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Brasília, DF, novembro de 2019

Erradicar a Miséria: O Desafio Brasileiro e um Problema Global 1


Gisele Soares e Claudio Mendonça2

Introdução
Tudo mais é ter fome ou não ter que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Fernando Pessoa - Álvaro de Campos

1
Claudio Mendonça Schiphorst é advogado, formado pela UERJ, com atuação nas áreas do Direito Administrativo e Constitucional,
pós-graduado nas Filosofias Antiga, Contemporânea e da Diferença pela PUC-RJ, é Regional Ambassador da Organização GirlRising,
foi presidente da Fundação Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio de Janeiro ,
secretário de educação estadual e municipal, como ainda responsável pela regularização fundiária da Amazônia Legal em âmbito
federal.
Gisele Tenório Soares é ativista, advogada, formada pela Universidade La Salle, com atuação na aérea do Direito Constitucional,
assessora Parlamentar na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro atuante em Elaboração de Notas técnicas, Artigos para Imprensa
especializada e pronunciamentos. Formada em Web-Design, Pós Graduanda em Gênero e Sexualidade, cineasta , produtora e
diretora dos Documentários - Mulheres Rurais - Mulheres Urbanas e A Dor dos Ausentes , Proponente e Sócia Executiva da
Sonoridade.net.br, Sonoridade.Doc, Sororitybr. Coordenadora Nacional da Rede Sororidade Brasil. Voluntaria na ONG Girl Rising Rio
de Janeiro elaborando materiais didáticos, vídeos e reuniões por todo Brasil.
2
Copyleft, desde que com citação da fonte direta ou indireta por apud.

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No dia 16 de julho de 1945, no deserto de Los Álamos, no Novo México, o Governo dos Estados
Unidos da América do Norte, eclodiu a primeira bomba nuclear, como teste com resultado do
projeto Manhatan, sob a responsabilidade de Robert Oppenheimer. Em sua declaração ao
público, ele diz: “algumas pessoas riram, outras choraram e muitas ficaram em silêncio” e, em
seguida, cita um trecho do Bhagavad Gita: "Now I am become Death, the destroyer of worlds”,
numa tradução livre e adaptada à circunstância pelo físico, do verso 31 do capítulo XI. A explosão
liberou energia de 20 ktons, ou seja,20 mil toneladas de dinamite. A luz da reação nuclear pôde
ser vista a mais de 500 km de distância, segundo os registros científicos da época.

No início de agosto do mesmo ano, a humanidade testemunhou os massacres de Hiroshima e


Nagasaki, nos dias 6 e 9, com as bombas atômicas Little Boy e Fat Man, que mataram no primeiro
instante cerca de 200 mil pessoas em cada episódio.

As estimativas mais recentes, convalidadas pelas Nações Unidas, apontam que 10,7% da
população mundial vive com menos de um dólar e oitenta e sete centavos por dia. Estamos
falando de 800 milhões dos 7,7 bilhões de habitantes do planeta. São pessoas condenadas a
uma vida de fome, excluídas dos serviços públicos mais essenciais, sem perspectivas e
amplamente vulneráveis.

As meninas, frequentemente, têm menos acesso aos estudos, o que alimenta este círculo vicioso
nefasto, que rouba infâncias, favorece os abusos de toda a ordem e afrontam o fundamento de
todo o arcabouço dos Direitos Civis: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, em suas
múltiplas dimensões.

Erradicar a pobreza é garantir o Direito Fundamental à vida e ao desenvolvimento das


potencialidades humanas, o que lhes é negado em verdadeiro holocausto silencioso, apesar das
dimensões de extermínio serem superiores a explosão de quatro armas atômicas, de forma
periódica e sucessiva, ao longo das décadas.

Desafiando os valores de solidariedade entre as nações e a harmonia entre os povos, tão


importantes ao nosso processo civilizatório, não há como negar o fato de que tanto os
detentores de poder, como os cidadãos que se omitem diante de tamanho número de perdas,
estão contribuindo para sua perpetuação, como para legitimar ou fazer olvidar o sofrimento de
tantas pessoas, sem voz e nem perspectivas.

Resignadas no seu anonimato e cercadas por tantas gentes que entendem que eles deveriam
ser tratados como assunto de saúde pública, como já acontecera no passado3. Esquecidas por
conta da indiferença confortável de olhos que desviam, em abandono ao dever de
responsabilidade para com o Outro4, e mergulharam em seus individualismos, alimentados em
visões de mundo seletivas étnica e economicamente.

Este documento, pretende promover a reflexão e destacar algumas estratégias no objetivo de


sensibilizar e ajudar no desenvolvimento de ações, resultantes da sinergia necessária entre
líderes, governos, sociedade civil, integrantes do mundo acadêmico, veículos de comunicação e

3
Segundo Foucault, Michel Foucault em História da Loucura, Os Anormais, Vigiar e Punir, Verdade em
suas formas Jurídicas, em Defesa da Sociedade.
4
Segundo Lèvinas, Emanuel em Totalidade e Infinito e o Humanismo do Outro Homem.

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tantos outros atores protagonistas das forças políticas locais, nacionais e globais, capazes de
enfrentar de forma definitiva, eficiente, eficaz e efetiva a questão da miséria em escala
doméstica, como na planetária.

Em virtude da extensão do tema, como pela imensa quantidade de material produzido acerca
do assunto, iremos circunscrever nossa atenção neste artigo (subordinados as dimensões
impostas pela publicação) às questões de equidade de gênero, educação e segurança alimentar.

Por que “educar uma menina é fazer uma revolução”?

“Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares”.


O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da ONU número 1

A estimativa obtida através de fontes mais confiáveis, indica que 64 milhões5 de meninas em
todo o planeta estão fora das escolas.

O gráfico abaixo6 demonstra a diferença quanto ao nível de escolarização em relação ao gênero.


Verificamos um alentador incremento, todavia ainda longe do ideal, no acesso das meninas à
educação:

5
http://uis.unesco.org/en/news/new-education-data-sdg-4-and-more
6
idem

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Priorizar a educação do gênero feminino é apostar no desenvolvimento da sociedade, na


sustentabilidade ambiental, no incremento da economia, na redução do déficit público, e sem
risco de exageros, no caminhar da população em direção ao resgate ou construção de novos
valores humanos, essenciais ao avanço do processo civilizatório global.

No Brasil, quem nos oferece um retrato instantâneo da situação é o IBGE - Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística.
Mais da metade dos filhos (51,4%) tiveram ascensão sócio ocupacional
em relação à mãe (mobilidade intergeracional), enquanto 47,4%
ascenderam em relação ao pai. A presença da mãe no domicílio
contribuiu para um nível mais elevado de escolarização dos filhos, o
que pôde ser confirmado comparando-se os percentuais de pessoas
sem instrução que moravam apenas com a mãe (10,3%) ou com pai e
mãe (10,8%), com os de filhos que moravam apenas com o pai (16,2%).
Do mesmo modo, para filhos que completaram o ensino superior,
obtiveram-se taxas de 14,4% quando moravam com pai e mãe, 11,9%
se moravam somente com a mãe e 9,6% quando moravam somente
com o pai. IBGE - PNAD7

Não faz sentido, continuando o raciocínio, deixarmos de presumir as evidentes relações entre a
escolarização da mulher e a quantidade de filhos8, assim como na melhoria de indicadores

7
Estatísticas Sociais, Estatísticas Econômicas. Atualizado em 25/05/2017 12h48
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-
noticias/releases/9472-pnad-2014-nivel-de-escolarizacao-dos-pais-influencia-rendimento-dos-filhos
8
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/02/17/politica/1424196059_041074.html

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capazes de aferir hábitos de saúde e alimentares, criminalidade, incremento do exercício crítico


da cidadania, valorização da solidariedade, retração de preconceitos.

Impossível negar que, invariavelmente em nações ricas e pobres, o gênero feminino ao exercer
franca primazia na formação dos infantes, as ações de voltadas à autonomia das mulheres, pela
via da educação formal, trará por via de consequência, largo impacto ao longo da juventude e
no decorrer da vida adulta de seus filhos, sejam biológicos ou não.
A família ocupa grande parte das preocupações do universo das
mulheres, em especial, no que se refere à qualidade de vida que elas
esperam proporcionar aos filhos. No intuito de satisfazer tais
aspirações e alcançar esses objetivos, as mulheres são levadas a
adotarem ritmo demasiado estressante em suas vidas, o que interfere
profundamente em sua qualidade de vida. (COELHO, 2002, apud
Fabiana Alves da Costa - Pretextos - Revista da Graduação em Psicologia da
PUC Minasv. 3, n. 6, jul./dez. 2018).9

Melhor dizendo: a taxa de escolarização das mulheres se traduz em forte tendência numa maior
escolarização dos filhos, o que se traduz no enfrentamento crítico das estruturas dogmáticas,
ideologias e instituições opressivas do gênero, organizadas para o domínio e controle biopolítico
do feminino. O argumento vai ao encontro do impacto na economia pela sua maior inserção no
mercado de trabalho, como afeta o patamar qualitativo da atividade econômica exercida.
A organização da sociedade civil Girl Rising atua globalmente pela maior escolarização das
meninas e destaca:
“We know that educating girls is the smartest investment of our time.
When girls are educated, communities thrive and economies grow.”10

9
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:8b_WlLGHGoIJ:periodicos.pucminas.br/inde
x.php/pretextos/article/view/15986/13632+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br
10
http://girlrising.in/act/

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E da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a assertiva que tange à necessária priorização


de gênero e raça nas políticas públicas voltadas à erradicação da pobreza. A relação entre
emprego, salário e escolarização, ainda que não sejam absolutas em causalidade proporcional,
se mostram com alto fator de nexo relacional.
Gênero e raça/cor são fatores muito importantes para determinar as
diferentes possibilidades dos indivíduos de terem acesso a um
emprego e nas suas condições de trabalho: remunerações, benefícios
e possibilidades de proteção social. Desse modo, gênero e raça
condicionam a forma através da qual os indivíduos e as famílias
vivenciam a situação de pobreza e conseguem ou não superá-la.

A erradicação da pobreza vem sendo considerada uma das maiores


prioridades para a construção de sociedades mais justas, assim como
vem aumentando o reconhecimento de que as causas e condições de
pobreza são diferentes para homens e mulheres, negros e brancos. Por
isso, estão sendo realizados esforços para que as necessidades das
mulheres e negros sejam consideradas de forma explícita e efetiva nas
estratégias de redução da pobreza e nas políticas de geração de
emprego e renda. 11

Ocorre que no Brasil, diferente do que verificamos em nações onde vigoram crenças culturais
de que a mulher não deve ter acesso à educação, a taxa de escolarização é alta (superior a 90%,
se repetindo desde o final da década de 90) e indiscriminada, notadamente nos anos que
integram o Ensino Fundamental. E, particularmente nos anos iniciais.
Os problemas que atingem o país neste setor, pelo exposto, superam os de acesso ao sistema
educacional, mas afetam gravemente os de permanência dos estudantes, bem como as taxas de
graduação e desempenho. Decorre, como bem sabido, de situações eminentemente estruturais.
Concernem à remuneração e formação do magistério, gestão das redes de ensino, gasto público
eficiente, nível de expectativas e de cobrança da sociedade em relação ao desempenho das
escolas, dentre outros.
E, indo além, questionarmos, se de fato, este modelo educacional criado no final do século XIX,
ainda faz sentido em plena sociedade do conhecimento do século XXI.
No que se refere ao gênero feminino em nosso país, um dos entraves de maior relevo é a
gravidez precoce. E este fato se concatena, não raro, com a necessidade de afirmação. Inúmeros
são os relatos onde se detecta que a jovem contraiu a maternidade como forma de
“emancipação libertária” do jugo dos responsáveis. Há, também, significativa ocorrência de
trabalho infantil doméstico; como de violência e a exploração sexual.
O gráfico seguinte revela cerca de 800 mil abandonos escolares por ano, que significam evasão,
reprovação antecipada ,ou ambos.

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https://www.ilo.org/brasilia/temas/g%C3%AAnero-e-ra%C3%A7a/lang--pt/index.htm

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.

Tanto a família, como a escola, parecem estar cada vez mais impotentes diante da missão de
educar para o convívio humano, a solução não violenta de conflitos a formação de uma Cultura
de Paz13, estabelecer níveis desejáveis de valorização do conhecimento, ou mesmo dar algum
sentido a aprendizagem que oferecem. Seguimos, de maneira geral, um modelo
procedimentalista, repetitivo, alicerçado em memorização, incapaz de criar hábitos de leitura,
promover a iniciação científica, a criatividade e o pensamento crítico. Majoritariamente, a
instituição despreza a cultura dos jovens, junto às expectativas e a própria subjetividade do
aluno.
E a responsabilidade por tudo isto, é ampla, geral e irrestrita. somos todos culpados, por ação
ou omissão quanto a esta tragédia que captura a infância e a juventude brasileira, ceifando
vocações e cerceando potencialidades, desde o nascedouro.

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https://www.qedu.org.br/brasil/taxas-rendimento
13
UNESCO 2000

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As meninas brasileiras representam franca minoria nas carreiras relacionadas às ciências


(STEMs14 - Science Technology Engineering and Mathematics) e o esforço governamental neste
sentido é nulo ou pífio. Pouquíssimas escolas possuem laboratórios de ciências (11% das
públicas e privadas15), e quando os possuem são subutilizados ou permanecem fechados. Os
programas de iniciação científica se constituem numa raridade tanto nas redes públicas como
nas escolas particulares. Quando muito, há a oferta de clubes de robótica, por exemplo, todavia
sem o necessário estímulo direcionado à participação das alunas. O resultado deste desdém
nacional para com a produção científica é demonstrado pelos indicadores das matrículas nos
cursos superiores:
Mas no Brasil hoje, apenas 15% das matrículas nos cursos de
tecnologia são feitas por mulheres. E no primeiro ano de faculdade, 8
de cada 10 mulheres desistem de cursar faculdades de tecnologia,
segundo números da Pnad.

Outro desafio: 41% das mulheres que atuam na área de tecnologia


desistem de suas carreiras, contra apenas 17% dos homens, segundo
uma pesquisa da Harvard Business Review. 16

17

14
Leia sobre isto http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-
15742019000100130&lng=es&nrm=iso&tlng=pt#fn01
15
https://www.qedu.org.br/brasil/censo-
escolar?year=2018&dependence=0&localization=0&education_stage=0&item=
16
https://epocanegocios.globo.com/Economia/noticia/2018/02/apenas-17-dos-programadores-
brasileiros-sao-mulheres.html
17
https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000264535

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As políticas públicas em educação desenvolvidas no Brasil sofrem constante descontinuidade


em razão das mudanças de governos e de gestores. O setor, por abranger um número expressivo
de pessoas (eleitores) que constituem a comunidade escolar, somado à legislação que assegura
¼ do orçamento público para o ensino, dificilmente escapa da politização predatória: aquela
determinada a fazer das unidades escolares instrumentos de projetos de poder de políticos
locais.

Piorando o estado de coisas, a sociedade acaba por desprezar a escola também em sua
possibilidade de promover a consciência cidadã, a introjeção de valores humanos, estes sim
capazes de promover a equidade nas relações interpessoais e a enfatizar, acolher e celebrar a
diferença, como condição fundamental para o desenvolvimento da paz e harmonia entre as
gentes.

A governança das terras, a agricultura familiar, as mulheres e os homens responsáveis pela


segurança alimentar e o desenvolvimento econômico do Brasil.

18

A FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations) defende, exaustivamente19, a
equidade de gênero como objetivo fundamental na governança das terras voltadas à agricultura.
No Brasil a questão ganha dimensões preocupantes, uma vez que as instituições voltadas à
regularização fundiária, como para a assistência técnica e ainda ao crédito agrícola, tripé
essencial para o desenvolvimento do setor, sequer tratam da equidade de gênero ou quando
muito em iniciativas desarticuladas. O Pronaf Mulher20 - Programa Nacional de Fortalecimento
da Agricultura Familiar do Banco do Brasil, com apoio do BNDES é um exemplo promissor, ainda
que imerso em isolamento interinstitucional.

18
Documentário Mulheres Rurais, Sororidade.Doc. filmado no estado do Pará em 2017.
19
http://www.fao.org/3/a-i3114e.pdf
20
https://www.bb.com.br/pbb/pagina-inicial/agronegocios/agronegocio---produtos-e-
servicos/produtor-familiar/investir-em-sua-atividade/pronaf-mulher#/

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O próprio Ministério da Agricultura denuncia, em documento publicado no corrente ano, a


situação de plena desigualdade contra as mulheres rurais:
Apesar de todo o esforço feminino em prol da alimentação, estudos da
FAO apontam que muitas dessas mulheres vivem em situação de
desigualdade social, política e econômica, além de contarem com a
titularidade de apenas 30% das terras, 10% dos créditos e 5% da
assistência técnica.21

Se as mulheres são francamente majoritárias “tocando o roçado” na agricultura familiar, ao


revés, é frequente a emissão de títulos agrários exclusivamente no nome do homem, que
simplesmente não declara a existência da parceira. Não bastasse isto, são muitos os casos de
acesso ao crédito agrícola, onde mesmo constando o nome do casal no título, não existe a
obrigatoriedade de conta conjunta. São corriqueiros os relatos de mulheres abandonadas ao
lado de seus os filhos, e ainda tendo de responder por dívidas, contraídas em “expediente
astucioso” de seus companheiros desaparecidos.
Dificilmente são ouvidas pelas autoridades que não vão até elas, eis que governam de seus
gabinetes. Quando participam das reuniões se quedam caladas, e a sociedade se conforma com
essa invisibilidade opressora e replicadora de uma realidade histórica, legitimadora de uma
relação de poder patriarcal, cuja genealogia parece ter sido confortavelmente olvidada e sua
perpetuação, um trilhar inexorável. Chegam ao cinismo de afirmar ser “fato cultural”.
Poucas são as lideranças femininas no setor, menor ainda são os representantes do povo que se
dignam a lutar pela dignidade das mulheres do campo, e a promover o associativismo que
amplifica a renda e a consciência.
Os governos se sucedem em “campanhas” efêmeras e insustentáveis, atividade que já
demonstrou à exaustão, sua ineficácia e desperdício de dinheiro público. Só quem se beneficia
são as agências de publicidade e os veículos de comunicação. As relações na terra da agricultura
não sofrem qualquer mudança. A equidade de gênero no campo não carece de cartazes e
anúncios promocionais, mas de políticas de governo, ações sustentáveis e capazes de
produzirem a desconstrução do modelo que legitima a desigualdade, dá substrato à soberania
do mando do homem sobre a terra, incluindo quem nela vive: a mulher e os filhos.

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http://www.agricultura.gov.br/noticias/artigo-2013-o-papel-da-mulher-na-seguranca-alimentar

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A matrícula nas escolas rurais é flagrantemente inferior à rede citadina. A exclusão atinge
proporções extremas, como podemos verificar no gráfico a seguir:

22

E a ignorância é a raiz de todos os males de uma sociedade moribunda.


A exploração sexual ao longo das rodovias é fato impactante, asqueroso, degradante e que
todos sabem, mas fingem desconhecer. Mudam os titulares dos cargos de mando na estrutura
de governo, entretanto, segue a continuidade ao cometimento deste verdadeiro crime estatal
hediondo, comissivo por omissão. São pessoas eleitas pelo próprio povo que dão as costas para
centenas, milhares de meninas se prostituindo nas balsas e nos postos de gasolina, nos
caminhões e nos bordéis infantis.
Violentadas diariamente, servindo de pasto dos instintos sexuais de homens monstruosos, ao
troco de parcas migalhas.
Crianças, cujos corpos se transformaram em mercadoria a serem vendidas por adultos num
comércio macabro, uma usina de gentes, uma fornalha de infâncias pavorosamente perdidas.
Um horror sufocado amaldiçoando os dias de todos os dias, e que nos torna a todos, sem
exceção, indignos de nossa própria humanidade.

22

http://portal.inep.gov.br/documents/186968/484184/A+educa%C3%A7%C3%A3o+no+Brasil+rural/6f20
b4f1-a40e-4d78-baea-a1f63f191041?version=1.3

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À guisa de conclusão

A equidade das relações de gênero parece ser tema inescapável na formulação das ações de
governo voltadas á erradicação da miséria. Se a miséria define a hipossuficiência como cenário,
são as mulheres e crianças, em vasta maioria, os protagonistas de uma narrativa que parece
estar longe de um basta.

O gênero feminino e em escala crescente, pelo fato de que a mulher se recusa a desistir dos
filhos a abandonar seus dependentes, perece com eles, caminha até o final desta história de
vidas injustiçadas sob o manto de um anátema: o de nascerem sem a oportunidade de um
começo e a terminarem abraçadas a um destino, que lhes foi inscrito ainda durante a gestação.

O voto lhes é aprisionado, o acesso ao conhecimento lhes é subtraído.

Seres humanos que passam de dono em dono, e depois são descartados, quem sabe, para
morrerem indigentes, depois de amontoados em marquises da cidade e finalmente enterrados
em covas sem lápide.

Não faz sentido, a nosso ver, enfrentar tanto a questão do desequilíbrio nas relações de poder
entre gêneros, assim como a erradicação da pobreza, sem a coexistência de políticas públicas
que atendam tanto as populações em situação de risco; como indo até a raiz do problema, ao
oferecer de forma universal o que Darcy Ribeiro denominou de “escola honesta”, aqui fazendo
referência a Anísio Teixeira:
“O povo brasileiro não sabe pedir uma escola honesta - uma escola
como a do Japão, como a do Uruguai, uma escola de dia completo -
porque nunca viu, nem sabe o que é isso. É um povo que é ignorante,
que vem de uma sociedade que tinha uma cultura própria, mas que
era transmitida oralmente. Quando ele vem para cidade, onde a
cultura se transmite pela escola, ela fecha a porta para ele, fechando,
portanto, o acesso à própria civilização. Então o Anísio nunca teve
dúvidas, e nem disse que a educação era barata. A educação é cara,
mas é aquele investimento essencial que tem de ser feito.” 23

Sem a valorização da educação com aprendizagem, e incremento do acesso da população aos


bens culturais, se torna impossível o desenvolvimento econômico que ultrapasse a
comercialização de comodities, tal como o Brasil o faz hoje em dia.

Torna-se utopia, passarmos a ser um país que produza a inovação, a tecnologia, as marcas e
patentes, que se constituem na riqueza das nações da atual sociedade do conhecimento.

23
http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/livro6/depoimento_dr.html

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Como também, alcançar a igualdade de gênero, pedra fundamental de todos os objetivos e


metas do desenvolvimento global sustentável, como assevera a UNESCO, Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura:
“Alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e
meninas representará uma contribuição essencial para o progresso em
todos os objetivos e metas. Aproveitar o potencial humano pleno e
alcançar o desenvolvimento sustentável não é possível se à metade da
humanidade continuam a ser negados seus plenos direitos humanos e
as oportunidades. Mulheres e meninas devem gozar de igualdade de
acesso à educação de qualidade, aos recursos econômicos e à
participação política, bem como de igualdade de oportunidades com
os homens e meninos em termos de emprego, liderança e tomada de
decisões em todos os níveis. Trabalharemos para um aumento
significativo dos investimentos para superar o hiato de gênero e
fortalecer o apoio a instituições em relação à igualdade de gênero e o
empoderamento das mulheres nos âmbitos global, regional e
nacional. Todas as formas de discriminação e violência contra as
mulheres e meninas serão eliminadas, inclusive por meio do
engajamento de homens e meninos. A integração sistemática da
perspectiva de gênero na implementação da Agenda é crucial”.
Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”.24

Cada ano de escolaridade alcançado por uma menina, significará o aumento da escolarização da
futura família, e por via de consequência a formação de uma sociedade mais prospera e
fundamentalmente menos injusta.
A paz nas cidades e no campo dependem de mudanças atitudinais coletivas.
A população carcerária só faz aumentar e a seletividade étnica e econômica dos presidiários
continua estável.

24
https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000264535

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A interiorização social dos valores preconizados pela Carta das Nações Unidas de 1948 e pela
Constituição da República Federativa do Brasil, trazem muito maior resultado, como podemos
observar nos países com melhores indicadores educacionais.
Somente por esta via, formaremos cidadãos conscientes, responsáveis, solidários e produtivos,
com novas atitudes porque desejam e acreditam numa sociedade melhor.
O maior patrimônio de um povo é a sua esperança em relação ao seu futuro coletivo.
E o Brasil parece que perdeu esta capacidade e vive imerso em ódios, preconceitos e
individualismos.
O país precisa desesperadamente de uma geração plenamente escolarizada, capaz de escrever
seu trilhar ao longo da vida, com determinação e autonomia.
Enfrentando os obstáculos com as potentes e infinitas ferramentas que só o conhecimento é
capaz de dotar.

Como assinala o poeta:

Meu caminho pelo mundo


Eu mesmo traço
Que a Bahia já me deu
Régua e compasso
Quem sabe de mim sou eu
Aquele abraço!25

25
Gilberto Gil – trecho da música: Aquele Abraço, 1969. Álbum Cérebro Eletrônico. Também gravada
por Tim Maia em 1983.

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