pela OVAT. Vê-se que as obras da
artista-guardiã não se resumem no que ela gostaria que fosse, mas o que fizeram dela a partir
do momento em que foram apropriadas.
195

No sentido de aprimorar as ilações apresentadas, manteremos o fulcro nas


ponderações do eminente teórico, objetivando melhor compreensão do “jogo” estético e
temporal idealizado por Goiandira do Couto e que, supostamente, passou a ser um
pensamento genérico, materializado na cidade do passado, pelos guardiões das tradições
vilaboenses, com a finalidade de reestruturar o projeto de futuro. Acreditamos que a presente
hipótese encaminha-se no lastro da seguinte perspectiva:

(...) não existe tábula rasa em artes. (...) Os historiadores da arte costumam
dizer que é preciso treinar o olho. Isso significa incorporar um saber, sempre
silencioso, intuitivo capaz de captar o que há de comum entre as formas. O
processo singular, próprio do artista, se reitera no conjunto coletivo das
produções artísticas. Um dos grandes prazeres dos historiadores da arte é
descobrir as imagens renascendo dentro de outras imagens, tomando novos
sentidos, ressuscitando o mesmo para se transformarem em outro (COLI,
2008, p.21-22).

Com base nessas reflexões, pretendemos nos distanciar de uma percepção


estreita sobre a produção e a circulação das obras pictóricas de Goiandira do Couto, tendo em
vista os prováveis enlaces com os diversos significados do processo contemporâneo de
(re)invenção de tradições na Cidade de Goiás. Ainda assim, é viável inserir ao debate as
discussões teórico-metodológicas propostas pelo filósofo e historiador da arte, Georges Didi-
Huberman (2012), para nos auxiliar a construir os nexos estabelecidos entre a protagonista, a
cidade-ideal e as resultantes dos “pensamentos” extraídos a partir da sua produção artística.
Aproximar imagens mediante palavras parece-nos tarefa audaciosa, mas,
cientificamente, possível. Se assim não o fosse, tornar-se-ia quase inimaginável que quatro
fotografias produzidas por membros do Sonderkommando de Auschwitz-Birkenau tenham
revelado o que o teórico francês analisou em sua obra, Imagens Apesar de Tudo: o método de
extermínio utilizado pelos alemães na Segunda Guerra Mundial.
Não é interesse desse estudo se ater aos pormenores da narrativa sobre o fato
testemunhado por esses registros. Contudo, vale a pena dizer que mesmo tratando-se de
imagens produzidas na clandestinidade, elas, sob a tutela do autor, não se constrangeram em
pronunciar o seu lado da verdade sobre os horrores do holocausto. Mas, como essas
testemunhas capacitaram o historiador a aproximar-se da experiência do real a fim de dar-lhe
sentido? Basta que entendamos as imagens como representações que não professam o
absoluto e, portanto, para saber mais daquilo que elas dizem por meio da aparência, é preciso
196

imaginar (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.15). Sendo o imaginário198 a ferramenta que nos


possibilita tocar a realidade atrelada à diacronia do tempo, entende-se que as imagens,
consideradas sobreviventes de vida longa, estão condicionadas a produzir pensamentos,
porque elas são guardiãs de memórias de um duplo regime temporal, o qual pode ser ativado
atemporalmente. Para o autor (2012, p.51-52), é epidérmico o seu sentir e consciente o seu
desejo de revelar desde que saibamos pedir a elas nem menos e nem mais, isto é, não lhes
cabe na narrativa histórica o papel ilustrativo e, tampouco, o de simulacro. Afinal, se é papel
da imagem confrontar a memória e seus subjetivismos, eis que surge a reposta para o que
perguntamos: “o historicismo fabrica o seu próprio inimaginável”, elucida Didi-Huberman
(2012, p.53).
Sob essa ótica, compreende-se que a eloquência das imagens perpassa por uma
discussão historiográfica atenta às permanências e por sua vez, às rupturas oriundas das
estruturas em transformação. Essa dinâmica possibilita extrair a historicidade do discurso
visual com a finalidade de subscrever-lhe palavras e, assim, reeditarmos o(s) seu(s) sentido(s).
Para Coli (2008, p.22), trata-se de um processo de ressurreição das imagens por uma
percepção semelhante, isto é, reconfigurada pela experiência oriunda das relações
estabelecidas entre o que se vê, o que se pensa e o que se imagina sobre o que está
representado numa imagem.
Essa correlação demonstra como o real pode estar aquém do aparente visível,
pois: “(...) refere-se de um lugar de encontros, onde a obra, a sua visão e as suas imagens, se
unem para além da materialidade. Isto nos traz imediatamente um ensinamento: a obra nunca
existe num si definido pela materialidade”, aclara Coli (2008, p.23). Nesta mesma
perspectiva, Didi-Huberman (2012, p.58) continua a ponderar que as imagens não “dizem”
toda a verdade. Acentuamos ainda que sob a convicção de os documentos visuais serem por
natureza, construtores de narrativas lacunares, portanto, inseparáveis do elemento
antropológico presentificado no investigador que, no encalço de vestígios fora da imagem,
busca intersecções com o pensamento e a imaginação a fim de expandir o ponto de vista do
que se vê para uma concepção mais abrangente: o conhecimento pelo reconhecimento de
“todas as suas dimensões culturais” (2012, p.65).
Subsidiados por esse repertório metodológico é possível “arrancar” das obras
pictóricas de Goiandira do Couto a semântica cultural impregnada nas texturas e nas formas

198
“O imaginário é, pois, representação, evocação, simulação, sentido e significado, jogo de espelhos onde o
“verdadeiro” e o aparente se mesclam, estranha composição onde a metade visível evoca qualquer coisa de
ausente e difícil de perceber. Persegui-lo como objeto de estudo é desvendar um segredo, é buscar um
significado oculto, encontrar a chave para desfazer a representação do ser e parecer (PESAVENTO, 1995, p.24).
197

da cidade-ideal, lugar onde pairam subjetivas suspeitas de que trata-se de um discurso


representativo das experiências contadas, vividas e acumuladas numa trajetória público-
privada dedicada à defesa das tradições na Cidade de Goiás. Teorizando essa provável
conjuntura, cujo desdobramento recai em reflexões posteriores sobre os múltiplos usos do
passado, licenciamo-nos da seguinte análise para enfatizar que:

A imagem é feita de tudo: tem uma natureza de amálgama, de impureza, de


coisas visíveis misturadas com coisas confusas, de coisas enganadoras
misturadas em coisas reveladoras de formas visuais misturadas com o
pensamento em acto. Por conseguinte, ela não é nem tudo, (...) nem nada (...)
e muito menos o todo (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.89).

Observamos que o filósofo preocupa-se em esclarecer os meandros do


pensamento ambíguo intrínseco às imagens, ao passo que nos instruí romper com o
tradicionalismo interpretativo que enxerga esses testemunhos pelo binário da fantasia ou
realidade. No ato de operá-las em favor da narrativa histórica pode ser considerada uma
mistura de sensibilidades que se infiltra à plasticidade da forma visual por meio de palavras, a
fim de permitir que o olhar exigente acesse conhecimento. É o exato momento em que a obra
trascende os limites do pensamento aparente para se reinvertar a partir “da nossa capacidade
de imaginar o que elas nos contam e, apesar de tudo, devemos tentar fazê-lo, precisamente a
fim de melhor ouvirmos essa palavra do testemunho” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.88). É
importante destacar que os desdobramentos conceituais trazidos pelo autor realçam,
constantemente, que para saber mais sobre as imagens é preciso imaginar. Desse modo, o
requisito para o que o imaginário assuma sua dimensão analítica é a presença do referencial
simbólico (o significante), cujo o enlace capacita o historiador a recontruir a história
utilizando-se desta polissemia emitir-lhe signficado(s). Nesse caso, o “silêncio” das formas
abandona o estado imperativo para assumir seu lugar de intelocutor no presente, orienta Didi-
Huberman (2012, p.49-50).
Pesavento (1995, p.15), relembra que, durante algum tempo, o conceito de
imaginário foi visto como um domínio controverso. Entretanto, o princípio da
interdisciplinariedade deu cabedal aos culturalistas para aproximá-lo do campo das
representações justamente por estar entremeado na composição dos códigos do pensamento
humano e, portanto, apto a dar signficação ao sistema de “ideias-imagens”199 lastreadas ao

199
Termo utilizado por Pesavento (1995) para referir-se à produção de vestígios históricos, sejam eles: visuais,
escritos ou performáticos.
198

fazer histórico. A pensadora discerne e os interpenetra em poucas, porém contundentes,


palavras que merecem o devido destaque:

O imaginário faz parte de um campo de representação e, como expressão do


pensamento, se manifesta por imagens e discursos que pretendem dar uma
definição da realidade. Mas as imagens e dicursos sobre o real não são
exatamente o real ou, em outras palavras, não são expressões literais da
realidade, como um fiel espelho. (...) Ou seja, no domínio da representação,
as coisas ditas, pensadas e expressas têm um outro sentido além daquele
manifesto. Enquanto representação do real, o imaginário é sempre referência
a um “outro” ausente. O imaginário enuncia, se reporta e evoca outra coisa
não explícita e não presente (PESAVENTO, 1995, p.15).

Pesavento (1995) só acrescenta cientificidade ao objeto de estudo. Com


frequência as obras de Goiandira do Couto remetem-nos a um “outro” ausente, ou seja, a
aludida cidade-ideal reporta-nos ao passado no presente por representações inspiradas na
paisagem urbana da Cidade de Goiás, as quais enunciam, especialmente nas das telas
douradas, supostas epifânias do setecentismo colonial, marco oficial do surgimento desta
localidade. Portanto, norteados pelas análises da autora, conjecturamos a hipótese de que esse
intertício temporal (re)imaginado pictoricamente, de fato, pretendia dar ao projeto de futuro,
uma definição da realidade que sustentou o enredo concebido para propagar a cidade que vive
e revive suas tradições.
As telas de Goiandira do Couto podem ter sido uma das primeiras referências à
Cidade de Goiás que se difundiram, inclusive, internacionalmente, ainda na década de 1970.
Elas atuaram desde aquela época, como uma espécie de caixa de ressonância das visões
urbanas imbricadas ao jogo de luz e sombras negociado com as subjetivadades de uma artista
que, de algum modo, era partícipe das tradições que um grupo, em específico, tinha interesse
em compartilhar. Essa pesquisa lança um olhar sobre a linguagem metafórica das imagens
produzidas pela artista-guardiã, Goiandira do Couto, que, apesar da variedade cultural e étnica
vilaboense, explicita as oficialidades urbanas (lugares de memória) que, por sua vez, foram
apropriadas pela elite cultural como um capital simbólico para forjar o lugar do imaginário
tradicionalista tanto da paisagem quanto da cultura local conforme se lê no Dossiê de Goiás a
ser analisado no quarto e último capítulo desta tese.
Nesse sentido, justifica-se que discutir, preliminarmente, a noção das imagens
como manifestação do pensamento faz-se necessário diante da intenção de revisar o itinerário
percorrido pelos personagens envolvidos no processo de construção de um imaginário urbano
coletivo vilaboense, cuja perspectiva tradicional consubstanciou as ações que demandaram a
199

patrimonialização da Cidade de Goiás, em 2001. A propósito, observando essas questões,


parafraseamos Pesavento (1995, p.17-18) para reafirmar que os múltiplos sentidos que damos
ao mundo são partes constitutivas do ver, seguido do interpretar as representações constituídas
no texto/contexto das relações que, aparentemente, possam parecer irrelevantes. Logo, a
autora acrescenta que: “(...) o discurso e a imagem, mais dos que meros reflexos estáticos da
realidade social, podem vir a ser instrumentos de constituição de poder e transformação da
realidade” (1995, p.18). Analisamos assim, que o objeto deste estudo bifurca-se em ambos os
dispositivos.
Novamente, Didi-Huberman (2012, p.147-148) enfatiza que a fenomenologia é
um procedimento essencial para orientar o processo de observação e interpretação das
imagens utilizadas para a remontagem da história e requer do historiador uma perícia na
montagem200 das lacunas, dos anacronismos, “dos rastros de movimentos, (...) dos
acontecimentos que ela representa”, o quais são, portanto, “(...) susceptíveis de serem
reunidos pela imaginação histórica” (p.148). Percebe-se que tocar a realidade das imagens
pressupõe concatená-las ao âmbito das circunstâncias culturais associadas à sintomática da
memória. Vale ressaltar que a potência destes testemunhos, está consignada à possibilidade de
imaginar, cientificamente, os fatos que se arquivam intra e extrinsecamente nesses vestígios
históricos que jogam com pensamento a fim de revelar seus saberes. Afinal, compreender
essa dinâmica é reconhecer que a historicidade dos documentos visuais nada mais é que um
tratado filosófico.
Pesavento (1995, p.22) sustenta uma percepção semelhante. Certifica que a
natureza simbólica das imagens remete-nos à noção de linguagem. Nisso, a representação
emana um significado de uma outra coisa que não ela própria. Sentir as imagens como
propulsores de discursos reafirma as tendências de que a leitura do aparente se realize como
olhos no abstrato. Pois, “subjacente ao que se vê, se lê ou se imagina, a alegoria comporta um
outro conteúdo. “(...) ou seja, as ideias-imagens precisam ter um mínimo de verossimilhança

200
Capel (2015, p.354-355) buscou de maneira didática explicar essa perspectiva didi-hubemaniano que
conversa com as teorias de Aby Warburg (1866-1929) e Walter Benjamim (1892-1940). Ela explica que a
imagem é malícia e astúcia pelo fato de que, com o tempo, elas se dissolvem e se desmontam assim como
acontecem com as matrizes de um relógio. A comparação provém do pensamento benjaminiano quando afirma
que a história se fragmenta com o tempo e, nas imagens, encontramos o coração do processo histórico que pode
voltar a pulsar na medida em que recosturamos as partes dispersas ao núcleo. Portanto, a montagem visual requer
um pensamento multifocal que opere junções através do historicismo observando, antes de qualquer coisa, o
princípio dialético que flui na substância das imagens, explica Heloísa Capel Convalidamos essa afirmação em
Didi-Huberman (2012) quando diz que: “A montagem só é válida quando não se apressa a concluir ou
enclausurar: quando abre e complexifica a nossa apreensão da história, e não quando a esquematiza
abusivamente. Quando nos permite ascender às singularidades do tempo e, por conseguinte, à sua multiplicidade
essencial” (p.156). Cf. (CAPEL, 2015).
200

com o mundo vivido para que tenham aceitação social, para que sejam críveis” (1995, p.22).
Porquanto, lendo com atenção essas análises, consideramos a hipótese de que as obras de
Goiandira do Couto tenham servido para a continuidade do projeto de (re)inventar tradições.
Assim, como nos é tangível o jogo de mediação entre a utopia e a realidade nas idealizações
urbanas de Goiandira do Couto, acreditamos ser plausível deduzir que, considerando a espiral
de protagonismos da artista com o processo de ressignificação cultural da Cidade de Goiás
após a perda o status de capital do Estado, há uma relativa confluência de (re)criação do
imaginário social vilaboense com os horizontes preservacionistas que começaram a se expor
por meio da arte. Com isso, abriram-se brechas para uma eventual manipulação de
significados “que jogariam com os sonhos coletivos e com forças da tradição herdadas de um
cotidiano imemorável, forjando mitos, crenças e símbolos”, (PESAVENTO, 1995, p.23).
As lentes teóricas utilizadas nesta sessão aditaram pontos de observação ao
objeto de estudo e, consequentemente, aproximaram, mais um pouco, a discussão do patamar
pretendido: confirmar ou não as hipóteses que viemos sustentando até aqui. Estamos prestes a
tocar as imagens figuradas a partir do imaginário de Goiandira do Couto, e a exposição do
método de análise para tratar esses documentos, em específico, facilita o entrecruzar dos fios
que interligam o eu criativo-subjetivo da artista às visões de suas obras cuja recepção, a nosso
ver, acirrou as complexas fissuras no imaginário social e cultural vilaboense, especialmente, a
partir dos anos de 1970. Mesmo porque, existem outros fatores que nos levam a afirmar que
esta é uma década paradigmática. Não apenas por demarcar a continuidade do projeto de
futuro, mas pelo fato de (re)inaugurar na carreira artística da protagonista numa segunda fase
crucial: o seu encontro com as areias multicolorias.
Essa transição artística pode ser vista como um passivo das construções
ideológicas deliberadas pelo seleto grupo que se sentia encarregado das intervenções culturais
na Cidade de Goiás. Sendo assim, consideramos a hipótese de que alguns dos horizontes
materializados em 2001, com a cidade-patrimônio, buscaram inspiração na cidade-ideal de
Goiandira do Couto que se fez amplamente conhecida, a partir do momento em que a técnica
com areia tornou-se paradigma responsável por redimensionar a carreira da artista-guardiã
para um patamar internacional. Contudo, há suspeitas de que esse acontecimento na vida
artística e pública da artista foi utilizado como um instrumento de empoderamento dos
agentes culturais vilaboenses, especialmente, os membros da OVAT, por razões óbvias, já
discutidas no capítulo anterior, e por pormenores que apresentaremos no subitem seguinte: Os
Dedos Substituem os Pincéis: a técnica com areia. Portanto, o debate sobre a vida e a obra de
201

Goiandira do Couto se mostram, ainda mais, inconclusas e difusas nesta trama que estuda as
relações entre arte, cultura e poder na Cidade de Goiás.
Essa discussão continuará embasada no raciocínio de Coli (2008) quando
afirma que na imagem existe um terceiro lugar: “onde, invisíveis e imateriais, o semelhante se
funde no semelhante, onde analogia se metamorfoseia em fusão” (p.22). Aproximar o objeto
de estudo destes ensinamentos demonstra o que se pretende pensar nesse importante revés,
tanto na carreira de Goiandira do Couto quanto da Cidade de Goiás, está entrecruzado às
problemáticas lançadas em torno destas apreciações. Eis que se vislumbra no encontro da
artista com areias multicoloridas mais um acontecimento a ser explorado, já que estamos
mirando em direção ao terceiro lugar que, a nosso ver, está dentro, fora e no entorno dos
limites representados pela cidade-ideal.

4.2 Os Dedos Substituem os Pincéis: a técnica com areia

Para estudar a história das artes plásticas na Cidade de Goiás, a partir da


trajetória de Goiandira do Couto, é preciso estar consciente de que estamos diante de um
ambiente, particularmente, permeado por revezes. Note-se como a década de 1960 foi palco
das principais mudanças na vida público-privada da artista que ao se dedicar à produção
essencialmente pictórica em estilo paisagem, urbano-colonial, atraiu olhares para a Cidade de
Goiás, como queria a OVAT em projeto de futuro.
As práticas voltadas à (re)invenção das tradições objetivavam implementar o
turismo localmente. Por isto, o enredo construído em torno do encontro de Goiandira do
Couto com as areias multicoloridas, em 1967, teve um lugar importante neste cenário de
valorização urbana. Pode-se afirmar que ela foi patenteada pelos agentes da cultura como um
símbolo endógeno, cuja atribuição principal era convalidar, especialmente, para além dos
limites da Serra Dourada, a síntese das crenças relacionadas ao mito de origem da Cidade de
Goiás que, por sua vez, desaguavam na concepção de cidade berço da cultura goiana. Nos
arquivos da AFFSD, tivemos acesso a uma carta enviada ao presidente do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, em 1970. O documento denota que, na visão espontânea do turista, a
artista e cidade (ou vice-versa) se complementavam:

(...) figura feminina interessante é D. Goiandira, professora, pintora, poetisa


e musicóloga. Esse polimorfismo artístico ainda possível de existir em meio
tão depurado de influência estranha como é Goiás Velho, deve ser saudado
com simpatia pelos que visitam a artista em sua casa cheia de plantas,
202

quadros, objetos de arte, coisas antigas e os frutos do seu trabalho, sobretudo


da sua pintura original, quanto aos recursos de que lança mão para os seus
quadros: em vez de tinta, o pó policrômico procedente do arenito da Serra
Dourada, quando pulverizado. D. Goiandira é bem conhecida nas cidades de
Goiânia, Brasília e São Paulo, onde tem exposto seus quadros pintados com
pó da Serra Dourada. (....) O Brasil precisa visitar Goiás Velho e seus
encantos. São muitos os motivos para considerarmos Goiás Velho a cidade
turística do Oeste. É crime ir à Brasília ou Goiânia e não chegar até Goiás
Velho 201.

A proposta da Marcha para o Oeste, ofereceu diferentes fronteiras da Cidade


de Goiás que, finalmente, começaram a se dilatar na década de 1970. Para Goiandira do
Couto, envolvida neste processo desde os anos de 1940, desempenhar função de notoriedade
não era uma posição alheia às suas experiências artístico-culturais. Entretanto, desta vez,
apoiada, sobre um mote em tom místico, a artista plástica, já investida de fama, tornava-se um
dos símbolos portadores e transmissores de memórias aos turistas curiosos para conhecer a
afamada artista que, misteriosamente, fora incumbida de pintar uma casa com areia. Vale
destacar, que a materialidade desta representação nada mais é que um dos mais significativos
monumentos do passado para as tradições praticadas no presente. Trata-se da Igreja de Nossa
Senhora da Boa Morte202.
A imagem deste que parece ser o primeiro quadro de areia, será apresentada e
discutida na sessão seguinte. A priori, pacificamos a hipótese de que a retórica do
“descobrimento” da técnica com areia incrementou os interesses de visibilidade cultural,
assim como pretendia os guardiões das tradições. Coincidência ou não, o fato demonstra

201
AFFSD. Documento Avulso: fls 01 a 03. Carta endereçada ao Presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Por: Manuel Xavier de Vasconcellos Pedrosa; Rio de Janeiro, 17 de maio de 1970. (ver fac-símile do
documento completo no anexo III)
202
Para explicar o simbolismo do referido monumento traçamos dois paralelos: o passado e o presente. De
acordo com Plano Museológico: Museu de Arte Sacra (2009), redigido pela equipe técnica responsável do,
então, museu: “A construção da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte foi iniciada em 1762, por militares,
liderados pelo capitão de cavalaria Antônio da Silva Pereira. Inicialmente dedicada a Santo Antônio de Pádua, a
construção inacabada foi doada à Confraria dos Homens Pardos da Boa Morte, em virtude da proibição real de se
construir novas capelas pertencentes a militares. A Confraria da Boa Morte que já havia possuído uma pequena
capela no Largo do Chafariz, concluiu a sua edificação em 1779. Construída em dois pavimentos, quase
inteiramente em alvenaria de pedra, com exceção apenas das paredes de pau-a-pique sobre os altares laterais e
das de adobe sobre os arcos do coro, a Igreja da Boa Morte foi feita seguindo a tradição das edificações
religiosas goianas: localizada num pequeno jardim, separada da via pública por um muro alto, com cobertura em
quatro águas e telhas de barro canal em acentuada inclinação, com um pequeno poço d’água e sem torre sineira”
(...) (p.09). No presente, o protagonismo desta edificação, fica a cargo da Procissão do Fogaréu, pois é o local de
concentração e saída dos farricocos no cortejo paralitúrgico (re)inventado pela OVAT, em 1965. Ainda segundo
o documento (Plano Museológico: Museu de Arte Sacra): “Em 22 de dezembro de 1968, a convite de Dom
Tomaz, foi realizada no Salão Nobre da Cúria a primeira reunião para tratar da criação oficial do novo museu,
discutindo-se o nome que lhe seria dado, a sua montagem e a formação do Conselho que o representaria.
Estiveram presentes Dom Tomaz Balduíno, Monsenhor Angelino Fernandes, Frei Simão Dorvi, Profª Regina
Lacerda, Profª Goiandira do Couto, Sra. Antolinda Baia Borges e Sr. Elder Camargo Passos” (MINISTÉRIO DA
CULTURA, 2009, p.09-10). Disponível em: <http:// www.museus.gov.br/wpcontent/upçoads/2014/03/PlanoMu
seologico_MuseuArteSacraBoaMorte.pdf>. Acesso em: 12 jul. 2016.
203

relativa sintonia entre o discurso reiterado da artista e os pilares de sustentação do projeto de


futuro: história, patrimônio e turismo. Vejamos sua opinião no depoimento concedido pela
artista-artesã, em 2005.

A técnica com areia foi uma coisa interessante. Foi diferente. Tudo é
diferente (risos). Goiás foi descoberto em 1722. Todo mundo naquela época
até hoje ia na Serra Dourada e ninguém viu areia lá. Primeiro eu fui à Serra.
Uma vez, eu fui com uma turma de moça. Estávamos andando... Quando eu
olho, vejo uma pedra verde (gestos mostrando o tamanho da pedra) no chão,
linda. O sol batia nela assim (gestos). Todo mundo olhou para ela. Parecia
aqueles piriquitim, tudo cantando, eu pego, outro pega, outro puxava, deixa
eu pego, deixa eu pegar e tudo. Pegou a pedra verde e olhou. Caminhamos
mais um pouco. Quando eu olhei, achei uma amarela e outra cor-de-rosa,
três cores. Meu Deus!!! Que coisa bela! Achei 21 tons. Eu trouxe. Depois
voltei de novo lá, procurei, fiquei 5 anos com aquela coleção feita. Só
aqueles vidrinhos e pus lá e mostrava pra todo mundo. O padre veio, olhou,
pediu se podia fazer igual. Falei que sim. Foi lá e procurou também. Fez
coleção. Um dia, há 5 anos, eu era professora. Esse dia não tinha aula. Eu
não quis levantar. Era muito cedo. Fiquei deitada. Então uma voz me falou
do lado direito: “faça uma casa com areia”. Eu levei aquele susto. Olhei!
Não vi ninguém. Aí pedi o espírito de meu pai, da minha mãe que me
iluminasse. Pedi a Deus, a Jesus, pra me dar uma intuição do que era aquilo.
Eu ouvi perfeitamente a voz determinando que fizesse a casa com areia.
Então, eu puxei a colcha ao pescoço e falei: “vou rezar o pai nosso”. Fui
acabando de rezar o pai nosso e pensei: “eu sou pintora, desde menininha eu
pinto, eu sou pintora, tenho areia de todas as cores, aqueles vidrinhos, quem
sabe é pra eu fazer um quadro com areia como se fosse tinta a óleo de
sombra”. Pedi a Jesus pra me dar a intuição e ele me deu. Aí eu levantei
depressa, varri a casa, fiz café, peguei um pedaço de tela, olhei aquilo na
parede, risquei, abri aqueles vidrinhos. Vi a cor que eu queria. Abri, passei
cola e jogava assim ó (gestos rápidos). A minha técnica nasceu na manhã de
18 dezembro de 1967 (COUTO apud LUZ, 2007, p.03).

Uma parte do que foi relatado pela artista-artesã203, especialmente o que


concerne as “pedras” da Serra Dourada, as quais foram transformadas em poeira, se
complementa no registro fotográfico subsequente, cuja visão nos projeta para os instantes de
encantamento que acometiam turistas e visitantes que se deslocavam até a Casa de Goiandira:

203
Diante do encontro com a técnica artesanal de pintura com areia, passaremos a utilizar, também, doravante,
essa nomenclatura para nos referir a Goiandira do Couto que foi, indubitavelmente, uma pessoa-personagem
culturalmente plural.
204

Figura 28 - “Goiandira arte e areia”, Rui Faquim, p.24.

Fonte: Wolney Unes, 2008.

Igualmente, identificamos, tanto na imagem quanto no relato, um


transbordamento de concessões ao imaginário. A realidade fantástica mostra-se
sensivelmente tensionada pelo jogo dinâmico das representações sociais. Por isso, no discurso
de Goiandira do Couto, o que nos importa não é a veracidade e, sim, a credibilidade de suas
palavras dentro de um contexto favorável para se instituir mitos e verdades na Cidade de
Goiás dos anos de 1960. Parafraseando Pesavento (1995, p.21), é função do imaginar
construir e reconstruir o real em um universo paralelo de sinais, imaginação consubstanciada
às representações destinadas a (re)tecer os horizontes culturais da antiga capital do Estado,
enviesando a notabilidade destes símbolos à concepção de cidade berço da cultura goiana,
portanto, lugar de memória.
Compreende-se que esta estratégia de proeminência nos mitos do passado,
portanto, acredita-se ter sido o fundamento para continuidade deste ciclo no presente. Logo,
historicizar estes cruzamentos amplia o conhecimento do processo de construção e
205

apropriação da imagem de Goiandira do Couto como um vulto que condiz com organicidade
da tradição cultural vilaboense204.
Há vestígios contundentes do princípio deste percurso. Segundo eles, a
recepção das primeiras telas veio da artista plástica Maria Guilhermina Fernandes que,
segundo Figueiredo (1979), foi pioneira no mercado de arte em Goiás, devido à iniciativa de
fundar a Galeria Alba, na cidade de Goiânia, em 1963, que posteriormente, passou a se
chamar Galeria Azul. No ano de 1968, possivelmente, diante do aprimoramento da técnica,
Goiandira do Couto procurou a marchand em busca de crítica sobre as telas levadas à
apreciação. Encontramos a resposta publicada no folder da sua segunda exposição individual,
ocorrida em 1969, na Casa Thomas Jefferson, em Brasília. Nos testemunhos que se seguem,
evidenciamos que a relação cultural da artista com a Cidade de Goiás havia chegado a um
lugar original:

Goiandira, muito preocupada com seus afazeres de excelente professora do


ensino médio, veio de alguns anos para cá meio estacionada com a pintura.
Sempre estivemos em contado com a pintora. Falamos sempre de sua retoma
aos pincéis. Convidamos para fazer exposição. Nada. Esperamos um ano.
Dois anos. Mas, sempre esperando e incentivando. Um dia qualquer no
início de 1968, deu-se o milagre. Goiandira veio, trazendo duas telas feitas
com areias coloridas naturais da Serra Dourada. Tímida, quase
desaparecendo no ambiente imenso de sua morada, que mais parece um solar
de artista, ela perguntou, voz quase sumindo. Guilhermina, diga o que lhe
parece isto, tem valor? Eram duas excelentes telas: a Igreja de São Francisco
e trecho de uma rua da querida Vila Boa. Executadas sobre duratex,
preparado à base de óleo branco as formas e linhas se entreolhavam
sorrateiras e vivas, transmitindo o nascimento da mais pura obra de nossa
Goiandira do Couto (FOLDER DA II EXPOSIÇÃO INDIVIDUAL, Casa
Thomas Jefferson, 1969).

204
Vale a pena lembrar que turismo foi um dos importantes pilares do projeto de futuro. Nesse aspecto, a partir
da década de 1970, notamos que o discurso de valorização dos bens materiais e imateriais da Cidade de Goiás
ganhou o reforço de alguns expoentes eleitos para simbolizar a cultura e a tradição local para, obviamente, atrair
os turistas. Teles (1991) na obra, No Santuário de Cora Coralina, dedicou-se a inventariar os mitos urbanos
através dos tempos. Primeiramente, o escritor enaltece a intelectualidade, a educação e as artes por meio dos
nascidos na Cidade de Goiás que, segundo ele, fizeram história nestes campos, inclusive, em âmbito estadual.
Em seguida, a discussão converge para a contemporaneidade afirmando que a herança do passado foi transferida
para quatro personagens principais. Parafraseando Teles (1991, p.91), alguns deles, não necessariamente
“nascidos da terra”, foram colocados nesta categoria diante dos feitos singulares realizados em favor da
preservação dos valores e das memórias da antiga Vila Boa. São eles: Cora Coralina, Octo Marques, Goiandira
do Couto e Frei Simão Dorvi. Na compreensão do autor, “(...) eram quatro vultos vivos que guardavam e faziam
a história da antiga capital do Estado, busca incessante dos turistas que andavam com suas codaques registrando
o momento histórico ao lado destas personalidades. (...) Resta, agora, Goiandira do Couto, o último mito. (...)
Seu nome é uma legenda, corre o mundo” (p.93-95). Historicizar em que medida a universalização da imagem
de Goiandira do Couto, a partir dos anos de 1970, implicou no reconhecimento mundial da Cidade de Goiás
como patrimônio histórico da humanidade, em 2001, é um dos fundamentos desta tese.
206

Obviamente, mediante esta recepção, coube às atribuições de Maria


Guilhermina lançar Goiandira do Couto no mercado das artes em Goiás:

Figura 29 - Convite da I Exposição Individual de Goiandira do Couto, Galeria Azul, 1968.

Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011, p.169.

Durante a exposição, a adesão do público foi imediata. De acordo com a


reportagem: Com Areia Também se Pinta, publicada no suplemento do jornal “O Popular”,
de 05 de agosto de 1971, o jornalista Jávier Godinho no retrospecto da trajetória da artista-
artesã com as areias, menciona o sucesso desta exposição. Segundo ele, Goiandira do Couto
vendeu os vinte e quatro quadros expostos e, na mesma ocasião, recebeu encomenda de,
aproximadamente, vinte outros. Este fato, também, foi rememorado pela artista em 2006 e,
inclusive, acrescentou outros detalhes às repercussões daquele dia:

Fiz uma exposição em Goiânia com 21 quadros. Quando eu estava armando


a exposição, quase todos já estavam vendidos. Nos três primeiros dias, vendi
todos os 21 e tive encomenda de 20. No ano seguinte, o embaixador dos
EUA veio aqui em Goiás me conhecer e me convidar para fazer uma
exposição na embaixada. Fiz com muito sucesso (COUTO apud LUZ, 2007,
p.03).

O êxito da mostra substituiu a dúvida subjetiva da protagonista pela confiança


de que o brilho multicor do pó de pedra havia iluminado um talento artístico pitoresco que,
por muito tempo, estivera camuflado sob as cerdas dos pincéis. Aliás, essa descoberta
207

vivenciada, coletivamente, na Galeria Azul, em 1968, contou com os porta-vozes da imprensa


que endossaram a recepção inicial de Maria Guilhermina.
O repertório de críticas concernentes ao debut desta segunda fase artística na
carreira de Goiandira do Couto encontra-se no folder205 de uma das suas exposições realizadas
em 1974. Entendemos que há relevância e coerência destes registros com o que foi reportado
por Jávier Godinho. Algumas destas recepções que, primeiramente, foram publicadas em
diferentes jornais da época. Assim, buscando comprovar o grau de aceitação de suas obras e o
nível do vínculo da artista com a cidade-ideal, evocada a partir de um olhar guardião sobre a
Cidade de Goiás, subscrevemos alguns apartes que consideramos indispensáveis.

Não conheço em todas estas minhas andanças, e mesmo através da literatura,


alguém que pinte quadros com areia. Conheço trabalho de escultura com
areia branca de praia, porém quadros com um multicolorido impressionante,
em areia, é a primeira vez. Então, confirmando que um povo, não vive sem
sua tradição, volta a antiga Capital, hoje, Cidade de Goiás, a ditar mais uma
vez a cultura para este Estado, através das areias coloridas da Serra Dourada
e ao toque mágico da pintora Goiandira do Couto (...) (MEDEIROS NETO,
“CINCO DE MARÇO”, 1968 apud Folder da Exposição “GOIANDIRA”,
1974, p.02).

Observa-se, na ordem do discurso, ênfase no retorno à tradição. Vê-se que, de


algum modo, os propósitos preservacionistas atingiram reciprocidade, ou seja, a Cidade de
Goiás é recolocada no lugar de sede. Estes e outros aspectos, também, são reiterados na
palestra de apresentação da artista na Galeria Azul, a qual fora publicada na integra, no jornal
“Folha de Goiás”, em maio de 1968. Não localizamos o documento original. Contudo, um
fragmento dele foi escolhido para compor a série de comentários e impressões sobre
Goiandira do Couto no mencionado folder. Mediante este fragmento consegue-se ter uma
noção do todo da mensagem proferida aos constituintes - críticos, colecionadores, outros
artistas e os agentes responsáveis pela produção e circulação de crenças - daquele momento
emblemático, tanto na carreira da artista quanto para os horizontes (inventados), envolvendo o
futuro da Cidade de Goiás:

(...) Ainda que em estilo diferente, em técnica e recursos divergentes dos


admiráveis quadros de Toulouse Loutree, Goiandira do Couto faz da cidade
de Goiás a sua Paris, a sua menina dos olhos. É ela a Debret Goiana, isto,
porque suas telas, estejam onde estiverem, no futuro, serão documentos
incontestes de um patrimônio histórico e de uma tradição poética do
misticismo que impregna todo ambiente da antiga Capital. Todas as suas

205
Ver fac-símile completo do folder da exposição “GOIANDIRA” no anexo IV.
208

telas apresentam a mesma tônica, a história, a cultura, as tradições da terra


do Anhanguera (...) (HASS GONSALVES,“FOLHA DE GOIÁS”, 1968
apud Folder da Exposição “GOIANDIRA”, 1974, p.02) (grifos nossos).

Agregado à construção do sentido de cidade berço da cultura goiana, o caráter


místico, mágico trazido da experiência vivida por Goiandira do Couto. O dinamismo da
ressignificação do ethos cultural da Cidade de Goiás, especialmente na década de 1960,
converge-nos às reflexões de Pollack (1992, p.201-202), quando afirma que é atributo da
socialização histórica o fenômeno de projeção ou identificação decorrente de acontecimentos
constituídos com pessoas-personagens que se arrolam aos lugares, suas heranças e memórias.
Essa visão, por sua vez, aclara a estratégia dos agentes culturais ao associar a imagem da
artista à Cidade de Goiás, dando-nos, por conseguinte, indícios suficientes para dizer que a
proposta de concessão do título de cidadã vilaboense ofertado a Goiandira do Couto,
coincidentemente no mesmo mês da exposição na Galeria Azul, veio ao encontro de
consignar-lhe devida paridade aos objetos de sua criação, a cidade-ideal, visivelmente,
inspirada na paisagem urbana colonial da antiga Vila Boa que, desde então, passou a reocupar
posição de destaque e poder no Estado de Goiás, e fora dele, no quesito cultura.
Mirando nesses alvos, tendo em vista a aceitação exponencial de Goiandira do
Couto no mercado e no mundo das artes em âmbito estadual, nacional e internacional, a
Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Municipal da Cidade de Goiás deliberou e
aprovou a honraria, conforme nos diz o texto do Projeto de Lei N° 754, documento doado
pelo poder legislativo aos arquivos da AFFSD:

Projeto de Lei N° 754


Assunto: Concede Título de “Cidadania Vilaboense a Professora Goiandira
Ayres do Couto”.
Art. 1° - Fica concedido o título de “Cidadania Vilaboense, a emérita
Professora Goiandira Ayres do Couto”.
Art. 2° - Em sessão solene, a ser realizada oportunamente, será feita a
entrega do referido título.
Art. 3° - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas
todas a disposições em contrário.
Sala das sessões, 27/5/68.
Roberto Antônio de Oliveira (PROJETO DE LEI N° 754, Câmara Municipal
de Goiás, 28 de maio de 1968)206.

Outro documento que confirma as ilações acima refere-se à justificativa do


presente Projeto de Lei N° 754. Identifica-se neste registro, o detalhamento dos predicados

206
Fonte: AFFSD
209

ponderados pelo vereador, Roberto Antônio de Oliveira, propositor do título. Sua visão pode
ser estendida à coletividade vilaboense, bem como se adequava aos horizontes vislumbrados
para a Cidade de Goiás com os dividendos da recente notoriedade adquirida pela artista-
artesã. Como tal, e dada à relevância do documento para confirmar as reflexões anteriores,
expomos o texto oficial:

Sr. Presidente, Srs. Vereadores, homenagear a professora Goiandira Ayres


do Couto, com o título de Cidadã Vilaboense, é sanar uma dívida, que todos
nós temos com ela, todos conhecem de sobra a homenageada; dotada de
raros dotes artísticos, emérita pintora; com exposições já feitas em Goiânia,
onde recebeu os mais calorosos elogios; O seu coração boníssimo, a sua fina
educação, fê-la merecedora da grande estima que ela conta em nossa cidade,
sempre disposta, a ajudar todas iniciativas que venham a beneficiar a Cidade
de Goiás... Merece elogios de todos os vilaboenses sem exceção e merece
ainda o título que ora outorgamos, concedendo o título de cidadania à
Professora e Pintora Goiandira Ayres do Couto, nada mais fazemos que
nossa obrigação.
Sala das Sessões da Câmara Municipal de Goiás, 28 de maio de 1968.
Roberto Antônio Oliveira, vereador (PROJETO DE LEI N° 754, 1968, fls.
03).

Embora tardia, a homenagem destinada ao reconhecimento dos ditos e os feitos


praticados pela notável se formalizou em solenidade civil pública ocorrida no agosto do
mesmo ano. Convém ressaltar que as reverberações da nova fase artística na carreira da
“pintura das areias” seguiram, ainda, por um longo período, rendendo lucros simbólicos
bilaterais para a artista e a cidade.
A esse respeito, destacamos outra parceria de Goiandira do Couto e Maria
Guilhermina, desta vez incluindo a Cidade de Goiás, via suas autoridades, para fundar o
Curso Intensivo de Artes Plásticas naquela localidade. O jornal “O Popular” noticiou, em
1968, o desdobramento desta implantação cujo legado foi, no ano seguinte, a conversão da
modalidade “curso” para a criação de uma instituição formal de ensino de artes, a Escola de
Belas Artes “Veiga Vale”, que se encontra em franco funcionamento nos dias atuais. Por
considerarmos um rastro importante da biografia de Goiandira do Couto na e com a Cidade
de Goiás, justificamos a densa transcrição a seguir:

Com a presença do Bispo Auxiliar de Goiânia, Dom Antônio Ribeiro de


Oliveira; do Reitor Jerônimo Geraldo Queiroz; do jornalista Domiciano
Faria, Diretor do Departamento Estadual de Cultura, representando o
Secretário da Educação e o deputado federal Jaime Câmara, bem assim da
Prof.ª. Maria Guilhermina Fernandes, Diretora do Curso; do prefeito de
Goiás, sr. Jerônimo de Carvalho Bueno, além de outras autoridades civis,
210

militares e eclesiásticas da Municipalidade, foi instalado solenemente,


sábado último, o Curso Intensivo de Artes Plásticas na Cidade de Goiás, que
será de nível universitário. Ao ensejo do acontecimento, o Reitor Jerônimo
Geraldo de Queiroz procedeu uma interessante palestra, quando discorreu
sobre o tema “Aspectos psico-sociológicos das Artes”, demorando-se
principalmente em conceituações sobre as artes na antiga Vila Boa. A
conferência do Reitor da UFG deu por oficialmente inaugurado o Curso
Intensivo de Artes Plásticas na Cidade de Goiás. A organização J. Câmara,
através do deputado federal Jaime Câmara, doou todo o material de gravura
e desenho ao Curso. Também o Reitor da Universidade Federal Prof.
Jerônimo Geraldo Queiroz, fez doação de um cheque no valor de mil
cruzeiros novos, como colaboração da UFG à realização do referido Curso,
enquanto que a Secretaria de Educação, através do Departamento Estadual
de Cultura, também empresta sua colaboração ao êxito da promoção, o
mesmo ocorrendo com o Departamento de Turismo da Municipalidade
vilaboense. (...) O Curso Intensivo de Artes Plásticas instalado na antiga Vila
Boa é dirigido pela Prof.ª. Maria Guilhermina Fernandes, tendo por
professores, além da Diretora, a Prof.ª. Goiandira do Couto e os
professores Otto Marques Guimarães. Terá o Curso duração inicial de 90
dias contando com 208 alunos inscritos (“O POPULAR”, “Curso de Artes
Plásticas já funciona em Vila Boa”, 1968, p.03)207 (grifos nossos).

A reportagem subsidia reflexões sobre a experiência multifacetada de


Goiandira do Couto no percurso e exercício em favor da arte-cultura na Cidade de Goiás. A
criação da escola sedimentou espaço para expansão pedagógica da vertente preservacionista,
visivelmente, alicerçada nos principais nomes que projetaram esse estilo no Estado de Goiás:
Goiandira do Couto e Octo Marques. Entretanto, o que mais nos chama a atenção é o papel
das instituições envolvidas na implementação deste segmento de ensino das artes,
provavelmente esperando que, por meio dele, o viés turístico viria a ser beneficiado.
O Curso Intensivo de Artes Plásticas e, posteriormente, a escola somariam às
instituições e personalidades envolvidas com discursos que, subjetivamente, tratamos como
uma ideologia pautada, de algum modo, nas diretrizes do movimento antimudancista do final
dos anos de 1930. Oportunamente, os ensinamentos e as produções pictóricas seriam
impactados pelos modos de ver a Cidade de Goiás inspirados na preservação dos lugares de
memória que, a bem dizer, são lugares de poder constituintes das tradições que se desejavam
preservar na cidade berço. Por isso, não nos surpreendeu encontrar, na produção
historiográfica goiana, vestígios do empenho individual de Goiandira do Couto pela
manutenção da então Escola de Artes Plásticas “Veiga Valle”, na Cidade de Goiás:

207
Jornal “O Popular”, “Curso de Artes Plásticas já funciona em Vila Boa”. Goiânia, agosto de 1968, p. 03.
Fonte: Acervo de Taís Helena Machado Ferreira, cedido em cópia digital.
211

Neusa Moraes seguiu os passos do tio no magistério. Na década de 1970,


várias vezes viajamos juntas à Cidade de Goiás, sempre no meu carrinho TL.
Nesse tempo, eu desenvolvia pesquisa para uma tese de doutorado, e ela
lecionava na Escola de Belas Artes Veiga Valle, fundada na administração
do prefeito Jerônimo Carvalho Bueno, por instâncias de Goiandira do Couto
- a artista dos quadros pintados com areia -, da escultora Maria Guilhermina
e do pintor Octo Marques, entre outros12. Algumas vezes, a Prof.ª. Neusa e
eu fazíamos parada na estrada para visitar uns parentes dela, moradores na
zona rural e para os que ela dispensava dedicada atenção. Pelo trabalho
exercido naquela escola, recebia apenas uma gratificação, por obra e
graça de providências da também professora Goiandira do Couto
(SILVA, 2011, p.118-119) (grifos nossos).

Este fragmento demonstra a reflexão sobre o panorama das artes a partir de


alguns personagens considerados pelo estudo, esquecidos diante da sobreposição do tempo.
Neste caso, a bem dizer, trata-se do engenheiro e arquiteto, Jorge Felix de Souza, que por
sinal embrenhou-se no caminho das artes plásticas em Goiás deixando, por sua vez, relevantes
legados. Nos destaques da autora, estão o seu papel como co-fundador e professor da Escola
Goiana de Belas Artes, lugar de formação de notáveis artistas goianos, à exemplo, de Neuza
Moraes208. Pela descrição, é perceptível que o reconhecimento público da escultora garantiu-
lhe a participação no quadro docente da Escola de Artes Plásticas “Veiga Valle”. E, mesmo
não sendo o interesse epistemológico do artigo de Silva (2011), nem a instituição e,
tampouco, a protagonista desta pesquisa, Goiandira do Couto, observa-se que o cruzamento
de trajetórias nos possibilitou horizontalizar pessoas, tramas, personagens e lugares que, neste
caso, mostraram-se carregados de evidências transversais, devidamente, relevantes ao objeto
em análise.
Ainda assim, é importante entender que para perscrutar os feitos de Goiandira
do Couto, na emblemática década de 1960, é preciso estar consciente de que as fronteiras
haviam se alargado e, com isso, suas práticas artístico-culturais estendiam-se para além dos
limites da Cidade e do Estado de Goiás. Sobre os trânsitos nestes domínios, as representações
e impressões construídas sobre a artista, suas obras e a Cidade de Goiás mantinham o tom
retórico embasado na concepção de dependência simbólica entre elas:

208
Jorge Felix de Souza foi tio, pai de criação e mentor da afamada escultora goiana, Neusa Moraes, e, atribui-se
a ele, algumas das suas escolhas artísticas e profissionais como, por exemplo, a docência. Entre as obras de
Neusa Moraes, notabilizamos: “um Imaculado Coração de Maria incrustado em nicho na fachada da residência
dos claretianos, e, no hall desta, dois pedestais em madeira; o busto do papa João XXIII, no Hotel Umuarama, o
monumento das Três Raças, na Praça Cívica. É de Neusa Moraes a escultura do fundador de Goiânia, Pedro
Ludovico Teixeira, montado a cavalo, que durante muitos anos aguardou destinação por parte das autoridades
responsáveis pelo setor cultural da capital” (SILVA, 2011, p.118). Ambas as esculturas supracitadas, encontram-
se, ainda nos dias atuais, no Paço Administrativo Estadual, complexo localizado na Praça Cívica, na cidade de
Goiânia, capital do Estado de Goiás.
212

Um quadro com motivação vilaboense pintado a areia e que lembra a cultura


de Goiás e o patrimônio barroco-colonial da antiga capital do Estado, com o
traço personalíssimo de Goiandira do Couto, estará exposto em breves dias
na Cidade do Cabo, África do Sul, para onde foi levado pelo Presidente do
Serviço de Turismo daquele país, que recentemente esteve em Goiás. Como
esta, outras obras de Goiandira encarregaram-se de divulgar a cultura de
Goiás no país e no exterior. Outros trabalhos seus estão nos Estados Unidos,
cuja embaixada do Brasil acaba de promover uma exposição de seus quadros
na Casa Thomas Jefferson, em Brasília (“O POPULAR”, África do Sul Verá
a Arte de Goiandira, 31/10/1969, s/p)209.

O recurso metonímico de linguagem encarregou-se de garantir que a ausência


física de Goiandira do Couto ficasse visível na presença marcante dos traços e cores
contrastados em meio ao jogo de luzes e sombras aparente na sua cidade-ideal. A sequência
de exposições em terras estrangeiras colocou a artista-artesã, oficialmente aclamada como
cidadã vilaboense, em uma posição de embaixatriz da cultura e das tradições locais. Portanto,
consideramos razoável afirmar que a visibilidade cultural (material e imaterial) da Cidade de
Goiás tiveram os primeiros e consideráveis sobressaltos por meio da projeção nacional e
internacional na carreira artística da “pintora das areias”.
Na tentativa de consubstanciar a tese de que o reconhecimento do patrimônio
artístico-cultural da Cidade de Goiás veio se sedimentando, em boa medida, nas incursões
artísticas de Goiandira do Couto pelo mundo das artes dentro e fora do Estado de Goiás e,
inclusive, do país, mantemo-nos apoiados nos testemunhos guardados pelos jornais. Mais uma
vez, o jornalista goiano, Jávier Godinho, publica uma de suas memórias do ano de 1972, no
jornal “Diário da Manhã”, de 1995, sobre a cobertura daquela que foi a primeira e única
visita de Roberto Marinho, fundador-presidente das Organizações Globo, à cidade de Goiânia.
Foi nesta ocasião que os caminhos pictóricos da Cidade de Goiás, representados por
Goiandira do Couto, despertaram-lhe um curioso encantamento pela artista e “sua” técnica
cujo registro de patente havia se dado na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, em 1971, conforme frisa Ferreira (2011, p.160). Sobre as memórias que
remontam este episódio, trazemos à baila as palavras do jornalista:

Pela primeira e última vez, no final de 1972, Roberto Marinho esteve em


Goiânia. A Assembleia Legislativa lhe concedera, por unanimidade, o título
de “Cidadão Goiano”, que ele veio buscar com muita festa e pompa. Éramos
repórter de “O Globo” e nos recomendavam cobertura completa do
acontecimento. Queriam material farto, íntegra dos discursos e variedade de
fotos. (...) Ele ficou dois dias em companhia de sua esposa, ocupando a suíte

209
Jornal “O Popular”, África do Sul Verá a Arte de Goiandira, Goiânia, 31 de outubro de 1969, s/p. Fonte:
Acervo de Taís Helena Machado Ferreira, cedido em cópia digital.
213

presidencial do Umuarama Hotel, hóspede do Governo do Estado de Goiás,


cortejado pelas mais altas autoridades federais, estaduais e municipais. O
idealizador da homenagem era o jornalista Leonídio Barros, diretor da
sucursal do jornal em Brasília com quem trabalhávamos diretamente.
Conhecendo Goiás apenas como uma figura triangular no mapa do Brasil –
não havia ainda o Estado do Tocantins -, o doutor Roberto Marinho
perguntava muito sobre nossa terra. (...) Perguntava-nos sobre a história, as
riquezas e as potencialidades goianas. Ao nos referir à antiga capital,
evidenciando sua condição de berço da cultura anhanguerina, citamos,
nominalmente, dentre outros ilustres contemporâneos, o de Goiandira
do Couto.
- Ela pinta quadros lindíssimos, usando como tinta a areia de todos os
matizes da Serra Dourada - interveio Leonídio, conhecedor da paixão de
diretor-editor chefe de “O Globo” por obras de arte.
- Areia? – indagou doutor Roberto Marinho.
Tivemos que esmiuçar. Contamos, com alegria, orgulho e detalhes que
Goiandira do Couto fora nossa professora no Lyceu de Goiás e descrevemos
sua técnica incomum espargindo sílica finíssima, de mil cores, guardada em
vidrinhos, sobre as figuras formadas com cola. Possuíamos um quadro desta
fada das imagens maravilhosas. Fomos busca-lo em casa e, no hall do hotel,
Leonídio nos aguardava com a previsão de quem entendia do riscado:
- Este quadro você já perdeu...
De fato, não tivemos como negar ao doutor Roberto. Fomos entregando,
conformados:
- É do senhor.
Fim de noite, todos cansados dos discursos e recepções do dia, o filho de
Irineu Marinho só queria saber da obra de Goiandira. Mas deixamos a suíte
presidencial com outro quadro muito mais forte em sua mente. Todas as
luzes estavam acesas, convergindo para a tela, perscrutada por olhos
deslumbrados. Aquele olhar atento, favorecido pelas lentes dos óculos,
penetrava minúcias e evidenciava cada toque de graça. A areia feito tinta
ofuscava sob as lâmpadas conforme faíscas nas manhãs, ao sol de Deus, na
furta-cor cintilante da Serra Dourada. Naquele momento, o homem mais
poderoso do Brasil, que escolhe, elege e afasta presidentes da República,
estava de joelhos, submisso ao talento de uma humilde artista goiana ausente
do seu grande triunfo. E foi assim que o quadro mostrando tortuosas ruas
vilaboenses, cheia de poesia e de tradições, passou a integrar na milionária
mansão do Cosme Velho, no Rio de Janeiro, a pinacoteca particular mais
badalada deste país (“DIÁRIO DA MANHÔ, “Roberto Marinho aos pés de
Goiandira”, 15/04/1995, s/p) (grifos nossos)210.

É perceptível que a obra de arte feita com areia havia superado os patamares
geográficos. A associação representativa entre a artista-artesã, a Cidade de Goiás e as
tradições “anhanguerinas”, convencionalmente chamadas de berço, modeladas no imaginário
coletivo vilaboense, expandiu as fronteiras goianas. Os já sabidos e discutidos esforços locais
neste sentido, os quais incluem o protagonismo direto ou indireto de Goiandira do Couto,
contaram com o apoio discursivo da impressa goiana e da crítica. Por isso, consideramos

210
Jornal “Diário da Manhã”, Roberto Marinho aos pés de Goiandira. Por: Jávier Godinho; Goiânia, 15 de abril
de 1995 s/p. Fonte: Acervo de Taís Helena Machado Ferreira, cedido em cópia digital.
214

esses veículos formadores de opinião, instrumentos decisivos para o sucesso deste formato
inventado de identidade urbana para consumo material e simbólico. Não obstante, ressaltamos
a tese de que uma parcela significativa desse status cultural e urbano adveio do poder
subjetivo das telas douradas. O refinamento nos detalhes, a precisão técnica, o inusitado
brilho multicor universalizaram e horizontalizaram diferentes olhares contemplativos para as
representações do passado colonial vilaboense circunscrito nas idealizações pictóricas
(re)imaginadas por Goiandira do Couto.
A propósito, vale a pena lembrar que o fato de estar focalizada nos holofotes da
fama, possivelmente acentuada pelo interesse de personalidades importantes211 desejosas por
saberem mais sobre ela, transformou a Casa de Goiandira em ponto turístico obrigatório para
aqueles que se deslocavam até a Cidade de Goiás. Relatos nos informam que, chegando ao
antigo casarão da família Couto, o tratamento dispensado pela artista-artesã aos visitantes,
anônimos ou não, era igualmente cordial. Sobre isso, Jávier Godinho repercutiu: “nos fins de
semana sua casa era uma romaria. Há domingos em que recebe setenta a oitenta turistas.
Quase nunca cobra e ainda oferece delicioso vinho de uvas que, em Vila Boa, se colhem duas
vezes por ano” (“O POPULAR”, Suplemento Com Areia também se Pinta, 1971, p.02)212.
Essa impressão, com o passar do tempo, popularizou-se e difundiu-se tanto
oralmente quanto pelos mais diversos meios de comunicação, como é o caso das informações
contidas no documento doado à AFFSD pelo Museu Casa de Cora Coralina, a Carta Mensal
da Associação de Cartofilia do Rio de Janeiro, Ano XVIII - Número 130:

Conheci-a quando numa viagem de ônibus de Goiânia-Goiás, sentei ao seu


lado. Tive grande alegria quando soube quem ela era. A conversa que
tivemos foi tão agradável que nem senti o tempo passar. Ao chegarmos na
cidade, fui convidado a visitá-la. Foi o que fiz logo depois do almoço. O
casarão de minha nova amiga estava com as portas e janelas abertas, cortinas
esvoaçando. Silêncio absoluto. Fui entrando, entrando, não vi ninguém.
Chamei-a pelo nome, nada. Corri a casa toda, todos os cômodos, mas só fui
encontrá-la no quintal, onde descalça, colhia pequi, para fazer licor. Quando
me viu, largou o que fazia para mostrar-me sua casa, seus quadros, suas
centenas de areias coloridas. Na copa, em cima da mesa rústica, maciça, um
lanche especial: bolos, biscoitos, sucos, licores de pequi e jenipapo. Não
demorou muito e apareceram outros visitantes amigos. Pode-se imaginar a
tarde agradável que tivemos tomando licor de pequi (Aliás, não conhecia)
(MELLO (ACARJ), Ano XVIII, N° 130, 2004, p.06).

211
Conforme a reportagem de Jávier Godinho, o jornalista-presidente das Organizações Globo, Roberto
Marinho, não conheceu pessoalmente a protagonista. Contudo, segundo seus reiterados depoimentos e dados
esparsos publicados na imprensa, ela foi visitada por personalidades públicas notáveis como: Pablo Neruda,
Juscelino Kubistchek, Chico Xavier, artistas e governadores de Estado.
212
Jornal “O Popular”, Suplemento: “Com Areia também se Pinta”. Por: Jávier Godinho; Goiânia, 05 de agosto
de 1971. Fonte: Acervo de Taís Helena Machado Ferreira (cedido em cópia digital).
215

O cotidiano de Goiandira de Couto, após o encontro com as areias não perdeu a


simplicidade característica da vida interiorana, não foi impactada pela profusão da carreira
artística em circuito nacional e internacional. Entre tantas idas e vindas, seja de suas obras ou
de si mesma, nas exposições que circularam por inúmeras cidades Brasil e do exterior, a
dedicação de Goiandira do Couto às suas convicções com a cultura vilaboense, pode ser
resumida a partir da seguinte declaração: “- Nasci com esse dom. Se tenho algum mérito é de
ser fiel a mim mesma e de não me divorciar nunca da minha terra e da minha gente” (COUTO
apud Suplemento de “O Popular”, 1971, p.02). Na atualidade, este pronunciamento pode ser
analisado como uma das verdades cumpridas na vida de Goiandira do Couto.
Ainda nos baseando na reportagem produzida por Jávier Godinho (1971, p.02),
“Com Areia também se Pinta”, verificamos que suas atividades desdobravam-se entre a
intensa carreira artística e o desempenho das funções de gestão e docência na Escola de Belas
Artes “Veiga Valle”.
Os pormenores sobre as práticas pedagógicas do ensino de arte, precipuamente
sobre a inserção da perspectiva preservacionista, faziam-se necessários para empreender uma
dedicação mais criteriosa a esse recorte. No entanto, mesmo não sendo prioridade deste
estudo cabe lembrar que, segundo Correa (2003, p.254-255), esta vertente artística favoreceu
a constituição de uma linhagem de sucessores deste estilo nas artes plásticas vilaboenses.
Entre eles, destacou-se: Regina Célia, Josélio Gomes Maranhão, Marly Mendanha e Divino
Ferreira Magalhães, único dos discípulos da arte preservacionista a utilizar-se de pseudônimo
artístico e que, há anos, reside fora do Estado de Goiás.
A técnica com areia, jamais foi ensinada na escola em que ela foi uma das
fundadoras e tampouco para algum dos citados, em particular. Esta informação se reafirma na
reportagem Senhora das Areias, de Valbene Bezerra, tal qual expusemos no primeiro
capítulo, mediante ao que foi declarado por Marly Mendanha, ex-aluna, seguidora da vertente
preservacionista e atual diretora da Escola de Belas Artes “Veiga Valle”, na reportagem,
“Adeus a Goiandira”, publicada em 2011, pelo jornal “O Popular”213. Na entrevista
concedida a mencionada repórter, (Valbene Bezerra), Goiandira do Couto demostrou que as
questões relacionadas à transferência de saberes tratavam-se de um assunto superado:

213
Caso o leitor considere oportuno, reveja as declarações de Marly Mendanha na página 30 desta tese.
216

Quanto à técnica que a tornou famosa, Goiandira garante nada ter a ensinar,
pois a considera muito simples. Primeiro, desenha a lápis na tela, preenche
os desenhos com cola comum e depois aplica areia colorida de cores
variadas. “Não tenho nada o que ensinar”, desconversa (“O VILABOENSE”,
Senhora das Areias, 2005, p.08)214.

Aliado a esse fato, avizinhamo-nos, um pouco mais, das ações desenvolvidas


por Goiandira do Couto dentro e fora da Cidade de Goiás. Atentos à documentação,
identificamos que o processo de ressignificação urbana e as conquistas políticos-culturais em
benefício da Cidade de Goiás passaram, também, por descontinuidades. E, se a construção do
sentido de cidade berço da cultura goiana havia se decantado, inclusive, pelo respaldo
oriundo dos poderes governamentais, Estado e Município, tendentes, a seu modo, na
implementação do projeto de futuro na antiga capital, não eximiu a Escola de Belas Artes
Plásticas “Veiga Valle” dos impasses de ordem administrativa entre os referidos poderes, de
maneira mais acentuada em fins da década de 1970. Nesta ocasião, Goiandira do Couto que
desempenhava a função de diretora, envolveu-se, novamente, na litigância pela permanência
de uma instituição escolar na Cidade de Goiás.
Nesse sentido, buscamos, com efeito nos registros históricos, demostrar
complementariedade dos papéis públicos atribuídos à artista-artesã que, a nosso ver,
explicitam a permanência da linha tênue que enxergamos entre Goiandira do Couto e a
Cidade de Goiás, mesmo diante e durante um período considerado como profunda renovação
na sua carreira artística:

A Escola de Belas Artes “Veiga Valle”, da Cidade de Goiás, continua


fechada, desde maio último, porque a Secretaria da Educação e Cultura do
Estado nega-se a proporcionar-lhe os professores que necessita. Eles são
Goiandira do Couto, diretora: Silvia Pacheco Curado e Lúcia Nascimento, as
três atualmente à disposição da Superintendência Regional da SEC,
praticamente sem função. A outra, Neusa Moraes. Reside em Goiânia e
semanalmente ia à antiga capital para lecionar Escultura. Ao todo, esses
quatro professores recebem da Secretaria da Educação e Cultura do Estado
menos de cinco mil cruzeiros. Como alegação da SEC é de que o Estado
adotou a medida para fazer economia, a Prefeitura da Cidade de Goiás, a
quem pertence a Escola de Belas Artes, se propôs a pagar os vencimentos,
ficando assim a cessão dos professores sem ônus para o Estado. (...) O caso
foi diversas vezes levado ao governador Irapuan Costa Junior, que prometeu
resolvê-lo o quanto antes. O primeiro a se interessar pela solução foi o
deputado federal Helio Levy, que telegrafou à diretora Goiandira do Couto,
informando que fora ao governador comunicar o que estava ocorrendo em
Goiás (...). Passaram-se algumas semanas, o prefeito Djalma de Paiva enviou
ofício à SEC com a proposta da municipalidade de pagar os vencimentos dos
214
Jornal “O Vilaboense”, Senhora das Areias. Por: Valbene Bezerra. Goiás, ago/set de 2005, Ano 12. Fonte:
Acervo da autora.
217

professores, mas a resposta não lhe foi dada até agora (“O POPULAR”,
“Escola de Artes continua fechada”, 1977, s/p)215.

Pode ser que tenha sido um desalinho pontual das conexões oficiais de poder
em relação aos fundamentos do projeto de futuro. No entanto, o que nos interessa verificar é a
densidade do envolvimento de Goiandira do Couto com o conjunto deste mesmo projeto,
pois, nas palavras de Godinho (1971, p.02), o ofício da artista-artesã na Escola de Belas Artes
“Veiga Valle” estava diretamente destinado ao seu sustento. Conjecturamos uma visão
diferente. Aventamos a hipótese de que esta dedicação, em um momento tão profícuo de sua
carreira, tinha um propósito mútuo: dar mais ênfase à sua imagem ao passo que as posições
culturais de destaque na Cidade de Goiás se mantinham restritas à cúpula dos guardiões das
tradições.
Esse pensamento reitera a fala quase declamatória proferida pela artista aos
visitantes, quando se referiria à circulação de suas obras pelo mundo. Portanto, a
mercantilização delas, por certo, configurava outras variáveis de renda. Novamente, a
entrevista concedida a pesquisadora Luz (2007), no ano de 2006, possibilita-nos franquear,
nesta tese, voz à protagonista:

(...) eu tenho quadro na embaixada da Espanha, Chicago, Alemanha,


Portugal, África do Sul, na ONU, Suíça, Dinamarca, Áustria, Austrália,
Escócia, Ioguslávia, Paris, Roma, México, Chile, Japão, Paraguai, Uruguai,
El’ Salvador, Iraque, Bélgica, China, Colômbia, Tailândia, Moscou, Israel,
Atlanta, Orraio do Sul, Nova York, no grande museu de Massachusets, nos
Estados Unidos, e este mesmo quadro quem tem dele é o Presidente Médice
e a Ministra Ester Ferraz. Agora tem reportagens minhas nos jornais da
Alemanha, revistas da Alemanha, jornais dos Estados Unidos. Estou
figurando livros da França, fiz um vídeo agora pra Portugal, fiz outro para
Paris (COUTO apud LUZ, 2007, p.03).

Semelhantemente, a jornalista Valbene Bezerra, em 2005, alude outras


sensibilidades neste mesmo sentido. Elas, por sua vez, complementam as ilações alinhavadas
às relações de poder estabelecidas culturalmente por meio do enredo das crenças envolvendo
a artista, a Cidade de Goiás e as representações da tradição, inclusive pictóricas, vislumbrando
o futuro.

215
Jornal “O Popular”, “Escola de Artes continua fechada”. Goiânia, 23 de agosto de1977, s/p. Fonte: Acervo
de Taís Helena Machado Ferreira, cedido em cópia digital.
218

Goiandira do Couto nunca teve vontade de sair de Goiás. De lá construiu a


carreia que conquistou admiradores nos lugares mais distintos. Seguindo a
trilha de seus quadros, viajou pelos Estados Unidos, pela Europa, pela
América Latina e pelo Japão. Sem perder o fôlego, vai enumerando os países
que conheceu. Com satisfação, sempre voltou para casa, pois nunca se
imaginou vivendo fora de Goiás. “Da minha casa só saio para o cemitério”,
diz. Apesar da idade avançada, a pintora tem saúde invejável. “Só sinto
porque vou morrer um dia. Mas vou muito chateada. Adoro a vida, a
natureza, as pessoas, a música, a dança”, afirma (JORNAL “O
VILABOENSE”, Senhora das Areias 2005, p.08).

Os itinerários da carreira artística de Goiandira do Couto, mormente na fase


com areia, deram a ela a possibilidade de conhecer outras partes do mundo. A vastidão dessas
experiências culturais não conseguiu aparta-la da Cidade de Goiás e, por conseguinte, de seu
protagonismo nas ações consoantes à ressignificação cultural da referida urbe. Como tal,
conjecturamos que suas representações pictóricas da cidade-ideal emprestaram, anos mais
tarde, ao já mencionado Dossiê de Goiás, um norte para visibilizar e reconhecer quais são e
onde estão os bens culturais da Cidade de Goiás, à luz das tradições. Compreende-se,
portanto, que ancorar nas representações das telas douradas que, por sua vez, foram
mensageiras percussoras do fascínio pela cidade-ideal em domínios estrangeiros, sugere
respaldo ao discurso de monumentalidade histórica que se vê reafirmado nos trâmites legais
para o reconhecimento da cidade-patrimônio. Assim, fica evidente que os interesses de
consagração da cidade no futuro comprometiam-se, novamente, com a descompressão das
questões relacionadas à pluralidade cultural inerente às localidades fundadas no ciclo do ouro,
como é o caso da antiga capital do Estado de Goiás.
Analisar como Goiandira do Couto reconstruiu, imageticamente, a paisagem da
cidade berço da cultura goiana, utilizando-se do jogo técnico de luz e sombras que, a nosso
ver, muito se aproxima da linguagem e dos parâmetros utilizados pelo documento que
normatizou e formalizou o projeto de futuro, é o que se pretende problematizar nos próximos
subitens deste capítulo.

4.3 O Olhar Guardião: recriando o centro da paisagem cultural vilaboense

O resultado das criações artísticas provém, de início, da observação. O ato de


ver instiga os sentidos. É este também o pensamento de Capel (2010, p.157), estudiosa das
produções de Francisco de Goya (1746-1828), quando diz que a estética entrelaça ao belo por
meio da experiência sensória e, consequentemente, “(...) se associa a um juízo, a uma ideia,
um engajamento de imaginação que está sempre conectado a algo nele e para ele” (p.158).
219

Os encaminhamentos de Heloisa Selma Fernandes Capel podem ser aplicados


às análises sobre os modos de ver a cidade, pictoricamente, idealizada por Goiandira do
Couto, tanto em óleo quanto em areia. Porém, conforme discutimos, as obras da segunda fase
- areia colorida sobre fibra de madeira - tiveram maior projeção e circulação cultural.
Certamente, esse é um dado relevante no que se refere a confirmar a hipótese de que o
subjetivismo pictórico da artista, baseado na defesa de suas convicções e práticas culturais,
tenha, possivelmente, estimulado crenças sobre a atual paisagem urbana da Cidade de Goiás.
Falamos isso, pelo fato de que, não raras vezes, críticos de arte compararam as
obras de Goiandira do Couto a um discurso verossímil sobre a paisagem cultural da antiga
capital do Estado de Goiás. Inventariando alguns desses testemunhos, deparamo-nos com uma
concepção peculiar sobre o projeto criador da artista: “(...) casas brotaram de suas mãos
hábeis, Goiandira do Couto veio ‘construindo’ casarões que povoam o cenário da enigmática
cidade que, apesar de haver sido, por décadas, a capital de Goiás, ainda guarda o nome
primitivo de vila” (“DIÁRIO DA MANHÔ, Goiandira: e a areia colorida se faz arte, 2011,
p.04)216. Percebe-se que a acepção da cidade em Goiandira do Couto evocou no expectador
sentidos pretéritos semelhantes a lugar quase intacto e anacrônico.
Com o mapa a seguir (figura 30), buscamos retratar a Cidade de Goiás entre o
passado e o presente. A forma piramidal, representada em tons de cinza escuro, focaliza o
centro histórico da Cidade de Goiás margeado pela urbanização lenta, porém gradual,
ocorrida ao longo de quase três séculos de história. Ainda assim, notamos que as
representações paradigmáticas da cultura europeia predominam sobre uma formação urbana
hibrida. É provável que o olhar guadião preserva visualmente a memória dos começos
urbanos da antiga Vila Boa, trecho compreendido espacialmente entre o Largo do Rosário
(região norte) e o Largo do Chafariz (região sul), pois os valores, histórico e simbólico,
arraigados nesse circuito provêm do empoderamento da paisagem em decorrência das
oficialidades histórica. O elitismo nos espaços de poder, localizados no centro histórico da
Cidade de Goiás, faz parte do esfoço empreendido pela elite cultural do século XX, quando
utilizou-se das estratégias de revitalização, ressignificação e reapresentação do discurso
oficial para, mais uma vez, refundar uma cidade-ideal circunscrita aos domínios alcançados
pelo olhar guardião. Coincidência ou não, ele converge ao lugar dos começos urbanos dos
tempos coloniais. A cartografia do olhar guardião segue acompanhado de sua legenda na
figura 30:

216
Jornal “Diário da Manhã”, “Goiandira: e a areia colorida se faz arte”. Por: Licínio Barbosa; Coluna:
Opinião Pública. Goiânia, sábado, 3 de setembro de 2011. Fonte: Acervo da autora.
220

Figura 30 - Diagrama do Olhar Guardião.217

Elaboração: Edinéa de Oliveira Ângelo - Arquiteta e Urbanista.

Grande parte das representações de Goiandira do Couto (em óleo ou areia)


dedicam-se a reinterpretar a paisagem urbana que situa-se no centro histórico da Cidade de
Goiás. Estamos convencidos de que o simbolismo desta localidade ampliou-se nos dias atuais,
desde que os guardiões das tradições vilaboenses elegeram a centralidade histórica vilaboense
como cenário para as práticas culturais reelaboradas e colocadas em prática pela OVAT, em
1966, conforme detalhamos no capítulo anterior. A exposição destas particularidades vem ao
encontro da concepção teórica de que não se pode pedir pouco da imagem. Visando absorver

217
Percorreremos o itinerário entre o Largo do Rosário e o Largo do Chafariz, guiados pelo olhar guardião que
vela a paisagem urbana da Cidade de Goiás, revelando tradições construídas entre o passado e o presente. Os
monumentos que se localizam neste eixo, são vistos por essa tese como lugares de memória, pictoricamente,
evocados pelas criações artísticas de Goiandira do Couto. Demarcamos no mapa o que será visto e interpretado,
à luz das imagens. Segue a relação de monumentos e o ano em que foram edificados na Cidade de Goiás: 1.
Igreja do Rosári0 (1761; reconstruída em 1934); 2. Casa de Cora Coralina (1770); 3. Hospital São Pedro de
Alcântara (1825); 4. Cruz do Anhang uera (1918); 5. Matriz de Sant`Anna (1743); 6. Igreja Nossa Senhora da
Boa Morte (1779); 8. Chafariz de Cauda (1778); 9. Museu das Bandeiras, antiga Casa de Câmara e Cadeira
(1761).
221

o máximo de informações destes documentos, que se dispõem ao diálogo exclusivamente por


meio de códigos próprios, decidimos adotar o método proposto por Capel (2016), o qual é
constituído de seis etapas de análise218, objetivando um diálogo profícuo com a produção
pictórica que orienta as diretrizes hipotéticas desta tese.
Seguindo esse raciocínio, convidamos o leitor a pousar, conjuntamente, o olhar
sobre a vista panorâmica da cidade-ideal concebida na tela, Largo do Rosário-Vista da
Cidade (1976), analisada neste estudo como uma obra portadora e transmissora de subjetivos
juízos de valor (cultural) da artista-artesã sobre as tradições vilaboenses. Por se tratar de uma
produção pictórica de ampla circulação no meio artístico, cultural e, por conseguinte,
reconhecida com um dos mais famosos quadros que retratam a paisagem histórica vilaboense,
percebe-se que as peculiaridades expressas neste modo de ver o passado influenciaram, em
relativa medida, na acepção da Cidade de Goiás ao status de cidade-patrimônio.
Isso não quer dizer que desconsideramos o potencial histórico-cultural e
arquitetônico-natural da antiga capital do Estado, o qual fez jus à aquisição do título de
Patrimônio Histórico da Humanidade, concedido em 2001. Todavia, assim como no discurso
visual, encontramos sentidos de inalterabilidade e, possivelmente, invisibilidade de outras
versões históricas sobre a paisagem urbana colonial local no documento enviado à UNESCO
(Proposição de Inscrição da Cidade de Goiás), o Dossiê de Goiás, apoia-se em
generalizações semelhantes. Logo, problemáticas de ordem representativa e interpretativa
aproximam ambos os discursos e, por sua vez, retroalimentam mútuas dúvidas. Eis um
exemplo:

Vilaboenses insistem em manter um imaginário povoado por fantasmas e


alegorias dos tempos passados. Ancoras do presente, as narrativas refazem
reiteradamente a singular trajetória coletiva estabelecendo, em seu
conteúdo, os nexos necessários para a apropriação e interpretação dos
processos históricos contemporâneos (DOSSIÊ DE GOIÁS, ANEXO IV, p.
03-04) (grifos nossos).

Ainda não estamos convencidos que as narrativas priorizam contar uma


“trajetória coletiva”. Tem-se a impressão de que o centro histórico, especialmente o eixo de
poder, sintetiza as reiteradas narrativas do passado a partir do realce aos desbravadores, suas
“glórias” e legados visíveis. Mas, e os invisíveis? Retine o silêncio.

218
As etapas propostas por Capel (2016) são constituídas dos respectivos passos: “1. Etapa de Observação Inicial
e Escrita de Percepção; 2. Anotação de Questões-Problema; 3. Investigação das questões problema; 4. Exame
dos Elementos da Imagem, 5. Análise de Dados de Circulação e Recepção da Imagem; 6. Diálogo com Outras
Obras” (CAPEL, 2015, no prelo, p.01).
222

Compreende-se que houve por parte da elite controladora da cultura, na Cidade


de Goiás, uma intervenção racional no sentido de supervalorizar o centro urbano vilaboense
por um viés oficial. Possivelmente, o interesse de alguns discursos escritos ou visuais seria o
de consignar-se com uma interpretação unilateral. Logo, anuviaram o entendimento coletivo
de que o período colonial está fundamentado em uma formação sociocultural híbrida. Não nos
propomos a criticar o protagonismo da cultura branca na formação histórico-cultural da
Cidade de Goiás. Isso é fato. Conquanto, problematizar o lugar de importância desta etnia na
narrativa construída pelos guardiões das tradições para representar a coletividade vilaboense
é, convenhamos, função filosófica deste estudo.
Feitas as ponderações iniciais, a imagem retratada na tela, Largo do Rosário -
Vista da Cidade (1976) (figura 31), subentende um discurso contemporâneo de permanências
e, sobretudo, de subjetiva exaltação dos símbolos da tradição.

Figura 31 - Largo do Rosário - Vista da Cidade, Goiandira do Couto, areia sobre fibra de
madeira, (141x93 cm), 1976.

Fonte: Taís Helena Marchado Ferreira, 2011.

Fundamentalmente, conjecturamos que um olhar guardião paira sobre a cidade


reedificada, simbolicamente, a partir do pó de pedra. Pelo caminho sinuoso, o expectador é
surpreendido com a riqueza de detalhes que o conduz ao horizonte urbano concebido em tons
pastéis pela artista-artesã, Goiandira do Couto. Utilizando-se do exímio jogo de luz e
sombras, contemplamos as evocações da memória oficial, modelada em cal e pedra, reluzindo
nuances douradas. A vegetação mescla-se ao casario, aos monumentos que observam e que
estão sendo observados pelo olhar solitário daquela que se posiciona como guardiã-sentinela
da cidade-ideal.
223

Preliminarmente, a obra na figura 31, Largo do Rosário-Vista da Cidade


(1976), em comparação com o prospecto português de 1751, apresentado no primeiro capítulo
(figura 1), nos remete a lembrança da urbanização portuguesa na Cidade de Goiás, ocorrida
no século XVIII, em detrimento ao boom aurífero e migratório para regiões do Brasil Central.
Mediante esse argumento, consideramos plausível trazê-las novamente à baila:

Figura 01 - Prospecto de Vila Boa – Vista Figura 31 - Largo do Rosário - Vista da


no sentido inverso, isto é, do norte para o Cidade Goiandira do Couto, areia sobre
sul, em 1751, (original Casa da Ínsua, fibra de madeira, (141 x 93 cm), 1976.
Portugal).

Fonte: Cópia disponível em: MUBAN. Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011.

De fato, elas se comunicam na aparência. Olhando, assim, de relance, pode até


ser que a primeira imagem (figura 01) represente o avesso da segunda (figura 31). Porém,
seria ingênuo dizer que a intenção de Goiandira do Couto era representar uma cópia fiel e
substantiva do Prospecto de Vila Boa (1751), disposto na figura 01 ou mesmo trazer uma
expressão fidedigna da paisagem real. Se assim o fosse, acreditamos que com relação ao
documento iconográfico oficial (figura 01), a artista não teria se preocupado tanto com a
meticulosidade das formas. E, se fossemos pensá-la como uma tentativa de reprodução
mimética da paisagem de vivências e experiências culturais certamente não identificaríamos
um lugar tão desabitado. Mas, o que, porventura, motivou a artista a se posicionar justamente
neste ângulo emblemático da Cidade de Goiás?
Nesse momento que o rigor crítico amplia o campo de visão do historiador
cultural da arte e as questões-problema passam a ser observadas para além do que se vê. O
método de decomposição da imagem, quando submetido ao diálogo com outras testemunhas
da história, torna-se uma ferramenta interessante na busca por respostas guardadas na aporia
do detalhe219. Resumidamente, trata-se de um jogo dialético entre as representações
imaginárias e as sensibilidades do mundo real cuja polaridade do fenômeno artístico não deve

219
Conceito didi-hubermaniano. Cf. (DIDI-HUBERMAN, 2013).
224

ser lida sob a perspectiva do reflexo imediato, mas sim pelo posicionamento de mediações
metalinguísticas que, por sua vez, são necessariamente sintomáticas (CAPEL, 2010, p.160).
Esse princípio ressalta que o passado serviu de anteparo para as deliberações
culturais sobre o presente/futuro da Cidade de Goiás, e que a participação de Goiandira do
Couto na elaboração do enredo criativo deste processo, foi realmente efetiva.
Consequentemente, repercutir sua trajetória, práticas, escolhas e influências culturais
permitiu-nos irromper o campo do visível, pois há indícios suficientes para dizer que a obra
Largo do Rosário - Vista da Cidade (1976), figura 31, captura os sentidos totêmicos da
narrativa construída em torno da cidade-ideal. Essa perspectiva norteia-se na concepção de
berço da cultura goiana.
Do primeiro ao último plano da referida imagem, nota-se que a artista-
identifica e consegue reunir, em um mesmo conjunto paisagístico, elementos de sua memória
subjetiva e afetiva que, em boa medida, cruzam-se com o viés da história oficial; retórica
eleita pelos guardiões das tradições como imagem-discurso de projeção da Cidade de Goiás
para os horizontes da cidade-patrimônio, principal objetivo do projeto de futuro. Nesse
sentido, reexaminado o texto do Dossiê de Goiás, sessão Inventário Nacional de Referências
Culturais (Anexo IV - Introdução), fundamentamos a presente afirmativa cuja profusão
salienta-se no seguinte fragmento textual:

Ao suporte da paisagem natural e da paisagem urbana agregam-se falas,


expressando valores que organizam a maneira de ser local como elementos
de um discurso aberto, interativo. É assim que, para além do fato, permanece
a versão transformada em crença: Bartolomeu Bueno (fundador da cidade de
Goiás) teria sido enterrado com sua espada de ouro onde hoje se ergue o
vilarejo da Barra (também chamado de Buenolândia220). Há, entretanto
controvérsias: Bartolomeu teria sido enterrado a meio caminho entre Barra e
Goiás, durante sua derradeira viagem à cidade, ou carregado em uma rede,
ainda teria sido enterrado na Igreja Matriz, a de Santana, na Cidade de
Goiás. Importa reter que Bartolomeu Bueno e seu “escalibur” fundador
permanece como mito originário, épico em seu estilo e revelador de ethos,
desbravador, domesticador dos contrastes natural e humano do sertão de
Goiás. (...) Narradores e narrativas vão agenciando e atualizando, de modo
artesanal, os códigos coletivos formadores da identidade local (DOSSIÊ DE
GOIÁS, Anexo IV, Introdução, CD-ROOM, slide 05-06).

Não é nosso interesse repercutir novamente as representações e controversas


proporcionadas por este fragmento sobre o mito fundador; consideramos satisfatória a
discussão sobre este tema no primeiro capítulo. Desta vez, o que nos chama a atenção é a

220
A referida localidade situa-se há aproximadamente trinta quilômetros de distância da Cidade de Goiás e,
atualmente, é jurisdicionado geográfica e politicamente ao município vilaboense.
225

confluência do discurso escrito com a narrativa visual da figura 31. Para exemplificar essa
ideia, pinçamos da citação do documento o seguinte trecho: “Narradores e narrativas vão
agenciando e atualizando, de modo artesanal, os códigos coletivos formadores da identidade
local” (DOSSIÊ DE GOIÁS, Anexo IV, Introdução, CD-ROOM, slide 06).
Assim, lendo e relendo o conteúdo dessa frase, temos a impressão de que o
autor parece ter se inspirado na imagem da tela Largo do Rosário-Vista da Cidade (1976)
para escrevê-lo. Aliás, arriscamos ir um pouco além. Entendemos que este fragmento textual
serviria quase como legenda para os modos como Goiandira do Couto narra a cidade
preservando as memórias e os mitos da tradição vilaboense como se fossem representações de
uma identidade coletiva.
Em síntese, visando aprofundar nestas análises, propomo-nos a reexaminar a
referida obra, agora, particularizando-a a partir dos detalhes.

Figura 31 - Largo do Rosário-Vista da Cidade, Goiandira do Couto, areia sobre fibra de


madeira, (141 x 93), 1976.

4° Detalhe

2° Detalhe 3°Detalhe

1° Detalhe
Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011.
226

Aproximar, neste caso, é sinônimo de ver melhor. Por isso, ao


particularizarmos a imagem na figura 31, deparamo-nos com o primeiro detalhe. Um busto
sobre o pedestal (1° detalhe) ocupa a posição central na tela que une, através do olhar
guardião, o Largo do Rosário (primeiro plano) e o Largo do Chafariz (último plano). Este
símbolo alude à memória do poder político na pessoa do ex-presidente da Primeira República,
Epitácio Pessoa, que, dada a visibilidade, parece ter assumido a investidura de rememorar
governantes passados, porém, não superados aos olhos paradigmáticos da tradição.
Assenhorada destes princípios, Goiandira do Couto posiciona-se, em sua retaguarda,
supostamente, com o objetivo de zelar para que a vanguarda não perdesse o foco no passado.
Diante dessa possibilidade, compreende-se que o olhar guardião serviu de amparo ao projeto
de futuro.
Ainda assim, lançamos uma reflexão: o que estaria atrás da artista para que
pudesse vislumbrar este ângulo da cidade? Para alguns menos atentos, ou que desconhecem a
cidade em que inspira a tela representada na figura 31, informamos que essa visão
privilegiada se dá porque a artista está posicionada na elevação onde se localiza a Igreja do
Rosário, aquela cuja arquitetura colonial foi alterada para o estilo gótico, assim como
discutimos e visualizamos nas imagens apresentadas no primeiro capítulo. Prado (2014), além
de nos relembrar aspectos pontuais sobre esse episódio, acrescenta reflexões que igualmente
nos interroga:

Verificou-se que o espaço ocupado pela igreja atual era antes o lugar de uma
capela em estilo colonial construída com a finalidade de abrigar o culto á
Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, trazido para o Brasil a partir
da colonização portuguesa e do tráfico de negros pelo Atlântico,
institucionalizado a partir da criação de irmandades negras, visíveis graças à
preservação dos manuscritos de compromissos, como no caso do Termo de
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos que corrobora a presença de confrarias e irmandades religiosas em
Goiás (...). Tratando-se de problemas, nos veio um amplo rol de perguntas
umbilicalmente conectadas à demolição da igreja, aos silêncios quanto à
questão racial em Goiás e ao apagamento de rastros da cultura negra na
região (PRADO, 2014, p.172-174).

Ora, se não fosse os manuscritos, a materialidade da presença negra se


sucumbir-se-ia da paisagem vilaboense? Se levarmos em consideração o ato de intervenção na
paisagem vilaboense, praticado em 1934, durante o auge da crise mudancista, e a posição
assumida pela artista ao conceber a tela Largo do Rosário-Vista da Cidade (1976) que,
inclusive, declarou: “Eu andei a cidade toda até encontrar um lugar. Então eu andei, andei a
227

cidade, aí fiquei na porta da Igreja do Rosário, naquela escadaria, fiquei e pintei aquele
quadro grandão (...) toda a cidade está aí. Toda” (COUTO apud FERREIRA, 2011, p.183),
até poderíamos crer na possibilidade de apagamento da memória africana. No entanto,
considerando que as imagens jogam com a capacidade do historiador cultural da arte de ver,
rastrear e ressuscitar sobrevivências, estamos convencidos de que sabendo operá-las, esses
testemunhos transformam-se em dispositivos do sentir/“ouvir” os ecos das vozes escamotadas
pelos ângulos genéricos da cidade-ideal.
Não obstante, a priori, daremos uma pausa nesta discussão, pois acreditamos
que, ainda, há muito para ser visto e, possivelmente, “escutado” no itinerário de poder
compreendido entre o Largo do Rosário e o Largo do Chafariz nos modos como a referida tela
(figura 30) evoca a cidade, seu passado e suas tradições. Essa, certamente, é uma das funções
precípuas do métier desse estudo que, em síntese, atenta-se ao seguinte princípio:

Revelar o escondido, eis o grande desafio. Expor o até então soterrado ao


olhar dos habitantes, revelando outros espaços e tempos em um território já
transformado por novas edificações e novos traçados. Dar e ver, compondo o
antigo com o novo, é tarefa engenhosa e difícil, nem sempre realizável. Mas
ainda há mais: aquilo que se sabe de uma cidade, em termos de
materialidades visíveis, contido nos arquivos e acervos, mas do qual não
mais existem traços. Este, contudo, é o que chama de “visível escondido”,
uma vez que dele quase não se fala ou não se consulta. A rigor, são os
pesquisadores que frequentam as instituições detentoras de acervos e sua
importância tem ainda escassa visibilidade, seja para a população e para as
autoridades. Considerados como depósitos de papel velho, eles guardam
rastros, marcas de historicidade que falam daquilo que não mais se oferece à
vista. São, portanto, guardiões do “antigo”, ou seja, restos do passado que
acumulam tempo, história e memória (PESAVENTO, 2008, p.06-07).

O cruzamento de narrativas, sejam elas visuais ou escritas, tem sido o método


utilizado nas discussões tramadas até aqui. Assim, seguindo os rastros deixados pelos
detalhes da figura 31, chegamos ao reduto das memórias afetivas da artista simbolizado pela
casa branca, de barrado azul, porta e janelas verdes entreabertas (2° detalhe). A representação
trata-se do lugar onde Luiz do Couto (pai de Goiandira do Couto) viveu a infância, parte de
sua juventude e os primeiros anos do seu regresso à Cidade de Goiás, em 1921, durante o
interstício temporal em que a residência dos Couto, ou seja, enquanto a popular Casa de
Goiandira era construída na Rua Joaquim Bonifácio. Consequentemente, a segunda filha do
casal, Luiz e Maria do Couto, recém-chegados do município goiano de Catalão, morou na
referida casa localizada no Largo do Rosário, ambiente originário do pilar de pedra que, de
algum modo, subsiste nos lances e nuances das areias semeadas pelas digitais da artista-artesã.
228

Sob tal perspectiva, focados no lado direito da tela, Largo do Rosário-Vista da


Cidade (1976), deparamos com os elementos que compõem o terceiro detalhe (3° detalhe).
Entre eles, um sobrado em tons terrosos e, ao fundo, permitindo ampla visibilidade, a Igreja
Matriz de Sant`Ana, figurada por nuances em tom pastel. Ambos os monumentos possuem
relação estreita com símbolos importantes para a narrativa das tradições vilaboenses. É
provável que a presença do sobrado, quase encoberto pela típica vegetação pujante na cidade,
assenta lugar memorável ao patrono da OVAT, José Joaquim da Veiga Valle, que, consoante
a placa de bronze afixada no frontal da casa, identifica que a residência, ao lado dele,
pertenceu ao escultor barroco. Imagens atuais do Largo do Rosário confirmam nossas
suposições:

Figura 32 - Largo do Rosário, Cidade de Goiás-GO, 2016.

Fonte: acervo da autora.

Colocamo-nos quase que na mesma posição de Goiandira do Couto para


obtermos o ângulo de visão da artista-artesã na ocasião da concepção da tela, Largo do
Rosário-Vista da Cidade (1976). Observando atentamente, a casa do escultor aparece no
canto direito da fotografia (figura 32), ainda que parcialmente. Aproximamo-nos da residência
229

e fizemos o registro dos dizeres trazidos na referida placa em homenagem ao renomado


“santeiro” goiano:

Figura 33 - Placa em Homenagem a Joaquim da Veiga Valle, 2016.

Fonte: acervo da autora.

A vista panorâmica, de fato, abarca uma parte representativa do centro


histórico da Cidade de Goiás. Retomando as análises sobre o 3° detalhe, observa-se que tanto
na figura 31 quanto na figura 32, é possível avistar a matriz de Sant`Ana. Trata-se de um
importante edifício religioso que, no século XVIII, serviu como lugar de culto e sede da
irmandade dos homens brancos. Complementando esse simbolismo, segundo o Dossiê de
Goiás, existe a crença, ainda que controversa, de que os restos mortais do bandeirante
fundador, Bartolomeu Bueno da Silva, jazem naquele lugar.
Para o enredo das tradições, esses dois personagens são visivelmente
emblemáticos. Por isso, aventamos a hipótese de que a intenção da artista-artesã era forjar um
lugar de memória que os assentasse, simultaneamente, no caminho que se abria para o futuro.
Referimo-nos ao patrono da OVAT, Veiga Valle, e o mito fundador, popularmente conhecido
como “Anhanguera”. Mas, ainda persiste a indagação: por que a casa do notável escultor não
aparece claramente no discurso proferido na tela, Largo do Rosário-Vista da Cidade (1976),
assim como pode se ver imagem fotográfica da figura 32?
230

A resposta espraia-se pelas subjetividades intrínsecas à trajetória público-


privada de Goiandira do Couto. Sendo a artista-artesã herdeira de tradições, ao retornar ao
Largo do Rosário para pintar a representação da cidade-ideal, colocou-se na condição de
intérprete contemporânea do passado e, por isso, cercou-se dos principais ícones da tradição
que ali residem. A “invisibilidade” pictórica do lugar de memória que alude o patrono da
OVAT demonstra que, enquanto fundadora e legitimadora dessa instituição, ela se posicionou
como patronesse da entidade equiparando-se, à Veiga Valle. Naquele momento, década de
1970, era necessário instituir o seu lugar de fala como interlocutora do passado, a fim de
direcionar o caminho a ser seguido pelos atores envolvidos com a execução do projeto de
futuro. A transição da cidade-ideal para a cidade-patrimônio, bem como as contribuições de
Goiandira do Couto neste processo, é tema central do próximo capítulo.
Finalmente, avizinhamo-nos do quarto e último detalhe (4° detalhe). Nele,
vislumbramos a reunião do conjunto de monumentos políticos e religiosos. A catedral de
Sant`Ana, desta vez, divide o espaço do poder religioso com a Igreja da Nossa Senhora da
Boa Morte, ao centro, que, inclusive, foi utilizada como catedral da Cidade de Goiás entre os
anos 1874 a 1968, lapso temporal que demarca o desabamento e a reconstrução da matriz. No
último plano, já nas imediações do Largo do Chafariz, vê-se a Casa de Câmara e Cadeia, atual
Museu das Bandeiras, notável símbolo de poder e repressão durante o período colonial e
imperial221.
Diante do que foi colocado, enxergamos a tela, Largo do Rosário - Vista da
Cidade (1976), como uma narrativa visual dotada de potencialidades capazes de encantar e,
por sua vez, “confundir” o expectador menos atento de que a perspectiva simbólica da cidade-
ideal possa ser uma versão fidedigna sobre a paisagem urbana da Cidade de Goiás. Até
porque, se levarmos em conta os discursos orais proferidos por Goiandira do Couto aos
visitantes, turistas e pesquisadores que se dirigiam até à sua residência, percebemos, em boa
medida, sintonia entre a explicação da artista e a paisagem idealizada por ela. O jogo retórico-
visual se confirma no seguinte depoimento que, certamente, deve ter sido repetido à exaustão
pela protagonista:

221
Visando diálogo sistemático, também, com a historiografia goiana, subscrevemos os dados trazidos por
Moraes (2012), os quais reiteram as origens oficiais dos monumentos que compõem a paisagem urbana do centro
histórico da Cidade de Goiás mostradas quase semelhantemente por Goiandira do Couto: “No Prospecto de Villa
Boa, de 1751, encontram-se registradas, da parte norte para o sul, a igreja matriz com o consistório das
irmandades do Senhor dos Passos e do Santíssimo Sacramento, as casas de morada do capitão general e a capela
Nossa Senhora da Lapa, com um cruzeiro em frente. No atual largo do Chafariz, aparecem a capela da Boa
Morte, a cadeia e a casa de câmara e o paço do Senhor do Passos. Isso nos leva a acreditar que o edifício da casa
de câmara e cadeia encontram-se em seu local primitivo (MORAES, 2012, p.47).
231

(...) Aqui é a estátua do Epitácio Pessoa, o presidente que mais trabalhou


pelo Estado de Goiás. Aqui tem a casa de Cora Coralina, o Rio Vermelho, o
símbolo da cidade que é a Cruz do Anhanguera que foi descoberta por
meu pai. Sobe o lado do Palácio do Governo, Conde dos Arcos. Entra nessa
rua, que têm o nome do meu pai. Entra aqui tem a Igreja Nossa Senhora da
Boa Morte, que virou Museu de Arte Sacra, onde tem as obras de Veiga
Valle. Sobe aqui vai entrar la na cadeia que agora é Museu das Bandeiras.
Depois, aqui é a primeira igreja da cidade, que é a Catedral. E aqui, essa rua
comprida, é a primeira rua de Goias, a Rua da Cambaúba. Nessa casa eu
morei, depois que eu vim para essa que moro atualmente. Então,
naquele quadro eu falei tudo (COUTO apud FERREIRA, 2011, p.183)
(grifos nossos).

É nesse sentido, que depreendemos as intervenções simbólicas na paisagem


urbana vilaboense, por meio do olhar guardião, como um rastro emblemático da preservação
do passado, valendo-se da astúcia das imagens que, neste caso, recriaram marcas de
historicidade em um espaço dotado de alteridade intrínseca ao núcleo mais antigo,
devidamente reconstruído para ser/fazer referência ao lugar dos começos históricos e urbanos
da Cidade de Goiás.
A descrição de Goiandira do Couto contempla o caminho que nos conduzirá ao
outro extremo da cidade-ideal mostrada na tela Largo do Rosário-Vista da Cidade (1976), ou
seja, o Largo do Chafariz. Pela “Rua da Cambaúba”, conhecida nos tempos coloniais como
Rua Direita do Negócio222, renomeada na atualidade para Rua Dom Cândido, percebe-se que
visão dos totens, aludindo às memórias oficiais, vão se tornando cada vez mais perceptíveis,
conforme nos dirigimos, juntamente com Goiandira do Couto, em direção ao núcleo dos
lugares de memória na cidade-ideal.
De acordo com Nora (1993, p.13), os monumentos aos mortos vivem porque
são sovados pelo sentimento de reviver. E, considerando que testemunhar é um atributo das
imagens, elas, insistem em delinear o roteiro que veremos adiante, de forma particularizada,
na cidade que se construiu com o intuito alcançar domínios que vão muito além das telas
douradas. Vejamos:

222
“(...) a antiga Rua Direita do Negócio, isto é, a rua comercial mais importante dos tempos da mineração.
Naquela localidade, aconteciam as transações comerciais de toda ordem, de forma intensa, por estar próxima às
primeiras minas de ouro descobertas na região da Carioca, a aproximadamente dois quilômetros dessa vista. O
logradouro, atualmente, recebe o nome de Rua Dom Cândido e, após o cruzeiro, visualizamos uma extensão da
mesma, embora passe a ser nomeada por Rua Moretti Foggia; localidade onde ainda se volta para as práticas de
negócios e constitui palco para outras notáveis manifestações de cunho religioso e cultural, de acordo com o
calendário e as tradições festivas locais” (BARBOSA, 2014, p.05).
232

Figura 34 - Largo do Rosário, Goiandira do Couto, areia sobre fibra de madeira, (44 x 59),
1986.

Fonte: Wolney Unes, 2008.

A comparação entre as telas, Largo do Rosário-Vista da Cidade (1976), na


figura 31, e Largo do Rosário (1986), na figura 34, é um exercício inevitável. Constata-se que
os horizontes continuam imutáveis. Ao recriar o cenário da “memória que se enraíza no
concreto, no gesto, na imagem (...)” (NORA, 1993, p.09), o olhar guardião que reitera os
mesmos direcionamentos guardados pelo passado. O intervalo temporal entre as imagens não
é um mero detalhe. A cidade edificada, apenas, com a poeira extraída de pedras
multicoloridas sedimenta o fascínio das elites por preservar suas tradições, especialmente,
aquelas que se concentram entre o Largo do Rosário e o Largo do Chafariz, âmago da
paisagem urbana que espera pela consagração do futuro.
Cabe a história, portanto, problematizar esse enredo, interromper as
linearidades. Afinal, a combinação ver, ler e pensar a centralidade urbana, pelo viés das
visualidades, tem por objetivo recusar o sentido literal das representações que instauram um
regime de historicidade quase absoluto. De tal maneira, somos instigados a seguir o caminho
das luzes, iluminado sombras.
233

4.4 Reconstruindo Origens

Cruzar representações artísticas exige do historiador cultural da arte rigor e


habilidade filosófica. Nesse sentido, enxergamos a cidade em Goiandira do Couto como um
objeto fortuito para o diálogo comparado que vislumbramos nesta sessão. Notadamente,
esperamos extrair da interlocução com os discursos visuais, concebidos e inspirados no eixo
de poder - do Largo do Rosário ao Largo do Chafariz -, a confirmação da hipótese de que
Goiandira do Couto refundou pictoricamente uma representação da cidade-ideal, erigida sobre
os pilares da tradição vilaboense, por sua vez, tangenciam, de algum modo, à sua própria
historicidade.
Dispostos a percorrer esse itinerário, decidimos revisitar a produção pictórica
da artista em estudo. Entre elas, selecionamos obras da primeira fase artística (1933-1966), ou
seja, óleo sobre tela, da segunda fase (1967-2005), com areias multicoloridas e cola a base
d´água. E, para alinhavar ambas as estéticas, recorremos às obras de outros artistas
vilaboenses almejando dilatar o campo de visão personalíssimo de Goiandira do Couto, uma
personagem que se investiu, ao longo de sua trajetória público-privada, dos papéis de artista,
guardiã e artesã de um projeto lapidado entre a invenção e a exaltação das origens oficiais da
antiga capital do Estado.
Salientamos que dialogar com este escopo variado de imagens, tem por
objetivo buscar embasamento às suspeitas de que a arte de Goiandira do Couto tenha servido
de inspiração para transformar a cidade-ideal em cidade-patrimônio, tendo em vista a
relevância do fato de a Cidade de Goiás ter sido agraciada, no ano 2001, com o título de
Patrimônio Histórico da Humanidade. Nestas condições, estamos certos de que precisamos
nos concentrar no hiato constituído entre ambas as representações, por se tratar de um lugar
entreaberto e multifacetado, onde se localizam as vivências, os trânsitos e as descontinuidades
inerentes ao mundo das experiências visivelmente ausentes ou silentes na produção pictórica
de Goiandira do Couto. Sobre isso, consignamos algumas palavras da artista cuja direção
ratifica a existência de subjetividades não-verbais em sua obra, ao passo que reconhece, nas
entrelinhas, o caráter polissêmico da Cidade de Goiás:

Quando eu pinto a cidade, em olho, acho bonito, becos, casas, o que sinto
faço na hora. Não sei se é intuição. Goiás tem muitos pontos bonitos. Eu
pinto a cidade, mas não gosto de pintar personagens. Eu não pinto nem
pessoas e nem animais, não gosto” (COUTO apud BRITTO, 2009, p.16).
234

Respeitamos as opções da artista. Embora, isso não nos impeça de buscar


cognição para os sentidos “lugarização” das memórias oficiais que pairam sobre a cidade
sensivelmente ideal de Goiandira do Couto. Olhando para esta direção, uma vez mais,
remetemo-nos ao cenário retratado na tela Largo do Rosário- Vista da Cidade (1976), figura
31, objetivando estabelecê-lo como o ponto de partida das releituras visuais que pretendemos
realizar na extensão do eixo poder. Curiosamente, a cidade na perspectiva de Goiandira do
Couto nos garante um caminhar na companhia exclusiva do seu eu-artístico.
Seguindo pela rua principal, avista-se a “Cruz do Anhanguera”, emblemático
símbolo que apregoa a presença do mito fundador, incorporado à paisagem urbana vilaboense,
no ano de 1915. Diante de sua imagem, resta-nos, apreciá-la.

Figura 35 - Cruz do Anhanguera, Goiandira do Couto, óleo sobre tela, 1947.

Fonte: Wolney Unes, 2008, (p.63).

Observando detidamente a imagem, na figura 35, tem-se a sensação de estar


perante uma pintura que parece ter sido esculpida em óleo sobre tela. O formalismo pictórico
235

evapora sensibilidades estéticas enraizadas no campo social e cultural historiografadas no


primeiro capítulo desta tese. Entre elas, assinalamos o protagonismo sucessório de Goiandira
do Couto ao reedificar imageticamente, em 1947, a versão totêmica do culto às origens
(re)inventado por seu pai, Luiz do Couto. Dessa forma interpretamos o uso dos contrastes de
claro e escuro como um recurso técnico eficaz quando o assunto refere-se à prospecção
discursiva da paisagem urbana vilaboense como um território colonizado pelas memórias da
tradição.
Mais do que isso, pode-se perceber, claramente, a exibição de uma ideia-
imagem fabricada para a convergência dos sentidos de pertencimento e coesão social nos
horizontes de futuro. Sugerimos visualizá-la além da centralidade, pois a insígnia dos
começos ocupa a amplidão da tela Cruz do Anhanguera (1947). O modo nuclear como ela
(figura 35) foi sendo reinterpretada, evocada e pronunciada social e culturalmente reverberou,
a nosso ver, nos movimentos que envolveram a sua apropriação como marca da identidade
vilaboense. Apoiamos esse pensamento nos dados trazidos no Projeto de Lei N° 21,
promulgado em julho de 1975, o qual “Cria a Bandeira do Município de Goiás e dá outras
providências”. O documento, em fac-símile, compõe o folder223 comemorativo dos quarenta
anos da criação da bandeira do município de Goiás. O ato foi rememorado na Cidade de
Goiás, no dia 19 de novembro de 2015.
Fica evidente, no século XX, a cadência entre as práticas e os sistemas verbais
e não verbais responsáveis por enquadrar a carga ideológica das elites no imaginário social,
tendo em vista a facilidade de instituí-los coletivamente. Sendo assim, o que consideramos
primordial para os fins científicos deste estudo é testemunhar o protagonismo da “Cruz do
Anhanguera” nas experiências criativas de Goiandira do Couto, sendo utilizadas, uma vez
mais, nos encaminhamentos da excepcional legitimidade cultural da Cidade de Goiás sob o
viés das tradições “inventadas”.

223
Ver folder completo no anexo V.
236

Figura 36 - Bandeira do Município de Goiás, 1975.

Fonte: Folder Comemorativo “Dia das Bandeiras”, fl. 01, Cidade de Goiás, 2015.

O símbolo consagrado às origens novamente ressalta-se no centro da


composição do brasão (figura 36) pensado para representar a soma das identidades
responsáveis pela formação da cultura vilaboense. Mas, antes de discutirmos os significados
da bandeira do município de Goiás, apresentamos o documento que detalha como foi o
procedimento de sua adesão coletiva e a participação de Goiandira do Couto cuja suspeita
repousa na circulação e recepção local da tela mostrada na figura 35, Cruz do Anhanguera
(1947). Acerca disso, vale a pena prestar atenção ao parágrafo único do Projeto de Lei N° 21
que se segue na imagem da figura 37, integralmente:
237

Figura 37 - Projeto de Lei N° 21, Criação da Bandeira do Município de Goiás, 1975.

Fonte: Folder Comemorativo “Dia das Bandeiras”, fls. 03, Cidade de Goiás, 2015, acervo da autora.

Sendo essa a versão oficial que explica os meandros e justifica o simbolismo


da bandeira vilaboense, chamou-nos a atenção o meio encontrado para instituí-la.
Subjetivamente, analisamos a realização do concurso como uma tática a pretexto de
caracterizar envolvimento coletivo na escolha deste símbolo que, por sua vez, integrava-se ao
238

conjunto metalinguístico intrincado à proposta inventada pela elite cultural de que a Cidade de
Goiás nada mais era que o berço das tradições goianas.
Pode até parecer arriscado encaminhar essa afirmativa. Porém, essa analise se
fundamenta no parágrafo único do Projeto de Lei N° 21 (figura 37), que, assim, se subscreve:
“O medalhão localizado no centro da bandeira foi inspirado em um emblema anteriormente
elaborado por Goiandira Ayres do Couto”224. Por esses termos, é possível dizer que havia se
construído no imaginário social vilaboense uma relação objetiva e subjetiva da “Cruz do
Anhanguera” com as representações de Goiandira do Couto, enquanto pessoa e personalidade
vilaboense. Estas possibilidades espelham a fina sensibilidade e a sintonia carismática da
artista com as diferentes instâncias da sociedade da qual ela jamais se apartou.
A propósito, nunca é demais lembrar que, à época da criação/instituição da
bandeira do município, ou seja, em 1975, em âmbito local a artista, a artesã e guardiã,
Goiandira do Couto, ocupava o cargo de diretora da Escola de Belas Artes “Veiga Valle” e
nacional e internacionalmente vivia o auge de sua projeção artístico-cultural conduzindo a
cidade de Cidade de Goiás para a mesma direção. Portanto, ocorreu-nos relativizar a
autonomia criativa do idealizador da bandeira, Pedro Vargas Craveiro da Luz, e, por
conseguinte, a neutralidade da elite cultural vilaboense na “escolha” das insígnias relativas à
representação simbólica deste município de origem comprovadamente multicultural, mas que
insistiu (e ainda insiste) em manter uma narrativa histórica protagonizada, quase que
exclusivamente, pelos mitos e símbolos da tradição que povoam a centralidade urbana
vilaboense, igualmente, evocada nas representações da cidade-ideal.
Reler o documento na figura 37 nos possibilita interpelar o silêncio em torno
dos motivos pelos quais a “Cruz do Anhanguera” ocupa o centro do brasão da Cidade de
Goiás. O sentido semântico dado a esses símbolos está, na maioria das vezes, relacionado à
compreensão identitária de um povo que, neste caso, é multicultural. De acordo com o
parágrafo 1° do Projeto de Lei N° 21 (figura 37), nota-se o literal domínio das oficialidades
considerando o que é dito sobre o significado das cores verde, azul e amarelo diagramadas em
torno do branco e preto que dá forma ao emblema que apregoa o culto às origens.
Em última análise, depreendemos que as continuidades e as descontinuidades a
exemplo do exposto, sedimentam as suspeitas de que o processo de ressignificação cultural da
Cidade de Goiás, empreendido pela elite vilaboense, tenha adquirido maior robustez cultural e
institucional a partir da década de 1970, considerando os indícios de que grande parte do

224
Fonte: acervo da autora.
239

conjunto dessas medidas orbitaram em torno de Goiandira do Couto, vista por autoridades e
anônimos, como precípua representante das tradições vilaboenses naquela época.
Implicitamente, evidencia-se que o olhar guardião, constituinte da cidade-ideal, espraiou-se,
transversalmente, para a concepção de cidade-patrimônio, ainda, em construção.
No entanto, não estamos satisfeitos com o que é mostrado no caminho
pavimentado pelo olhar guardião, pois ele nos parece lacônico. Essa inquietude provém da
reflexão de que ambas as representações - cidade-ideal e a cidade-patrimônio -, utilizadas
como mecanismo de notabilidade da Cidade de Goiás no cenário cultural goiano, e fora dele,
partiram da uma vertente comum, isto é, das concepções criativas imaginadas e derivadas de
Goiandira do Couto. Em outras palavras, referimo-nos à redundância de significados para um
significante de caráter polissêmico, assim como são as cidades, organicamente falando.
Orientados pelos ensinamentos de Didi-Huberman (2012, p. 95), apelamos para
um olhar mais exigente, com o objetivo de nos desviar das ilusões visuais. Por isso,
recolocamo-nos perante a imagem mostrada na figura 35, Cruz do Anhanguera (1947), para
observar que o tempo encarregou-se de trincar suas formas possibilitando-nos, assim, o seu
esgarçamento visual e hermenêutico. Na potência destas rasgaduras, enxergamos outras
imagens e linguagens artísticas que, ao serem comparadas com o que é mostrado por
Goiandira do Couto, apresentam notáveis dissensos nos modos de ver e conceber uma mesma
paisagem.
Desse modo, justificamos a inclusão de outras configurações visíveis e
sensíveis inspiradas na poética urbana vilaboense, pois é um dos objetivos deste estudo evitar
a reprodução de um ponto de vista estreito sobre o que se pode ver e sentir no trajeto
compreendido entre o Largo do Rosário e o Largo do Chafariz. Temos consciência de que a
localidade em análise se trata de lugar dos começos. A dúvida advém da versão narrada pela
cidade-ideal, cuja representação é praticamente ausente da complexidade de seus fins. Por
outro lado, conforme mencionado, certificamo-nos de que repensar suas contradições e
paradoxos é uma tarefa realizável.
Parafraseando Didi-Huberman (2012, p.80), os sintomas históricos são
perturbadores e, portanto, capazes de propagar sentidos elípticos à imagem submetida à
análise multifocal dos historiadores culturais. Não sabemos exatamente do que se tratam esses
alertas. Ainda assim, sentimo-nos incomodados com o que vemos, ou melhor, com o que não
vemos nas criações artísticas de Goiandira do Couto.
Nesse sentido, frisamos: somos inclinados a olhar para o adjacente.
240

4.5 Visões Comparadas Pelo Eixo de Poder

A hipótese de que os pilares de areia, fundamentada essencialmente no olhar


guardião, deram sustentação simbólica à cidade que foi patrimonializada em 2001 tem se
tornado cada vez mais tangível. Afinal, temos visto que uma estética urbana sem vultos, sem
rastros, sem sociabilidades, além de acentuar a monumentalidade dos lugares de memória,
notáveis protagonistas das telas douradas favoreceu as condições para que o poder
institucional das elites adquirisse maior solidez sobre o campo da cultura na Cidade de Goiás.
Partindo do princípio de que o visível é sintomático e, por conseguinte,
ambíguo, decidimos reavaliar o foco das tradições redesenhando os prováveis caminhos da
inalterabilidade temporal e da invisibilidade social que desconfiamos imperar nas figurações
da cidade-ideal imaginada por Goiandira do Couto. Levamos em conta os ensinamentos de
Pesavento (2007, p.14), que não admitem dissociar a cidade do pulsar da vida, da
concentração populacional, dos trânsitos concernentes às práticas humanas no tempo e no
espaço. Por isso, se desconsideramos os hipotéticos usos e funções especialmente da arte com
areia, corremos o risco de endossar a perspectiva ilusória da memória de cal e pedra
localizada no centro.
Analisando a cidade-ideal, suas ilusões e metáforas enxergamos cada qual
como camadas de mais e menos sobrepostas nas sobrevivências da cidade-real com o intuito
de reaviviar, no presente, o encantamento pelo passado glorioso. Subjetivamente, tratam-se de
representações discursivas emaranhadas em um jogo de carisma e tradição capazes de
despertar a lembrança dos tempos aureos da Cidade de Goiás, possivelmente, reconfiguradas
nas proposições da cidade-patrimônio. Dada a compreensão deste arcabouço inventivo,
afirmamos ter consciência da complexidade que envolve a tarefa de ver por meio de uma
pluralidade de criações artísticas inspiradas no eixo de poder, símbolo de rupturas e
permanências do passado/presente na Cidade de Goiás. É conveniente frisar que não nos cabe
apenas mostrar o que se pode ser visto ou revisto neste espaço de tensões. Faz-se necessário
depurar seus sentidos. Até porque, “ler” artisticamente uma paisagem inventada exige esforço
e crítica filosófica; algo impossível de ser feito sem o devido amparo teórico.
Acerca disso, encontramos, nas noções de paisagem trazidas por Cauquelin
(2007), os fundamentos necessários para encaminharmos essa discussão, cujo ponto fucral é
entender em que medida a “forma simbólica” do cenário urbano colonial vilaboense,
idealizado por Goiandira do Couto, subsidiou a metamorfose da Cidade de Goiás para o
formato de cidade-patrimônio. Para a autora, a estética pode ser um instituto legítimo na
241

pacificação das distâncias e das “desproporções” entre o utópico e o original, pois “a imagem,
construída sobre a ilusão da perspectiva, confunde-se com aquilo de que seria a imagem”
(p.38).
Ora, considerando este raciocínio e a linha tênue que separa a cidade-real da
cidade-ideal, avaliamos que, de fato, possa ter sido o que aconteceu. Desse modo, os fios que
envolvem Goiandira do Couto, suas imagens e a paisagem histórica vilaboense emaranharam-
se à proposta intitucionalizada de ressignficação cultural da Cidade de Goiás que, no afã de
reaver o status cultural perdido em detrimento da transferência da capital, em 1937, optou por
seguir o caminho traçado pelo olhar guardião. Estamos certos de que essa “escolha” não foi
aleatória assim como não é despretenciosa a utilização do método comparado proposto para
requalificar as imagens, as linguagens e, sobretudo, as sensibilidades não reveladas nas
imagens consagradas à tradição.
Do lugar onde estamos, ou seja, em frente a Cruz do Anhaguera (figura 35),
avistamos a casa da poetisa Cora Coralina. Curiosamente, ela aparece em duas versões
diferentes. Mas, como explicar esse fenômeno? Não há uma definição exata. Basta que
levemos em consideração que as imagens são dotadas de pensamento e, por isso, se revelam
conforme solicitamos sua presença (CAUQUELIN, 2007, p.49). Eis um exemplo:

Figura 38-A - Casa Velha da Ponte, João do Couto(bico de pena e nanquim) s/d.

Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2001.


242

Figura 38-B - Casa de Cora Coralina ao contrário. Goiandira do Couto, areia sobre fibra de
madeira, (230x147), 1975.

Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011.

A casa da poetisa Cora Coralina arraigou-se física e retoricamente à paisagem


urbana da Cidade de Goiás e, por esta razão, transformou-se em um clássico da arquitetura
colonial e dos enfoques artísticos. A estética de João do Couto225 (1923-1995), na figura 37,
enfatiza essas características. A contemplação e a observação harmonizam técnicas de
profundidade, angulatura e perspectiva, as quais trouxeram à estilística em preto e branco ares
de uma paisagem nostálgica capaz de reacender visualmente as memórias poéticas deste lugar
arquivo ancorado à beira do Rio Vermelho.

CASA VELHA DA PONTE


Olho e vejo tua anciandade vigorosa e sã.
Revejo teu corpo patinado pelo tempo, marcado das escaras da velhice.
Desde quando ficaste assim?
MINHA CASA VELHA DA PONTE ... assim a vejo e conto, sem datas e
sem assentos. Assim a conheci e canto com minhas pobres letras. Desde
sempre. (...)

225
Trazer as produções artísticas de João do Couto vem ao encontro da proposta comparada, neste caso, com um
artista proveniente da mesma base cultural da artista. No capítulo I, na página 74, em nota de rodapé, trouxemos
uma síntese da trajetória artística do irmão da protagonista que, por sua vez, recebeu formação artística
acadêmica na Universidade de São Paulo - USP. Consideramos que sua formação universitária, sob a influência
das vanguardas artísticas ocorridas no Brasil na primeira metade do século XX, explicam suas escolhas ao
representar a cidade natal, a Cidade de Goiás. Pelo que parece, apesar da ausência de data em algumas das
imagens que apresentaremos adiante, a série de João do Couto fora produzida na década de 1960.
243

CASA VELHA DA PONTE ...


Velho documentário de passados tempos, vertente viva de estórias e lendas.
Estórias, fantasias de “enterro de ouro”, muito ouro que se pesava às arrobas
(...) e assim se criou a mística do “enterro do ouro” na casa velha da ponte.
Nesta casa me criei e me fiz jovem. Meus anseios estravasaram a velha casa.
Arrombaram janelas e portas, e eu me fiz ao largo da vida. Andei por
mundos ignotos e calvalguei o corcel branco do sonho. Pobre, vestida de
cabelo branco voltei à CASA VELHA DA PONTE, barco centenário
encalhado no Rio Vermelho, contemporânea do Brasil Colônia, de monarcas
e adventos (...) (CORA CORALINA, 2001, p.07-10).

As palavras historicizaram-se visualmente nas formas reveladas, ainda que por


ângulos e matizes diferentes, tanto na produção bicolor de João do Couto (figura 38-A),
quanto nos tons terrosos, pastéis e acinzetandos utilizadas por Goiandira do Couto na obra,
Casa de Cora Coralina ao Contrário (1975), representada na figura 38-B. Aliás, entendemos
que os irmãos Couto conseguiram aproximar suas produções visuais (figura 38-A e 38-B) da
experiência mnemônica e psicológica da poetisa, desvelada artisticamente na presente
crônica. A retórica coralíneana nos convence de que sobre a Casa Velha da Ponte paira, “(...)
ao mesmo tempo, a história, a lenda, o mito” (CAUQUELIN, 2007, p.47). Esse panteão
conceitual é entendido pela autora como invólucros da sensibilidade humana; evidências de
significação que organiza o discurso e serve de moldura à saberes numerosos “indispensáveis
às narrativas que a elas estão ligadas” (Idem, p.49), ou seja, de quem as “inventa”.
Assim, ao nos apropriarmos das reflexões da pensadora, vislumbramos
compreender o conjunto de significados que as produções artísticas em debate - arte visual e
literária - deixaram escapar por suas frestas. Estas variáveis discursivas demonstram-nos que
não se trata apenas de um imóvel de localização pitoresca; mas, sim, de um ícone histórico da
paisagem urbana vilaboense que atravessa as fronteiras do pertencimento individual, pois lhe
está implícito o protagonismo simbólico e multifacetado das experiências urbanas de uma
cidade histórica.
Antes de nos envolvermos nestas questões, convém lembrar que no primeiro
capítulo desta tese discutimos a finalidade administrativa desta edificação, a qual é
mencionada no documento visual de prospecção de Vila Boa, datado de 1751 (figura 01).
Ainda que a escassez documental impeça-nos de fazer afirmações conclusivas a esse respeito,
podemos testificar que a aquisição da casa em haste pública, no ano de 1825, por João José do
Couto Guimarães, o trisavô de Cora Coralina e Luiz do Couto, simboliza o enlace da família
Couto Guimarães com as raízes históricas oficiais da Cidade de Goiás. Mas, desta vez,
atemporalmente, a arte foi o instrumento que nos possibilitou reunir os descendentes do
referido tronco familiar em torno da Casa Velha da Ponte. Apesar da diversidade de estilos,
244

consideramos que tanto as subjetividades estético-visuais (figuras 38-A e 38-B), quanto o


lirismo na crônica coralineana realçaram a personalidade deste monumento que demonstrou
identificar-se, consoante às respectivas linguagens artísticas, com conceituados lugares de
memória. Percebe-se uma interpretação nivelada da paisagem histórica vilaboense que,
possivelmente, “só serviria para compatibilizar todos os outros lugares de memória
imagináveis”, esclarece Nora (1993, p.23).
Não estamos dizendo que essa é a intenção dos artistas descendentes da família
Couto Guimarães. Todavia, diante da clareza de que precisamos nos distanciar de qualquer
representação que pareça venerar o passado, seguimos no encalço das vissicitudes urbanas.
Afinal, a Cidade de Goiás vive, no presente, a pulsação constante de sua memória cumprindo
paralelamente a função de ser lugar do homem. Priorizando essa noção, acredita-se que os
registros de lembrança desses passos podem, ainda, supreender; sejam eles advindos dos
porta-vozes oficiais, ou não. Nesse caso, fica à cargo do historiador extraí-los do silêncio para
submetê-los à análise, pois:

O arsenal científico do qual a história foi dotada no século passado só serviu


para reforçar poderosamente o estabelecimento crítico de uma memória
verdadeira. Todos os grandes remanejamentos históricos consistiram em
alargar o campo da memória coletiva. (...) reconstituir seus mitos e suas
interpretações, significa que nós não nos identificamos mais completamente
com sua herança. Interrogar uma tradição, por mais venerável que ela seja, é
não mais se reconhecer como seu único portador (NORA, 1993, p.10-11).

Estes são os anseios mais precípuos desta pesquisa. O entendimento de que a


cidade é um lugar polissêmico estimula e justifica a necessidade de se incluir, nesta narrativa,
discursos semelhantes ao que encontramos na obra do artista vilaboense, Octo Marques,
também, intitulada: Cruz do Anhanguera (1987).
A bem saber, analisamos no segundo capítulo o seu protagonismo, juntamente
com Goiandira do Couto, no que diz respeito à difusão da vertente preservacionista na cidade
e no Estado de Goiás, desde meados dos anos de 1940. No entanto, seus discursos visuais não
se imbricaram ao projeto de futuro idealizado pelos guardiões das tradições vilaboenses.
Sobre isso, especulamos que a sua condição social226, não descendente das famílias

226
“Octo Outurnino Marques nasceu na Cidade de Goiás no dia 08 de outubro de 1915. A ancestralidade de Octo
foi marcada pelo signo das artes musicais. Seu avô era músico profissional assim como seu pai, Pedro Valentim
Marques, que, além de músico, era também ourives, carpinteiro e sapateiro – ofícios de alguém bem dotado para
as artes feitas com as mãos. (...) Francisca Ferreira de Sales, conhecida como Dona Fanchi era sua mãe; mulher
energética contribuía para o minguado orçamento doméstico produzindo quitandas que eram vendidas pelo
menino Octo” (LIMA, 2009, p.21-22).
245

tradicionais, pode ser um indício do silenciamento de suas interpretações visuais nas


representações da cidade-patrimônio. Contudo, vale a pena ressaltar que qualquer afirmação
nesse sentido, requer um estudo mais aprofundado.
No momento, esse assunto não é mais relevante que a sua perspectiva artística
sobre o conjunto paisagístico no qual estamos debruçando análises. Vejamos:

Figura 39 - Cruz do Anhanguera, Octo Marques, óleo sobre tela, 1987.

Fonte: Elder Rocha Lima, 2009.

A imagem, na figura 39, quebra o ritmo do discurso estandartizado deste ponto


emblemático do eixo que interliga o Largo do Rosário ao Largo do Chafariz. Os olhos de
Octo Marques capturaram sensibilidades do envolvimento da cidade com as pessoas.
Concordamos com Pesavento (2007, p.14), quando enfatiza a importância desta dimensão
246

para se fazer uma história cultural urbana. Parafraseando seu pensamento, uma cidade
sensível tem a propriedade de se apresentar mais “real”. Desta forma, nos é permitido
enxergar o ethos urbano cujos sentidos afloram para o campo do tangível ou do visível. Essa é
a sensação que temos quando olhamos para a tela de Octo Marques (figura 39).
Subjetivamente, notamos uma cidade sociável, uma paisagem em compasso
com o fazer social que, de algum modo, representa as ações transformadoras do espaço
(natural), ao longo do tempo. Coincidência ou não, os dois monumentos mais representativos
da intervenção contemporânea na paisagem urbana vilabonese, a “Cruz do Anhanguera” e a
Igreja em Louvor a Nossa Senhora do Rosário protagonizam a cena de um dia ensolarado com
os atores responsáveis pelo viver urbano. No primeiro plano da imagem, está o pedestal em
homenagem ao “mito fundador” que, com toda a sua imponência, avança para o céu azul
revoado pelas gaivotas no horizonte. É verdade que apenas duas dessas aves ficaram na
vastidão do horizonte para serem flagradas pelo artista. Representativamente, temos a
impressão de estar contemplando uma cena do cotidiano local.
Atribuímos ao domínio técnico de Octo Marques esse jogo de movimentos
exibido pelos persongens. Essa peculiaridade leva-nos a imaginar que o totém ao fundador
teria servido de breve repouso ao colegial que segue um rumo incerto aos olhos, mas,
aparentemente, consciente de onde deseja ir. No plano intermediário, vê-se a “Casa de Cora”
desempenhando, desta vez, o papel de coajuvante da “Cruz do Anhanguera”. Curiosamente, a
única janela aberta no instante em que se deu o ato registrado por Octo Marques, se trata,
justamente, dos aposentos da iluste moradora. Não é possivel afirmar com exatidão o que ou
quem possa vir a ser; embora seja perceptível o vulto à observar as sociabilidades urbanas
que, por meio da concepção do artista, flagraram a comunhão do público com o privado. À
primeira vista, pode até parecer uma prática despretenciosa. Mas, na verdade, trata-se de uma
relação habitual e, portanto, cultural dos moradores locais, no que se refere aos usos e funções
dos monumentos localizados no centro histórico da Cidade de Goiás, explana Tamaso (2007,
p.14-20).
Finalmente, no último plano da imagem em apreciação (figura 39), o artista
revela-nos a forma arquitetônica que eventualmente encontrava-se na retaguarda de Goiandira
do Couto, na ocasião em que ela concebeu a tela Largo do Rosário-Vista da Cidade (1976),
demostrada na figura. A interlocução pictórica do artista, a nosso ver, demonstra os contrastes
da arquitetura gótica com a paisagem colonial, ao passo que desfigura o ponto de distância
colocado no centro do Largo do Rosário. Referimo-nos ao busto que homenageia Epitácio
Pessoa, meticulosamente, representado pela artista-artesã na obra supracitada (figura 31).
247

O modo ambíguo com o qual Octo Marques representou a memorável


lembrança, quase nos iludiu. Olhando de relance, tem-se a sensação de que se tratava de um
dos clérigos usuários de batina branca que, comumente, eram vistos naquela região. A
vestimenta é um hábito da ordem religiosa dominicana, conforme relatos informais de um
pároco local. A plausibilidade desta informação consubstancia-se quando se relembra que, em
virtude da romanização, os dominicanos franceses227, legitimados pelo advento da
Romanização Católica, “reapropriaram-se” do referido espaço religioso que, desde os tempos
coloniais, era o lugar de pertencimento dos membros da Irmandade dos Pretos.
Evidentemente, esse fato recoloca no debate a demolição da antiga igreja em estilo colonial, a
qual manteve a devoção mariana, Nossa Senhora do Rosário. Todavia, sobre esse tema, nunca
é demais lembrar que o termo “dos Pretos” fora suprimido da referência ao monumento, após
o término de sua construção.
Enquanto isso, inventariando as telas douradas, encontra-se no acervo uma
única imagem, cuja visão contempla o sentido inverso ao itinerário indicado pelo olhar
guardião, ou seja, fazendo inferência à vista norte do eixo de poder em estudo. A obra,
Portões com torre da Igreja, (1989), figura 40, retrata aspectos comuns da cidade-ideal, como
por exemplo, os quintais extensos dos casarões coloniais e seus devidos acessos ao Rio
Vermelho.

227
“Quando os primeiros missionários chegaram a Goiás, em 1883, a Irmandade dos Negros ainda existia, mas
em grande decadência. Havia muito que as minas da Califórnia, da Austrália, do sul da África, exploradas com
todos os aperfeiçoamentos que a ciência, excitada pela cobiça, pudera inventar, causaram o abandono das do
Brasil, sobretudo as de Goiás. Só se falava delas como de um fato histórico muito afastado no tempo. Por outro
lado, em virtude de certas disposições legislativas proclamando a extinção progressiva da escravidão, o número
de escravos havia diminuído muito. Efectivamente, a igreja do Rosário estava quase vacante e, esperando que o
seu sucessor, D. Duarte Silva, suprimisse pura e simplesmente a Irmandade dos Negros, D. Gonsalves entendeu
entregar sua igreja aos missionários. Tomaram estes posse dela, ao mesmo tempo que de uma casa que lhe ficava
contígua” (GALLAIS, 1942, p.71-72).
248

Figura 40 - Portões com torre da Igreja, (1989), Goiandira do Couto, areia sobre fibra de
madeira, (33 x 57) 1989.

Fonte: Wolney Unes, 2008.

O monumento que, atualmente, ocupa o lugar da antiga igreja exibe sua


imponência vertical e horizontal, mesmo estando no último plano da imagem. Na tela
representada, figura 40, a artista mantém sua paleta de cores claras e sombreamentos que
esboçam os traços mais marcantes desta intervenção urbana instruída na paisagem num
contexto de profundas mudanças político-administrativas, na Cidade de Goiás, dos anos de
1930. Muito já foi dito sobre as razões que levaram à substituição da arquitetura colonial, pela
expressão gótica que ora revemos. Por isso, abriremos um parêntese para algumas
considerações sobre esses espaços naturais, anexos às casas vilaboenses, localizadas no centro
histórico.
Ao notabilizar os portões dessas moradias, Goiandira do Couto consegue
fertilizar a imaginação do expectador e fazê-lo divagar pelo fascinante mundo privado dos
249

casarões germinados, vistos por este estudo como verdadeiros coadjuvantes da paisagem
“lugarizada” pelos monumentos que evocam os começos e a “glória” destes tempos. É
interessante pontuar que nos tempos coloniais essas residências eram habitadas por moradores
que possuíam uma condição social mais abastada e, por conseguinte, detentores de poder
social e cultural sobre a cidade. Essa realidade entrelaça-se à hipótese de que a elite
representada pelos guardiões usufrui da condição de moradores do centro, para se apropriar,
simbolicamente, do poder enraizado nestas residências. Esse atributo outorgar-lhes poder
cultural no presente, a fim de projetar o futuro, com os olhos no passado.
Reavaliando a imagem (figura 40), percebe-se que Goiandira do Couto se
posicionou muito próximo à “Cruz do Anhanguera” para registrar os telhados e a torre sineira
da Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Para sermos mais precisos, os Portões com torre da
Igreja (1989) fazem parte da paisagem do Largo do Rosário, localizado na margem direita do
Rio Vermelho, logo, a vista é concebida do lado contrário (margem esquerda). Deste mesmo
lugar, a visão frontal é, igualmente, fértil, pois reúne: o cruzeiro, a casa de Cora Coralina e o
hospital São Pedro228, conforme se pode ver na imagem seguinte:

Figura 41 - Casa de Cora Coralina. Goiandira do Couto (52 x 36), 2004.

Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011.

No centro da tela, Casa de Cora Coralina (2004), figura 41, reaparece


exibindo seu extenso quintal adensado pela vegetação que vai ao encontro da centenária casa

228
Para saber mais sobre a fundação e atuação desta instituição referência nos cuidados com a saúde e o
saneamento da Cidade de Goiás, desde o século XIX, conferir: (MAGALHAES, 2004).
250

de saúde, fundada no século XIX. Nesta versão pictórica, a casa anciã parece ter perdido os
juízos estéticos conferidos por sua ilustre moradora no poema, Casa Velha da Ponte. As
‘escaras da velhice’ foram substituídas por uma “nova” roupagem, possivelmente, diante de
sua musealização, em 1989, e, restauração, após ter sido parcilmente destruída em 2001, pelas
cheias imprevisíves do Rio Vermelho.
Sobre a casa contígua que flutua em águas, ela, também, não é desconhecida a
Goiandira do Couto. Esta residência, guarda as memórias da infância e da juventude do
amigo, mentor e guardião das tradições “inventadas”, Elder Camargo de Passos que,
juntamente com Goiandira do Couto, fundaram229 a OVAT em 1965, entidade que ele, ainda,
ocupa-se em presidí-la. Esta obra, especificamente, continua a exalar sutilezas. Estamos nos
referindo ao objeto sensível, de cor laranja, deixado numa das janelas da casa, onde viveu o
mencionado guardião.
Mantendo-se fiel aos seus gostos de não pintar pessoas, vemos que,
unicamente, neste lugar de memória, na paisagem urbana da cidade-ideal, alguém deixou um
sinal, possivelmente, aludindo presença nas imediações da nova representação dada à Casa de
Cora Coralina (2004). Considerando que as paisagens são culturais e carregadas de sentidos
simbólicos, justifica a atenção redobrada a todos os elementos que chegam até nós através dos
singulares vestígios reveladores de presença (PESAVENTO, 2008, p.07).
Historiadores e artistas possuem algo incomum: a capacidade imaginária e
verossimilhante de reconstruir, no presente, o passado. Assim que nos recolocamos na direção
do percurso traçado, isto é, no caminho que interliga o Largo do Rosário ao Largo do
Chafariz, fomos surpreendidos pela visão memorialista de Octo Marques. A imagem
produzida por ele traz lembranças submersas da igreja demolida em 1934. A visão nos
pareceu convincente. Por isso, decidimos olhar, novamente, para a região do Rosário.

229
“Art. 1° (...) são fundadores da OVAT: Goiandira Aires do Couto (brasileira, solteira, e professora), Joiza
Pereira Oliveira (brasileira, casada e professora), Joice Pereira de Oliveira (brasileira, solteira e professora),
Elina Maria da Silva (brasileira, casada e professora), Elder Camargo de Passos (brasileiro, casado e advogado),
Humberto do Nascimento Andrade (brasileiro, casado, comerciante), Antônio Carlos da Costa Campos (
brasileiro, casado, advogado), Eudes Pacheco Santana (brasileiro, casado e advogado), Neuza Velasco
(brasileira, casada e professora), Erlande da Costa Campos (brasileiro, casado e bancário) e Hecival Alves de
Castro (brasileiro, casado e advogado); (fls.01)”. Cf. Estatuto da OVAT Livro n° A-1, fl. 01, 1978. Fonte:
TABELIONATO 2º OFÍCIO.
251

Figura 42 - Rua Direita (Goiás). Octo Marques, oléo sobre tela, 1947.

Fonte: Elder Rocha Lima, 2009.

A presente interpretação visual de Octo Marques (figura 42) traz o sentido de


cotidiano à estéril e desabitada cidade-ideal imaginada por Goiandira do Couto. Tecnicamente
falando, percebe-se o uso rigoroso das formas geométricas, preenchidas pelos tons quentes,
aspectos que notabilizam as marcações áusteras dos pontos de fuga, com relação aos pontos
de distância e a linha do horizonte (LIMA, 2009, p.46). A utilização deste recurso favorece o
protagonismo à Igreja de Nossa Senhora do Rosário (dos Pretos), construída os tempos
coloniais, ao passo que assenta lugar à identidade africana que, jutamente com a indígena,
soma-se aos silentes e “invisíves” no discurso das tradições inventadas.
Essa análise encontra respaldo nas exposições de Tamaso (2007), quando
afirma que “a representação do bandeirante é crucial para o goiano de maneira geral e para o
vilaboense de modo especial” (p.83). Portanto, se olharmos atentamente para a imagem em
foco (figura 42), concluímos que a ausência da Cruz do Anhanguera e a ressureição visual da
antiga igreja em louvor à Nossa Senhora do Rosário devolve, à Cidade de Goiás, o
protagonismo identitário dos atores culturais do passado de modo quase fidedigno. A
propósito, fica-nos evidente a notória preocupação do artista em mostrar a relação da cidade
com os hábitos culturais constituídos, inexoravelmente, a partir de seus habitantes. Por esse
252

raciocínio, compreendemos que suas produções baseavam-se na integração espaço, tempo e


sociedade, consequentemente, um explícito antagonismo ao viés discursivo de valorização
dos lugares de memória, muito provavelmente utilizado por Goiandira do Couto para
recontar, visualmente, a história das origens urbanas vilaboenses.
Pesavento (2007, p.17) esclarece que as flutuações no processo imaginário são
indicativos de que, ao se inventar o passado, torna-se quase uma prerrogativa a reatualização
de tramas, enredos e personagens de uma tradição nostálgica. Conquanto, não nos parece
razoável que a visão/interpretação de Octo Marques sobre a Cidade de Goiás, tal como a que
vimos na figura 43, Rua Direita (1947), tenha sido escamoteada pelos agentes culturais que
operaram a ressignificação cultural da cidade, a partir dos anos de 1965, inclusive, porque
aborda uma perspectiva, literalmente, inversa àquela idealizada por Goiadira do Couto em
Largo do Rosário (1976). Em suma, causa-nos tamanha estranheza que o discurso visual,
encampado por Octo Marques, tenha sido negligenciado do projeto de futuro, o qual
materializa-se nas concepções da cidade-patrimônio, confome aventamos até aqui.
Desconfiamos que a versão da cidade imaginada pelo artista, eventualmente,
um notável representante da cultura popular na Cidade de Goiás, dá sinais de não estar
alinhada às expectativas do projeto urbano inventado pelas elites. Inclusive, adequadas a essas
impressões, encontramos em Tamaso (2007), a seguinte análise:

Acredito que o mito do Anhanguera foi acionado especialmente a partir do


início do século XX, com vistas a sustentar a construção da identidade
goiana em meio às várias e crescentes identidades regionais. A instalação da
Cruz do Anhanguera em 1918, na cidade de Goiás, seria o ápice deste
movimento. Como consequencia da mudança da capital em 1937, mais se
investiu na relação dos filhos de Goiás com o pai fundador. (...) Elder
Camargo de Passos – fundador da OVAT - (...) ressalta o caráter positivo do
mito, ao mesmo tempo em que minimiza os conflitos entre emboabas e
mamelucos (TAMASO, 2007, p.71).

Formulamos uma visão, cada vez mais aclarada, de que não é inócua a
recorrência de oficialidades nas representações da cidade-ideal por Goiandira do Couto.
Entretanto, não convém precipitarmos sua exposição, tendo em vista que o itinerário e os
respectivos diálogos visuais pré-estabelecidos, ainda, não se esgotaram. Considerando que
chegamos à metade do percurso e que precisamos nos reposicionar na direção pretendida, isto
é, no sentido do Largo do Chafariz, lugar que delimita o horizonte da cidade idealizada por
Goiandira do Couto, novamente fazemos uso das palavras de Pesavento (2007) que, por sua
vez, coerentemente disciplina: “a cidade precisa ser descoberta pelo olhar” (p.17). Sendo
253

assim, não seria aceitável que juízos parciais possam ser entendidos como pareceres sobre o
“todo” que é mostrado pela artista-artesã na produção pictórica Largo do Rosário (1976).
Ora, como trouxemos à baila, paradigmas e referências da cultura popular em
meio às discussões sobre oficialidade e tradição, entendemos que embrenharmos pelos lugares
que margeiam a centralidade urbana em estudo, neste caso, os becos de Goiás, é legítimo,
pois, assim, contemplando, de fato, a perspectiva oblíqua que pertine repensar a sacralização
dos lugares de memória na cidade-ideal; os quais são analisados como verdadeiros altares que
apregoam o culto às origens neste ambiente inventado.
Consoante Coelho (1997), os becos são espaços públicos, localizados na
transversal e hierarquizados em última escala de importância entre as vias urbanas (p.103). A
configuração estreita, curta e, eventualmente, sem saída são atributos que vão de encontro às
análises do autor e representam, parcialmente, as realidades urbanas na Cidade de Goiás230.
Para efeito de menção, lembramos que a identidade desses lugares é
controversa. As ciências humanas e sociais tendem a enxergá-los entre paradoxos
hermenêuticos, ressaltando a dessintonia quanto à compreensão sociocultural destes redutos,
potencialmente, capazes de interligar, segregar, aproximar ou estigmatizar as vissicitudes
urbanas praticadas nestes âmbitos. Independente do sentido, apropriamo-nos da polissemia
semântico-interpretativa que os rodeia como princípio indispensável aos estudos culturais que,
neste caso, tem como propósito ver e discutir a paisagem histórico-urbana da Cidade de Goiás
muito além das telas douradas.
Reconhecendo que, “(...) na mistura, é a memória que dita e a história escreve”
(NORA, 1993, p.24), revisitamos a poética memorialista de Cora Coralina, porque
encontramos indícios de que sua arte captou, nos becos da Cidade de Goiás, práticas de
cooperação e de sobrevivência, consideradas, há algum tempo pelo discurso oficial,
dispensáveis, decadentes e impróprias para serem perpetradas no eixo das tradições. Eis uma
provável explicação para a eugenia da cidade-ideal narrada à luz das tradições:

230
“Nos séculos XVIII e XIX, os principais meios de transporte utilizados em Goiás eram os animais cargueiros
(burros e mulas), e o encarregado por conduzi-los era denominado tropeiro. As poucas estradas existentes no
país eram transitadas por carros-de-bois, carruagens e, especialmente, por cargueiros. (...) Atividade
essencialmente masculina, constituiu por muitos anos fonte de renda de trabalhadores que vendiam, nas cidades,
leite, verduras, cereais e feixes de lenha. Na Cidade de Goiás, era comum o dito popular “quem não governa a
lenha, não governa a casa que tenha” delimitando o universo da mulher na sociedade e legitimando o acesso dos
lenheiros às casas de “conceito”. Esses trabalhadores assumiram a função de estreitar os laços da cidade-vida,
efetivando a ponte entre o mundo marginal e o mundo oficial. Os becos que, a princípio, foram criados apenas
para encurtar as distâncias, transformaram-se em locais para a circulação de se serviçais e animais” (BRITTO,
2008, p.136).
254

Becos de minha terra,


discrminados e humildes,
lembrando passadas eras...
Beco do Ciso.
Beco do Cotovelo.
Beco de Antônio Gomes.
Beco das Taquaras.
Beco do Seminário.
Bequinho da Escola.
Beco do Ouro Fino.
Beco da Cachoeira Grande.
Beco do Calabrote.
Beco da Vila Rica.
Conto a estória dos becos.
suspeitos.. mal afamados
onde família de conceito não passava.
“Lugar de gentinha” – diziam, virando a cara.
De gente do pote d`água.
De gente de pé no chão.
Becos de mulher perdida.
Becos de mulheres da vida.
Prostituta anemiada, solitária, hética,
engalicada, tossindo,
escarrando sangue na umidade suja do beco.
Renegadas, confinadas
na sombra triste do beco
(CORA CORALINA, Becos de Goiás e Histórias mais, 1987, p.104).

Indiscutivelmente, embrenhamo-nos por espaços, culturalmente, ambíguos. A


poética de Cora Coralina nos remete à noção de urbanidade à medida que as marcas, as
pisaduras e os trânsitos do passado demonstram a clara existência do “habitar”
(PESAVENTO, 2007, p.14). Para a autora, é impensável dissociar a cidade de suas
sociabilidades, pois cabe a elas inscrever a presença do homem no espaço e,
consequentemente, na história. A propósito, considerando a poética dos Becos de Goiás,
sobretudo, as sobrevivências evocadas por Cora Coralina, sentimo-nos desafiados a religá-las,
não aos horizontes (cidade-patrimônio), mas, sim, às representações da cidade em Goiandira
do Couto (cidade-ideal).
É importante esclarecer que essa percepção adveio da versatilidade nos
enfoques artísticos da poetisa, algo que, ainda, não encontramos nos estilos pictóricos, tanto
em óleo quanto areia, assinados pela artista-artesã. Os becos coralineanos reveralaram-se
sensíveis e pensáveis na mesma medida em que sua abordagem literária sobre a Casa Velha
da Ponte transmitiu-nos uma visão meramente reatualizada do discurso herdado que endossa
a existência de um passado glorioso. Compreendemos que estas “diferenças” estão
255

relacionadas com o modo ao qual a poetisa se posicionou ao narrar os respectivos lugares


históricos231 da paisagem urbana vilaboese.
No que tange à casa, Cora Coralina projetou-se como constituinte das
memórias cristalizadas no tempo, possivelmente, por considerar-se portadora de lembranças e
protagonista das experiências do passado/presente acumuladas na sua casa-memória. Já, com
relação aos becos, ela se porta como intérprete das memórias relegadas pela tradição, levando-
nos a crer que se tratam de lugares verossímeis. Especialmente, quando nos deparamos com
uma das estrofes mais emblemáticas do poema supracitado: “Amo e canto com ternura todo
errado de minha terra” (CORA CORALINA, 1987, p.103). Inquietos diante desta suspeita,
buscamos nas imagens indícios que consubstanciasse a existência destes espaços mnemônicos
na Cidade de Goiás. Casualmente, alguns dos becos elencados pela poetisa aparecem nos
testemunhos da arte com areia.
Antes de tercermos qualquer análise, faz-se necessário observá-los:

Figura 43-A - Beco da Rua Figura 43-B - Beco do Figura 43-C - Beco do Ouro
13 de Maio, Goiandira do Cotovelo, Goiandira do Fino, Goiandira do Couto
Couto (35X55), areia sobre Couto (40x53), areia sobre (34x45), areia sobre fibra de
fibra de madeira, 1982. fibra de madeira, 1987. madeira, 1978

Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011.

231
Nora (1993) define lugares históricos como “lugares mixtos, híbridos e mutantes, intimamente enlaçados de
vida e de morte, de tempo e eternidade e de eternidade, numa trama espiral do coletivo e do individual, do
prosaico e do sagrado, do imóvel e do móvel” (NORA, 1993, p.22).
256

A cidade-ideal, nos apresenta seus “becos”. Eles parecem coadunados, muito


mais, com as “certezas” de Goiandira do Couto do que com a transversalidade de práticas e
sentidos, organicamente, empregnados nestes lugares, conforme descreveram Coelho (1997) e
Cora Coralina (1987).
Os “guetos” concebidos à luz das tradições, figuras 43 A, B e C, seguem,
rigorosamente, a perspectiva visual eixo de poder: lugares, caracteristicamente, desabitados,
purificados pelas luzes e pavimentados pelas nuances multicor que, em conjunto, sombreiam
os vestígios incompatíveis com o projeto de futuro. Estamos convencidos de que ambas as
artistas - Cora Coralina e Goiandira do Couto - inspiraram-se em lugares que condizem com a
realidade urbana da Cidade de Goiás. No entando, suas estéticas se diferenciam, sobretudo,
pela ausência de poesia nas releituras da tradição.
Partindo desse pressuposto, ocorreu-nos questionar se esta seria uma
prerrogativa exclusiva das telas douradas. Decidimos voltar à primeira fase artística de
Goiandira do Couto, oléo sobre tela, para ver/saber um pouco mais. Semelhantemente às
figuras 43 A, B e C, eis surge a visão de um beco primaveril, aparentemente remoto e
visvelmente desabitado na imagem subsequente:

Figura 44 - Flamboyants, Goiandira do Couto, óleo sobre tela, 1962.

Fonte: Wolney Unes, 2008.


257

No beco onde perfila-se Flamboyants (1962), nem de longe nos lembra que se
tratam de vias públicas em derradeira escala de importância nas cidades, sejam elas históricas
ou não. Indentificamos, uma única diferença em relação aos becos das telas douradas e a
representação visual da figura 44: a ausência da pavimentação clássica a partir das formações
rochosas locais. Ainda assim, considerando visualmente esse aspecto, as habitações que
protagonizam o evidente cenário bucólico não nos remetem, em momento algum, ao lugar dos
desvalidos citados por Cora Coralina.
Em síntese, consoante ao que vemos nas figuras 43 (A, B e C) e 44, os modos
como Goiandira do Couto valorizou e promoveu a cultura popular, seja na primeira ou na
segunda fase artística de sua carreira, não se diferenciaram das representações anteriores,
onde evidenciamos a presença velada de um olhar guadião zelando pelas formas da cidade-
ideal concebida entre mitos e tradições construídas subjetivamente.
Pensando nas hipotéticas nuances de invisibilidade e inalterabilidade da
paisagem urbana vilaboense que, a nosso ver, pairam sobre a arte em Goiandira do Couto.
Neste caso, interrogamos: há, de fato, lugar para os rastros dos atores sociais na cidade-ideal
ou trata-se de uma urbe povoada, tão somente, pelos lugares de memória?
O interesse pela resposta encaminha-nos ao Largo da Matriz232. Estamos,
exatamente, na metade do caminho considerando onde nos propusemos chegar: ao Largo do
Chafariz. Esta localidade concentra monumentos expressivos do poder político e religioso
instalados antes de 1736, marco oficial que dispôs sobre a criação de Vila Boa e, certamente,
um lugar óbvio para as inspirações artísticas da cidade-ideal. Notadamente, trata-se de um
trecho emblemático da paisagem vilaboense em estudo, pelo fato de que os poderes temporal
e espiritual coexistiram ativamente nos tempos coloniais e, na atualidade, subsistem de forma
simbólica. Em virtude dessas peculiaridades, sentimo-nos provocados a olhar para duas
imagens contemporâneas deste monumento eclesiástico. As semelhanças entre as
representações que se seguem são quase inevitáveis, assim como as diferenças.
Oportunamente, iremos destacá-las.

232
“(...) é o largo da Matriz, também conhecido como largo do Palácio, local onde os primeiros exploradores
erigiram a pequena e primitiva capela dedicada a Sant`Anna e onde, segundo a tradição, Bartolomeu Bueno
construiu uma de suas residências. Também de formato triangular, esse largo apresenta os melhores, maiores e
mais bem acabados edifícios residências e, ao longo do tempo, teve várias dessas edificações profundamente
modificadas, com a substituição de algumas casas térreas por sobrados, a adaptação de algumas residências para
servirem de residência ao Governador, a substituição da Capela por uma igreja Matriz de dimensões
monumentais em relação ao restante do conjunto e a substituição da provável residência do fundador pela Igreja
de Nossa Senhora da Boa Morte” (COELHO, 1997, p.107).
258

Figura 45-A - Igreja Nossa Senhora da Boa Figura 45-B - Igreja de Nossa Senhora da
Morte, Goiandira do Couto, areia sobre fibra Boa Morte, João do Couto, (bico de pena e
de madeira, 1967. nanquim), 1968.

Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011.

A vista nos possibilita admirar um clássico da arquitetura barroca do final do


século XVIII, em homenagem a Nossa Senhora da Boa Morte. Este lugar possui duplo sentido
de lugar de memória, pois em 1968, recapitulamos, fora fundado o Museu de Arte Sacra
“Veiga Valle”, tema detalhado no capítulo anterior. Em virtude disso, nos ateremos à proposta
de analisar comparadamente as visões artísticas relativas ao eixo de poder na Cidade de
Goiás.
Vemos, nas imagens dispostas (figuras 45-A e 45-B), o templo consagrado à
mencionada devoção mariana, vista pelos católicos como intercessora daqueles que agonizam
entre a vida e a morte. Os artistas buscaram reproduzir o mimetismo da paisagem vilaboense,
demostrando a bifurcação233 onde se localiza a referida igreja que, por sua vez, lembra,
metaforicamente, a passagem para mundos distintos, segundo as crenças do catolicismo
popular.
Na visão de Goiandira do Couto, figura 45-A, a referida igreja divide o espaço
da tela com a imagem do poder oficial, presentificado na representação parcial do Palácio
Conde dos Arcos, sede do poder político central durante os séculos XVIII ao XX.

233
“Em Vila Boa, vamos encontrar dois casos específicos de adoção de nave poligonal, com utilização do
octógono na definição de sua planta. O primeiro edifício construído com a utilização de tal característica vai ser
a Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte (...). Sua posição no terreno onde está implantado, na confluência das
ruas do Horto e Fundição, é também elemento que, de certa forma, contribui para essa situação de destaque,
criando para o observador situado à sua frente, uma sensação de profundidade e relevo, em decorrência do
desalinho com que se apresentam essas ruas” (COELHO, 1997, p.117-118). Cf. Idem.
259

Relembramos que a permanência do poder político estadual na Cidade Goiás se deu até o ano
de 1937, marco da transferência definitiva para a nova capital do Estado, Goiânia.
Segundo reiterados depoimentos da protagonista, a tela representada na figura
45-A deu origem à sua segunda fase artística (areia colorida e cola à base d`água). A suposta
voz mística que lhe disse: “faz uma casa com areia”, na manhã de dezembro de 1967,
materializou-se na compressão da artista-artesã, numa “casa” não necessariamente
convencional. De acordo com a tradição oral, reside, nos alicerces desta “casa”, as ruínas da
residência que pertenceu ao mito fundador da Cidade de Goiás, o bandeirante paulista
popularmente conhecido como “Anhanguera”. Galvão Júnior e Bertran (1987), também,
reconhecem a existência desta concepção introjetada oral e, culturalmente, no(s) discurso(s)
da população local reafirmando que: “(...) conta-se da tradição histórica da cidade que
Bartolomeu Bueno Filho teve sua primeira casa no vértice sul do largo, já então definido
como triângulo” (p. 04).
Pontuar sobre essas questões têm como objetivo demonstrar os vieses pelos
quais a presença mítica do “fundador” encontra-se amalgamado no (in)consciente coletivo dos
vilaboenses, provavelmente, em decorrência das diversas estratagemas culturais daqueles que
se dedicaram em manter pujante, ainda que por sutilezas, a memória da tradição colonizadora
no tempo presente. Eis as razões pelas quais a arte em areia é vista, hipoteticamente por este
estudo, como um importante vetor dessas permanências. Mas, como se tratam de suspeitas,
partimos do princípio de que ver e comparar continua sendo a direção metodológica mais
acertada para nos orientar em relação à compreensão destas especificidades.
Nesse sentido, observando a imagem produzida por João do Couto234 (1923-
1999), representada na figura 45-B, visualizamos que sua idealização restringiu-se ao
monumento religioso que, segundo Coelho (1997), localiza-se “junto ao largo do palácio e
confere-lhe uma situação de privilégio em relação a todo o conjunto, inclusive, no que se
refere à própria igreja Matriz” (p.118). Acreditamos que a estética bicolor pautou-se por esta
prerrogativa. E, assim sendo, percebemos que há no gravurista um característico duplo regime
de idealização da paisagem urbana vilaboense, na medida em que consideramos a figura 45-B,

234
Nascido em 17 de setembro de 1923, na Cidade de Goiás, João do Couto viveu e estudou em sua cidade natal
até a segunda série ginasial, no Lyceu de Goyaz. Filho de Luís do Couto e Maria Ayres do Couto mudou-se para
o Rio de Janeiro, ainda moço, e, por lá, concluiu os antigos primeiro e segundo graus. Deu sequência aos estudos
na cidade de São Paulo, onde se formou em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo, lugar
onde conheceu e foi aluno de Sérgio Millet (1898-1966), um dos principais nomes brasileiros em crítica da arte.
Influenciado, possivelmente, pelo movimento modernista brasileiro, João do Couto fez parte de vários
movimentos culturais de sua época, tanto em Goiás quanto em São Paulo. Destacou-se pelo uso da técnica com
bico de pena e, também, imortalizou as formas arquitetônicas da Cidade de Goiás por meio de sua arte em preto
e branco (adaptação). Cf. Disponível em: <www.joaodocouto.com.br>. Acesso em: 07 mai. 2015.
260

apesar do rigor estético, como prenúncio de outras representações, cuja sensibilidade dá-nos a
entender que o artista nutriu, em algum momento, a expectativa de diálogo.
Para tanto, basta notarmos que a oficialização dos lugares de memória, neste
trecho específico do percurso, o Largo da Matriz, aparece requalificado nas imagens que se
seguem, figuras 47-A e 47-B, produzidas em bico de pena e nanquim, técnica na qual o preto
e branco predominam. Ainda assim, elas nos parecem potencialmente capazes de trincar a
invisibilidade e a inalterabilidade da cidade-ideal narrada, especialmente, pela retórica
multicor das telas douradas.

Figura 46-A - Chafariz e Igreja da Boa


Morte. João do Couto, (bico de pena e
nanquim), (s/d).

Figura 46-B - Igreja de Nossa Sra.da Boa


Morte e Palácio Conde dos Arcos, João do
Couto, (bico de pena e nanquim), 1968.

Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011.

O acadêmico desenhista não inverteu a angulação do seu olhar, apenas recuou-


se do lugar onde estava durante a elaboração da figura 45-B. Por isso, nas imagens supra-
expostas, (figuras 46-A e 46-B), a igreja de Nossa Senhora da Boa Morte aparece como
coadjuvante235 em um cenário onde os atores sociais protagonizam a cena e não se sentem

235
“Serenados os ânimos e calmos os tempos que pretendiam opor um medonho dique ao desenvolvimento da
administração de José de Almeida, o governador querido dos goianos, a Câmara e o capitão general idearam a
261

interrompidos ao serem flagrados retirando, desta paisagem idealizada, suas artes do fazer, ou
seja, formas do viver. Em suma, entendemos que João do Couto dialoga, transversalmente,
com a estética de Octo Marques e a poética de Cora Coralina; artistas que demostraram estar
atentos às vissicitudes urbanas praticadas, especialmente, por aqueles não reconhecidos como
moradores do eixo de poder, mas que, historicamente, vieram interagindo, sobretudo, com
elite residente naquela localidade236.
Intuindo robustecer essas análises, utilizamo-nos das reflexões de Pesavento
(2007) como aporte teórico, tendo em vista a observação criteriosa das produções artísticas do
referido trio de notáveis. Em boa medida, os iminentes artistas vilaboenses demonstram
conceber a cidade indissociando-a das práticas sociais vistas, indistindamente, como
instrumentos que acentuam a percepção do significado de urbano numa cidade que cultua as
suas tradições. Nesse sentido, assinalou a autora:

A cidade é sempre um lugar no tempo, na medida em que é um espaço de


reconhecimento e significação estabelecidos na temporalidade; ela é também
um momento no espaço, pois expõe um tempo materializado na superfície
dada. (...) esse tempo se dá sempre a partir de um espaço construído, e não é
possivel pensar um sem o outro. Quando se trata de representificar a
memória - ou a história - de uma cidade, a experiência do tempo é
indissociável de sua representação no espaço (PESAVENTO, 2007, p.15-
16).

Ora, as areias coloridas não nos mostraram vestígios dos movimentos de


vaivém dos transeuntes que insistem em aparecer nas manifestações artísticas não
constituintes do projeto de futuro. É importante pontuar que os discursos visuais e poéticos
apresentados em comparação com as obras de Goiandira do Couto, tanto na primeira quanto
na sua segunda fase artística, não subtraíram dos lugares de memória a presença dos atores do
cotidiano.

construção da fonte da Boa Morte. O largo hoje do Quartel tirava então o nome de Boa Morte de uma capela da
confraria do mesmo nome, associação formada pelos homens pardos. A capela ficava situada em terreno à
retaguarda do Chafariz. Em 1778, este templo ameaçava ruínas pelo que foi cedida a capela de S. Antônio, entre
a rua da Fundição e a dos Passos, cuja construção não fora aprovada em Lisboa para fins a que se destinava, isto
é, para ofícios militares e religiosos. Foi só em 1779 que a referida confraria levantou a segunda igreja da Boa
Morte em local onde hoje se acha. (...) E essa é a gênese do famoso reservatório d´água que há 142 anos abastece
uma parte da população da Capital. Este monumento é digno de ser conservado: não representa só os vestígios de
uma administração; é também a imagem do passado, de nossa arte e de nosso alcance intelectual em 1778,
porque, segundo a filosofia clássica, a arquitetura é o livro do homem dos antigos tempos”. (CORREIO
OFICIAL, 24 jan. 1920 apud BRASIL, 1980, p.40).
236
A histórica presença da elite no eixo de poder e suas imediações ratificam-se nas palavras de Galvão Júnior e
Bertran (1987): “Junto ao Largo da Matriz começaram a surgir edificações de algum porte. (...) É possível que
parte dessas casas tivessem sido mandadas edificar por comerciantes ou alguns aventureiros abastados, chegados
após a primeira divisão de datas de ouro” (GALVÃO JÚNIOR e BERTRAN, 1987, p.04).
262

Diante do exposto, acreditamos que as cidades, principalmente em se tratando


da sua urbanidade, ao serem captadas pelas produções artisticas, podem submeter-se às
manipulações funcionais e subjetivas do artista, como podemos perceber a partir das
“escolhas” visíveis na cidade-ideal, adaptada para representar a cidade-patrimônio. Cabe ao
historiador expor estas questões, já que a reconstrução histórica se faz no processo contínuo
de revisão e desvelamento dos acontecimentos, no espaço e no tempo, cujo entrosamento se
deu na Cidade de Goiás, por meio da cultura e da arte, conforme os propósitos estatutários da
OVAT, instituição idealizadora e articuladora do processo de ressignificação cultural da
antiga capital, desde 1965.
Sob este ponto de vista, assumimos o risco de afirmar que os artistas, João do
Couto, Octo Marques e Cora Coralina, indissociam de suas representações a respeito da
paisagem cultural da Cidade de Goiás, ações corriqueiras reveladas, artistiscamente, por meio
de trocas entre o espaço urbano e seus atores sociais como atributo da vissicitude histórica que
subsiste na referida cidade, ainda nos dias atuais. Em contrapartida, compreendemos que, em
Goiandira do Couto, suas releituras visuais atribuem a existência desta urbe colonial à
sobrevivência do legado cultural europeu evocados como imperativos da história urbana local.
Com base nestas reflexões, sentimos que é preciso prosseguir rumo ao ponto
final do itinerário indicado pelo olhar guardião237. O simbólico monumento sentinela da
cidade-ideal, o prédio da antiga Casa de Câmara e Cadeia238, manifestam-se aos horizontes
hermenêuticos deste estudo, e tudo indica que as prováveis releituras histórico-visuais
avizinham-se da fertilidade pelas vias do contraditório. Assim sendo, avistamos o Largo do
Chafariz, inicialmente, pela visão de Goiandira do Couto.

237
Sugerimos ao leitor que reveja a figura 41-A e B para melhor entendimento do que veremos na chegada ao
Largo do Chafariz descrita, detalhadamente, por Coelho (1997): “Originalmente, o acesso a esse largo era feito
pela Rua da Fundição, que sai do largo do Palácio em diagonal, chegando também em diagonal a esse outro
espaço. A visão que se tem, então, é a de quem está na parte mais baixa (...). A Câmara, que vista lateralmente,
de um plano horizontal, apresentava-se singela, assume uma monumentalidade brutal quando vista desse ponto,
o que é complementado por suas características arquitetônicas de um eruditismo quase clássico, projetando-se
por sobre os edifícios residenciais, térreos e vernaculares. Também a localização do chafariz não demonstra
desconhecimento de causa da parte de quem ali o instalou, fazendo frente para quem entra pela Rua da Fundição
e não pela Rua Nova” (p.108).
238
“A Casa de Câmara e Cadeia da antiga capital da capitania de Goyaz, Vila Boa, descansa solenemente no alto
do Largo do Chafariz da atual cidade de Goiás. O grande sobrado, com pavimentos térreo e superior, grossas
paredes de taipa de pilão, entremeadas com pedras, e janelas gradeadas compõe o conjunto arquitetônico e
urbanístico oficialmente preservado pelo IPHAN, em 1978, e o Centro Histórico de Goiás reconhecido como
Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, em 2001. Desde 1950, a antiga Casa de Câmara e Cadeia de
Vila Boa não mais encerra presos em seus cômodos. Transformada no Museu das Bandeiras, abriga exposições
temáticas sobre o processo de ocupação colonial no Planalto Central e possui acervo documental do período
colonial à disposição de pesquisadores” (VIEIRA JUNIOR E BARBO, 2011, p.02).
263

Figura 47-A - Museu das Bandeiras, Figura 47-B - Museu das Bandeiras,
Goiandira do Couto, areia sobre fibra de Goiandira do Couto (52x36), areia sobre
madeira, 1974. fibra de madeira, 1976.

Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011.

A localidade determinada pela tela Largo do Rosário-Vista da Cidade (1976),


figura 30, como “ponto final” da paisagem urbana vilaboense concebida à luz das tradições.
Chama-nos à atenção os aspectos formais da imagem, ao mesmo tempo que questionamos os
exatos dois anos que separam as obras homônimas e, quase, idênticas.
Procurando explicações pertinentes para essa peculiaridade, recorremos aos
estudos de Ferreira (2011), tendo em vista o seu contato direto tanto com a artista-artesã,
Goiandira do Couto, quanto com suas obras, fisicamente falando. Felizmente, encontramos a
seguinte análise:

Ao observarmos o quadro de 1974 e o de 1976, percebe-se que mesmo


repetindo a mesma temática, houve pequenas mudanças em relação à
vegetação. No primeiro as duas árvores da esquerda aparecem praticamente
por inteiro, à direita surgiu mais uma árvore e ao fundo a vegetação também
se alterou. No céu deste quadro (II) as nuvens aparecem com traços mais
marcados, nos dois prédios os ângulos foram pouco alterados, mas as
tonalidades permanecem bem próximas (FERREIRA, 2011, p.178).

O formalismo das imagens dispostas nas figuras 47-A e B reforça a tendência


da materialidade, quase inalterada, da paisagem urbana idealizada por Goiandira do Couto.
Assim, solitária, a representação do prédio que abrigou no pavimento superior, a assembleia e,
no inferior, o cárcere, entre os séculos XVIII a XX, acentua o capital simbólico da presença
portuguesa na Cidade de Goiás.
Em significativa medida, esse dado reforça a concepção de que, ao povoar a
cidade-ideal de lugares de memória, semelhante ao que vemos nas obras intituladas, Museu
264

das Bandeiras (1974 e 1976), a retórica discursiva dos guardiões das tradições acompanha as
produções artísticas em apreciação, principalmente, se considerarmos que o projeto de
ressignificação cultural tinha um objetivo precípuo: restituir o prestígio regional da antiga
capital, por meio do reconhecimento de suas tradições, solapado com o advento dos anos de
1930. É interessante constatar que o apregoado “valor” do legado patrimonial vilaboense
restringiu-se, quase que exclusivamente, na estética pictórica da artista-artesã, aos símbolos
e/ou aos referentes da passagem europeia pela região dos Guayazes.
Desse modo, repensar essa aparente linguagem unilateral, justifica a busca de
sensibilidades noutras manifestações artísticas que notabilizem a antiga Casa de Câmara e
Cadeia, na Cidade de Goiás. Afinal de contas, os mencionados usos e funções do monumento
figurado pela estética com areia, figuras 48-A e B, instigam-nos a deduzir que o poder e a
repressão, emanados deste simbólico monumento da arquitetura colonial vilaboense, tiveram
como alvo os “invisíveis” que habitam a cidade-ideal.
A rigor, evocamos, novamente, a poética memorialista de Cora Coralina para
relatar alguns dos possíveis acontecimentos guardados em sua memória e externados em
estrofes que mais se parecem odes às sobrevivências de uma cidade que insiste em revelar
suas realidades ziguezagueantes ao longo de sua existência:

Mulheres da Vida,
Perdidas,
começavam em boas casas, depois, pra o beco.
Queriam alegria. Faziam bailaricos.
- Baile Sifilítico - assim chamado.
O delegado-chefe de Polícia - brabeza -
dava em cima...
Mandavam sem dó, na peia.
No dia seguinte, coitadas,
obrigadas a capinar o Largo do Chafariz
na frente da Cadeia (CORA CORALINA, 1987, p.105).

A cadência das palavras incita a ruptura da linearidade da cidade-ideal, em


Goiandira do Couto. A profundidade dos sedimentos poéticos ajuda-nos a reimaginar as
experiências, moralmente corretas ou não, à luz do discurso oficial, acerca de um possível
episódio ocorrido no Largo do Chafariz. Escancarar as vissicitudes instauradas nos ideais
poéticos de Cora Coralina tem como objetivo quebrar o regime ambivalente do discurso
pictórico de Goiandira do Couto que, a nosso ver, inspirou-se nas aparências do passado
colonial, proporcionalmente, entrosadas às tradições inventadas na Cidade de Goiás, desde os
265

anos de 1965, cujos sentidos desaguam na efetivação do projeto de futuro: a cidade-


patrimônio.
Ademais, consideramos que as diferenças estéticas entre ambas as artistas estão
relacionadas ao engajamento político-cultural de Goiandira do Couto, resultado de uma
trajetória de vida totalmente imersa no mundo social vilaboense controlado por uma elite
antimudancista. Quanto a Cora Coralina, consoante Britto e Seda (2009, p.05), trata-se de
uma mulher-artista com raízes fincandas na Cidade de Goiás, porém seus galhos estenderam-
se para o Estado de São Paulo239, provavelmente, um lugar onde ela esculpiu as sensibilidades
de um olhar forasteiro e, visivelmente, contrastante com os pontos de vista apresentados pelo
olhar guadião.
Apesar de as evidências consubstanciarem plausibilidade a presente análise,
insistimos no diálogo com as imagens, inclusive, aquelas que, porventura, façam juz ao nome
da localidade, Largo do Chafariz, a fim de explorarmos, ao máximo, os seus testemunhos.
Segundo Coelho (1997, p.108), a importância da construção dos chafarizes, nos
tempos colonias, está relacionada à harmonização dos largos, tendo em vista a prerrogativa de
serem lugares públicos inerentes à participação empírica da população. Ainda conforme o
pesquisador, o referido largo é o mais amplo da Cidade de Goiás, aspecto que corresponde ao
“fato de ser esse o espaço criado oficialmente com o objetivo de se apresentar como o centro
gerador” (p.107), em razão de ter sido o principal manancial de água potável encanada
naquela época e, segundo testemunhos orais informais, serviu às necessidades básicas de
alguns até, aproximadamente, a primeira metade do século XX.
Curiosos para contemplar o conjunto arquitetônico que compõe a paisagem do
Largo do Chafariz, bem como os iminetes flagrantes da interação social com o espaço em
questão, recorremos às sucessivas produções pictóricas:

239
Mesmo não sendo objeto deste estudo, mas, considerando o vínculo de parentesco de Cora Coralina com
Goiandira do Couto e, sobretudo, a comparação feita entre as duas principais referências artísticas femininas na
Cidade de Goiás, esclarecemos que a poetisa viveu entre os anos de 1911 e 1955, na Cidade de São Paulo. O
regresso à cidade de Goiás se dá no ano de 1956, aos sessenta e sete anos de idade para recuperar a Casa Velha
da Ponte que estava prestes a ser vendida em leilão público. De acordo com Britto e Seda (2009): “Quando
conquistou a casa-memória de sua família, abriu suas portas, abrigou desvalidos, reescreveu os autos do passado
e estendeu a Ponte da Lapa para muito além dos rios Vermelho e Paranaíba. (...) Honrando o seu sangue
sertanista, rompeu o isolamento e as condições adversas, redescobriu Goiás e dilatou suas fronteiras” (p.27-28).
As palavras dos autores demonstram que, assim como as telas douradas, a poética coralineana, também,
ultrapassou os limites geográficos da Serra Dourada.
266

Figura 48 - Largo do Chafariz, Octo Marques, óleo sobre tela, s/d.

Fonte: Fonte: Elder Rocha Lima, 2009.

Octo Marques, fiel ao seu estilo preservacionista de cunho social, desvela, na


figura 48, muito mais que a harmonização arquitetônica entre as duas edificações herdadas do
período colonial: a Casa de Câmara e Cadeia, ao fundo, e o Chafariz de Cauda240, no centro
da imagem. O casario, à esquerda, e a vegetação esparsa nos traz a sensação de que estamos
contemplando experiências de um passado recente.
O interesse do pintor pela paisagem explicita-se na posição ocupada pelos
protagonistas da obra homônima ao lugar oficial, aparentemente, transformado num
palimpsesto de suas subjetivas memórias. A presença do lenheiro exercendo seu ofício e da
lavadeira guiando a criança por passos, igualmente, sintonizados remete-nos, imediatamente,
à infância humilde do artista vivida na cidade das tradições. É razoável que imponência destes
monumentos, seja do ponto de vista material ou abstrato, tenha interferido no modo como
Octo Marques pousou seu olhar sobre essa localidade. A visão sorrateira dá-nos a impressão

240
“Em 1778, o Chafariz de Cauda da Boa Morte foi construído com a finalidade de dividir o abastecimento de
água da cidade com o já existente Chafariz da Carioca. O termo "Chafariz de Cauda" é usado em virtude do
aqueduto que o abastece se assemelhar a uma enorme cauda, em sua parte posterior. Já "Boa Morte" se refere à
Capela de mesmo nome, pertencente à Confraria dos Homens Pretos, situada em um terreno imediatamente atrás
do local onde está implantado o Chafariz. Construído em alvenaria de pedra, com detalhes em pedra-sabão, o
chafariz possui, em seu corpo central, as bicas que forneciam água à população além de dois tanques destinados
aos animais, na parte externa. Sua estrutura é organizada para apresentar quatro corpos, além do central,
dispostos de forma tal que, em conjunto com a grade de proteção frontal, criam um pátio interno de forma
hexagonal irregular, com bancos talhados na pedra, com o objetivo provável de proporcionar conforto aos
usuários das bicas. Detalhes importantes em sua decoração são pináculos que se apresentam com desenhos
diferenciados em função de sua localização no monumento, além de volutas e mais elementos bem ao gosto
rococó. Em sua parte superior encontra-se, ainda, um escudo entalhado em pedra-sabão, onde se pode ler:
"Mandada fazer pela Câmara desta Vila, sendo o Governador e Capitão General Ilustríssimo José de Almeida
Vasconcelos Soveral e Carvalho e Ovd. Geral o Desembargador Antônio José de Almeida. Ano de 1778" (Texto
de Gustavo Neiva Coelho). Cf. Disponível em: (http:// portal.iphan.gov.br/ans.net/tema_consulta.asp?Linha=tc_
belas.gif&Cod=1227>. Acesso em: 22 jul.2015.
267

de que o artista estava à espera dos sentidos de identificação, um tanto mais resistente que a
memória de cal e pedra que povoa a localidade. Visivelmente, culturas diferentes da europeia
persistiram historicizando a cidade contextualizada, quase que majoritariamente, numa
perspectiva ilusória de um passado glorioso.
Sobre isso, Pesavento (2007) traz uma explicação oportuna: a “cidade do
passado (...) pensada através do presente, se renova continuamente no tempo de agora, seja
através da memória/evocação, individual ou coletiva, seja através da narrativa histórica pela
qual cada geração reconstroí aquele passado” (PESAVENTO, 2007, p.16). No caso da Cidade
de Goiás, a geração responsável por “reconstruir”, reinventar a história urbana da Cidade de
Goiás, o fez pelo viés tradicional, por acreditar que o saldo acumulado no passado lhes
garantiria, enquanto “coletividade”, o(s) lucro(s) simbólico(s) no futuro.
A investigação prossegue perscrutando as frestas entrecortadas pelo rigor
metódico com o qual submetemos as imagens convocadas para testemunhar a respeito do
papel, da arte em Goiandira do Couto, na construção de uma cidade-ideal, enviesada ao
projeto de futuro, implementado pelas instituições vilaboenses, a partir da década de 1970.
Espiando o acervo das telas douradas, deparamo-nos com duas de suas
interpretações sobre o Chafariz Cauda. A primeira, figura 49 subsequente, é contemporânea
das obras, Museu das Bandeiras (1974 e 1976), respectivamente figuras 47-A e B, cuja visão
privilegia um ângulo peculiar deste monumento de formas grandeloquentes, o qual pode ser
entendido como uma exaltação ao poderio dos tempos dourados na Cidade de Goiás, do
século XVIII.

Figura 49 - Chafariz, Goiandira do Couto, areia sobre fibra de madeira (42x34), 1978.

Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011.


268

Ora, conforme vimos em Coelho (1997), o Chafariz de Cauda fora construído


para estimular as sociabilidades espaciais, bem como colaborar para que a vida dos mais
simples fosse menos árida. Portanto, vê-lo, assim, à espera dos sentidos que lhes são
culturalmente próprios, endossa inquietantes suspeitas de que o foco da artista-guardiã, na
figura 49, reitera uma estética visual compromissada com a instituição dos lugares de
memória na cidade que, segundo o seu olhar guardião, começa no Largo do Rosário e termina
no Largo do Chafariz.
O jogo de luz e sombras encarregou-se de transmitir à tela, Chafariz (1978),
matizes do anacronismo visual, característico do estilo artesanal de ver e representar a cidade-
ideal de Goiás. Sobre isso, em uma de suas entrevistas, a pintora confessou: “Eu pinto
copiando do quadro que fiz há alguns anos, daí o porque de não retratar as modificações. (...)
o que se vê nos quadros meus não tem nada igual mais, parece que é de tempos atrás. Pintar
com areia é uma marca de pintar Goiás” (COUTO apud BRITTO, 2009, p.17).
O processo criativo de Goiandira do Couto, ao utilizar-se da prerrogativa de
“não retratar modificações”, projetou a representação de uma cidade inalterada em pleno
século XX. Coincidência ou não, o fato é que consideramos a arte com areia um esboço das
intervenções urbanas ocorridas na Cidade de Goiás, logo após a conquista do título de
Patrimônio Histórico Mundial, em 2001, cuja proposição exigia readequar as alterações
culturais na paisagem urbana do presente, para uma perspectiva verossimilhante de cidade do
passado.
Não obstante, como se trata de um tema a ser adensado no capítulo seguinte,
damos uma pausa nestas análises para retomarmos as visões artísticas que, hipoteticamente,
serviram de paradigma para inventar a cidade-patrimônio. A última representação que
encontramos de Goiandira do Couto na região do Chafariz (figura 50) traz, pela primeira vez,
a junção da beleza eclética das formas barroca e colonial. O enquadramento escolhido para a
imagem, na figura 50, permite-nos contemplar mais de perto as prioridades da artista-artesã
reveladas, paralelamente, às suas convicções culturais “lugarizadas” pelos monumentos
alusivos à memória portuguesa rigorosamente intactos.
269

Figura 50 - Chafariz e Museu da Bandeiras, Goiandira do Couto, areia sobre fibra de


madeira (60x40), 1983.

Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011.

O foco do olhar guadião insiste em velar a Casa de Câmara e Cadeia na obra


intitulada: Chafariz e Museu das Bandeira (1983). Neste caso, a ordem das nomeações
condiz, apenas, com os planos formais da imagem. O monumento que deveria jorrar toda a
sua suntuosidade ao Largo do Chafariz, aparece tímido, quase inexpressivo, nesta
interpretação de Goiandira do Couto produzida na década de 1980.
Não estamos defendendo uma posição assertiva quanto às escolhas da artista,
no que tange a optar por não pintar pessoas e animais na paisagem vilaboense. Certamente,
não seria um motivo razoável para talharmos as hispóteses tramadas até aqui. Se assim o
fosse, logo caberia indagar: outros artistas, a exemplo de Octo Marques, não se dedicaram a
pintar a cidade, tão somente, como paisagem/monumento? A resposta é afirmativa. Ainda
assim, esmiuçando os detalhes, conseguimos verificar que Goiandira do Couto personificou
esteticamente as vozes do poder tanto do passado, as referências à cultura portuguesa, quanto
no presente, à medida que consideramos sua veiculação com as instituições que exerciam
influências sobre a gestão do patrimônio cultural vilaboense, material ou imaterialmente
falando.
270

Visando dissecar as diferenças em meio a uma visão que parece assemelhar-se


à tela de autoria de Goiandira do Couto, Chafariz (1978), apresentada na figura 50.
Principalmente em se tratando da primeira imagem que se segue:

Figura 51-A - Chafariz, Octo Marques, óleo


sobre tela, 1986.

Figura 51-B - Chafariz, Octo Marques, óleo


sobre tela, 1972.

Fonte: Elder Rocha Lima, 2009.

As respectivas imagens se complementam. Mas, como é de costume, a


presença dos atores sociais, corriqueiramente, evocados por Octo Marques não apareceram.
Ainda assim, o olhar sorrateiro do artista não exita em mostrar, tanto na perspectiva frontal
(figura 51-A) quanto na posterior (figura 51-B) do Chafariz de Cauda, que o regime de
historicidade de suas criações artísticas diferem, substancialmente, daquele que visualizamos
nas obras de Goiandira do Couto. Em destaque, chamamos a atenção para as matizes de cores
utilizadas em ambas as representações. As tonalidades em rosa e amarelo, esmaecidas pelo
tempo, imprimem verossimilhança ao monumento que, segundo depoimentos de moradores
antigos do largo, atual Praça Brasil Caiado, há muitos anos (estimaram aproximadamente uns
setenta anos) que o referido chafariz tem recebido cores que realçam, ainda mais, suas formas
barrocas.
Nos arredores da figura 51-A, notamos que o gramado possui espaços vazios.
Essa prerrogativa leva-nos a imaginar que se trata do resultado dos transeuntes, pessoas e
animais, em busca da água abundante neste lugar estratégico. Não temos essa mesma
271

impressão ou sinais na figura 51-B, no entanto, na posição de retaguarda, o Chafariz observa a


cidade, ao fundo, enquanto são observados pelo artista. Neste caso, as sensibilidades se tocam
à medida que a nostalgia se torna um sentimento partilhado em um mesmo enquadramento
por ambos os expectadores da paisagem colonial vilaboense. Com base nestas considerações,
reavaliamos as figuras 49 e 50, produzidas nas décadas de 1970 e 1980 por Goiandira do
Couto, e conluímos que manter o Chafariz de Cauda todo branco (caiado) evidencia que a
artista-artesã buscava trazer à tona a representação de uma cidade-ideal de Goiás inalterada e
demarcada por lugares de memória, notadamente, uma cidade berço das tradições.
Estamos convencidos de que os fragmentos de areia, em diálogo com os
respingos de tinta e a poética das palavras, interligaram as lacunas na produção pictórica de
Goiandira do Couto à presença social no eixo de poder, especialmente, daqueles atores
constituites de culturas diferentes da europeia. Reintroduzí-los nos diferentes espaços da
cidade, especialmente naqueles reservados ao núcleo de poder, deu-nos a possiblidade de
tocar, visualmente, uma cidade mais verossível, habitável e sensível, quando comparada ao
que se vê a partir da linguagem artística proposta pela pintora que foi guardiã e artesã das
tradições inventadas na Cidade de Goiás. Esse exercício de repensar, reavaliar e repovoar a
cidade-ideal encontrou respaldo nos ensinamentos de Pesavento (2007), os quais podem ser
sintetizados nos seguinte excerto:

Contemplar uma cidade pela primeira vez, por exemplo, nos remete a outras
tantas cidade que conhecemos, por nossa experiência ou leitura, e das quais
possuímos imagens. Ou, no caso da cidade do passado, não mais passível de
ser observada, mas cujas imagens acumulam em cadeia no pensamento,
vistas ou imaginadas a partir de nossa bagagem cultural e da experiência da
vida. Assim, é possível formar, a partir das cidades visíveis, cidades
sensíveis e imaginárias, não experiementadas. Um historiador tout court
poderia se indagar que grau de fiabilidade que essas cidades do pensamento
teriam (...) (PESAVENTO, 2007, p.21).

Afirmamos que as fronteiras exatas ou “finitas” do eixo de poder representado


na tela Largo do Rosário-Vista da Cidade (1976) sofreram alterações de seus limites para
muito além das telas douradas. Alinhavar a retórica das tradições às concepções artísticas de
Cora Coralina e Octo Marques foi essencial nesse processo de alargamento dos horizontes
culturais da urbe imaginada por Goiandira do Couto, tenha servido de arquétipo para se
inventar a cidade-patrimônio.
Não obstante, o registro fotográfico que se segue, ressalta o poder das imagens.
O testemunho capturado, em um instante, passa a ser compreendido por este estudo como um
272

resumo do que foi o longo ciclo da trajetória público-individual de Goiandira Ayres do Couto
(1915-2011) ou para os vilaboenses, simplesmente, Dila.

Figura 52 - Goiandira do Couto e a tela Largo do Rosário, s/d.

Fonte: Academia Itaberina de Letras e Artes.

Visivelmente assentada sob os pilares que sustentaram sua vida e arte,


Goiandira do Couto posou para um registro fotográfico memorável. A cognição das bases que
aparecem na imagem da figura 52 reproduz, igualmente, os fundamentos que nortearam as
discussões que viemos nos debruçando desde o primeiro capítulo desta tese.
Pormenorizando os elementos visíveis, destacamos: primeiro, o pilar de pedra,
a família que se faz representada pela Casa de Goiandira ao fundo. Em segundo, o pilar
institucional, a OVAT, se confunde com a pessoa da própria artista, ideária criativa do
princial legado imaterial patenteado pela entidade, a Procissão do Fogaréu. E, finalmente, o
pilar de areia, materializado pela obra Largo do Rosário-Vista da Cidade (1976), hipotético
eixo norteador da invenção da cidade-patrimônio, um instituto que, a nosso ver, recoloririu as
expectativas de futuro dos vilaboenses com relação à Cidade de Goiás, a partir da década de
1970.
Remontar essa representação histórica combinando vida, arte cultura e poder
em Goiandira do Couto desaguou no projeto de futuro cujas fronteiras permeáveis
ultrapassam os limites da cidade-ideal para os horizontes da cidade-patrimônio, nomenclatura
273

que convencionamos utilizar quando nos referimos à Cidade de Goiás, após o recebimento do
título de Patrimônio Histórico Mundial, em 2001.
É interessante frisar o sentido paradoxal da patrimonialização da Cidade de
Goiás no século XXI. No cerne da proposta de tombamento, estava a preservação da
paisagem colonial que, inclusive, submeteu-se às adequações urbanistíticas referendadas de
acordo com as políticas patrimôniais em nível internacional. Todavia, neste caso em
específico, preservar e inventar se entrecruzaram ao processo de composição dos ideais
históricos e estéticos da cidade-patrimônio. Entre consensos e dissensos, o que mais nos
chama a atenção é a criação de um lugar de memória dedicado à artista-artesã, o Espaço
Cultural Goiandira do Couto, construído pela própria artista no ano 2000, sob a justificativa
de separar sua vida pública da privada.
Diante desse feito, a Casa de Goiandira adquiriu status de museu, logo, passou
a ser incluída, oficialmente, entre os espaços de visitação previstos no roteiro cultural da
Cidade de Goiás. A iniciativa da protagonista de criar um espaço de memória, ainda em vida e
no bojo da concretização do projeto de futuro,no qual encontramos suas digitais, é o que nos
propomos debruçar no quarto e último capítulo desta tese.
274

CAPÍTULO IV

A MONUMENTALIZAÇÃO DA CASA E DAS MEMÓRIAS DE GOIANDIRA DO


COUTO NA CIDADE-PATRIMÔNIO

“A casa, na vida do homem, afasta


contingências, multiplica seus conselhos de
continuidade. Sem ela, o homem seria disperso.
Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser
humano [...]”
(Gaston Bachelard)

As reflexões a serem desdobradas ao longo deste capítulo final não se afastam


da relação estabelecida entre a vida, a obra e os horizontes da cidade, cujos indícios levam-
nos a crer que Goiandira do Couto ajudou a construir. Apesar de que, faz-se necessário dividir
o foco dado à artista com a atuação institucional do IPHAN - Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional - que, por meio do escritório técnico localizado na Cidade de
Goiás, desenvolveu um importante papel na concretização do projeto de futuro: normatizou a
cidade-monumento, requisito primordial para se adquirir o status mundial de cidade-
patrimônio. Nesse arcabouço, pretende-se esmiuçar o fascínio da elite vilaboense em torno da
narrativa de que o futuro da Cidade de Goiás era o seu passado. Essa ideologia se formalizou,
internacionalmente, por meio da “Proposição de Inscrição da Cidade de Goiás na Lista de
Patrimônio da Humanidade”, documento popularmente conhecido como Dossiê de Goiás.
Ainda assim, este capítulo não se desviará das interfaces com a personagem
central, Goiandira do Couto. Muito pelo contrário. Trazer à baila o histórico do trâmite
processual da patrimonialização internacional da Cidade de Goiás tem por objetivo
encaminhar as discussões relacionadas à decisão da artista em monumentalizar sua imagem
público-privada a partir da edificação, em 2002, do Espaço Cultural Goiandira do Couto,
uma espécie de museu-galeria inaugurado, oficialmente, em 2003.
Desde o levantamento das hipóteses, esse fato provocou-nos latente inquietude.
Por esse motivo, decidimos revisitar a documentação arquivada no escritório do IPHAN, na
Cidade de Goiás, em busca das prováveis respostas.
Examinamos uma gama variada de documentos deste acervo e reiteramos que,
de fato, as décadas de 1950 a 1980 foram destinadas à construção da identidade de cidade-
275

monumento. Atribuímos essa nomenclatura por se tratar de uma fase designada ao


tombamento241 de diversos bens culturais242 isolados na Cidade de Goiás, entre eles, a Casa
de Goiandira. Quanto à década de 1990, os documentos revelaram uma preocupação
constante do órgão em desenvolver estudos e debates a respeito da concepção de entorno e
seus limites em relação ao centro histórico da Cidade de Goiás. Avançando,
cronologicamente, nos dados investigados, descobrimos que as medidas legais de preservação
do referido imóvel ampliaram-se em 2001, pelo fato de estar localizado no polígono de
tombamento, precisamente, à Rua Joaquim Bonifácio243, próximo a Igreja de Nossa Senhora
D`Abadia244.
O mapa a seguir expõe o traçado do perímetro que circunscreve,
representativamente, o conjunto da área reconhecida pela UNESCO como sendo de “valor
universal excepcional” e, por sua vez, conseguimos visualizar a posição da Casa de
Goiandira em relação ao que denominamos de eixo de poder. E, se a artista foi capaz de
recriar do pó de pedra uma cidade-ideal que, mais tarde, tornar-se-ia indivisível da noção
comum de patrimônio, é compreensível que o lugar onde ela viveu todo o seu ciclo criativo se
tornasse um lugar de memórias, transversalmente, incluso ao roteiro das tradições
vilaboenses.

241
“Ação que implica a preservação e a revitalização, ou seja, a adoção de medidas que se complementam e
juntas valorizam os bens que se encontram deteriorados. Deve ficar claro que o tombamento não tem por
objetivo “congelar”, “cristalizar” a cidade ou inibir o seu desenvolvimento, mas sim proteger os bens e preservar
suas características originais, viabilizando toda e qualquer obra que venha contribuir para a melhoria da cidade”
(PELEGRINI, 2009, p.34).
242
Reza o artigo 216 da Constituição da República Federativa do Brasil: “Constituem patrimônio cultural
brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (...). Cf.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal:
Centro Gráfico, 1988.
243
De acordo com o documento, Carta à Cidade de Goiás (1983, p.6), em 1978, a Rua Joaquim Bonifácio
passou a constituir a área de vizinhança denominada oficialmente de: “Área de Entorno de Preservação do
Núcleo Histórico”, regida pelo Artigo 18 do Decreto-Lei n° 25, de 30 de novembro de 1937, sob a proteção do
Patrimônio Histórico e Artístico da Nação Brasileira.
244
“Mandada construir em 1790 com esmolas do povo pelo Rev. Salvador dos Santos Batista, a pequena igreja
fica na esquina da Rua dos Bancários. Um dos melhores exemplares da arquitetura religiosa da Cidade de Goiás,
a Igreja de Nossa Senhora da Abadia foi edificada no final do século XVIII (...). O sofisticado forro da nave,
pintado por autor anônimo, representa Nossa Senhora em meio a um grupo de anjos”. Disponível em:
<http://vilaboadegoias.com.br/cidade/patrimonio_historico/igrejas.htm>. Acesso em: 02 jan. 2017.
276

Figura 53 - Mapa de Goiás, folder Ao Morador, Escritório do IPHAN, Cidade de Goiás,


2014.

Fonte: Acervo da autora.

Intuindo complementar informações, além das que podem ser lidas na figura
53, destacamos uma parte relevante do texto escrito no folder:

A gestão do Iphan na cidade de Goiás inicia-se na década de 1950, quando


foram protegidos alguns de seus monumentos isoladamente e o conjunto do
Largo do Chafariz e da Rua da Fundição. Em 1978, a proteção foi ampliada
para o seu conjunto arquitetônico e urbanístico. Após o reconhecimento
como Patrimônio Mundial pela Unesco, a área de proteção foi novamente
ampliada, incorporando 06 chácaras que fazem o “cinturão verde” no
conjunto (FOLDER “Conjunto Arquitetônico e Urbanístico da Cidade de
Goiás, Ao Morador”, IPHAN, 2014).

Remontar esse breve histórico institucional tem por finalidade lançar luz nas
prováveis razões que levaram Goiandira do Couto a monumentalizar sua casa e suas
277

memórias. Mas, antes disso, precisamos nos debruçar nos antecedentes do reconhecimento da
Cidade de Goiás como Patrimônio da Humanidade245.
Por se tratar de um tema por vezes debatido no campo científico, sentimo-nos
desafiados a trazer uma discussão original. Afinal, pensar a Cidade de Goiás e seu
tombamento mundial, a partir de Goiandira do Couto, prescinde do distanciamento das
obviedades para, logo, nos aproximarmos de um vasto campo de sensibilidades intrínsecas às
expectativas de futuro, perante a iminente conquista do célebre título.

5.1 Normatizando o Devir das Tradições

Durante o trajeto histórico e historiográfico percorrido nos capítulos anteriores,


ficou evidente o envolvimento de Goiandira do Couto com o processo de ressignificação
cultural da Cidade de Goiás, ao final da década de 1930, em decorrência da perda oficial do
status de capital do Estado de Goiás.
Vimos que esse objetivo se aperfeiçoou nos últimos anos da década 1960, a
partir do momento em que as instituições públicas e civis empreenderam-se na promoção do
potencial histórico, turístico e patrimonial da Cidade de Goiás, vislumbrando pavimentar o
caminho da restituição do status quo desta urbe de origem colonial, partindo do pressuposto
da existência de um passado glorioso estandardizado sob o emblema de berço da cultura
goiana.
Já na década de 1970, essa ideia agregou diferentes segmentos institucionais
locais que foram motivados pela patrimonialização do conjunto cultural acumulado na/pela
antiga capital como alternativa para superar o cenário de “abandono” deixado em virtude da
transferência de poderes para Goiânia. Esse pensamento comum entre os antimudancistas, isto
é, os filhos da terra, tornou-se uma ideologia apropriada pelos agentes culturais e
representantes do poder público naquela época. E, como a própria semântica da palavra
patrimônio reverbera no sentido de herança, compreendemos que as ações compartilhadas por
esses atores se embasavam na expectativa de concretização de um projeto de futuro, cujo
propósito central era devolver à cidade e aos seus moradores o status quo da experiência

245
“A noção de patrimônio comum da humanidade, para Antônio Blanc Altemir, implica o “reconhecimento da
existência de certos interesses comuns e superiores que se sobrepõem aos objetivos imediatos e particulares dos
Estados”. Esses interesses pressupõem a gestão do patrimônio comum da humanidade pela comunidade
internacional, a repartição equitativa de seus recursos, sua utilidade para fins pacíficos e a exclusão de toda
apropriação nacional ou reclamação unilateral de soberania (...). A noção de humanidade, para René Jean Dupuy,
comporta uma característica “atemporal” que contempla as pessoas de hoje e do futuro. Disso resulta um liame
entre seres humanos da atual e da futura geração (...)” (SILVA, 2003, p.34-36).
278

fascinante de se viver, no presente, da valorização e preservação do passado. É nesse contexto


que o protagonismo do IPHAN ganha destaque nesta discussão.
Conforme foi visto no segundo capítulo deste trabalho, desde a década de
1950, o IPHAN vinha desenvolvendo medidas de proteção relativas ao patrimônio cultural na
Cidade de Goiás. Porém, de acordo com os testemunhos orais e documentais, estes primeiros
anos foram marcados por sucessivos embates com a população local diante da resistência
coletiva em relação às políticas de tombamento e afins. Com o surgimento da OVAT, em
1965, houve uma aproximação entre os poderes - simbólico, conferido à entidade civil, - e o
efetivo - outorgado à instituição federal -, que possibilitou a criação de um ambiente de
amenidades, e assim, resultou na normatização do projeto de futuro, logo no advento da
década de 1970.
Em 1978, depois de quase uma década de levantamentos técnicos na Cidade de
Goiás, foi apresentada por meio da Carta à Cidade de Goiás, publicada e distribuída à
população em 1983, a extensão do roteiro de tombamento Histórico e Artístico de Goiás. O
ponto fulcral do documento situa-se nas regras normativas a serem cumpridas pelos
moradores, especialmente aos detentores dos imóveis tombados, tanto no núcleo histórico
quanto da área de entorno.
A partir desse criterioso levantamento realizado pela comissão coordenada por
Belmira Finageiv, chefe, à época, da 8ª Diretoria Regional da Subsecretaria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, veio a recomendação de tombamento da Casa de Goiandira.
Portanto, o órgão oficial, por meio de seus agentes legais, reconheciam Goiandira do Couto e
suas representações como dignas de tornarem-se ícones de memória da cidade que se
(re)construía para o futuro (cidade-patrimônio).
Nos arquivos do IPHAN na Cidade de Goiás, encontram-se os documentos
comprobatórios a esse respeito, os quais consideramos, metodologicamente, de suma
importância para esta pesquisa. Sendo assim, optamos por dar-lhes a devida ênfase
começando, primeiramente, pelos membros constituintes da referida comissão:
279

Figura 54 - Projeto de Levantamento de Bens de Interesse para Tombamento (1977/1978),


Reedição em 1995.

Fonte: Escritório Técnico de Goiás/IPHAN, Arm. 01; Arq. 08 - G.02, fls. 03.

TRANSCRIÇÃO
Revendo algumas pastas do arquivo encontrei um levantamento 1977/1978 de bens de
interesse de tombamento em Goiás.
Creio que poderíamos fazer uma vistoria para verificar o que 20 anos depois poderia
ser preservado.
Solicito que analisem as relações em anexo e remetam suas considerações à
Coordenação.
Atenciosamente,
Célia Corsino
Coordenadora Regional
Em abril de 1995
280

ANÁLISE E CLASSIFICAÇÃO

Trabalho analisado e classificado pela Comissão instituída pelo Decreto Estadual n°


1.313, de 19.10.77 (D.O.E. – 31-10-77) alterado pelo Decreto Estadual n° 1.334 de 02.12.77 (D.O.E –
31-10-77).
A Comissão é presidida pela Dr ª BELMIRA FINAGIEV, do Instituto Histórico e
Artístico Nacional, e integrada pelos seguintes membros: Prof ª. REGINA LACERDA, do Conselho
Estadual de Cultura, Prof. SÉRGIO PAULO MOREIRA, do departamento de Ciências Humanas da
U.F.Go, Prof. HÉLIO FURTADO DO AMARAL, do Departamento da Comissão Social daquela
Universidade, Prof. PEDRO WILSON, diretor da Faculdade de Arquitetura da U.C.G., Prof. JÔNIO
CINTRA DE OLIVEIRA, da referida faculdade, Prof ª. MAURIVONE MATOS CHAIM, do Instituto
Histórico e Geográfico de Goiás e MARY JOSÉ LAZIGI, Diretora de Serviço de Proteção ao
Patrimônio Artístico e Arqueológico de Goiás.

(1977/1978)

As orientações subscritas por Célia Corsino, em 1995, enquanto releitura do


Projeto de Levantamento de Bens de Interesse para Tombamento (1977/1978), presidido por
Belmira Finagiev (figura 54), complementaram o trabalho desenvolvido pela equipe da sub-
regional do IPHAN na Cidade de Goiás que, na década de 1990, dedicou-se ao zoneamento e
reavaliação dos limites de entorno em conjunto com o levantamento dos bens culturais
(imateriais) vilaboenses.
O resultado das análises foi reencaminhado à apreciação da coordenadora
regional de Divisão Técnica da14ª CR. Em resposta a esse trâmite, o qual teve duração
aproximada de dois anos, encontramos um memorando remetido por Célia Corsino à diretora
da instituição na Cidade de Goiás, Maria Cristina Portugal Ferreira246, com as seguintes
deliberações:

Memorando n° 250/97
Chefe de Divisão Técnica 14ª CR
(...) os bens culturais com indicativo de tombamento pela União foram
grifados em laranja, pelo Estado, grifados em verde. Os bens culturais não
destacados, por sua vez, ou tem indicação de tombamento municipal ou se
relacionam a outros levantamentos/registros que aproveitamos para
acrescentar a relação da comissão constituída em 1977. À diretora da 17ª SR
- do Iphan (RELAÇÃO DE BENS TOMBADOS PELO ESTADO E BENS
TOMBADOS PELO IPHAN, 1995, fls. 26. Arm. 01; Arq. 08 - G 02, fls.
26)247.

246
Maria Cristina Portugal Ferreira foi diretora da então 17ª Sub-Regional do IPHAN – Cidade de Goiás, entre
os anos de 1986-1999. Atualmente, a nomenclatura dada à representação deste órgão naquela cidade é:
“Escritório Técnico de Goiás/IPHAN” que, por sua vez, será utilizada na identificação das imagens
correspondentes aos documentos que pretendemos mostrar ao longo deste capítulo. Quanto à narrativa dos
acontecimentos, preservaremos a nomenclatura que estava em voga no período.
247
Fonte: Arquivo do Escritório Técnico de Goiás/ IPHAN, Cidade Goiás – GO, doravante, AETG/IPHAN.
281

Observando a metodologia adotada, percebe-se que a preocupação com a


salvaguarda dos bens culturais abrangeu as mais variadas esferas de poder. Tivemos acesso ao
processo original, de 1978, e o que foi revisitado entre os anos de 1995 a 1997. A Casa de
Goiandira, já se encontrava na lista elaborada pela equipe de Belmira Finegiev e assim
permaneceu. Tendo em vista o modo peculiar de classificação dos bens culturais vilaboenses
indicados para tombamento, resolvemos apresentar o documento com as adaptações dos anos
de 1990 pelo fato de seguir, rigorosamente, a explicação supracitada:

Figura 55 - Relação de Bens Tombados pelo Estado e Bens Tombados pelo IPHAN, 1997.

Fonte: Escritório Técnico de Goiás/IPHAN, Arm. 01; Arq. 08 - G.02, fls. 23.

Por mais que a cor verde, dantes fluorescente, esteja eventualmente opaca, o
testemunho, na figura 55, evidencia o endosso do IPHAN, nos anos de 1990, quanto ao
reconhecimento da “Residência da Pintora Goiandira do Couto” como um bem cultural
indissociável das políticas de preservação desenvolvidas em parceria com poder público
Estadual e Municipal de Goiás. Com isso, reafirmamos a existência de uma política de
coalizão emanada a partir dos diferentes poderes institucionais em favor da cidade-patrimônio
que, por sua vez, foi precedida da cidade-monumento, uma espécie de interstício espacial que
possibilitou legitimar assento às memórias da artista-artesã.
O tombamento da Casa de Goiandira pelo Governo do Estado de Goiás, não
desmerece a relevância do imóvel para a União, se considerarmos que a Rua Joaquim
Bonifácio, lugar onde se situa a notável residência, é, desde 1978, tombada pelo IPHAN, de
282

acordo com a Carta à Cidade de Goiás (1983, p. 06). Sendo assim, analisamos esse duplo
reconhecimento (federal e estadual) como uma forma encontrada pelas autoridades culturais
de confirmarem o prestígio da biografia de Goiandira do Couto na interface com o projeto de
futuro, notadamente, entrecruzado aos lugares de memória a serem reconhecidos como um
patrimônio de “valor universal excepcional”.
Outro aspecto que merece destaque é a relação da “comunidade” diante desse
conjunto de ações destinadas à valorização do patrimônio cultural vilaboense. Inventariando a
vasta documentação referente à implementação desta agenda normativa, percebe-se que, a
partir de 1978, o IPHAN adquiriu maior popularidade, especialmente entre os moradores do
centro histórico, tanto da área tombada quanto na de entorno, em razão do reconhecimento da
Cidade de Goiás enquanto “patrimônio da nação”248.
Segundo a Carta à Cidade de Goiás (1983, p.4), antes de 1978, o eixo
circunscrito entre o Largo do Rosário ao Largo do Chafariz havia sido tombado, mas não
reconhecido como sendo de “valor” histórico nacional. Portanto, o trabalho realizado pela
equipe de Belmira Finagiev, 1978, revelou-se decisivo na concretização da cidade-
monumento, que estivera ameaçada pelas concepções de “modernidade” não compartilhadas
pelos guardiões locais, conforme discorreu Tamaso (2007, p.156). Desse modo, estamos cada
vez mais convencidos da importância vital da união entre o poder público e a instituição civil
mais representativa na cidade, a OVAT, em prol da defesa das tradições da antiga capital.
Relembramos que essa série de medidas normativas implantadas na Cidade de
Goiás, pelo IPHAN, se entrecruza, temporalmente, à ressonância cultural e mercadológica das
telas douradas, cuja hipótese se trata de produções artísticas, caracteristicamente, marcadas
pela inalterabilidade da paisagem colonial vilaboense. De certa forma, a visão da artista
coaduna com o interesse de preservação demandado nas ações que envolveram políticos,
gestores do patrimônio cultural e, sobretudo, a elite guardiã que, por sua vez, representava
uma parte significativa dos moradores do centro histórico.
A noção de que o passado era o único caminho para se chegar ao futuro havia,
mesmo diante de iminentes ameaças e percalços, dado um passo crucial em 1978. Todavia, a
tão sonhada consagração simbólica da cidade que viveu, até aquele momento, assombrada

248
“Em agosto de 1978 é homologada a “extensão do tombamento do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico da
Cidade de Goiás”, publicada no Diário Oficial da União, no dia 21 de agosto, com o seguinte trecho: Processo
MEC n° 228. 843 -77: “Nos termos da lei n° 6292, de 15 de dezembro de 1975, e para efeitos do Decreto-Lei n°
25, de 30 de novembro de 1937, homologo a extensão do tombamento do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico
da Cidade de Goiás, no Estado de Goiás, a que se refere ao Processo n° 345 -T/58/IPHAN”. Em setembro de
1978 é realizada a inscrição do referido conjunto no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico,
no Livro do Tombo Histórico e no Livro do Tombo de Belas Artes” (TAMASO, 2007, p.158).
283

pelas perdas de 1937, ainda, não havia se concretizado plenamente. Sob essas expectativas,
retomamos os movimentos culturais ocorridos na década de 1990, para explanarmos sobre a
adesão social ao projeto de futuro, a qual se deu por meio da fundação de “novas” entidades
civis comprometidas com a ideia de transformar a Cidade de Goiás, e suas tradições
monumentalizadas, em “Patrimônio Histórico da Humanidade”.
Dentre as mais atuantes, destacamos o PROLER - Programa Nacional de
Leitura - vinculado à Biblioteca Nacional/Museu Casa de Cora Coralina, e a APROVI,
Associação de Proteção a Vida, fundada por Brasilete Ramos Caiado249, personalidade
notável na vida público-cultural da Cidade de Goiás, que ganhou notoriedade no projeto de
futuro, a partir da fundação desta entidade, cuja tônica era a preservação ambiental da cidade,
aspecto de ênfase paralela nas discussões relacionadas à patrimonialização mundial da antiga
Vila Boa, a partir de 1998. Em virtude do falecimento da fundadora, em 2004, não tivemos
acesso aos documentos da instituição que, segundo testemunhos orais, estão sob a salvaguarda
família Caiado em lugar incerto e não sabido.
Visto que o foco desse capítulo é repensar os passos recentes que antecederam
a aquisição do título, rastreando as digitais visíveis e “invisíveis” deixadas por Goiandira do
Couto nas ações institucionais de proposição da Cidade de Goiás na lista de Patrimônio da
Humanidade, tivemos o cuidado de investigar sobre a sua participação como membro destas
entidades. Em conversa informal com a segunda e última presidente da APROVI que, por sua
vez, era constituinte do PROLER, Ebe Maria Lima, ela afirmou que jamais houve qualquer
vínculo da artista com estas organizações.
Em contrapartida, no Movimento Pró-Cidade de Goiás, idealizado em fins de
1997, a filiação de Goiandira do Couto confirmou-se por meio de referências orais e formais
ao seu nome. Dentre elas, uma lista de presença das inúmeras reuniões deliberativas do grupo,
devidamente, assinado pela protagonista, documento que comprova, efetivamente, o seu

249
“Brasilete Ramos Caiado era filha de Brasil Caiado e Noêmia Rodrigues Caiado, que se casaram quando
ele estudava medicina, em São Paulo. Tiveram 11 filhos, estando Brasilete entre os mais novos. Nasceu
quando seu pai estava homiziado em uma de suas fazendas, para escapar à ordem de prisão emitida contra os
Caiado, pelos “aliancistas” vitoriosos da Revolução de 1930. (...)integrou a OVAT, entidade civil que se
propôs a resgatar e preservar os bens culturais – materiais e imateriais – da Cidade de Goiás. Dentre outros
serviços prestados à terra goiana, Brasilete foi fundadora da Faculdade de Filosofia da Cidade de Goiás, depois
Faculdade de Filosofia Cora Coralina – atualmente unidade que integra a Universidade Estadual de Goiás.
Quando teve início o movimento pró-inscrição da Cidade de Goiás na Lista do Patrimônio Mundial, da Unesco,
Brasilete Caiado foi escolhida para presidente da Comissão encarregada de liderar tão árdua empreitada, que
alcançou êxito, em 1999. Faleceu em 2003, vítima de um acidente de automóvel, deixando inumeráveis amigos e
admiradores de sua personalidade afável e dinâmica (...)” (Revista da Aflag, nº 5, 2009/2010, p.77-80).
Disponível em: <http://www.dm.com.br/cultura/2015/04/perfis-femininos-em-poder-e-paixao-a-saga-dos-
caiado-5o-perfil-brasilete-ramos-caiado.html>. Acesso em: 31 dez. 2016.
284

contínuo envolvimento com causas “Pró-Cidade de Goiás”. Portanto, convém expô-la,


visualmente, aqui:

Figura 56 - Lista de Presença “Movimento Pró-Cidade de Goiás”, 2000.

Fonte: Arquivo do Escritório Técnico do IPHAN, Arm. 01; Arq. 08 - G. 02, Cidade Goiás - GO.

O testemunho, na figura 56, traz informações importantes sobre o quadro de


prováveis constituintes do “Movimento Pró-Cidade de Goiás”. A principal delas refere-se à
permanência de célebres atores culturais, tais como, Elder de Camargo Passos, Hercival de
Castro e, obviamente, Goiandira do Couto, fundadores da OVAT, testemunhando o
285

envolvimento de outros agentes e segmentos culturais afluindo em direção ao futuro


imaginado, primeiramente, por eles. Em razão de uma formação tão complexa, temos que
concordar com Tamaso (2007, p.163), quando afirma que é quase impossível precisar a
participação destes personagens nas diferentes etapas deste processo. Mas, considerando as
análises feitas, preliminarmente, nos documentos arquivados no AETG/IPHAN, temos
cabedal para afirmar que alguns expoentes se destacaram antes, durante e depois da conquista
do título. Entre eles, destacamos o nome de Brasilete Caiado.
Antes de trazê-la à trama, gostaríamos de dizer que evidenciar outras
personagens engajadas no conjunto de práticas em torno do mote, “Cidade de Goiás,
Patrimônio da Humanidade”, nos dará condições de compreender melhor como se
constituíram as trocas simbólicas250 bilaterais entre a pintora e o “Movimento Pro-Cidade de
Goiás”. Sendo assim, ao reexaminar os estudos de Tamaso (2007), encontramos uma narrativa
interessante envolvendo a notoriedade da referida descendente dos Caiado tanto na
constituição desta sociedade civil, quanto no enfrentamento de demandas que ensejaram o
reconhecimento mundial da cidade-patrimônio, em 2001.

(...) antes do Movimento Pró-Cidade de Goiás ser criado, Brasilete Caiado


conta que em dezembro de 1997, num encontro com Goiandira Ortiz de
Camargo, vilaboense e professora de literatura da UFG, expressou sua
tristeza pelo fato de que nada tinha sido feito no sentido de efetivar a
inscrição de Goiás ao título de patrimônio da humanidade. Desse encontro
surgiu a ideia do “I Seminário Cultural, Turístico e Ambiental da cidade de
Goiás” que se realizou em março de 1998. (...) Brasilete foi quem cumpriu o
papel de unificar, em nome do patrimônio mundial, uma cidade cindida por
diferenças sociais e políticas remotas e recentes. (...) Em 11 de novembro de
1998, Leonardo Rizzo, vilaboense e empresário do setor imobiliário em
Goiânia, marcou um encontro com diversos vilaboenses com o objetivo de
conversarem sobre a candidatura que ainda não havia sido efetuada. Foi
sugerido que movimento representado pela sociedade civil fosse ali criado a
fim de dar andamento ao processo de inscrição à candidatura ao título. O
nome de Brasilete Caiado foi indicado por unanimidade para a presidência
do Movimento Pró-Cidade de Goiás e Leonardo Rizzo como vice-
presidente. Os Caiado voltam a cena, no plano local, na luta pelo patrimônio
mundial (TAMASO, 2007, p.166).

É, evidentemente, emblemático o “retorno” dos Caiado neste momento em que


a Cidade de Goiás poderia vivenciar a mais importante restituição simbólica, desde a

250
Sinteticamente, entende-se por trocas simbólicas: “A forma das relações que as diferentes categorias de
produtores de bens simbólicos mantêm com os demais produtores, com as diferentes significações disponíveis
em um dado estado de campo cultural e, ademais, com sua própria obra, depende diretamente da posição que
ocupam no interior do sistema de produção e circulação de bens simbólicos e, ao mesmo tempo, da posição que
ocupam na hierarquia propriamente cultural dos graus de consagração, tal posição implicando numa definição
objetiva de sua prática e dos produtos dela derivados” (BOURDIEU, 2007, p.154).
286

intervenção federal do Estado Novo. O advento da Era Vargas foi responsável pelo fim do
ciclo do poder oligárquico no Estado de Goiás que, naquela ocasião, era governado pelo pai
de Brasilete Caiado, o Dr. Brasil Caiado, amigo íntimo do pai de Goiandira do Couto, Luiz do
Couto. Mas, como se tratam de temas detalhados no primeiro capítulo desta tese, seguiremos
no encalço das ações que fizeram existir o “Movimento Pró-Cidade”.
Os preparativos para o “I Seminário Cultural, Turístico e Ambiental da Cidade
de Goiás” começaram nos primeiros dias do ano de 1998. Tivemos acesso aos primeiros
passos formais do grupo que, conforme vimos, surgiu da concordância de Brasilete Caiado
com inquietações de Goiandira Ortiz que, à época, era, além de docente da UFG, ocupava a
presidência do Gabinete Literário Goiano251.
Naquela ocasião, dezesseis de fevereiro de 1998, no uso de suas atribuições
representativas, Goiandira Ortiz subscreveu pelo “Movimento Pró-Cidade de Goiás”, um
ofício dirigido à diretora da 17ª SR do IPHAN, Maria Cristina Portugal Ferreira, o qual
informava à representante da constituição de um movimento interinstitucional, composto por,
aproximadamente, sessenta entidades que deliberaram pela seguinte decisão:

(...) pela criação de um movimento Pró-Cidade de Goiás que, ao longo do


ano, buscaria soluções para os problemas emergenciais. Assim, para melhor
discutir esses problemas, decidiram-se pela realização de um seminário, no
qual abordaríamos a realidade sócio econômica e cultural para propor ações
no sentido de solucionar os problemas existentes (OFÍCIO S/N°,
“MOVIMENTO PRÓ-CIDADE DE GOIÁS”,1998, fls. 01)252.

No decorrer do documento, “os problemas” da cidade foram alinhavados às


palavras chave; “sofre com a falta”, “ressurgimento da cidade”, “marasmo cultural” e “dar
unidade”. Lendo e relendo o presente discurso, temos a impressão de que a insatisfação
latente do vilaboense, herdada, culturalmente, da retórica das perdas sofridas em 1930,
parecia digladiar com o ideal de um passado glorioso na iminência de ser recuperado no
presente, porém, mirando o futuro.
Na tentativa de demonstrar ao IPHAN que o desejo de “reverter” esse quadro
sintomático tratava-se de um empenho coletivo, foi anexado ao ofício um boletim
descrevendo algumas das ações positivas no plano educacional, cultural, ambiental e

251
Trata-se da primeira biblioteca pública, fundado no século XIX, período em que a Cidade de Goiás era capital
do Estado de Goiás.
252
Fonte: AETG/IPHAN - I Seminário Cultural, Turístico e Ambiental da Cidade de Goiás; Movimento Pró-
Cidade de Goiás, 1997-1998; Vol. 1; Arm. 01; Arq. 08 G. 02 p.06, Cidade Goiás - GO.
287

econômico desenvolvidas por número significativo de entidades civis253 que, por sua vez,
passaram a constituir o “Movimento Pró-Cidade de Goiás”. O teor deste documento
complementar, intitulado em letras maiúsculas de: “ A SOCIEDADE ORGANIZADA
MOBILIZA-SE PARA O RESSURGIMENTO CULTURAL DA CIDADE DE GOIÁS”,
tornou-se atrativo à medida que se interpenetra ao discurso enfático creditado aos vilaboenses
“organizados”, cujo objetivo era convidar formalmente o IPHAN para, juntos, trabalharem
pela candidatura da Cidade de Goiás rumo ao título histórico.
A formalidade e a profundidade da exposição documental evidencia a
necessidade de apresentar à instituição federal argumentos plausíveis e realizações tangíveis
que viessem somar ao trabalho de sua competência, sobretudo, no que se refere às ações
relativas à educação e à conscientização patrimonial. Portanto, a programação do “I
Seminário Cultural, Turístico e Ambiental da Cidade de Goiás” seguiu esboçada no
expediente encaminhado à representante da sub-regional do IPHAN, cujas diretrizes denotam
a preocupação dos idealizadores em inserir no iminente debate público abordagens
relacionadas à mudança de mentalidade da população em relação à cidade que pleiteava um
título de tamanha envergadura. Em síntese, a interlocutora do movimento naquela ocasião
primária, Goiandira Ortiz, reivindicou o apoio do órgão nas seguintes áreas:

2. A presença do especialista Marcelo Brito para ser um dos expositores da


mesa-redonda “Marketing cultural - Como transformar uma cidade em um
produto cultural”, no dia 27 de março, às 19:00 h, no Teatro São Joaquim.
3. A participação de um representante da 17ª Sub-Regional do IPHAN no
painel “Uma política cultural e turística para a Cidade de Goiás” para expor
sobre as propostas do órgão para nossa cidade.
A contrapartida, que oferecemos, é veicular o nome do IPHAN em todos os
materiais de divulgação como um dos apoios ao evento e o reconhecimento
da cidade pela participação e pela honra de se irmanar à comunidade
vilaboense no ressurgimento cultural da antiga capital do estado (OFÍCIO
S/N°, “MOVIMENTO PRÓ-CIDADE DE GOIÁS”, 1998, fls. 02) 254.

A leitura do excerto expõe dois eixos centrais do pensamento construído,


digamos, pelos membros desta formação contemporânea de guardiões das tradições. Primeiro,
a triangulação: história, patrimônio e turismo, proposta nascida inicialmente nos anos de

253
“No dia 23 de fevereiro, foi realizada a primeira reunião do movimento. Das 71 entidades convidadas,
compareceram 49 e 16 justificaram suas ausências. Os organizadores do movimento ficaram entusiasmados com
a receptividade e com as discussões que foram levantadas pelos participantes” (BOLETIM ANEXO AO
OFÍCIO S/N°, “MOVIMENTO PRÓ-CIDADE DE GOIÁS”, 1998, fls.02). Fonte: AETG/IPHAN - I
Seminário Cultural, Turístico e Ambiental da Cidade de Goiás; Movimento Pró-Cidade de Goiás, 1997-1998;
Vol. 1; Arm.01; Arq. 08 G. 02 p.06, Cidade Goiás - GO.
254
AETG/IPHAN - I Seminário Cultural, Turístico e Ambiental da Cidade de Goiás; Movimento Pró-Cidade de
Goiás, 1997-1998; Vol. 1; Arm.01; Arq. 08 G. 02 p.06, Cidade Goiás - GO.
288

1965, oriunda das aspirações dos constituintes da OVAT, ganhava novos contornos à medida
que se evidencia a concepção de “produto cultural255” irrompendo a fase final do projeto de
futuro.
Desta vez, foi possível radiografar clareza por parte de uma organização civil,
ao expor que os anseios sociais estariam atrelados à visão de prospectiva de mercado dos bens
culturais (materiais e imateriais) acumulados na Cidade de Goiás. Segundo, que a
possibilidade do reconhecimento mundial, além de devolver formalmente à Cidade de Goiás o
status de epicentro histórico-cultural do Estado, “encerraria” o capítulo das perdas e,
consequentemente, devolveria dividendos reais à população local. Considerando esse
arcabouço de expectativas, compreende-se melhor o jogo persuasivo da entidade em relação
ao IPHAN que, neste caso, assumia o papel de “fiel da balança” com o propósito de equilibrar
a configuração urbana desejada pela coletividade em comum acordo com políticas protetivas
do patrimônio cultural no plano nacional e internacional.
A fruição historiográfica dessas análises ancora-se nas reflexões de Gonçalves
(2007), que se dedicou a investigar os Limites do Patrimônio. O antropólogo estudou a
categoria “patrimônio” e a vertente mercadológica contemporânea cruzada à ressignificação
do potencial simbólico dos bens culturais, mas sem perder de vista os princípios legais de sua
proteção. As questões-problema lançadas pelo autor dialogam com a realidade vilaboense de
fins dos anos de 1990, a partir do momento em que os interesses sociais - representados pelo
“Movimento Pró-Cidade de Goiás” -, buscaram se ajustar aos parâmetros normativos de
“inalienabilidade” dos bens culturais - função da competência do IPHAN - frente à intenção
de consumi-los. Nesse sentido, o autor pondera que:

(...) o mercado não seria algo que ameaçaria (ou confirmaria) o patrimônio
externamente, de fora de suas fronteiras; ao contrário, ele existiria
internamente aos patrimônios culturais modernos, no interior de suas
fronteiras, fazendo parte de sua natureza, não podendo estes existir sem
aquele. A própria “inalienabilidade” dos bens que integram os patrimônios
pode tornar-se uma forma de mercadoria nos contextos contemporâneos,
agregando valor aos objetos e transformando-os em alvo de interesse

255
De acordo com o verbete do Dicionário Crítico de Política Cultural entende-se por produto cultural:
“Tratados regionais de integração econômica e cultural que definem os produtos culturais como aqueles que
expressam ideias, valores, atitudes e criatividade artística e que oferecem entretenimento informações ou análises
sobre o presente, o passado (historiografia) ou o futuro (prospectiva, cálculo de probabilidade e intuição) (...).
Uma distinção cabe ser feita entre produto cultural e bem cultural. Este vincula-se à noção de patrimônio pessoal
ou coletivo e designa, em princípio, por seu valor simbólico, algo infungível, isto é, que não poderia ser trocado
por moeda. (...),porém, sabe-se que a maioria desses bens pode ter seu valor traduzido em moeda, o que acaba de
algum modo por transformá-los em produtos (commodities) culturais ou por apontar para o definhamento
crescente da ideia de bem cultural, mesmo que na origem tenha sido eventualmente um produto” (COELHO,
1997, p.317).
289

turístico. Este último, embora representado tendencialmente de forma


negativa e destrutiva, parece ser, na verdade, uma das fontes para a
existência social e cultural do patrimônio (GONÇALVES, 2007, p.240).

Comparando o fragmento em destaque com as reflexões de Meneses (2009,


p.27), nota-se que suas abordagens sobre os bens culturais e a comunidade local se
encaminham quase na mesma direção, quando esclarece que a habitualidade256 traz sentido de
constância, de cotidiano e de interioridade criam vínculos de pertencimento no morador que é,
por sua vez, categorizado como habitante, tende, na medida do possível, emitir estímulos que
propiciem experiências que tragam essa noção ao turista.
Vale lembrar que o “Movimento Pró-Cidade de Goiás” é composto por aqueles
que se reconhecem como filhos de Goiás, condição que lhes outorga legitimidade para
repensar e deliberar a respeito dos horizontes da cidade de suas origens que, segundo eles,
naquela ocasião - década de 1990 -, continuava sob a ameaça da “omissão do poder público” e
do “esquecimento”. Nesse sentido, compreende-se que o “I Seminário Cultural, Turístico e
Ambiental da Cidade de Goiás” representou o prenúncio da integração de diferentes
segmentos sociais objetivados, precipuamente, à:

(...) fazer um evento de grande porte, com a presença das autoridades


estaduais e federais das áreas em evidências e, principalmente, da
comunidade vilaboense, que está resgatando para Goiás a condição de
cidade de grande emergência cultural e descobrindo que só a sociedade
organizada terá meios para manifestar a sua vontade política e lutar contra a
omissão do poder público, escorada na eterna lamúria da falta de verba ou no
“esquecimento” de que a identidade de um povo é construída através de suas
manifestações culturais, dos seus sonhos, da sua memória artística, da sua
tradição para que, com a chegada do novo, se faça o amálgama do futuro
(BOLETIM ANEXO AO OFÍCIO S/N°, “MOVIMENTO PRÓ-CIDADE
DE GOIÁS”, 1998, fls. 03) 257 (grifo nosso).

Considerando as análises dos autores, em diálogo com narrativa do documento,


pode-se afirmar que para os vilaboenses engajados no “Movimento Pró-Cidade de Goiás”, o
consumo da cidade, enquanto “produto cultural”, sintonizava-se com o sentimento de apego
pelas tradições; reiterando, portanto, que a visão de futuro é uma continuidade da perspectiva
cultural antimudancista baseada na defesa e na existência de um passado “glorioso” que
precisa ser preservado. Assim, a “mercantilização” dos bens culturais da antiga Vila Boa se

256
De acordo com Meneses (2009): “O verbo habeo em latim significa possuir, manter relações com alguma
coisa, apropriar-se dela. Com o acréscimo da partícula it, que indica reforço (...), o verbo habito acrescenta
intensidade e permanência a essas relações” (MENESES, 2009, p.27).
257
AETG/IPHAN - I Seminário Cultural, Turístico e Ambiental da Cidade de Goiás; Movimento Pró-Cidade de
Goiás, 1997-1998; Vol. 1; Arm.01; Arq. 08 G. 02, p.06, Cidade Goiás - GO.
290

efetivaria, tão somente, por meio do contato do turista com esse espaço de experiência dotado,
potencialmente, de atributos para ser reconhecido como “Patrimônio da Humanidade”.
Parafraseando Gonçalves (2007, p.243), o fascínio em relação ao patrimônio se
constrói a partir da manutenção dos vínculos orgânicos, o que nem sempre é possível diante
da interferência do fenômeno de mercado. No entanto, na Cidade de Goiás, é possível dizer
que existiu uma defesa ferrenha a respeito da organicidade do patrimônio cultural local.
Convém lembrar, ainda, que essas ligaduras reverberam nos critérios para a inscrição de um
bem cultural na Lista do Patrimônio Mundial que, por sua vez, norteia-se por ditames que
avaliam o “valor universal excepcional do bem, sua autenticidade e a comprovação de que o
Estado interessado adotou medidas protetoras adequadas ao bem objeto de inscrição”
(SILVA, 2003, p.93). Deve ser por isso que as audiências públicas do “I Seminário Cultural,
Turístico e Ambiental da Cidade de Goiás”, ocorridas entre os dias 25 a 28 de março de 1998,
deram lugar ao debate das estratégias relacionadas à normatização da paisagem cultural
vilaboense visando contemplar os requisitos exigidos pela UNESCO258.
A dimensão dos desafios impunha cooperação. Para tanto, entre os legados do
seminário organizado pelo “Movimento Pró-Cidade de Goiás” e o IPHAN, destaca-se o
Manifesto do Povo Vilaboense, um documento que se tornou público em junho de 1998, com
propósito de conclamar as autoridades e o povo goiano a compartilhar do projeto de
patrimonialização mundial da Cidade de Goiás, visivelmente, comprometido com a retórica
de suas tradições. Meneses (2009, p.31) postula que o patrimônio cultural apoia-se em vetores
materiais; embora sejam as dimensões imateriais responsáveis por dar sentido e estímulo aos
instrumentos operacionais de preservação das marcas da memória.
Objetivando preservar a integralidade do discurso documental que nos permitiu
chegar a esse entendimento analítico, como mostra o fac-símile do documento a ser
visualizado na imagem da figura 57:

258
Conferir no anexo VI o documento deliberativo do “Movimento Pró-Cidade de Goiás” elencando medidas de
ajustamento da Cidade de Goiás, tendo em vista a conquista do título.
291

Figura 57 - Manifesto do Povo Vilaboense, 1998.

Fonte: AETG/IPHAN; Arm. 01; Arq. 08 - G. 02, fls.25, Cidade Goiás - GO.

O Manifesto do Povo Vilaboense (figura 57) simbolizou a pedra fundamental


para a construção da realidade que se fez vigente a partir de 2001. A voz do “povo” no
documento proclama o valor excepcional universal da Cidade de Goiás imbricado às
representações deslocadas “das origens mais remotas”. Trata-se de um começo da extensa
narrativa (Dossiê de Goiás) destinada à “produção e circulação de bens simbólicos (...) a um
público de produtores de bens culturais” (BOURDIEU, 2007, p.105). Nisso, aquela pretensão
de consumo da cidade enquanto “produto cultural” se oficializa em meio à ideia dos vínculos
orgânicos, sejam eles construídos ou “inventados”. A cognição destas análises encontra
respaldo no fragmento em destaque:
292

O reconhecimento da Cidade de Goiás como patrimônio da humanidade não


se fará, por certo, apenas pelos aspectos de sua arquitetura colonial, mas,
sobretudo, pelas manifestações culturais que ensejaram a consolidação de
nosso Estado como unidade federativa, apesar de seu histórico isolamento
geográfico, político e espiritual dos centros de poder e decisão do Brasil. Foi,
inequivocadamente, a vida cultural vilaboense o fator fundamental para a sua
consolidação. No aspecto arquitetônico, sua beleza reside exatamente na
singularidade e simplicidade do seu conjunto, cuja conservação, nas
condições em que se deram até o tardio tombamento pelo Patrimônio
Histórico Nacional, pode quase ser considerada um milagre, realizado em
razão da sensibilidade de sua gente (MANIFESTO DO POVO
VILABOENSE, 1998, fls. 25) 259.

Ainda que a “sensibilidade” tenha sido responsável por preservar,


significativamente, o conjunto do patrimônio cultural da Cidade de Goiás, o desafio da
universalização destas riquezas demandava a constituição de uma rede de agentes e
mediadores culturais com o devido know how para convencer o Comitê do Patrimônio
Mundial (UNESCO) que as representações do “povo” existiam, de fato, in lócus.
Em se tratando da visibilidade da Cidade de Goiás em âmbito internacional,
identificamos, documentalmente, que, antes mesmo da divulgação do simbólico “Manifesto
do Povo Vilaboense”, em 01 de junho 1998, um seleto grupo de articulares filiados ao
“Movimento Pro-Cidade de Goiás” incumbia-se desta tarefa.

Figura 58 - Resumo da Reunião Para Formação do Comitê “Goiás: Patrimônio da


Humanidade”, s/d.

Fonte: AETG/IPHAN; Arm. 01; Arq. 08 - G. 02, fls.15, Cidade Goiás - GO.

259
AETG/IPHAN - I Seminário Cultural, Turístico e Ambiental da Cidade de Goiás; Movimento Pró-Cidade de
Goiás, 1997-1998; Vol. 1; Arm. 01; Arq. 08 G. 02; p.06, Cidade Goiás - GO.
293

A partir das evidências (figura 58), começa a fazer sentido o vínculo de


Goiandira do Couto no “Movimento Pro-Cidade de Goiás” que, por sua vez, mantinha a
parceria institucional com a 17ª Sub-Regional do IPHAN. Os rastros de sua
representatividade como guardiã de tradições, sua intensa atuação nos assuntos culturais da
Cidade de Goiás e o recente tombamento da Casa de Goiandira são indícios que explicam a
sua aclamação em um grupo reduzido de notáveis, tendo em vista a densa formação
institucional da organização.
Vale a pena ressaltar que esse não o é único exemplar documental produzido
pela entidade que enseja “menções honrosas” à artista na construção da imagem de cidade-
patrimônio que foi apresentada aos órgãos internacionais competentes260. Conquanto, o foco
nos anexos II - Sessão Goiás: história e cultura - e IV - Inventário dos Bens Culturais - do
Dossiê de Goiás em discussão no subitem a seguir, demonstrará o auge e a materialização
delas. A escolha destas duas partes, em específico, se justifica porque na primeira,
encontramos a noção de cidade em diálogo com as concepções visuais das telas douradas.
Com relação à segunda, a evocação da pintora e sua casa - enquanto lugar de memória e
cultura vilaboense - se explicitam claramente. Essas mediações vêm ao encontro das hipóteses
construídas em torno do processo de normatização das tradições a serem apreciadas
internacionalmente.
Adicionamos a esta discussão as finalidades estatutárias desta sociedade civil,
visando clareza e maior entendimento dessas questões:

Artigo 1° - Sob a denominação de “Movimento Pró-Cidade de Goiás”, fica


constituída uma associação civil, sem fins lucrativos, que se regerá pelos
presentes estatutos e pela legislação específica.
Artigo 3° - A associação terá como finalidade a prática de ações culturais,
ambientais e educativas e promocionais no sentido de valorizar a Cidade de
Goiás em todos os seus aspectos, mais especificamente, através de:
I - gestão junto aos organismos estatais respectivos no sentido da execução
de políticas que a valorizem;
II - ações de cunho promocional de modo a divulgá-la junto à mídia nacional
e internacional;
III – trabalhos de cunho educativo de forma a propiciar à população
vilaboense, a valorização de suas raízes culturais;
IV – ações no sentido de alcançar o reconhecimento da UNESCO, à cidade
de Goiás, como Patrimônio da Humanidade (ESTATUTO DO
MOVIMENTO PRÓ-CIDADE DE GOIÁS, p.01)261.

260
Conferir outros documentos que denunciam os vínculos com a imagem da artista e a recepção da cultura da
Cidade de Goiás no anexo VII.
261
Fonte: AETG/IPHAN - Arm. 01; Arq. 08 G. 02; Cidade Goiás - GO.
294

Forma-se e afirma-se a convicção de que o “Movimento Pró-Cidade de Goiás”


possuiu uma identidade institucional híbrida. Analisando este e outros capítulos de seu
estatuto, temos a impressão de que se trata de uma fusão das finalidades da OVAT e da
APROVI, com um diferencial sobressalente: a ênfase midiática consignada ao apelo do
reconhecimento mundial da paisagem urbana vilaboense conjugada às suas tradições.
Portanto, considerando essa peculiaridade institucional, entende-se que aproximar a
visibilidade pública de Goiandira do Couto dos holofotes relançados em direção às
representações da cidade-ideal desvela o interesse por perpetrar o reconhecimento simbólico
de sua biografia, também, nas fronteiras da cidade-patrimônio.
Uma vez mais, cidade e artista encontram-se atadas. Os fios que tramam a
conquista do título que atesta a importância do passado para o futuro enlaçaram-se em
Goiandira do Couto demonstrando-nos que “todo ato de produção cultural implica na
afirmação de sua pretensão à legitimidade cultural” (BOURDIEU, 2007, p.108). E, julgando
pelas demandas culturais encampadas pelo “Movimento Pró-Cidade de Goiás”, no sentido de
legitimar a cidade-patrimônio, notamos a abertura de um campo propício para apropriações
simbólicas desde que elas estivessem em diálogo com as representações veiculadas à
categoria de berço da cultura goiana. Conforme vimos no primeiro capítulo, em virtude de
sua descendência familiar, a identidade cultural de Goiandira do Couto na Cidade de Goiás foi
se construindo, também, como herdeira de tradições.
Tamaso (2007, p.367) afirma que a licitude das estratégias culturais adotadas
pelo “Movimento Pró-Cidade de Goiás” tem raízes fincadas no modelo cultural tradicional
perpetrado pelos expoentes da elite estabelecida como filhos de Goiás e, por conseguinte, na
autoridade conferia ao IPHAN para identificar, falar e deliberar sobre o patrimônio cultural
brasileiro. É preciso concordar com a autora, pois, pelo Dossiê de Goiás, avistamos a cidade
que elegeu o passado como parâmetro de suas ressignificações culturais atingindo o ápice da
“(re)invenção” de seus sentidos orgânicos. O curioso é que, nem assim, deixou de irradiar
suas luzes na direção da Casa de Goiandira.

5.2 A Cidade e as Expectativas de Futuro no Dossiê de Goiás

O Dossiê de Goiás, documento protocolar exigido pelo Comitê do Patrimônio


Mundial (UNESCO), de denso e metódico teor narrativo, tinha por objetivo apresentar e
defender razões relevantes para a inscrição da Cidade de Goiás como candidata ao título de
295

“Patrimônio da Humanidade”. Segundo Silva (2003), a representação brasileira baseou os


argumentos da proposição da ex-capital goiana nos seguintes critérios:

(ii) pelo fato de a cidade representar o modo de vida adotado pelos


exploradores e fundadores de cidades portuguesas e brasileiras em face da
distância da mãe pátria e da costa brasileira; (v), pelo fato de representar o
último exemplo de ocupação interior do território brasileiro da forma
praticada nos séculos XVIII e XIX (SILVA, 2003, p.107).

Já o ICOMOS262 baseou seus argumentos na seguinte justificativa:

(ii) porque o centro histórico é um exemplo de cidade europeia adaptada às


condições climáticas, geográficas e culturais do centro da América do Sul, e
no critério (iv) pelo motivo de aquele bem cultural representar uma estrutura
urbana e arquitetônica típica das populações da América do Sul, que
aproveitaram da melhor forma possível o material retirado do meio ambiente
aliado ao desenvolvimento de técnicas locais. Justificativas adotadas também
pelo Comitê do Patrimônio Mundial (SILVA, 2003, p.107)

Revisitar esse panorama da tramitação formal do projeto de futuro reforça que,


em ambas as posições, o discurso da ocupação e urbanização oficial foi consensual, ainda que
o tom técnico do Icomos nos pareça mais evidente. Considerando que essa pesquisa se dedica
à análise das concepções culturais engendradas, prioritariamente, a partir das concepções da
população que a pratica, examinamos o Dossiê de Goiás com os olhos focados, sobretudo, na
captura desses indícios.
Partindo desse princípio, o conteúdo de dois dentre seis anexos que compõem o
Dossiê de Goiás, corresponde às expectativas de continuidade hermenêutica deste estudo
estabelecendo ligações entre Goiandira do Couto, os lugares de memória na cidade-
patrimônio e as representações paradigmáticas acalentadas pelos vilaboenses entrevistados e
selecionados como voz de uma coletividade, conforme anexo IV - Inventário Nacional de
Referências Culturais. Igualmente, daremos ênfase ao anexo II - Sessão Goiás: história e
cultura, pois nos permite compreender o cerne da identidade urbana construída como

262
“O Icomos é uma organização não-governamental fundada em 1965 na cidade de Varsóvia, Polônia, com
base nas diretrizes estabelecidas pelo Congresso Internacional sobre Restauração e Conservação de Monumentos
e Sítios, denominado Congresso de Veneza (1964). Em outras palavras, compete ao Icomos promover a teoria, a
metodologia e a tecnologia aplicadas na conservação e proteção do patrimônio arquitetônico. (...) Sua função
principal consiste em opinar sobre o pedido de inscrição de um bem cultural na Lista de Patrimônio Mundial
mediante a emissão de pareceres de cunho eminentemente técnico. Em algumas situações, o Icomos aponta as
medidas protetoras a serem tomadas pelo Estado responsável pela inscrição de um bem na lista do Patrimônio
Mundial (SILVA, 2003, p.79-80).
296

“verdade” de um povo que teve sua cidade cindida entre a parte histórica e não histórica.
Entretanto, no discurso, versa-se a respeito da patrimonialização desta urbe como um todo263.
Analisamos essa estratégia como um artifício que se encadeia à intenção de
legitimar interpretações “escolhidas” para representar os legados culturais de um povo
pluricultural. Novamente, uma cidade inalterada, anacrônica e oficial adquiria projeção
internacional robustecendo, por sua vez, a tese de que o discurso das telas douradas não ecoou
no vazio; muito pelo contrário. A nosso ver, elas preconizaram as representações de um
projeto estruturado no campo simbólico, cujo objetivo era o ressarcimento das perdas de
significado da Cidade de Goiás no plano regional, em detrimento da transferência da capital
para Goiânia nos anos de 1930. Portanto, não nos causa estranhamentos que o próprio Dossiê
de Goiás tenha encaminhado medidas no sentido de demarcar, na cidade-patrimônio, o lugar
daquela que foi pioneira das idealizações consagradas, primeiramente, como patrimônio
nacional para, finalmente, receberem o almejado reconhecimento mundial, na virada do
milênio passado.
Em síntese, os anexos II - Sessão Goiás: história e cultura - e IV - Inventário
Nacional de Referências Culturais - do Dossiê de Goiás se complementam no que tange à
visibilidade transversal à Goiandira do Couto a partir do enredo narrado nestas sessões. A
imagem de uma “cidade europeia adaptada” reedificou-se em palavras seguindo o mesmo
itinerário de poder reconstruído pelas areias douradas, ainda na década de 1960, encantando
olhares pelo mundo. Outra vez, a extensão que compreende o Largo do Rosário ao Largo do
Chafariz protagoniza as justificativas do documento quanto ao ‘valor universal excepcional’
da Cidade de Goiás. O Dossiê apropria-se dos mesmos sentidos semânticos avocados,
artisticamente, por Goiandira do Couto que concebeu a sua cidade-ideal pela materialidade
urbana dos lugares de memória evidenciando a presença da “mãe pátria”, ainda que distante,

263
“O entendimento de que a cidade toda é patrimônio, decorre da proteção ambiental e tem amparo em dados
que podem ser encontrados no próprio Dossiê. O anexo I/B informa sobre “Zone Tampom Paysagére – Serra
Dourada”, por meio de textos, mapas e fotos. Afirmando a relação estreita entre a cidade de Goiás e sua
paisagem natural, o texto apresenta leis de proteção que recaem sobre a Serra Dourada: (1) A Lei Estadual 7.197
(de 1968), que fez doação para a UFG de uma terra da Serra Dourada, destinada à implantação da reserva
biológica; (2) o decreto n° 4868, que criou a zona de proteção ambiental da Serra Dourada. Em seguida,
especifica que “o grupo de trabalho responsável pela elaboração do “Dossier de Goiás, Patrimoine Culturel”,
propõe que outra “zone tampom paysagére” seja criada, “unissant le centre historique à la Serra Dourada”.
Assim, o Dossiê indica para inscrição a lista do patrimônio mundial o centro histórico, delimitando a zona
tampão (ou entorno) contígua ao centro e também outra zona tampão, com base no valor paisagístico. Essa
segunda zona tampão incorpora a Serra Dourada e os morros Dom Francisco e Canta Galo. Nota-se que não há
referências textuais, nem iconográficas à periferia. As fotos que compõem este Anexo I/B são todas da paisagem
natural. O reconhecimento vai do centro histórico para a área de proteção ambiental (APA); do histórico-cultural
natural. No intervalo entre um e outro, encontra-se a periferia obscurecida também no Dossiê” (TAMASO,
2007, p.347).
297

enquanto sombras permanecem sobre outras culturas e outros arredores desta urbe,
considerados “alheios” aos paradigmas da tradição.
A exposição desses argumentos nos remete ao seguinte fragmento do anexo II
– sessão: Goiás: história e cultura:

As dificuldades de acesso à Vila Boa apontadas, inclusive, nos vários


relatos dos viajantes, não impedem o desenvolvimento de uma cultura
popular e erudita bastante elevada para os padrões nacionais à época de sua
colonização. Ao contrário, o isolamento atávico da cidade enseja o
fortalecimento das raízes culturais que, continuam vivas através da música,
do artesanato, da literatura e das celebrações religiosas, mescladas ao
folclore da região, a despeito das condições de uma região empobrecida por
obra de sucessivos desmandos políticos. (...) Se, por um lado, o isolamento
humano e, portanto, uma total dependência dos recursos do meio, fazem com
que se estruture uma relação diferenciada com a natureza, por outro, as
dificuldades geradas pelas características ambientais, favorecem o
surgimento de estratégias de planejamento e soluções construtivas que
conferem à cidade um caráter perpendicular. (...) A cidade propicia, através
de seus espaços urbanos e edificações, uma leitura de todas as épocas
atravessadas por sua história. Estes registros materializados constituem um
testemunho importante dos diferentes momentos da colonização. Ao longo
do tempo, atestam o apogeu e o declínio da mineração, presenciam a
pecuária, resistem aos conflitos decorrentes do surgimento de Goiânia e de
Brasília, e até se submetem às modificações impostas pelos tempos, sem
perder a sua integridade histórica (DOSSIÊ DE GOIÁS, 1999, anexo II,
Goiás: história e cultura, CD-ROOM, slide 04, 05 e 06).

Os sentimentos de valorização das tradições se mesclam à lembrança


paradigmática de 1930. Explicitamente, a distância em relação ao litoral, as dificulades de
acesso e o desequilíbrio em virtude das transições econômicas não foram circunstâncias
capazes de abalar a pujância cultural da Cidade de Goiás; enquanto, implicitamente, os
conflitos de interesses políticos são responsabilizados pela obstrução do caminho “glorioso”
rumo ao futuro da cidade considerada testemunha do tempo.
Este fragmento documental é um exemplo do discurso que percorre outras
partes do Dossiê de Goiás que, esporadicamente, tenta trazer a ideia de interculturalidade
vilaboense. É certo que não se poderia descartar, liminarmente, as inferências às culturas
africanas e indígenas, tendo em vista que a história oficial alinhava-se a esses persongens.
Contudo, a fragilidade de argumentos no sentido de colocá-los como protagonistas destas
heranças se mostram um tanto imprecisos e, em alguns momentos, superficiais. Vejamos:

A solidão dos cerrados permite que a cultura indígena, embora transformada,


seja sedimentada e, de certa forma, se perpetue, orientando a integração do
homem ao seu entorno natural, ecologicamente significativo e ainda bastante
298

preservado. Juntamente com essa herança, também os costumes, deixados


por portugueses e negros escravos, se fazem presentes produzindo um caldo
cultural multirracial, denso e integrador que segue conduzindo o cotidando
de Goiás (Idem, 1999, slide, 05 e 06).

Não nos parece que o “caldo cultural” tenha se misturado o suficiente. Nesta
mesma sessão, conhecida como narrativa mítica264 que, por sinal, é pouco integradora, foi
reaviviada no texto destinado ao convencimento do Comitê do Patrimônio Mundial. É
perceptível a proeminência nas ações do colonizador que se apropriou deste espaço
“ecologicamente significativo”, mas por razões bem diferentes comparadas aos seus primeiros
habitantes. Na verdade, o Dossiê reproduz concepções que pairam no imaginário social
vilaboense, especialmente, dos moradores do centro histórico da Cidade de Goiás, vistos por
diferentes olhares, como uma elite transmissora de discursos construídos à luz das
oficialidades. Há, no pensamento deste grupo, uma relativa “conformidade” com a
estratificação cultural das “minorias” quando o assunto se trata dos legados “excepcionais”
que resistiram ao tempo na paisagem urbana digna de reconhecimento mundial.
Trataremos de exemplicar esse comportamento social a partir das entrevistas
coletadas durante o Inventário Nacional de Referências Culturais, ainda neste subitem. À
priori, a ênfase está nos modos como o documento vê, historiciza e descreve a paisagem e os
atores do passado. A narrativa, em muitos momentos, se assemelha à pespectiva do olhar
guardião quando concebeu a tela Largo do Rosário - Vista da Cidade (1976), mostrada na
figura 30. É importante salientar que, de fato, trata-se de um ângulo emblamático repleto de
significantes e significados, quando a intenção é privilegiar a vertente preservacionista das
tradições. Embora, não se possa desconsiderar o pioneirismo de Goiandira do Couto no que se
refere à circulação desse modo pretérito de ver e interpretar a Cidade de Goiás.
Assim, não nos parece relevante saber, exatamente, se o Dossiê de Goiás
inspirou, embasou ou reproduziu a perpectiva da artista. O fato é que esta mesma visão
imperativa redesenha-se na tessitura das palavras a exemplo do que se escreveu sobre a

264
“As origens históricas de Goiás estão intimamente ligadas à corrida do ouro empreendida pelos bandeirantes
paulistas. Entre 1682 e 1684 uma expedição, chefiada por Bartolomeu Bueno da Silva, atravessa um imenso
território, à época conhecido como sertão do Goyazes, ou do gentio Goyá, à procura de ouro supostamente
abundante nos córregos da calha do Rio Vermelho. “(Bartolomeu Bueno)... era astuto e de caráter perseverante.
Uma prova de sua rara presença de espírito demonstrou ele uma vez ante ao perigo iminente quando salvou das
mãos dos índios com a ameaça de que, se não satisfizessem às suas exigências, incendiaria todos os seus rios.
Depois da ameaça, pôs fogo numa tigela de aguardente, ao que pobres índios ignorantes ficaram tão
aterrorizados, que consentiram tudo” . Em 1722, seu filho, também Bartolomeu Bueno, seguindo os passos do
pai, retorna ao sertão, em busca daquela fonte auríferas” (DOSSIÊ DE GOIÁS, 1999, anexo II, Goiás: história
e cultura, CD-ROOM, slide 08-09).
299

morfologia urbana e a arquitetura da cidade (ideal) que se propõe ao título de patrimônio


mundial. Leiamos:

Primeiramente, o traçado da cidade se deve às exigências da mineração.


(...) Assim a malha urbana se desenha sobre caminhos do ir e vir. (...) A
forma triangular, característica dos largos em Goiás, induz uma
visualização diferenciada de seu interior, dando destaque especial aos
edifícios de maior importância ali localizados. O acesso a esses espaços,
geralmente feito por vértices, permite a percepção de seu conjunto, não
como simples aglomerado urbano de edifícios, implantados em decorrência
de uma necessidade imediata de abrigo. Mas, deixa transparecer uma
situação planejada, premeditada, na qual o edifício principal265, de
dimensões monumentais e fora do alinhamento dos demais, assume um
ângulo de vista privilegiado (DOSSIÊ DE GOIÁS, 1999, anexo II, Goiás:
história e cultura, CD-ROOM, slide 03 e 40).

A situação do planejamento urbano é um fato comprovado a partir do


prospecto português de 1751, conforme expusemos no primeiro capítulo. O que está em
discussão é o realinhamento do ângulo de visão do Dossiê de Goiás às concepções de uma
cidade-ideal em plena contemporaneidade.
Uma linha tênue separa a cidade que se tem daquela se contruiu para ser
consagrada como berço da cultura goiana. Conforme afirma Bourdieu (2007), a produção
simbólica elege como digna de ser conservada a cultura que tem mandato “de reprodução e de
circulação dos bens simbólicos” que, por sua vez, “ são mediadas pela estrutura do sistema de
relações entre as instâncias com as pretensões a exercer uma autoridade propriamente
cultural” (p.118). Indiscutivelmente, essa sistemática foi sendo empreendida na Cidade de
Goiás a partir dos anos de 1940, intensificando-se nos anos de 1970 com o idealização e
prática do projeto de futuro para, finalmente, nos anos 2000, legitimar-se através das ações
organizadas pelo “Movimento Pró Cidade de Goiás”. O éthos luso-paulistano esteve no
centro das concepções simbólicas tramadas por estes diferentes segmentos de guardiões da
tradição que, neste caso, podem ser considerados como um só grupo quando a questão se
refere à recolocação da Cidade de Goiás no campo do poder.
Tem-se, em boa medida, uma representação da cidade onde as expectativas de
futuro dos vilaboense se ancoraram. Sendo assim, é preciso prestar atenção aos fundamentos
que constroem esse cenário urbano. Lendo a sessão de Entrevistas Selecionadas para o

265
O Dossiê está se referindo à antiga Casa de Câmara e Cadeia, atual Museu das Bandeiras, localizado no Largo
do Chafariz. É curioso notar a ênfase como símbolo de poder e repressão dos tempos coloniais e nada ter sido
dito, ao menos nota de rodapé, que se trata do primeiro edifício tombado isoladamente pelo IPHAN, nos anos de
1950, e transformado em museu histórico da Cidade de Goiás nesta mesma época.
300

Inventário Nacional de Referências Culturais da cidade-patrimônio, percebe-se que o


escrutínio da “população” se enquadra nas releituras produzidas pelo Dossiê de Goiás.
Formado por um grupo de treze representantes, entre os atores sociais “escolhidos” para
serem interlocutores da cultura e dos horizontes de futuro para os vilaboenses estão:
Goiandira do Couto e Elder Passos, presidente da OVAT. Com relação à pintora, vale a pena
ressaltar que não se tratava de sua primeira experiência internacional como intérprete das
‘coisas de Goiás’.
Durante as pesquisas realizadas no AETG/IPHAN, nos deparamos com as
entrevistas originais que, por sua vez, não se limitaram ao número supracitado. De acordo
com o Dossiê de Goiás, entre os meses de maio e junho de 1999, foram ouvidas cerca de
noventa pessoas; embora, no referido acervo, a pesquisa se deu em aproximadamente
quarenta registros. Analisando esse “todo”, verifica-se que um percentual expressivo dessa
totalidade citou a Casa de Goiandira como sendo um dos “Atrativos Culturais” da Cidade de
Goiás; e, quanto ao quesito: “Cartão Postal da Cidade”, o eixo de poder - Largo do Rosário ao
Largo do Chafariz - foi o lugar que recebeu o maior número de indicação dos depoentes.
O questionário possui oito pontos de abordagem e o entrevistado era livre para
responder ou não a todos os itens. Tanto Goiandira do Couto quanto Elder Passos
responderam a todos as perguntas, embora as respostas da artista-artesã tenham sido mais
densas em razão de ter se pautado nas comparações entre o passado e subjetivas imprecisões
quanto ao futuro da cidade-patrimônio. Assim, referindo-se ao título, ela disse: “vai ser um
grande melhoramento para Goiás” ao mesmo tempo em que se mostra convicta de que o
reconhecimento internacional, desta vez, “iria mudar muito, muito a vida do povo da cidade”
(COUTO, apud Dossiê de Goiás, Anexo IV, Entrevistas Selecionadas, 1999, CD-ROOM,
slide, 17-18).
Ora, se a vida do povo iria mudar; Goiandira do Couto já vivia a experiência da
mudança há alguns anos. Questionada sobre o tempo gasto para produzir uma tela, sua
resposta foi precisa: “Não existe tempo determinado, pinto quando o tempo deixa. Virei
atração turística, daí só trabalho quando dá” (Idem, 1999, slide 02).
Não é nenhuma novidade que o status de referência cultural permaneceu
veiculado à pintora. Principalmente, quando constatamos o seu protagonismo nessa “função”
entre os anos de 1998 e 2001. O trânsito de autoridades nacionais e internacionais,
personalidades políticas e culturais empenhadas nas tratativas da candidatura da Cidade de
Goiás ao título mundial convergiram para a Casa de Goiandira; lugar onde ela atuou como
uma espécie de embaixadora do “Movimento Pró-Cidade de Goiás”. Assim, é compreensível
301

que sua residência tenha sido destino oficial de visitas técnicas, caravanas culturais e,
consequentemente, do foco midiático da imprensa em geral. O contato com Goiandira do
Couto com suas histórias e criações correspondia ao mesmo que tocar a alma do patrimônio
edificado vilaboense, pois tratava-se de um momento singular onde o visitante compreendia
que o valor dos bens culturais (materiais) não se dissocia dos costumes e das práticas
construídas por ela no século XX.
Esta é a mesma concepção propalada pela OVAT, instituição que representou,
colegiadamente, o lugar de fala e as posições artísticas defendidas por Goiandira do Couto.
Portando, sobre a peculiar e indissolúvel junção da materialidade e imaterialidade cultural
vilaboense e o tombamento mundial, a entidade se manifestou, formalmente, na ocasião em
que comemorou o seu quadragésimo aniversário:

Um dos fatores que contribuiu para que a história e cultura da Cidade de


Goiás extrapolassem as cercas vivas de suas serranias chegando a ser
reconhecida pela UNESCO como patrimônio mundial é uma forma com que,
em sua trajetória, conseguiu aliar a preservação do acervo arquitetônico a um
excepcional patrimônio imaterial. Não por acaso Goiás ostenta o título de
berço da cultura goiana e, se não bastasse, o berço da cultura de toda uma
região que forma o coração do Brasil. Aqui, tradições e indivíduos
encontraram terreno fértil para a figuração nos autos do passado em
múltiplas vertentes que tecem nossa diversidade e singularidade: literatura,
história, música, artes plásticas, educação, arte popular e áreas diversas. A
OVAT se orgulha de ser uma das responsáveis por manter essas tradições
pulsando no cotidiano vilaboense e uma das entidades percussoras na
preservação do patrimônio imaterial brasileiro. Tudo começou em 1965,
quando onze vilaboenses acreditaram que era possível acordar algumas
manifestações que, outrora, estavam adormecidas (OVAT, 40 anos
Promovendo a Cultura e Resgatando as Tradições, 2005, p.03-04).

Explicitar onde, quando e quem começou a retraçar os novos horizontes da


Cidade de Goiás é um modo de reivindicar autoria do projeto de futuro para onze guardiões
da tradição, sendo dez jovens e uma mulher adulta vista como herdeira simbólica dos legados
culturais de um passado ‘glorioso’. Conforme vimos no segundo capítulo, o surgimento da
OVAT e suas deliberações imateriais partiram da Casa de Goiandira para se projetarem pelo
mundo (Procissão do Fogaréu).
Pensando por esse ângulo, lembramos que não foi apenas a imaterialidade
cultural que ligava a artista ao modelo de cidade-patrimônio reconhecida como bem cultural
da humanidade em 2001. Catalogando o conjunto das entrevistas para o Dossiê de Goiás -
sessão Inventário Nacional de Referencias Culturais - percebe-se que o símbolo de suas
raízes tradicionais - a “Cruz do Anhanguera” -, recebeu a devida atenção dos depoentes no
302

quesito “Cartão Postal da Cidade”266. É certo que o ícone faz apologia ao colonizador. Mas,
também, não se pode desconsiderar que, paralelamente, mantém viva a memória da família
Couto nos anais da história urbana da Cidade de Goiás. Por isso, não nos surpreendeu que
Goiandira do Couto tivesse escolhido o cruzeiro como símbolo postal da cidade-patrimônio.
Elegâ-lo, despertou recordações dos tempos vividos no Largo do Rosário, demonstrando
nítido sentimento de pertença àquela localidade, considerando que ali estão fincados seus
pilares de pedra.
No entanto, é na Casa de Goiandira que as afirmações de si, enquanto
sucessora dos feitos culturais de Luiz do Couto, portanto, herdeira de tradições, se estabelece
por completo:

Eu nasci em Catalão, meu pai foi ser juiz em Itumbiara; lá nasceu Lúcia
minha irmã, e voltou pra aqui; nós moramos onde hoje é a Casa do Doce, no
Largo do Rosário pertinho da minha avó, então é lá que nós morávamos e
depois pai comprou essa casa e eu moro desde os seis anos nesta casa. (...)
Quando moça, fiz muito pela cidade. Hoje não faço mais porque estou
doente (COUTO, apud Dossiê de Goiás, Anexo IV, Entrevistas
Selecionadas, 1999, CD-ROOM, slide, 09-19).

Quanto a isso, não há o que se discutir. Goiandira do Couto foi muito além da
mocidade dedicando-se à reconstrução cultural da Cidade de Goiás. Esse “sacerdócio” lhe
conferiu carisma e prestígio suficientes, inclusive, para criticar as intervenções na paisagem
colonial vilaboense em detrimento da candidatura, referindo-se à rede de esgoto e fiação
subterrânea, conforme exigia o Comitê do Patrimônio Mundial. Sobre essas obras ela falou:

Sinto que estão mudando muito a cidade”. (...) O calçamento da cidade era
feito com muita simetria, com muita arte, muito gosto; antigamente, os
pedreiros, esse povo trabalhava com muito amor! Hoje eles não trabalham;
tinha arte agora eles não têm, eles colocam a pedra no chão de qualquer
jeito. A minha porta aqui, por exemplo, foi toda bloquetada; foi colocar uma
água até aqui na minha porta e quem colocou já sobrou um pedaço de
bloquete e tá tudo cheio de buraco. Não fazem igual, não coloca a terra, não
arruma direito. (...) (sobre fios elétricos subterrâneos): É original? Vc quer
mudar para outra coisa... a original foi essa, era lampião e já mudou pra
eletricidade; e se era até hoje... por que vai tirar esse fio? Se ela merece ser
Patrimônio porque tirar esses fios? Os fios fazem parte do Patrimônio; deixa

266
No questionário respondido em 1999 por Astulieta Ramos Caiado (Lhulhu), de aproximadamente 82 anos,
chamou-nos à atenção a interface que ela faz com o cruzeiro (escolhido como “Cartão Postal da Cidade”) e o
mito fundador: “Aquela... aquela... Como é que chama (...) uma coisa ali, a Cruz do Anhanguera. Porque eu
acho que quando falou da Cruz, você lembra sempre de quem... O Anhanguera que ajudou a fazer Goiás de
maneira que eu gosto muito daquela Cruz do Anhanguera ( O Anhanguera é o Bartolomeu Bueno) coisa boa
viu...”. Sua entrevista não foi publicada pelo Dossiê, aspecto que não desmerece sua importância testemunhal
para esta pesquisa. Este documento encontra-se disponível no AETG/IPHAN, pasta: “Inventário de Referências
Culturais”, Brochura I, Acervo Textual/Arm. 02/Cx.35.
303

tudo como era uai? Então tá modificando a cidade, criando outra, cê num
acha? (COUTO, Goiandira Ayres do. apud Dossiê de Goiás, Anexo IV,
Entrevistas Selecionadas, 1999, CD-ROOM, slide15, 18, 19 e 20).

Sua insatisfação percorre outros trechos da entrevista. Acredita-se que haja


desconhecimento quanto aos padrões internacionais para a concessão de um título desta
envergadura e, consequentemente, o que estaria implícito nas contrapartidas da população que
o pleiteia. Considerando que Goiandira do Couto construiu uma cidade-ideal nas pontas dos
dedos, partindo do princípio da inalterabilidade e iluminando os paradigmas monumentais da
paisagem colonial vilaboense, depreende-se, a partir de seu depoimento, que as expectativas,
em relação a emoldurar as glórias pretéritas da Cidade de Goiás, se mostram sensivelmente
abaladas. Com exceção das modificações ocorridas até 1937, como o que foi citado sobre a
rede de iluminação pública, nota-se que sua percepção de ‘originalidade’ era profundamente
hermética quando o assunto se tratava das formas da cidade, símbolo de suas tradições.
Por mais que a protagonista tenha sido incisiva ao expor suas críticas e
aparentes frustrações, notamos que o característico “zelo” pelo passado não se restringiu
apenas à notável depoente. Outros guardiões institucionalizados manifestaram de maneira
mais sutil a mesma preocupação. Selecionamos os depoimentos de Brasilete Caiado,
presidente do “Movimento Pró-Cidade de Goiás” e Elder Camargo de Passos, presidente da
OVAT, para demonstrar a verticalidade dos discursos preservacionistas, por parte desses
interlocutores da sociedade vilaboense organizada. Para eles, o “Futuro da Cidade” se baseava
na observação dos seguintes critérios:

Espero que seja explorado artisticamente e educacionalmente. São vocações


da cidade. (...) Gostaria que mudasse a mentalidade de algumas pessoas ou
famílias que insistem em descaracterizar o que é de mais próprio da cidade:
seu caráter colonial. (...) que não mudasse as manifestações culturais e
nossas tradições folclóricas e religiosas. Não gostaria que mudassem
(CAIADO, Brasilete Ramos apud Dossiê de Goiás, Anexo IV, Entrevistas
Selecionadas, 1999, CD-ROOM, slide.

Como co-autor da principal referência cultural do turismo religioso, o


presidente da OVAT ressalta: “Acho que deve aumentar os atrativos turísticos e, quanto às
mudanças, acho que deveriam permanecer. Acho que é de importância dentro da simplicidade
do seu colonial e da preservação do existente” (PASSOS, Elder Camargo de apud Dossiê de
Goiás, Anexo IV, Entrevistas Selecionadas, 1999, CD-ROOM, slide 14).
Há consenso entre os guardiões quanto ao temor pela descaracterização das
tradições (material e imaterial). Nora (1993, p.07) explica que o sentimento de continuidade é
304

residual. O depoimento de Goiandira do Couto, em particular, demonstrou que sua missão


preservacionista se pautou em viver o presente operando a favor do “retorno” ao passado.
Pelo que parece, a ação de passar da memória para a história, nas concepções
da UNESCO, dependia do cumprimento rigoroso das etapas normatizadas em parceria com o
IPHAN/Goiás. A revitalização dos restos acumulados deveria comunicar as ilusões de
pertencimento tramadas durante décadas pelo grupo social que se identificava,
majoritariamente, com aqueles que protagonizaram o poder durante os tempos áureos da
Cidade de Goiás, na posição de capital do Estado. Ora, se a montagem da cidade-patrimônio
não atendeu ao rigor artístico da artista-artesã, não nos restam dúvidas que esse ambiente
afinado ao jogo das utopias simbólicas foi decisivo para admitir o Espaço Cultural Goiandira
do Couto como um lugar de memória indexado ao passado, mas reconhecido como tal, depois
que a fenda temporal das tradições “inventadas” se abriu para avistar os horizontes de futuro
da cidade-ideal, enquanto o turismo cultural pavimentava o caminho de chegada até a cidade-
patrimônio.
Sendo assim, nos apropriamos do tombamento isolado da Casa de Goiandira e,
consequentemente, da sua acepção como ponto de cultura antes e durante as incursões do
patrimônio mundial como balizas para a construção do museu-vida na casa-monumento. Por
se tratar de um lugar onde pulsa a história da memória individual e coletiva de Goiandira do
Couto, pode ser transformado em um lugar relativo, ambíguo e relacional. Em outras
palavras, “objeto de uma história possível” (NORA, 1993, p.11).

5.3 A Construção do Museu-Vida: Espaço Cultural Goiandira do Couto

Vieira (2007), no seu texto, “Maré: casa e museu, lugar de memória”,


publicado da Revista “Musas”, afirma que casa é vida. Ancorando-se nas teorias de
Bacherlard, o autor mergulha no universo privado partindo da analogia com o útero materno,
portanto, lugar onde se gera modos de ver e pensar, sonhos, expectativas, ou seja, “(...) casa
como o lugar onde a nossa vida é forjada, onde a nossa relação com o tempo vai sendo
construída de forma mais pessoal, onde encontramos o passado, o presente e o futuro,
convivendo em nossos projetos, ambientes e objetos (...)” (VIEIRA, 2007, p.153).
Ainda de acordo com Vieira (2007, p.154), o lugar onde moramos registra as
experiências mais íntimas do viver que se fragmenta, ao longo da vida, entre práticas,
representações e memórias. Considerando essa tridimensionalidade conceitual e as discussões
que introduziram esta tese, afirmamos que a Casa de Goiandira foi um espaço privado
305

dedicado à reconstrução cultural do espaço público vilaboense por meio de criações artísticas
materiais e imateriais que, por sua vez, acalentaram sentimentos de pertença da população
local pela cidade construída por ela. Assim, “enquanto habitante de sua mansão na Rua
Joaquim Bonifácio, Goiandira reinou sobre os súditos de sua arte inigualável” (“DIÁRIO DA
MANHÔ, Goiandira: e a areia colorida se fez arte, 2011, p.4)267, sem perder o contato
pessoal e simbólico com o povo e com as “coisas de Goiás”.
Por essa perspectiva, casa e cidade se tornaram um ambiente plural, onde
Goiandira do Couto fixou o seu eu e fez dele o seu espaço social de experiências. Nesse lugar
misto e sensível que ela forjou sua identidade público-privada, seus devaneios e sentimentos
mais íntimos responsáveis por lapidar o universo de representações que interligam sua história
de vida ao campo da memória urbana e cultural da Cidade de Goiás entre o passado e
presente. Logo, depreende-se a criação do Espaço Cultural Goiandira do Couto como uma
efeméride imbricada ao processo de formalização e reconhecimento da trama discursiva das
origens da cidade berço da cultura goiana como representante dos bens culturais de interesse
da humanidade.
Antes de aprofundarmos nos meandros da constituição deste lugar de memória
integrado aos sentidos tradicionais da paisagem da cidade-patrimônio, convém esclarecer que
o Espaço Cultural Goiandira do Couto possui uma identidade complexa e imprecisa. Chega-
se a essa análise levando em conta que a edificação contígua à casa, a qual foi iniciada no ano
2000 e concluída 2003, além de se destinar às finalidades museológicas, continuava a
negociar intimidade com a residência onde Goiandira do Couto construiu sua trajetória
ressignificando, artisticamente, a si e a vida cultural da Cidade de Goiás. Afinal, a memorável,
ainda, vivia, literalmente, no domicílio ao lado.

Sempre morando no mesmo lugar, Goiandira conserva na casa de sua


infância um conjunto de objetos que estiveram presentes no decorrer de sua
vida, (...) e tanto em casa quanto no Espaço Cultural, cada objeto que a
rodeia representa uma experiência vivida (FERREIRA, 2011, p.132).

Foi por intermédio das telas douradas que esse espaço de sociabilidades
estreitou relações com encantamentos de Mnemosine. Assim, se genericamente museu268 é

267
Jornal “Diário da Manhã”, “Goiandira: e a areia colorida se faz arte”. Por: Licínio Barbosa; Coluna:
Opinião Pública. Goiânia, sábado, 3 de setembro de 2011. Fonte: Acervo da autora.
268
De acordo com a Lei n°. 11.904, de 2009, de 14 de janeiro de 2009 que institui o estatuto dos museus
nacionais: “Consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições sem fins lucrativos que conservam,
investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação,
contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer
306

visto como templo das musas, invocamos entre essas representantes da mitologia grega, Clio,
musa da história, para guiar esta narrativa que visa a reconstruir o processo de transição da
Casa de Goiandira em seu “Olimpo” particular. Considerando as especificidades deste
monumento íntimo269, o termo museu-vida acompanhará, doravante, as discussões que
buscam compreender a representação, o uso e a função do Espaço Cultural Goiandira do
Couto no contexto das tradições tombadas na cidade-patrimônio mundial.
Segundo Ferreira (2011, p.121), a ideia de homenagear o talento artístico e a
trajetória de Goiandira do Couto, por meio de um espaço cultural, partiu da iniciativa do
poder público municipal da Cidade de Goiás, em 25 de setembro de 1992, na gestão do então
prefeito, João Baptista Valim. Curiosamente, foi na cidade de Goiânia que o Espaço Cultural
Goiandira do Couto se concretizou. Durante, aproximadamente, um ano, o acervo pictórico,
alguns objetos pessoais da artista e peças do tradicional artesanato vilaboense ficaram
expostos à apreciação pública na cidade símbolo da modernidade goiana. Contudo, em 1993,
em virtude da transição governamental no município de Goiás, o espaço foi fechado,
conforme relembrou, nostalgicamente, Goiandira do Couto na entrevista concedida à Taís
Helena Machado Ferreira, em 2009.

Foi bonito, foi muita gente. Lá, na frente a minha exposição e, do outro lado,
era o artesanato, só coisas de Goiás, os artesãos tudo ali. Muita gente me
telefonava para saber onde tinha quadros meus para comprar, pra olhar. Mas,
fechou, fechou! Durou um ano” (COUTO apud FERREIRA, 2011, p.121-
122).

Ferreira (2011, p.122) segue afirmando que a escassez orçamentária foi o


argumento utilizado pela “nova” gestão municipal para justificar o fechamento do espaço
físico. Diante do impasse, o acervo retornou para a Casa de Goiandira. Ainda que efêmera, a
experiência de um lócus cultural associando sua imagem, sua arte às representações da cultura
vilaboense, foi algo singular na carreira de Goiandira do Couto. O encantamento pela
monumentalização de si não se esmaeceu diante dos poucos recursos e dos prováveis conflitos
de interesses políticos locais. E se, em 1993, as utopias da posteridade se encerravam para
Goiandira do Couto na capital, Goiânia, a contrapelo, em 1995, a monumentalidade das
tradições vilaboenses reservavam um lugar oficial para ela; pois a retomada do Projeto de

outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento” (Lei n°. 11.904,
ESTATUTO DE MUSEUS, 2009). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2009/Lei/L11904.htm>. Acesso em: 26 jan. 2017.
269
Título do texto de Leila Danziger publicado na Revista Brasileira de Museus e Museologia, do IPHAN, n° 3,
2007.
307

Levantamento de Bens de Interesse para Tombamento (1977/1978), coordenado por Belmira


Finegiev, pelo IPHAN finalizado em 1997, recomendava, entre outras coisas, o tombamento
isolado da Casa de Goiandira pelo governo do Estado de Goiás, conforme explicitou o
documento na figura 55.
Depreende-se, portanto, que, na Cidade de Goiás, particularmente nos anos de
1990, um conjunto de ações orquestradas pelos agentes culturais e o poder público (estadual e
municipal) pavimentou o caminho para o futuro, fixando condicionantes para que a imagem
de Goiandira do Couto integrasse o rol das representações do passado. Os estudos de Cristina
Helou Gomide (2007), sobre “experiências e memórias na/da cidade patrimônio”, somam
cientificidade à tessitura dessas análises e, por essa razão, licenciamo-nos de suas palavras:

No ano de 2004, os organizadores do FICA270 criaram um folder no qual o


traçado do mapa turístico inclui, além das rotas preservadas pelo (IPHAN), a
casa de Goiandira do Couto. (...) A valorização do trabalho desenvolvido
pela artista configurou uma preocupação, provinda do órgão responsável
pela preservação dos bens culturais, de reconhecimento da produção local
mais recente. No folder em questão, a casa da artista é posta de forma a
inseri-la como um dos pontos turísticos. No entanto, o valor atribuído a casa,
cuja construção data de um século, está muito mais vinculado às obras da
artista do que à arquitetura que a delineia. Isso ocorre porque à casa de
Goiandira é valorizada não pelo seu patrimônio arquitetônico, mas por que a
artista foi exaltada como uma das representantes da produção cultural local.
(...) A casa de Goiandira é então incorporada aos bens significativamente
patrimoniais da cidade, mas ela não se basta. A casa é explicada no conjunto
de outros monumentos, isso ocorre porque as referências patrimoniais,
primeiramente, eleitas desde 1950 estão, sobretudo, nas igrejas e nos locais
públicos administrativos de época. Isto é perceptível nas expressões de
folders sobre a cidade. Apela-se para a apresentação de locais e pessoas
considerados tradicionais na cidade. A tradição expressa nos folders é,
portanto seletiva, sobretudo, porque o que permanece na narrativa do
material impresso são os locais há muito considerados históricos, e nomes já
consolidados na memória local, ainda que se incorporem personagens mais
recentes, como é o caso da artista plástica citada (GOMIDE, 2007, p.34-35).

O folder a que se refere Gomide (2007) complementa a explicação e confirma


que o lugar de memória consagrado à musa das areias estava, visualmente e discursivamente,
integrado à rota das tradições. Dada a relevância deste documento, tanto para Gomide (2007)
quanto para este estudo, apropriamo-nos, também, de sua imagem:

270
A sigla quer dizer Festival Internacional de Cinema Ambiental, um evento a cargo do governo do Estado de
Goiás que passou a fazer parte do calendário cultural da Cidade de Goiás, a partir de 1999. Essa ação é vista por
essa pesquisa como mais um ingrediente que reforça a hipótese de que houve, nos anos de 1990, um movimento
contundente a favor da implementação do projeto de futuro na Cidade de Goiás. Reiteramos, portanto, que o
lugar de memória construído na Rua Joaquim Bonifácio, se estabeleceu entre as prioridades do amplo
movimento “Cidade de Goiás - Patrimônio da Humanidade”.
308

Figura 59 - “Recorte do folder do VI FICA - referindo-se à Casa de Goiandira do Couto”,


2004.

Fonte: Cristina Helou GOMIDE, 2007.

Gomide (2007) acrescenta, ainda, que: “Admitir Goiandira do Couto como


uma das referências turísticas da cidade, é significativo, pois implica perceber que essa
dinâmica de atribuição de significados e valores vem das experiências sociais entendidas em
um determinado momento ou período” (p.36). Igualmente, é o entendimento deste estudo.
Assim, o que se vê na figura 59, sedimenta, visualmente, as análises que doravante destinam-
se a historicizar o ritmo linear dos acontecimentos referentes à construção e a fundação do
Espaço Cultural Goiandira do Couto na Cidade de Goiás, relativizando algumas “verdades”
amalgamadas nesta trama.
Conforme a documentação no AETG/IPHAN, as obras na casa da artista
começaram em 2002. Os primeiros passos para a edificação física do museu-vida foram
relatados pela protagonista que nutria expectativas de posteridade em relação à musealização
de suas práticas e memória.

Não tive ajuda de ninguém. Nada. Só meu, meu dinheiro só de aposentadoria


(...). Nem engenheiro. Então, eu fiz o desenho. Ali era um pedaço de muro,
ali era a garagem minha, que eu botei abaixo. Eu fiz do jeitinho que tá lá. Eu
fiz o desenho e ficou. Mandei pro IPHAN. O IPHAN não tirou isso. Deixou
direitinho. (...) A minha planta, eles passaram para o papel deles e
escreveram que foi eles quem fizeram. Eles que fizeram de acordo. Eu que
fiz a planta com o meu beiral tudo. Tinha uma mangueira no quintal e minha
garagem. Eu cortei e fiz o espaço. (...) precisava da planta para IPHAN e no
outro lugar tinha que ter engenheiro. Engenheiro, não tinha um na cidade.
Tinha só o marido da Maria do Carmo. Meu pedreiro foi, olhou e disse: -
Esse serve. Serve qualquer um. É só para assinar. Ele não vai mexer em
nada. (...) Então, ele veio. Ele veio, assinou, cobrou R$ 300.00. Só para
assinar! Achei um absurdo. Ele não fez nada. Fui eu que fiz e determinei
tudo. Mandei fazer telhas e tijolos separados em uma fazenda, pode pisar
309

que não quebra. E a telha de baixo eu fiz de cimento, redonda, que eu queria
que fosse para a eternidade, posteridade. As beiradas, ao invés de ser de
madeira, tudo ferro com brita e cimento dentro (Idem, 2011, p.123).

Pode ser que do ponto de vista financeiro, Goiandira do Couto tenha sido a
única responsável pela realização deste projeto. Todavia, não há como refutar a acepção
coletiva e a participação institucional nos trâmites simbólicos que, a nosso ver, foram
indispensáveis para que o lugar de memória em sua homenagem se tornasse uma realidade
integrada à percepção da cultura como tradição do passado que deve se preservar.
O testemunho oral nos revela, ainda, que Goiandira do Couto não foi isentada
do cumprimento da Lei Municipal N° 07/83271 que disciplina sobre a construção,
reconstrução, demolição e fiscalização na área urbana do município de Goiás. Nota-se, por
sua vez, que a observância da norma legal evidenciou o profundo apego da artista pelo seu
capital intelectual que, neste caso, corresponde à planta baixa referente às intervenções físicas
propostas por ela enquanto proprietária do imóvel tombado.
No Escritório Técnico de Goiás/IPHAN, encontra-se um documento de teor
semelhante anexado ao requerimento n° 67/2002 que, por sua vez, está assinado pela
solicitante tendo no item, “Descrição Sumária da Obra/Serviço”, sua solicitação junto ao
órgão federal. Lê-se: “- Ampliação, Construção de uma garagem e alteração de fachada”. A
imagem a seguir traz a representação do que se pleiteava:

Figura 60 - Planta Baixa do Espaço Cultural Goiandira do Couto IPHAN, 2002.

Fonte: AETG/IPHAN; Arq. 09 - G. 04, p.07, Cidade Goiás - GO.

271
“Parágrafo Único: Qualquer obra pública ou privada, situada no roteiro histórico ou na vizinhança de edifício
tombado ou de interesse cultural e paisagístico, só pode ser realizado após aprovação da Sub-Secretaria do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN” (LEI MUNICIPAL N° 07, de 14 de setembro de 1983).
Fonte: AETG/IPHAN - Arq. 08 G. 02; cx.10, fls. 01, Cidade Goiás - GO.
310

Considerando que Goiandira do Couto reivindicou, por vezes, a autoria do


documento que delineava as intervenções no imóvel tombado, causou-nos estranheza ver
tamanha precisão técnica no desenho da figura 60. Partindo do princípio de que as imagens
não se silenciam quando procuramos por seus depoimentos, encontramos uma representação
mais convincente de que as decisões quanto à forma arquitetônica do Espaço Cultural
Goiandira do Couto correspondiam com o que foi dito pela artista.
Convém esclarecer que as provocações suscitadas em torno da imagem que se
vê, na figura 60, não se tratam de uma obstinação momentânea ou questionamentos vagos
sobre os modos de fala da depoente. A cientificidade da narrativa histórica exige rigor
metódico que, neste caso, pode ser visto e comparado ao testemunho oral, pois as marcas da
meticulosidade artística de Goiandira do Couto estão visíveis no documento que se segue
(figura 61-A):

Figura 61-A - Planta Baixa por Goiandira do Couto, 2002.

Fonte: Taís Helena Machado FERREIRA, 2011.

Figura 61-B - Casa e Espaço Cultural Goiandira do Couto.

Foto: Raquel Miranda Barbosa, 2017.


311

Assim, justapostas, as imagens nas figuras 61-A e 61-B reiteram que a


compreensão histórica está consignada aos atrevimentos do historiador que espia o passado
sem se desvencilhar do presente. Essa postura metodológica explicita, por meio da
aproximação das imagens, como o ideal subjetivo das expectativas construiu a realidade para
aqueles que enxergavam a Casa de Goiandira como uma representação “(...) portadora de
uma extrema força simbólica, que (...) expõe sentimentos, impõe um ritual de passagem, de
imersão no tempo (...) explicada pelo contexto no qual está inserida, que se pretende como um
espaço-museu” (VIEIRA, 2007, p.157).
Nesse sentido, entende-se que, no afã de empreender ações voltadas à
preservação da cultura vilaboense, os atores envolvidos nesse processo não se deram conta de
que, paradoxalmente, promoveram a desconstrução da mesma. Ainda que o projeto de futuro
afirmasse o contrário, é evidente que a perspectiva cultural da tradição se submeteu aos
constantes ciclos de reelaboração, tendo como ápice o período compreendido entre as décadas
de 1960 a 2001, ou seja, da (re)invenção de tradições locais (Fogaréu) à conquista do título de
“Patrimônio da Humanidade”. O fato é que a Casa de Goiandira e a personalidade da artista
incorporaram-se aos discursos orais, estéticos e oficiais referentes à monumentalidade da
paisagem vilaboense revelando estreita cumplicidade entre o presente e o passado, entre a
história e memória na construção da identidade da cidade que se abria, culturalmente, para o
futuro.
Sendo assim, retomamos os antecedentes do Espaço Cultural Goiandira do
Couto na tentativa de salientar as expectativas pessoais da artista em relação ao lugar de
memória que ela se propôs arquitetar para si mesma, ainda, em vida. Observando a planta
desenhada por Goiandira do Couto, figura 61, é possível visualizar o interior do monumento.
Ferreira (2011) explica que o salão é dividido em dois ambientes com a devida estrutura para
receber visitantes. A autora salienta, ainda, que a composição estética do espaço foi pensada
pela artista que dispôs os objetos que recontam sua vida público-privada, de acordo com as
subjetividades de si e, possivelmente, com os encantamentos discursivos emitidos pela
cidade-patrimônio para o mundo.

Aqui eu ponho o armário com as areias que eu tinha aqui em casa. Ali eu pus
de acordo com a fase que eu comecei a pintar. Tem o biombo. Aqui tem a
pedra goiana. Em baixo tem a exposição, tem os vidrinhos de penicilina, e
tem o primeiro quadro [...]. Aqui tem os quadros do meu irmão, que eu quero
expor, porque o trabalho dele é muito perfeito, elogiado no exterior. Quero
fazer uma homenagem a ele, ao meu pai e à minha mãe. Como é que eu vou
312

deixar minha mãe e meu pai, que me incentivaram de lado? (COUTO apud
FERREIRA 2011, p.124).

Explicita-se a relação emocional de Goiandira do Couto com o seu espaço de


memória fundado aos dezesseis dias do mês de abril de 2003. Diferente do imaginado, a
inauguração do mesmo não ocorreu com pompa. As razões estão intimamente ligadas aos
dispêndios financeiros com a obra que ela alegava ter arcado, apenas, com suas economias.
Quanto a isso, seus esclarecimentos a Ferreira (2011) apresentam uma lógica curiosa: “(...)
não ia gastar dinheiro para fazer inauguração. Fazer inauguração ia dar complicação para
mim. Eu sou convidada pra tudo. Tinha que convidar todo mundo. Convidar todo mundo, eu
não ia convidar” (COUTO apud FERREIRA, 2011, p.125). Considerando a longa vida
pública da protagonista e, sobretudo, os vínculos constituídos durante a mesma, analisamos
sua hesitação como reação, sensivelmente, compreensível.
Goiandira do Couto faleceu em agosto de 2011 e, à primeira vista, esse fato
trouxe alguns entraves para desenvolvimento desta pesquisa. Entretanto, conforme se vê, a
maioria deles foram transpostos, exceto a dificuldade de acesso aos espaços internos, tanto da
Casa de Goiandira quanto do museu-vida. Por se tratar de um lugar de memória constituído
sob a peculiaridade das escolhas, modos e gostos da homenageada, consideramos de vital
importância trazê-los à tona, pois os detalhes dizem muito sobre a narrativa fragmentada do
eu da artista exposto à apreciação e apropriação do outro.
A despeito disso, Ferreira (2011), em razão do seu intenso contato com a
protagonista e o mundo das lembranças acumuladas por ela, respalda o reconhecimento
interno da linguagem museológica do Espaço Cultural Goiandira do Couto contada por meio
de objetos que simbolizavam os pilares que sustentaram sua trajetória público-privada,
umbilicalmente, interligada à construção das noções de cidade berço da cultura goiana. Vale
a pena salientar que as descrições da autora vêm ao encontro das experiências vividas in loco,
ainda, na fase inicial deste estudo, conforme testemunha-se no fragmento a seguir:

Na entrada foi colocado uma pequena mesa de escritório, bem simples (...)
que ficava separado do restante do salão por uma divisória (...). Todos os
objetos que se encontram no Espaço - salvo um retrato de Goiandira que está
junto com as pinturas a óleo com a indicação do autor, ano e técnica e os
quadros de sua mãe e de seu irmão onde perto deles tem a indicação do
nome dos autores e grau de parentesco com artista - não são acompanhados
de nenhuma etiqueta explicativa: “eles não precisam saber nada disso”,
comenta a artista, ficando, portanto, a cargo do guia, todas as explicações
necessárias (FERREIRA, 2011, p.126-127).
313

Percebe-se que era indispensável o papel do guia no Espaço Cultural


Goiandira do Couto. Os visitantes eram guiados pelas exposições orais de João Henrique da
Luz Neto que, desde a inauguração foi contratado pela artista para desempenhar esta função.
Visto que as despesas com a edificação ficaram a cargo de Goiandira, as contrapartidas para a
manutenção do espaço vieram posteriormente. Ferreira (2011, p.126) afirma que, durante uma
das visitas do então governador do Estado de Goiás, Marconi Perillo, após a inauguração do
espaço, ele ofereceu ajuda à artista que, prontamente, solicitou o pagamento do salário do
referido guia cultural. Na ocasião, ela justificou que a arrecadação com as visitas era mínima,
ponderando os seguintes critérios: “De Goiás eu não cobro, de nenhuma pessoa. Menino
pequeno não se cobra. Escola de Goiás não se cobra. Soldado de farda não paga. Sou rica de
fama. Mas de dinheiro não”, frisou Goiandira do Couto durante a entrevista concedia a
Ferreira (2011, p.126).
Logo que se adentrava ao salão principal, via-se afixado às paredes sua extensa
produção artística separada de acordo com a fase artística - óleo sobre tela (1933-1967) e areia
sobre fibra de madeira (1967-2005). No centro, ficavam duas mesas paralelas em estilo
gaveta, cobertas por vidro transparente. Elas eram usadas como vitrines para a exposição das
centenas de condecorações - medalhas, troféus e diplomas -, e para as mais de quinhentas
tonalidades de areias coloridas retiradas da Serra Dourada. Não raro, os visitantes eram
surpreendidos pela presença de Goiandira do Couto no espaço cultural, dispensando qualquer
interferência do guia durante o receptivo. Ao narrar sua história por meio dos objetos do
acervo, a anfitriã dotada de simpatia e bom humor nato fazia questão de declarar que nunca
vendeu um só quadro a óleo. Em contrapartida, era prolixa quando se tratava de relembrar
como as areias douradas mudaram a história da sua vida (FERREIRA, 2011, p.128).
Atualmente, as imagens são as únicas testemunhas do encontro recorrente entre
o passado e o presente nos domínios do museu-vida. A Musa das Areias (figura 62), no
“Olimpo” de sua arte-memória, assenhorava-se da versão duradoura de si, pois o tempo
vivido e a experiência adquirida, no interior do Espaço Cultural Goiandira do Couto, eram
dosados, artesanalmente, nas pontas de seus dedos.
314

Figura 62 - A Musa das Areias; Foto: Walter Alves, 2005.

Fonte: Disponível em: <http://www.opopular.com.br/editorias/cidade/arte-perde-goiandira-do-couto-1.3167>.


Acesso em: 19 jan. 2017.

Reavaliando a planta baixa na figura 61, percebe-se que o espaço é separado


em dois ambientes. De acordo com Ferreira (2011), tratava-se de “altar” consagrado à família
representada pelos pais, Luiz e Maria do Couto, e o irmão, João do Couto. Além dos vínculos
orgânicos, é possível que a escolha destes três personagens tenha relação com os legados
artísticos - pintura, desenho e poesia - deixados por eles, visto que arte era a tônica central da
casa-monumento que foi incorporada ao patrimônio histórico vilaboense, a partir de 2003.
Sendo assim,
315

(...) no segundo salão na parede à esquerda, encontramos expostos três


quadros pintados com tinta a óleo de Maria Ayres do Couto, mãe de
Goiandira, e doze quadros feitos com bico-de-pena e nanquim e guache do
seu irmão João do Couto. Esta foi uma maneira que Goiandira achou para
homenagear sua mãe e seu irmão. Ao lado do banheiro, fica a porta que dá
acesso ao quintal nos fundos da casa de Goiandira. (...) posicionando-nos de
costas para a parede onde estão os quadros da mãe e do irmão de Goiandira,
vemos na nossa frente, um console centralizado nesta parede com alguns
objetos - arranjo de flores, alguns livros, homenagens - e, logo acima, os
retratos da mãe, do pai e do irmão (...). Esse conjunto de objetos que artista
apresenta no seu Espaço Cultural, (...) vai além de uma simples homenagem.
Podemos dizer que são “objetos biográficos” que fazem parte de um
conjunto maior, extensivos da casa da artista (FERREIRA, 2011, p.131-
132).

Observa-se, pela disposição do acervo, o reconhecimento da família na


sustentação da pessoa-personagem que ocupa o centro do discurso da casa-monumento. O
status museológico de Goiandira do Couto, apesar de não descolar-se de suas origens,
evidencia a consciência histórica que ela possuía de si e de seus feitos de impacto coletivo.
Ainda que o seu envolvimento com as práticas cotidianas da Cidade de Goiás prescindiu do
seio familiar, é inegável que suas escolhas individuais articularam-se às experiências de uma
sociedade compelida a redescobrir no passado o caminho para o futuro. Nesse sentido,
entende-se a criação e a inserção do Espaço Cultural Goiandira do Couto à paisagem
tombada pela UNESCO como referência histórica ao processo de construção da cidade-
patrimônio esboçada, incialmente, pelos matizes dourados da cidade-ideal.
Ainda sobre a relação da artista plástica com a casa-monumento, o guia João
Henrique da Luz Neto declarou ao jornal “O Popular”, em 2011, um testemunho revelador
que merece devida atenção:

“Ela tinha acabado de construir e eu precisava trabalhar (...). No dia 16 de


abril de 2003, o espaço foi inaugurado e desde então cuidava do lugar que
foi fechado no mês de julho. (...) Quando eu cheguei, ficou claro que eu
precisava ser pontual, responsável e gostar da história da cidade. Na
mesma semana, ela me deu aula da sua vida e me fez andar pelo espaço
dizendo as coisas para ela que encarnava o papel de turista”. O guia disse
que o espaço idealizado para poupar Goiandira do excesso de trabalho com
os turistas acabou não contribuindo para o sossego da proprietária: “Muitas
vezes ela escutava um barulho de gente e, mesmo comigo no papel de guia,
logo chegava falando e explicando sobre a história da cidade, sobre sua
arte” (“O POPULAR”, Magazine: Adeus a Goiandira, 24 de agosto de
2011, p. 07) 272. (grifo nosso)

272
Jornal “O Popular”, Magazine: “Adeus a Goiandira”. Por: Renata dos Santos; Goiânia, quarta-feira, 24 de
agosto de 2011, p.07. Fonte: Acervo da autora.
316

Ora, se o simples fato de escutar “barulho de gente” movia Goiandira na


direção dos visitantes, é possível que a construção do espaço cultural tenha alguma relação
com as limitações físicas que começaram a impedi-la de exercer, plenamente, sua vocação
para a vida pública. Ainda de acordo com a reportagem, “Adeus a Goiandira”, publicada em
agosto de 2011, pelo do jornal “O Popular”:

Nos últimos anos quando as crises de labirintite se agravaram e Goiandira


precisou diminuir o ritmo, foi a vez do sobrinho mais velho da artista, o juiz
aposentado Luiz Alberto Lorenzo Couto, 74 anos, ser escalado para
substituir a pioneira em seus compromissos públicos (Idem)273.

Nota-se que, apesar das circunstâncias, a imagem de Goiandira do Couto


irradiava luz e poder. Afinal, a vertente preservacionista continuava escrevendo a história das
artes plásticas contada pelo Estado de Goiás para um universo de culturas tão multicromáticas
quanto aquelas que originaram o berço de suas terras. E, por falar em pluralidade, pode até ser
que a identidade artística da protagonista tenha sido a de maior relevo em longínquas
fronteiras. Entretanto, foi na Cidade de Goiás, que sua personalidade multicultural extravasou
o seu próprio eu para se tornar parte do outro.
Nesta direção, acredita-se que a musealização de si, em vida, pode estar
relacionada à tomada de consciência que, em meio ao desfecho de um movimento cultural
coletivo, o seu legado à cultura goiana e vilaboense, em particular, iam muito além das telas
douradas. Assim, decantado o contexto da patrimonialização mundial da Cidade de Goiás, ela,
individualmente, sentiu que o momento era fortuito para se estabelecer no campo da memória,
pois a hora de se despedir das areias, assim como o fez com os pincéis em 1967, havia
chegado. A carreira artística, encerrada no ano de 2004, foi substituída pelo papel de musa da
cidade renascida do pó de suas pedras.

273
A jornalista Renata dos Santos coletou vários testemunhos dos presentes na ocasião do velório da artista,
ocorrido em agosto de 2011, inclusive, do sobrinho que a representava socialmente. Sobre isso, ele afirmou: “Há
dois anos em fui ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro receber o Prêmio Jaburu numa solenidade de
Homenagem a ela. Ela não foi, mas fez questão de ler o discurso”, rememorou. Outro depoente, Marco Antônio
Veiga, ratificou as constantes homenagens a Goiandira do Couto fora do Estado de Goiás. Segundo ele: “(...)
durante as comemorações dos 122 anos de Cora Coralina, em Brasília, ela foi homenageada”. (JORNAL “O
POPULAR”, Magazine: Adeus a Goiandira, Por: Renata dos Santos; 24 de agosto de 2011, p.07). Fonte: acervo
da autora.
317

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

"A cultura é (...) uma forma de expressão e


tradução da realidade que se faz de forma
simbólica (...) admite-se que os sentidos
conferido às palavras, às coisas, às ações e aos
atores sociais se apresentem de forma cifrada,
portando já um significado e uma apreciação
valorativa".
(Sandra Jatahy Pesavento)

Etimologicamente, epílogo é final narrativa, resumo das ideias expostas,


desfecho. Entretanto, quando se trata da relação artístico-cultural e afetiva de Goiandira do
Couto com a Cidade de Goiás, o termo que nos parece mais adequado é retrilhar, repisar
caminhos percorridos em busca de vestígios que, possivelmente, tenham escapado, pois não
nos restam dúvidas de que sua trajetória de uma vida extrapolou a fronteira das
representações. Como herdeira e sucessora de tradições, ela se comprometeu com suas
origens enraizadas no passado da cidade que a adotou como filha. Por isso, analisamos sua
biografia que, por sua vez, se entrecruza com a história recente da Cidade de Goiás como um
objeto de estudo residual.
Desde o século XVIII, a paisagem urbana vilaboense submeteu-se às mais
variadas formas de disputas pelo poder. Essas experiências fizeram parte do cotidiano social
vivido pela antiga capital do Estado de Goiás do período colonial até contemporaneidade. No
entanto, as rupturas político-culturais, ocorridas durante a Primeira República, desaguaram na
histórica sede do governo estadual goiano que, por volta da década de 1930, perdia o status de
capital do Estado, fato que desencadeou uma longa e aguda crise de identidade no município.
O infortúnio da cidade se deu, justamente, durante o desabrochar criativo de Goiandira do
Couto que, enquanto membro da “fina flor” da sociedade vilaboense, possuía atributos para
ingressar na vida pública, por meio da arte, fazendo dela o seu principal instrumento de luta
em defesa das “coisas de Goiás”.
O processo de transição para a nova capital, Goiânia, demorou,
aproximadamente, cinco anos desde a promulgação do decreto oficial do interventor, Pedro
Ludovico Teixeira, em dezembro de 1932, até a transferência definitiva, em março de 1937.
Nesse lapso temporal, o envolvimento de Goiandira do Couto com as artes evadia-se do
318

espaço privado. É importante ter claro que a pintura foi a expressão artística que a notabilizou
para mundo, embora, na Cidade de Goiás, suas habilidades multiculturais se revelaram
profícuas, logo nos primeiros anos de vida pública.
Ferreira (2011, p.95) relata um episódio interessante envolvendo as
performances culturais da protagonista, a conjuntura política local e o acirramento das
relações sociais na Cidade de Goiás entre os mudancistas e os antimudancistas, a exemplo da
família Couto. De acordo com a autora, no dia 11 de outubro de 1934, estreou, no quintal da
Casa de Goiandira, o Circo Ideal, nome dado pela artista ao espetáculo circense criado e
coordenado por ela. Sobre esse fato, ela testemunhou, entre outras coisas, sua personalidade
enfática, seus posicionamentos sociais e subjetividades “veladas” em relação ao contexto da
mudança:

Era cobrada uma entrada simbólica. Geral 100 réis, cadeira, um mil réis.
Eram os estudantes, meninos, meus irmãos todos. Uma amiga minha veio
com o namorado dela. Eles subiram na arquibancada e ela caiu. Estava mal
feita. Nós não furamos os buracos direito. (...) Precisava por luz elétrica.
Com dinheiro de quem? Menina, naquela época não pagava em dinheiro. Fui
do dono das centrais, Joaquim Guedes, era português, ele era o Cônsul da
Embaixada de Portugal, e veio colocar luz. Era custoso ter fio para pôr aqui,
não era qualquer casa que tinha luz. Ele colocou. (...) Eu fazia puxa para
vender, docinho de rapadura! A gente fazia fininho e enrolava. Fazia
pequenininho. Cobrávamos 10 por 40 réis. (...) Vinha o povo todo de Goiás.
Antigamente, tinha o muro e o portão e eu ficava na porta. O que eu falava
era ordem. Os rapazinhos vinham, o mais metidinho era o Mauro Borges,
filho do Governador de Goiás, Pedro Ludovico. Ele queria entrar. Não
deixei. Ele não pagou. Disse: - só porque você é filho do interventor, você
acha que pode entrar sem pagar? Pode ir embora. Aqui não entra sem pagar
não (COUTO apud FERREIRA, 2011, p.95-97).

Valores éticos e ideológicos filiaram-se ao fazer cultural de Goiandira do


Couto. A linguagem verbal expressa convicções que a empoderaram enquanto mulher, cidadã
e, sobretudo, como artista. Por isso, não é tarefa fácil descolar a narrativa ontológica da artista
daquilo que ela representou no âmbito público. Uma vez abalada as estruturas de poder na
Cidade de Goiás, fato que desencadeou, inclusive, o afastamento de Luiz do Couto da cúpula
do regime oligárquico, fica evidente que nos domínios da família Couto, o status quo não se
transferia a ninguém.
Carisma foi uma das marcas mais expressivas na identidade de Goiandira do
Couto. Franco (2008, p.19), afirma que a fama e o prestígio não alteraram o seu modo de ser,
especialmente, no trato com as pessoas. Quando estimulada a falar de si mesma, definia-se
como uma pessoa alegre, que gostava de amizades, segundo ela, sem distinção social,
319

econômica ou étnica. Essa é a lembrança guardada por Marlene Gomes Velasco, curadora do
Museu Casa de Cora Coralina, sobre a personalidade da notável: “Goiandira recebeu, durante
décadas, em sua própria casa tanto vendedores de banana como chefes de Estado” (JORNAL
“O POPULAR”, Magazine, Adeus a Goiandira, 24 de agosto de 2011, p.07). Esse princípio
isonômico explica porque, nos espetáculos do Circo Ideal, a entrada prescindia da
apresentação indistinta das seguintes credencias:

Figura 63 - Ingressos para o Circo Ideal, 1934.

Fonte: Taís Helena Machado Ferreira, 2011 (p.96).

A figura 63 revela muito mais do que se vê. Na verdade, são ingressos para
imaginar o mundo fascinante das criações artísticas legadas por Goiandira do Couto à história
cultural da Cidade de Goiás, no século XX. Esse é o motivo principal por ela ter sido
320

escolhida como objeto central desta pesquisa que se direcionou a representar o processo de
restituição do poder simbólico para a antiga capital do Estado de Goiás. Considerando que o
sentido das glórias do passado deu lugar à simbologia de atraso e decadência incrustrados ao
discurso da modernidade goiana, o presente estudo buscou demonstrar que o projeto de futuro
encabeçado pela elite remanescente enquadrava-se à perspectiva cultural e estética da
personagem central que, além de renomada artista plástica, era conhecida pela população
local como notável representante das tradições vilaboenses.
Assentada nestas representações, potencializadas em meio ao contexto de
rupturas e permanências, compreendemos com mais propriedade a afirmação de Ferreira
(2011): “Goiandira do Couto foi um coletivo (...). Falar dela é falar de Goiás” (p.49). Esse
princípio foi observado durante a reconstrução, pelo viés biográfico, do processo de
reconhecimento simbólico e internacional da Cidade de Goiás como berço da cultura goiana,
fato ocorrido em 2001, como forma de restituir as perdas efetivas de poder em razão da
ascensão do Estado Novo na década de 1930. O enfoque dado a esse contexto histórico e o
que, ainda, pertine ser adensado a ele, como é o caso do episódio envolvendo o Circo Ideal,
estruturou o debate historiográfico do primeiro capítulo desta tese, intitulado: PILARES DE
PEDRA: Goiandira do Couto, Família e Formação.
Buscar as raízes genealógicas da artista possibilitou-nos compreender melhor
sua representação social como herdeira de tradições locais, atuação que ficou evidenciada
tanto como sucessora dos posicionamentos culturais e políticos do pai, Luiz do Couto - um
declarado antimudancista - quanto nos modos como ela articulou esse e outros legados
imateriais da família para empreender-se nas suas primeiras incursões individuais em favor da
ressignificação cultural da Cidade de Goiás, iniciada nos anos de 1940. Revisitar as diretrizes
da política econômica proposta pela Marcha para o Oeste foi de fundamental importância
para compreender em que medida a integração territorial do país, por meio do reordenamento
dos espaços produtivos, redimensionou, cultural e ideologicamente, o discurso
desenvolvimentista propagandeado pelo governo federal em relação à modernização agrícola
do centro-oeste brasileiro após o establishment da Revolução de 1930.
Assim, o desbravamento do Brasil Central, durante o século XVIII, norteou,
simbolicamente, os horizontes de futuro do Estado Novo a partir dos anos de 1940. Tal fato
explica o realinhamento da Cidade de Goiás, bem como o seu mito fundador, o bandeirante,
com as tendências nacionais e, a contrapelo, com ética “progressista” da modernidade goiana,
sem descaracterizar suas origens culturais e estéticas. O segundo capítulo, PILARES DA
TRADIÇÃO: Goiandira do Couto e as Instituições, dedicou cuidadosas análises ao
321

estreitamento da ligação fenomenológica entre memória da paisagem colonial vilaboense e a


capacidade criativa de Goiandira. Dessa relação, percebeu-se que direcionamento para o
futuro dependia “(...) da utilização de elementos antigos na elaboração de novas tradições
inventadas para fins bastante originais” (HOBSBAWM e RANGER, 1997, p.14). Assim, ela e
um grupo de jovens fundaram a Organização Vilaboense de Artes e Tradições (OVAT), em
1965, uma entidade abalizada pelos seguintes objetivos: preservar e soerguer o patrimônio
cultural, artístico e tradicional da Cidade de Goiás. Embora, nas franjas desta inciativa,
estivesse a revitalização do cotidiano vilaboense a partir do turismo.
Direcionados por esses ideais, os membros da OVAT (re)criaram a Procissão
do Fogaréu, uma manifestação paralitúrgica e teatralizada da Paixão de Cristo que, desde o
ano de 1966, incorporou-se às tradição religiosas praticadas durante as celebrações da Semana
Santa, na Cidade de Goiás. Uma vez incorporada às tradições vilaboenses, a Procissão do
Fogaréu tornou-se um chamariz turístico e, desta forma, passou a cumprir os propósitos do
poder público municipal, estadual e federal empenhados até então, de maneira independente,
com a preservação histórica e o desenvolvimento da econômica local a partir da triangulação:
história, patrimônio e turismo. Assim, a OVAT e as diferentes instâncias do poder público
local estabeleceram uma aparente aliança institucional com um objetivo comum: empreender
o futuro da Cidade de Goiás voltando-se na direção do passado. Sintetizando essa concepção,
nos apropriamos do conceito de Argan (1995), projeto de futuro, para discorrer sobre
formalização do processo de restituição do status cultural da Cidade de Goiás, ocorrido entre
as décadas de 1960 e 2001, ou seja, da (re)invenção de tradições à aquisição do título de
“Patrimônio da Humanidade”.
A construção das origens da “goianidade”, pela via da “invenção” da cidade
berço da cultura goiana, evidenciou o protagonismo de Goiandira do Couto que,
particularmente na década de 1960, acentuou-se na medida em que sua carreira artística
redescobre o caminho da fama internacional, utilizando-se da técnica com areias
multicoloridas da Serra Dourada sobre fibra de madeira, cujo tema central destas produções é
a reinterpretação da paisagem urbana da Cidade de Goiás pela vertente preservacionista de
suas tradições. As artes plásticas introduziram a protagonista na vida pública e, entre os anos
de 1933 e 1967, período que compreende sua primeira fase artística (óleo sobre tela), ela se
dedicou, simultaneamente, à docência e à pintura, ficando conhecida a nível estadual como
uma das percussoras do gênero feminino nas artes plásticas em Goiás. Nunca é demais
lembrar que além de valorizar, visualmente, o patrimônio material existente na paisagem
urbana vilaboense, Goiandira do Couto e os demais membros da OVAT introduziram as
322

noções de imaterialidade cultural tangíveis nas práticas e nos discursos que tramaram os
sentidos coletivos de pertença em relação à Procissão do Fogaréu.
O terceiro capítulo desta tese, PILARES DE AREIA: a Constituição Imagética
da Cidade-Ideal, rastreou o itinerário do encontro místico de Goiandira do Couto com as
areias multicoloridas, bem como os caminhos do eixo de poder, compreendido entre o Largo
do Rosário e o Largo do Chafariz, reconstruído, pictoricamente, por uma perspectiva
inalterada do centro urbano vilaboense. Ora, se paisagem deve ser contemplada por meio da
relação histórico-cultural, no caso das telas douradas, evidencia-se uma cidade-ideal povoada
por lugares de memória que enaltecem a presença do colonizador em meio aos hiatos visíveis
e sensíveis das origens multiculturais das cidades históricas fundadas no ciclo do ouro.
Considerando essas características, afirmamos que as telas douradas criaram um regime de
historicidade não necessariamente falso, mas, certamente, parcial no que se refere aos modos
de ver e interpretar a identidade cultural e a memória urbana da Cidade de Goiás no tempo
presente. As culturas diferentes da europeia ficaram submersas nos sintomas da imagem que
não se silencia diante do que pode parecer “invisível” aos olhos.
As análises comparadas entre a estética coutiana em óleo e areia com as
produções artísticas de Cora Coralina, Octo Marques e João do Couto adensaram a hipótese
de que a concepção de cidade berço da cultura goiana se respaldou nas tradições
“inventadas”, nas convicções oficiais refundadas, pictoricamente, na monumentalidade da
cidade-ideal e, sobretudo, no conjunto de medidas institucionais que se apropriou dessas
representações imateriais para construir o enredo do passado glorioso vilaboense, evocado na
constituição da cidade-patrimônio.
Historiar os trâmites formais do projeto de futuro entrecruzado à projeção
cultural e artística de Goiandira do Couto, ambos vivenciados na década de 1970, possibilitou
compreender os motivos pelos quais a imagem da artista se vinculou às referências culturais
da cidade e do Estado de Goiás, para além de suas fronteiras. Uma vez aproximadas, frestas se
abriram para as problematizações relativas à MONUMENTALIZAÇÃO DA CASA E DAS
MEMÓRIAS DE GOIANDIRA DO COUTO NA CIDADE-PATRIMÔNIO, temática do quarto
e último capítulo desta tese.
Introdutoriamente, revisitamos o espaço de poder delimitado pelas telas
douradas demonstrando que a área de proteção dos bens culturais (patrimônio edificado)
vilaboenses estendeu-se depois dos levantamentos técnicos da comissão presidida por Belmira
Finegiev, entre os anos de 1977 e 1978. Dentre as principais medidas destacamos: o
reconhecimento do polígono central e a área de entorno como patrimônio nacional, a
323

elaboração e publicação da Carta à Cidade de Goiás, em 1983, documento que normatizava os


usos, funções e intervenções físicas nos imóveis protegidos pelo IPHAN e, por fim, a
recomendação de tombamento isolado da Casa de Goiandira por considerá-la um bem de
valor cultural para a Cidade de Goiás. A salvaguarda do patrimônio material e imaterial
representou um passo fundamental para se concretizar as expectativas da elite guardiã que se
mantivera ativa ao lado do poder público empreendendo, institucionalmente, uma agenda
positiva em defesa das tradições vilaboenses.
Nesse sentido, evidenciou-se que o “Movimento Pró-Cidade de Goiás”,
entidade civil fundada no ano de 1997, atuou com ênfase na candidatura da Cidade de Goiás
ao título de patrimônio da humanidade, objetivo considerado ápice do projeto de futuro, tendo
em vista as compensações relativas à mudança da capital, ainda, nos anos de 1930. Perscrutar
as demandas culturais desta instituição ajudou a compreender melhor a visão prospectiva da
cidade, enquanto produto cultural, atrelada ao sentimento de apego pelas tradições ligadas e
religadas aos símbolos da memória urbana vilaboense “inventada” ou não. Assim, ao
legitimar o espaço e a identidade da cidade-patrimônio, notou-se relativa sintonia entre a
linguagem artística de Goiandira do Couto e o Dossiê de Goiás que reiterou o discurso das
oficialidades urbanas demarcadas, simbolicamente, por lugares de memória.
Identificar paridade entre as representações da cidade-ideal e a versão da
cidade que se patrimonializou, em 2001, possibilitou-nos refletir sobre a monumentalização
da casa e das memórias de Goiandira do Couto não apenas como artista plástica, mas,
sobretudo, da herdeira, guardiã e produtora de tradições na Cidade de Goiás. Por isso,
olhamos, cientificamente, para o Espaço Cultural Goiandira do Couto como um templo
consagrado à universalização da identidade multicultural da personagem que, certamente, foi
muito além das telas douradas com as suas certezas de que do pó se poderia transformar a
cidade idealizada por ela em pedra fundamental da cultura goiana.
Ao longo desta narrativa, buscou-se relativizar as sombras instauradas no
processo de ressignificação cultural vivido pela Cidade de Goiás, especialmente, entre os anos
de 1960 e 2001. Embora, sobre Goiandira do Couto e suas digitais na reconstrução dos
horizontes de futuro que se vive atualmente, na cidade-patrimônio, seja perceptível que esse
percurso histórico irradiou outras luzes na sua direção.
Espera-se que esta pesquisa contribua para que o símbolo da memória e da
trajetória de Goiandira Ayres do Couto, na Cidade de Goiás, a casa e o Espaço Cultural
Goiandira do Couto, receba da família da artista e do poder público a devida importância que
ela merece. O brilho da artífice e intérprete das tradições vilaboenses está ofuscado pelas
324

incertezas que mantém portas e janelas, destes respectivos lugares, fechadas. O Olimpo
edificado pela "Musa das Areias" é parte integrante da história cultural da Cidade de Goiás,
portanto, um patrimônio coletivo.
325

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RJ. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=178691_05&pasta
=ano%20192&pesq=voto%20feminino>. Acesso em: 02 out. 2015.

Jornal “O Popular”, Goiânia, 23 de agosto de 2011 apud BARBOSA, Licínio. Opinião


Pública. Diário da Manhã, Goiânia, 03 de setembro de 2011. Fonte: Acervo da autora.
335

Jornal “O Popular”, Magazine: “Adeus a Goiandira”. Por: Renata dos Santos; Goiânia,
quarta-feira, 24 de agosto de 2011, p.07. Fonte: Acervo da autora.

Jornal “O Vilaboense”, Senhora das Areias, Por: Valbene Bezerra. Goiás, ago/set de 2005,
Ano 12. Fonte: Acervo da autora.

Jornal “O Popular”, “Espetáculo da Fé”. Goiânia, 29 de março, de 2002. Fonte: acervo da


autora

Jornal “O Popular”. Publicação do Decreto-lei 3.635/61, 1962. Cedido pela família de Maria
Dulce Loyola

Telegrama de Luiz do Couto enviado a Assis Chateaubriant, 1926. Fonte: Acervo de Milena
Bastos Tavares, cedido em cópia digital.

Acervo de Taís Helena Machado Ferreira

I Seminário Cultural, Turístico e Ambiental da Cidade de Goiás; Movimento Pró-Cidade de


Goiás, 1997-1998; Vol. 1; Arm. 01; Arq. 08 G. 02 p.06, Cidade Goiás – GO

Folder da II EXPOSIÇÃO INDIVIDUAL, Casa Thomas Jefferson, 1969.

Jornal “Cidade de Goiaz”, Goiandira: “Todos os Carnavais me ficaram”. Fevereiro de 1981.

Jornal “Diário da Manhã”, Roberto Marinho aos pés de Goiandira, Goiânia, 15 de abril de
1995 s/p.

Jornal “Folha de Goiaz”, “Um Gesto de Mulher Goiana”, Cidade de Goiás, n°. 35, 29 de
março de 1936 apud Jornal “O Bandeirante”, “O ideal de uma artista", Cidade de Goiás,
março de 1995 (s/p.).

Jornal “O Bandeirante”, “O ideal de uma artista", Cidade de Goiás, março de 1995 (s/p.).

Jornal “O Popular”, “Escola de Artes continua fechada”, Goiânia, 23 de agosto de1977, s/p.

Jornal “O Popular”, Suplemento: “Com Areia também se Pinta”. Por Jávier Godinho.
Goiânia, 05 de agosto de 1971.

Jornal “O Popular”, África do Sul Verá a Arte de Goiandira, Goiânia, 31 de outubro de 1969.

Jornal “O Popular”, “Curso de Artes Plásticas já funciona em Vila Boa”. Goiânia, agosto de
1968.

Arquivo da Fundação Frei Simão Dorvi – (AFFSD) Cidade de Goiás-GO

Anuário da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás – AFLAG. 1983/1984. Palestra


proferida por Goiandira do Couto, no dia 09 de novembro de 1984, XV Aniversário da
AFLAG, em homenagem da Entidade ao poeta Luiz do Couto Publicação – SECRETARIA
DE CULTURA E DESPORTO DO ESTADO DE GOIÁS/Gráfica de Goiás – CERNE.
Governo Iris Rezende, 1985.
336

Carta endereçada ao Presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Por: Manuel


Xavier de Vasconcellos Pedrosa Rio de Janeiro, 17 de maio de 1970. Documento Avulso
(Cópia), fls 01 a 03.

Carta Mensal da Associação de Cartofilia do Rio de Janeiro, por Hélio Melo, Ano XVIII –
Nº 130. Utilidade Pública Muncipal - Lei n° 2.054 de 08/12/1993. Edição e diagramação:
Samuel Gorberg. Rio de Janeiro: ACARJ, 2004.

Catálogo Comemorativo, OVAT, 40 anos Promovendo a Cultura e Resgatando as Tradições,


2005.

Folder da Exposição “GOIANDIRA”, 1974.

Jornal “A Colligação”, “Contra a destruição de Vila Boa”, Cidade de Goiás, 10 novembro, de


1935, n. 45.

Jornal “A Razão”. “Organizemos nosso Museu”. Por: Celso P. Browm; Goiaz, 05 de


setembro de 1937, n°. 43, Ano II

Jornal “Cidade de Goiaz”, “Reminiscências”, Por: Lindolpho Emiliano dos Passos. Cidade
de Goiás, agosto de 1986.

Jornal “Cidade de Goiaz”, “Protesto Contra o DPHAN”. Cidade de Goiás, 17 de janeiro de


1960. Ano XXII, N°. 732, p.01.

Jornal “Cidade de Goiaz”, “Exposição de Quadros”. Goiás, 01 de novembro de 1959. Ano


XXII, N°. 726, p.01.

Jornal “Cidade de Goiaz”, “Eleição no “Goiás Clube”. Goiás, 1° de julho de 1951. Ano
XIV; N°. 506, p.01).

Jornal “Cidade de Goiaz”, “Concurso de Beleza”. Goiás, 08 de junho de 1947. Ano IX, N°.
345.

Jornal “Cidade de Goiaz”, “Primeiro Salão de Pintura dos Amadores Vilaboenses”. Cidade
de Goiás, 01 de junho de 1947. Ano IX, N.º 344, p.01.

Jornal “Cidade de Goiaz”, Goiás, 28 de abril de 1946, N°. 300, Ano VIII.

Jornal “Cidade de Goiaz”, “Srt. Goiandira do Couto”. Goiás, 30 de abril de 1944. Ano VI,
N°. 229.

Jornal “Cidade de Goiaz”, “Vila Bôa (Monumento Histórico)”. Goiás, 30 de abril de 1943.
Ano VI; N° 229, p.01.

Jornal “Cidade de Goiaz”, “Aniversário do Goiás Clube”. Goiás, 29 de março de 1942. Ano
IV; N° 171, p.01-04.

Jornal “Cidade de Goiaz”. “A cidade de Goiás como centro turístico”, 10 março, de 1940.
N°. 75.
337

Jornal “Folha de Goiás”, “Semana Santa em Vila Boa: programa oficial”. Cidade de Goiás,
04 de março de 1967.

Jornal “Folha de Goiás”, “Vila Boa tem Departamento de Turismo”. Goiânia, 02 de março
de 1967, s/p.

Jornal “O Democrata”, Goyaz, 19 de abril de 1930. Coluna Social. Anno XIII, n° 656.

Jornal “O Goyaz”, “A Grande Enchente” ([extraído do Jornal “Gazeta de Goyáz”]). Goiás,


janeiro de 2002 (p. 05).

Jornal “O Popular”, “Vida Nova para o Museu da Boa Morte”. (Caderno 2) Goiânia,
segunda-feira, 23 de janeiro de 1995.

Jornal “O Popular”, “Semana Santa em Goiás terá comemorações em novo estilo”. Goiânia,
4 de março de 1967, s/p.

Jornal “O Vilaboense”, “40 ANOS DA OVAT, Promovendo a Cultura e Resgatando as


Tradições”. Por: Elder Camargo Passos; Goiás, jan/fev. de 2006. Ano 13, N°. CXLVII.
Tiragem: 8000 exemplares.

Livreto “Cidade de Goiás: Berço da Cultura Goiana”. Conferência pronunciada por Regina
Lacerda na Solenidade de reabertura do Gabinete Literário Goiano. Publicação do
Departamento Estadual de Cultura. Goiás, 4 de fevereiro de 1968.

Revista Trimestral de História e Geografia, TOMO XII, com 67 páginas datilografadas em


espaço 2. Goiás, 09 de maio de 1966.

Entrevistas publicadas em outros trabalhos

COUTO, Goiandira Ayres do. Entrevista concedida no ano de 2005 e publicada em 2009
(p.10). Cf. BRITTO. Clovis Carvalho. Pintando com areia da Cidade de Pedras: itinerários
do processo criativo de Goiandira do Couto. XIV Congresso Brasileiro de Sociologia. Grupo
de Trabalho: Sociologia da Arte, Rio de Janeiro: 2009.

COUTO, Goiandira Ayres do. Entrevista concedida a Taís Helena Machado Ferreira, 2009.
In: FEREIRA, Tais Helena Machado. A Cidade de Goiás e as areias coloridas na trajetória
de Goiandira Ayres do Couto. 2011. 230f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-
Graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

COUTO, Goiandira Ayres do. Entrevista concedida em 11/11/ 2008 à Mônica Martins Silva.
In: SILVA, Mônica Martins. A “Invenção do Fogaréu” e enredos do folclore vilaboense. Cf:
BRITTO, Clovis Carvalho (Org). Luzes e Trevas: Estudos sobre a Procissão do Fogaréu na
Cidade de Goiás. Rio de Janeiro: Corifeu, 2008.

COUTO, Goiandira Ayres do. Entrevista: “O tecido do tempo” (p.206-208). In: BRITTO,
Clovis Carvalho (Org). Luzes e Trevas: Estudos sobre a Procissão do Fogaréu na cidade de
Goiás. Rio de Janeiro: Corifeu, 2008.
338

COUTO, Goiandira Ayres do. Entrevista: Entre cultura e linguagem: entrevista com
Goiandira do Couto, 2006. In: LUZ, Renata Moraes da. TEMPORIS (ação) Revista Eletrônica
da Unidade Universitária “Cora Coralina”. Vol. 1, n°9, 2007, p.261-264. Disponível em:
<http://www.nee.ueg.br/seer/index.php/temporisacao/issue/view/2>. Acesso em: 10 jun. 2015.

CASTRO, Hecival Alves de. Entrevista: “Tempo reencontrado”, 2008. In: BRITTO, Clovis
Carvalho (Org). Luzes e Trevas: Estudos sobre a Procissão do Fogaréu na cidade de Goiás.
Rio de Janeiro: Corifeu, 2008.

CASTRO, Hercival Alves de. Entrevista concedida à autora, em 14/11/2001 apud Delgado
(2003). In: DELGADO, Andreia Ferreira. A invenção de Cora Coralina na Batalha das
memórias. 2003. 508f. Tese (Doutorado) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade de Campinas, Campinas, 2003.

PASSOS, Elder Camargo. Entrevista concedida à autora, em 19/08/1999 apud Delgado


(2003). In: DELGADO, Andreia Ferreira. A invenção de Cora Coralina na Batalha das
memórias. 2003. 508f. Tese (Doutorado) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade de Campinas, Campinas, 2003.

TEIXEIRA, Mauro Borges. Entrevista concedida à Isabela Tamaso, em março de 2003. In:
TAMASO, Isabela. Em nome do patrimônio: representações e apropriações da cultura na
cidade de Goiás. 2007. 784f. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Instituto de Ciências Sociais, Departamento de Antropologia,
Universidade de Brasília, Brasília, 2007 (p.144).

Jornais e periódicos eletrônicos

Jornal “Jornal de Brasília”, “Fogaréu de Farricocos nas ruas da velha Goiás”. Por; José
Andersen; Sérgio Habib. Brasília, 02 de abril de 1978, F-0907. Disponível em:
<http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=Tematico&PagFis=40502&Pesq=>.
Acesso em: 09 dez. 2015.

Jornal “Opção”, 10 a 16 de janeiro de 1999. Por Antonio Lisboa de Morais. Disponível em:
<http://diariovilaboense4.blogspot.com.br/2009/02/goiandira-do-couto.html.> Acesso em: 16
fev. 2015.

Jornal “O Popular Online”, Magazine. Atuação Cultural Intensa. Goiânia, 28, de agosto de
2011. Disponível em: <http://www.gjccorp.com.br/cmlink/o-popular/editorias/magazine/sob-
o-sol-da-barra-1.31847>. Acesso em: 14 ago, 2015.

Fontes eletrônicas (sites para inforamção de conheciemnto geral)

CHAFARIZ DE CAUDA:
Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/ans.net/tema_consulta.asp?Linha=tc_belas.gif&Cod=1227>.
Acesso em: 22 jul. 2015

COR VERMELHA:
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=115157
&tip=UN>. Acesso em: 06 abr. 2016.
339

DEFINIÇÃO DE HABITUS:
Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/pequeno-glossario-da-teoria-de-
bourdieu>. Acesso em: 12 jun. 2015.

DOM TOMÁS BALDUÍNO:


Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/516656-90-anos-de-transformacao-
na-igreja-entrevista-especial-com-dom-tomas-balduino>. Acesso em: 12 abr. 2016

ESTILO ART `DECÓ:


Disponível em: <https://brasilarqui.wordpress.com/5-art-deco>. Acesso em: 11 nov. 2015.

ESTILO NEOGÓTICO: <https://danielamachado.wordpress.com/2008/04/24/o-neogotico>.


Acesso em: 02 jun. 2015.

MINISTÉRIO DA CULTURA. Plano Museológico: Museu de Arte Sacra da Boa Morte.


Disponível em: <http://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2014/03/PlanoMuseologico_
MuseuArteSacraBoaMorte.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2016.

MOSSAMEDES:
Disponível em: <http://www.cidades.ibge.gov.br/painel/historico.php?lang=&codnum=52139
0&search=%7Cmossamedes>. Acesso em: 03 out. 2015.

MUSEU DA BOA MORTE:


Disponível em: <http://www.museus.gov.br/wpcontent/uploads/2014/03/PlanoMuseologico_
MuseuArteSacraBoaMorte.pdf>. Acesso em: 12 jul. 2016.

PALÁCIO CONDE DOS ARCOS


Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/ans.net/tema_consulta.asp?Linha=tc_hist.gif&Cod
=1226>. Acesso em: 15 mar. 2017.

SANTO SUDÁRIO:
Disponível em: <http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/56/artigo273622-1.asp>.
Acesso em: 01 abr. 2016

SERRA DOURADA:
Disponível em: <http://eco.tur.br/ecoguias/goias/ecopontos/paisagens/serradourada.htm>.
Acesso em: 14 out. 2014.

SIGLA UNESCO:
Disponível em: <http://www.infoescola.com/geografia/unesco>. Acesso em: 17 jan. 2015.

SOBRE JOÃO DO COUTO:


Disponível em: <http://www.joaodocouto.com.br>. Acesso em: 07 mai. 2015.

Multimídias

IPHAN/MINC. Dossiê - Proposição de Inscrição cidade de Goiás na Lista de Patrimônio


Mundial. 1999. CD ROOM.
340

ANEXO I

Produção em Óleo – 1ª Fase Artística de Goiandira Ayres do Couto

Lírios, 1933 Vaso Heliópolis, 1947, (44x34).


Óleo sobre vidro Óleo sobre tela

Vaso com Rosas Vermelhas, 1947, (28x36). Pôr-do-Sol no Araguaia, 1961, (47x69).
Óleo sobre tela Óleo sobre tela.

Fonte: Tais Helena Machado Ferreira, 2011 (p.142-143).


341

ANEXO II

ESTATUTO DA OVAT Livro n° A-1, fl. 01, 1978.


342
343
344
345
346

Fonte: TABELIONATO 2º OFÍCIO


Notas; Cidade de Goiás - GO. Acervo da Autora
347

ANEXO III

Documento Avulso: Carta endereçada ao Presidente do Instituto Histórico e Geográfico


Brasileiro, fls. 01-03
348
349

Fonte: Arquivo da Fundação Frei Simão Dorvi.


350

ANEXO IV

Folder da exposição “GOIANDIRA”, 1974.

Fonte: Arquivo da Fundação Frei Simão Dorvi


351

ANEXO V

Folder Comemorativo “Dia das Bandeiras”, Cidade de Goiás, 2015.

Fonte: Acervo da Autora


352

ANEXO VI

“Movimento Pró-Cidade de Goiás”: Medidas de Ajustamente da Cidade de Goiás Visando


Candidatura a Título de Patrimônio Mundial
353

Fonte: AETG/IPHAN - I Seminário Cultural, Turístico e Ambiental da Cidade de Goiás; Movimento


Pró-Cidade de Goiás, 1997-1998; Vol. 1; Arm.01; Arq. 08 G. 02, p.06, Cidade Goiás - GO.
354

ANEXO VII

Documentos que relacionam a imagem de Goiandira do Couto à referência cultural da Cidade


de Goiás nas Artes.

Programação da Visita do ICOMOS, 2000.


355
356

Caravana Cultural a Cidade de Goiás – Deputado Pedro Wilson


357

Fonte: AETG/IPHAN - Arm. 01; Arq. 08 G. 02, Cidade Goiás –GO.

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