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INSTITUTO DE ARTES
MANUAL DO VERMELHO:
UM RESGATE ANALÍTICO-EXPERIMENTAL
DO PIGMENTO VERMILION E DOS PIGMENTOS
VERMELHOS MEDIEVAIS ATRAVÉS DA
ANTIGA ALQUIMIA DA PINTURA A ÓLEO
CAMPINAS
2016
MARCIO ALEXANDRE PULGA
MANUAL DO VERMELHO:
UM RESGATE ANALÍTICO-EXPERIMENTAL
DO PIGMENTO VERMILION E DOS PIGMENTOS
VERMELHOS MEDIEVAIS ATRAVÉS DA
ANTIGA ALQUIMIA DA PINTURA A ÓLEO
CAMPINAS
2016
Aos grandes alquimistas Theophilus, Plínio,
Cennini, Thompson, De Mayerne, Winsor
(William), Merrifield, Eastlake, Doerner,
Laurie, Toch, Stout, Gettens, Maroger,
Reynolds, Church, Mayer, Kirby, Gottsegen,
Fels, Groen, de Boer, Carlyle, Bucklow,
Boon, Spurgeon, Clarke, Elkins, O´Hanlon e
Ferrari.
As above, so below.
AGRADECIMENTOS
Walt Whitman
RESUMO
A análise panorâmica dos pigmentos vermelhos usados entre os períodos da antiguidade
e do renascimento servem como pano de fundo para uma investigação mais detalhada do
pigmento vermilion, compreendendo sua etimologia, história e suas características físicas e
simbólicas. Objetivou-se compreender seu contexto para posteriormente reproduzir seu método
de fatura através de experimentos práticos. A história do pigmento mostrou-se intimamente
ligada à de outros pigmentos vermelhos, tornando praticamente impossível uma definição
precisa de sua etimologia. Receitas de seus métodos de fatura extraídas de manuais e tratados
de pintura da antiguidade, assim como estudos recentes, foram organizadas e usadas como guia.
Foi possível identificar simbolismos ligados aos conceitos de transformação e transcendência
do hilemorfismo medieval, denotando ao vermilion o status de símbolo do processo criativo.
Esse contexto apresentou fértil terreno de matéria prima simbólica durante a idade média e
certamente pode continuar a ser usado como matéria conceitual em processos pictóricos
contemporâneos. Testes práticos do processo de fatura do pigmento foram realizados,
concluindo que as diretrizes contidas em receitas históricas não são tão precisas quanto as mais
recentes, apresentando parâmetros insuficientes ou vagos demais, resultando em matéria com
apenas transformação parcial em vermilion. A consulta de estudos mais recentes mostrou-se
fundamental para obter resultados de matéria transformada em vermilion com diversas
tonalidades, compreendendo desde vermelhos escuros violetados até vermelhos claros
alaranjados. O processo mostrou-se de difícil controle, apresentando certa imprevisibilidade de
resultados. A notação Munsell do vermelho mais intenso resultante dos experimentos práticos
é 10.0R 5/14, o código Pantone é 2349U relativamente similar a algumas tintas industriais
modernas que fazem uso de sulfeto de mercúrio (vermilion) em sua composição. A degradação
do pigmento é resultado da contaminação de substâncias halógenas, tornando o pigmento foto
sensível, portanto, uma problemática isolada. A possibilidade de evitar a lavagem do pigmento
durante seu processo de fatura pode contornar essa problemática. A experiência de produção
desse material histórico revelou potencial para propulsionar produções no âmbito das artes
visuais.
On this study, a broad analysis of the red pigments used through antiquity and the
renaissance was the background to a deeper investigation on the pigment vermilion, including
ethimology, history and symbolic and physical characteristics. First, a broad comprehension of
the historical context of the pigment and later, the method of production. The history of the
pigment is deeply connected to the history of other pigments, showing almost impossible to
precisely define his ethimology. Recipes of the production method from treatises and painting
manuals from antiquity, and recent studies as well, were organized and used as a guide. It was
possible to identify symbolisms of transformation and transcendence from medieval
hilemorphism, giving vermillion´s status of symbol of the creative process. This context
presented a fertile ground for symbolic matter during the middle age and certainly can be used
as conceptual matter on contemporary painting process. Practical experiences on the production
method of the pigment were conducted, concluding that the directions on historical recipes are
not as clear as the recent ones, with insufficient or too vague parameters, obtaining matter only
partially transformed into vermilion. Consulting the most recent studies was fundamental to
obtain a larger amount of matter transformed into vermilion with diferent colors, from dark
violet reds to bright orange red. The process showed difficult to control, presenting certain
imprevisibility on the results. The Munsell notation for the brightest red obtained is 10.0R 5/14,
Pantone code is 2349U, relatively similar to some industrial colors made today with mercury
sulphide. The lightfastness of the pigment is the result of contamination by halogens substances,
making the pigment photo-sensible. The possibility of avoiding washing the pigment during the
production process could be the answer to this problem. The experience of producing a
historical material revealed potential to influence productions inside the visual arts sphere.
ÍNDICE
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................................ 12
2. ALQUIMIA ................................................................................................................................................................. 27
5.1.1. Compositiones Variae (Codex Lucensis 490 ou Lucca MS) ........................................................................ 111
5.1.2. Mappae Clavicula.................................................................................................................................... 112
5.1.3. De Diversis Artibus (Schedula Diversarium Artium – Teófilo) .................................................................... 113
5.1.4. Libro de Como si Facem as Côres (Hayvin MS ou MS de Parma 1959) ...................................................... 114
5.1.5. Liber Diversarum Arcium (Montpellier MS) ............................................................................................. 115
5.1.6. De Coloribus Faciendis (Saint Audemar MS) ............................................................................................ 116
5.1.7. Segreti per Colori (Bolognese MS - 165) ................................................................................................... 117
5.1.8. Il Riposo .................................................................................................................................................. 119
5.1.9. Manuscrito de Bruxelas (Brussels MS) ..................................................................................................... 119
5.2. PROCEDIMENTOS DE FATURA MODERNOS ................................................................................................................. 120
5.3. REPRODUÇÃO...................................................................................................................................................... 122
5.3.1. Carvão Sem Controle de Aquecimento..................................................................................................... 123
5.3.2. Carvão e Termômetro de Mercúrio.......................................................................................................... 126
5.3.3. Carvão e Termômetro Digital .................................................................................................................. 129
5.3.4. Chapa Aquecedora, Termômetro Laser e Olhas ....................................................................................... 132
5.3.5. Chapa Aquecedora, Termômetro Laser e Frascos de Vidro ...................................................................... 135
5.3.6. Chapa Aquecedora, Termômetro Laser e Olhas (Review) ......................................................................... 138
1. INTRODUÇÃO
1
Pastosidade, alastramento, cobertura, opacidade, transparência, e outras propriedades reológicas.
2
Ver Tabela 15, contendo o resultado de pesquisa sobre as tintas industriais que usam o pigmento vermilion
autêntico, e não um substituto moderno, em suas formulações.
3
Embora os substitutos mais recentes do vermilion sejam atóxicos, como os orgânicos sintéticos, o vermilion foi
anteriormente substituído pelos cádmios, pigmentos considerados como de menor toxidade.
13
É claro que a substituição de materiais de pintura tóxicos por materiais menos perigosos, ou até
atóxicos, é uma prática desejável, assim como a substituição de cores com permanência duvidosa
por outras duradouras. Mas é inegável que o obsoletismo industrial acaba, por outro lado, prestando
um serviço as avessas para a salvaguarda da história dos materiais e dos processos pictóricos, pois
dificulta a formação de memória do material. A discussão sobre toxidade não é o foco desse estudo.
Mas, é válido lembrar que materiais tóxicos oferecem riscos praticamente nulos quando
manipulados de maneira adequada.
A questão da permanência, no entanto, é de especial interesse nesse caso, sendo que, ao que
tudo indica, é justamente essa característica que tornou o vermilion obsoleto. No entanto, os
pigmentos impermanentes eram amplamente usados no passado, devido o desconhecimento de
substitutos mais permanentes. Os defeitos eram conhecidos, mas abraçados. Em alguns casos,
contornados de alguma maneira. Em muitos casos, os substitutos mais duráveis, ou menos tóxicos,
são substâncias que apesar de similares em alguma característica, como por exemplo, a cor, podem
mostrar grandes diferenças em outra propriedade, como por exemplo, transparência, sub-tom,
temperatura, secagem, entre outros. Portanto, ganha-se por um lado, mas perde-se em outro. Dessa
forma, alguns materiais com propriedades muito particulares podem acabar sendo substituídos por
substâncias não tão interessantes da perspectiva formal ou processual para o artista. Além disso,
muitos desses materiais passaram por centenas de anos em uso, construindo uma memória que é
parte intrínseca do grande panteão simbólico e histórico da pintura. Quando a indústria substitui um
material tradicional por um novo, sua história é lentamente esquecida, assim como o conhecimento
empírico de seu uso.
A grande maioria dos artistas naturalmente aceitam as inovações da indústria, que por sua vez
possui algum interesse comercial na inserção desse novo produto. A substituição de um material
sempre oferece algum ângulo conveniente ao fabricante, quase nunca ao artista. O material que é
substituído por alguma novidade entra na lista de obsoleto, primeiramente desaparecendo das
prateleiras e lentamente caindo em desuso, juntamente com sua história e simbologias adquiridas
através do tempo, história que muitas vezes atravessou oceanos, construída em diferentes períodos e
por diferentes culturas, passada de geração em geração, formando a aura de determinado pigmento.
Os novos materiais, por demais jovens, possuem significantes que se limitam a indicar uma simples
novidade, um fruto de nosso tempo e de uma tecnologia recente, que ainda há de adquirir alguma
significação. Em suma, tornou-se comum, por conta de uma perspectiva comercial, o abandono de
materiais repletos de história. Os artistas geralmente investem nesses substitutos muitas vezes por
ignorarem a história e o uso dos materiais tradicionais, esses, conhecidos hoje apenas por
historiadores e conservadores dedicados. Todos os pigmentos vermelhos analisados nesse estudo
são materiais que ajudaram a formar a história da pintura clássica, com uma longa e pesada carga
14
história. Cada uma dessas cores possui sua importância na narrativa que ilustra a história do
vermilion.
A cor denominada vermilion remonta a antiguidade clássica, um pigmento com uma história de
pelo menos 2600 anos, possivelmente mais antiga. É importante que o artista saiba que
absolutamente qualquer material pictórico tradicional, principalmente os pigmentos, compreendem
muito mais do que uma mera informação visual ou tátil a ser usada num suporte adicionando
informação matérica, como sua cor ou textura. Cada material também oferece um repertório
simbólico e de indícios históricos.
Por trás da história dos materiais residem inúmeras narrativas que conservam o contexto
ontológico de determinados períodos e culturas. Tanto as origens do material como o modo ou o
período no qual foi usado foram responsáveis por definir associações que brotam na mente do
artista e do observador que conhecem parte de sua história. É por esse motivo que dissecar cada
pormenor da história de um pigmento, resina ou óleo vegetal se faz importante: é um resgate de
dados ontológicos que permitem estabelecer novas relações com obras pictóricas, e por que não,
novos rumos criativos. Esse resgate, sendo de especial interesse aos pintores que desejam
desenvolver um diálogo com a arte do passado e a herança alquímica da pintura, enaltece em sua
poética um discurso autorreferente (a pintura que trata sobre pintura), assim salvaguardando as
tradições pictóricas arcaicas e a história da tecnologia dos materiais. O uso de um material histórico
implica na conservação de nossa história, é uma oportunidade para redescobrir caminhos que são
geralmente deixados de lado, principalmente quando um material secular é rotulado como obsoleto
pelo interesse das grandes indústrias.
Os manuais e publicações sobre materiais artísticos comumente suprimem ou ignoram as
informações aprofundadas sobre a autossuficiência e a artesania dos artistas e ateliês do passado,
como por exemplo, sobre a fatura manual de tintas e pigmentos. Nos melhores casos, esses dados
são vistos de forma superficial. Grande parte disso é em função de nossos hábitos imediatistas e do
consumismo contemporâneo, um ciclo vicioso: as lojas oferecem produtos “melhores”,
convenientemente prontos para o uso, e o artista, geralmente “sem tempo”, abraça essa
conveniência, confiando cegamente nos fabricantes. É possível que os artistas tenham perdido os
parâmetros necessários para se julgar o que significa qualidade. O abandono das práticas de
construção de materiais artesanais, isto é, aqueles feitos pelas próprias mãos do artista, prática que
formava e desenvolvia um conhecimento muito específico, representa a transferência do
conhecimento de fatura do artista para a indústria. Note que, os industriais, raramente são artistas
embrenhados em processos pictóricos, especialistas em poéticas e práticas artísticas ou nas
propriedades formais que interessam aos pintores.
15
O desinteresse do artista sobre esse conhecimento é um dos motivos pelos quais os manuais e
livros de pintura praticamente evitam falar sobre os métodos de produção artesanal. Os autores
certamente estão cientes de que seus leitores ignoram ter capacidade de faturar seus materiais ou
sequer cogitam essa possibilidade pois não lhe é conveniente, o padrão é o consumo de um produto
pronto, industrializado. Em verdade, o grande público sequer sabe da disponibilidade da venda de
pigmentos em lojas de materiais artísticos, pois sequer conhece os ingredientes mais básicos para se
faturar uma tinta: veículo e pigmento.
Parte do resgate pretendido por essa pesquisa é fruto do que poderia ser chamado de uma
arqueologia pictórica acerca dos materiais, um termo cunhado por nós ao longo do percurso
acadêmico, refere-se ao ato de recuperar e organizar os detalhes históricos de um material obsoleto
ou em vias de se tornar obsoleto. Esse resgate, vem principalmente da necessidade de se conhecer
intimamente todos os processos na tentativa de dominar o antigo conhecimento artesanal. Além de
uma ferramenta para salvaguardar a história da tecnologia pictórica, o conhecimento ganho dessa
pesquisa possibilita uma certa independência dos materiais industriais, mesmo que isso signifique
abrir mão da “conveniência” dos materiais prontos, um preço baixo a se pagar quando se tem em
retorno um conhecimento outrora esquecido.
Outra faceta interessante dessa arqueologia está na possibilidade de que essa investigação
propulsione novos caminhos práticos e conceituais dentro das artes visuais, estabelecendo diálogos
diretos com a produção, pois baseiam-se num fértil terreno de símbolos e significantes contido na
história desses materiais. Essas simbologias, implícitas na superfície do pigmento, agregam ao
discurso poético enriquecendo o processo criativo, a obra e sua fruição. Quando o artista em
processo pesquisa e entende o contexto de um material, cria-se um arquivo imagético e de
significantes passíveis de influência no modo como o material é usado. Quando se tem consciência
do contexto histórico do azul ultramar produzido com lápis lazuli4, a postura e intenção do artista
no modo como pretende usar esse material certamente é diferente de quando faz uso do azul
ultramar feito com um pigmento sintético comum, começando pelas óbvias diferenças, como por
exemplo, sua exorbitante diferença de disponibilidade no mercado e custo5. O mesmo pode ser dito
de uma outra infinidade de materiais históricos, como é o caso do vermilion. A pesquisa do fazer
pictórico, que inclui a história dos materiais, pode fazer muito mais do que agregar: pode ser um
ponto de partida, ou a linha principal, que guia toda uma produção.
4
Pedra semi-preciosa azulada usada amplamente no oriente para criação de obras de arte.
5
O Azul Ultramar sintético (PB29) é usado amplamente na indústria de tintas, enquanto o azul ultramar legítimo só
pode ser adquirido sob encomenda em cinco lojas no mundo todo (Zecchi, Robert Doak, Michael Harding, Natural
Pigments ou Kremer). Também pode ser feito no ateliê com pedras de lápis lázuli importadas do Afeganistão, caso o
artista tenha conhecimento do complexo e demorado processo de fatura.
16
1.3. Objetivos
1.3.1. Objetivos Gerais
Uma análise panorâmica da história, origens, etimologia, simbologias e características
físicas dos pigmentos vermelhos usados nos períodos da antiguidade tardia (VII) até
aproximadamente a alta renascença (XV) assim como uma análise panorâmica do pensamento
alquímico como forma de contextualização para melhor explorar as relações entre o pigmento
vermilion e os conceitos alquímicos dos períodos em questão.
6
Tint (Sub-tom): Clarear uma cor adicionando uma cor mais clara; adição de branco a uma cor; cor original misturada
a uma tinta branca. O procedimento possibilita o entendimento cromático de como a cor original se comporta
misturada a tintas mais claras, mostrando suas tendências cromáticas secundárias ou sub-tom. Como exemplo: alguns
17
1.4. Hipóteses
As hipóteses estão divididas entre conceituais e operacionais. Elas são explicadas em
detalhes nos itens 1.4.1, 1.4.2 e 1.4.3., e de forma pontual e objetiva, abaixo:
vermelhos, direto do tubo, parecem iguais, mas a medida que mistura-se ambos com branco, vemos que um tende
mais para o laranja e o outro para o rosa.
18
7
Dentre elas, as Cartas de Atenas (1931-33), Carta de Veneza (1964) e a Carta do Restauro (1972). Todas disponíveis
em http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/226.
8
Françoise Choay (França, 1925): Historiadora do urbanismo e arquitetura. Professora de urbanismo, arte e
arquitetura da Université de Paris.
9
Autenticidade no âmbito da conservação e restauro, quanto a questão de métodos de conservação invasivos que
alteram e maculam a autenticidade dos monumentos, estruturas, esculturas, pinturas, etc.
10
Relativo a durabilidade de suas características físicas, resiliência ao tempo e as intempéries.
19
imprimação11, a escolha de quais marcas de tintas serão empregadas, as cores disponíveis na paleta,
a temática a ser pintada e finalmente chegando ao processo de execução, que após longo período,
voltará a exigir novas escolhas do artista: necessidade de proteção, tipo de verniz a ser aplicado, etc.
Há uma infinidade de decisões e escolhas que edificam a obra. Se quaisquer uma dessas escolhas
fosse diferente, teríamos certamente uma obra diferente. Essas escolhas começam muito antes do
artista ter alguma ideia do que irá pintar e posteriormente, já munido com sua paleta, uma nova
enxurrada de decisões: a escolha de uma cor a ser colhida pelo pincel, ou com qual pressão essa cor
será arrastada na tela, entre muitas outras. Algumas dessas decisões podem parecer demasiadamente
simples, tomadas em uma fração de segundos, para aqueles alheios ao processo, mas cada passo
define-se como uma escolha, que somadas, resultariam num banco de dados interminável, caso
registrássemos cada uma dessas decisões. Por trás desses milhares de escolhas que regem a fatura
de uma obra, há um conhecimento técnico12.
Os alquimistas referiam-se a alquimia como a “a grande arte”, arte não no sentido como
conhecemos hoje, pois esse conceito ainda não existia, mas no sentido de “a grande artesania” ou
“a grande técnica”. Note que, a expressão está diretamente relacionada com a manipulação e o
conhecimento pragmático dos materiais. O conhecimento ou o saber artístico, isto é, a artesania ou
tékhne13 é o que dá forma a esses objetos. O pintor articula esse conhecimento perambulando no
âmbito da fisicalidade das substâncias e muitas vezes no âmbito contextual e histórico14 desses
materiais, determinando essas escolhas. Nas significativas palavras de James Elkins15:
11
Prática de cobrir o suporte com uma “base” feita a partir de alguma mistura que dê cobertura para o suporte. Na
antiguidade, geralmente uma mistura de cola animal com gesso crê. Hoje, geralmente usa-se uma aplicação de gesso
acrílico. No brasil, a grande maioria dos pintores usa na verdade algumas demãos de tinta acrílica de parede, um
hábito duvidoso do ponto de vista da conservação, sendo que o material não é desenvolvido para perdurar.
12
Mesmo que ínfimo, o conhecimento técnico é indispensável para que a obra perdure ou que a menos seja realizada
sem dificultar ou anular o processo.
13
Tékhne: do grego, conhecimento do artesão, artesania ou arte.
14
A aplicação e uso do pigmento Azul Ultramar, por exemplo, era empregado nos mantos das Maddonas, por causa
de seu simbolismo vinculado a pureza, mas também pela sua raridade ou dificuldade de obtenção, isto fazia dele um
pigmento de altíssimo custo, sendo usado também no lugar do ouro.
15
Professor de História da Arte, Teoria e Crítica do Art Institute de Chicago. http://www.jameselkins.com/
20
A descrição de Elkins ilustra de maneira precisa os tipos de “articulações mentais” usadas para
manipular os materiais de pintura. Esses pensamentos operam juntamente com o conhecimento das
propriedades desses materiais: transparência, opacidade, densidade, cobertura, alastramento,
fluidez, compatibilidade com outros pigmentos, permanência, temperatura cromática, tamanho de
partícula, elasticidade, toxidade, raridade, modo de preparo, quantidade e uma infinidade de
informações que invadem a mente do artista em processo, todas associadas a propriedades dos
materiais. Essas articulações, são a prima matéria dos processos.
Esse conhecimento técnico específico também inclui outras propriedades menos óbvias, como
os significantes dos materiais, isto é: suas origens, história, contexto e cargas simbólicas. Portanto, a
grosso modo, as escolhas dão os rumos estéticos e conceituais do processo, moldam sua estrutura
física e sua aura de obra de arte, essas qualidades comandam a postura do pintor diante do uso do
material: o material pictórico, e seus significantes, definem o processo e o que a obra é.
As recentes gerações de artistas parecem mais interessadas nos procedimentos clássicos de
pintura do que os artistas das gerações influenciadas pelo modernismo e pela arte conceitual, ou
anti-arte. Aparentemente há um novo renascimento das modalidades que contam com esse
conhecimento técnico mais específico, como a pintura figurativa naturalista, deixando de serem
vistas como territórios que chegaram a um esgotamento. A prova disso é o ressurgimento de
ateliês16 neoclássicos, que operam de modo paralelo as faculdades e universidades, oferecendo
instrução baseada nos princípios do antigo academicismo, no pragmatismo técnico que tem como
principal meio a manipulação dos materiais e a representação da natureza de forma fidedigna, um
naturalismo baseado em mimetismo. Na década de oitenta e setenta o número de escolas com esse
tipo de instrução era substancialmente menor17.
Muitos desses jovens artistas, interessados em redescobrir esse conhecimento, acabam usando
como principal fonte de informação livros que exploram uma temática comumente chamada de “os
segredos dos Velhos Mestres”. Essas publicações, com relativa abundância no mercado18,
16
Alguns exemplos são: Florence Academy of Art, Angel Academy of Art, Studio Incamminati, Charles Cecil Studios,
ARA (Academy of Realist Art), New Masters Academy, Los Angeles Academy of Art, Grand Central Atelier, Saint
Petersburg Imperial Academy of Art, entre muitos outros. O uso do termo “academia”, presente em quase todos os
nomes revela muito sobre a proposta dessas escolas.
17
Algumas instituições européias e poucas outras nos EUA, onde, ainda assim, os cursos não tinham o objetivo de
permanecer completamente enraizados nos fundamentos estritamente técnicos, para obter resultados de alto nível
naturalista, ou realista, o que é o caso desses novos ateliês, ou “academias”.
18
Um famoso exemplo disso é a publicação de Joseph Sheppard, “Como Pintar como os Velhos Mestres” (How to
Paint Like the Old Masters), Watson-Guptill, 1983. Oferece exemplos em “passo a passo” de como pintar na “maneira”
de vários mestres, e apesar das pinturas serem bem executadas, não dispõem de fundamentação que ofereça fatos
científicos para cada uma das técnicas apresentadas. Os métodos são uma idealização moderna de como chegar a um
resultado estético semelhante, mas não historicamente ou cientificamente preciso.
21
19
Frases como “alla Rembrandt” ou “alla Caravaggio” são comumente usadas para se referir a uma maneira de pintar
ou a atmosfera geral das obras com “determinados estilos”. Denominar obras como “caravaggescas” ou
“rembranescas” é um costume muito usado em inúmeras línguas.
22
os mesmos materiais usados pelo pintor estudado? Se a escola de pintura analisada, ou pintor em
particular, costumeiramente preparava seus materiais, é válido usar materiais produzidos por
máquinas industriais e simplesmente ignorar o fato de que antes, cada artista produzia seu próprio
material? O uso de um material similar, mas não exatamente igual, não representa um
distanciamento da autenticidade?
Choay (ibid, 2001) discute a problemática de autenticidade e a adequação do uso de materiais
empregados na conservação de monumentos históricos. Numa pesquisa científica de artes visuais,
onde o artista pesquisador tem a pretensão de alcançar a estética plástica dos antigos métodos,
usando os mesmos materiais de pintura, não seria pertinente comparar e analisar as diferenças,
nesse contexto, entre materiais modernos substitutos e materiais autênticos? Além disso há de se
avaliar a questão do processo em si: quais as diferenças não somente estéticas e expressivas, mas as
diferenças de pensamentos, hábitos e posturas processuais, entre os artistas que usam materiais
prontos (industriais) e aqueles que se envolvem na produção artesanal de materiais históricos?
20
Há abundante informação sobre a cor, em obras de todos os períodos, mas o maior número de receitas para a
fatura do pigmento se concentra principalmente em manuscritos da baixa e alta idade média. Já no Renascimento, o
pigmento era tão popular que Cennino Cennini, em sua obra de 1400, Il Libro dell´Arte nem se dá o trabalho de
descrever seu processo de fatura, devido a grande “disponibilidade”, tanto de receitas, quanto do próprio material, no
mercado.
21
Sir Charles Lock Eastlake (1793-1865), Plymouth, Inglaterra. Pintor, poliglota, tradutor e escritor. Eastlake foi
presidente da Royal Academy of Art e escreveu duas importantes (e extensas) obras sobre a tecnologia e as técnicas
de pintura da antiguidade. Escreveu cinco livros sobre a tecnologia dos materiais artísticos. Também é lembrado por
sua tradução da Teoria das Cores de Goethe.
22
Mary Philadelphia Merrifield (?-1889), Inglaterra. Escreveu seis livros sobre a tecnologia dos materiais artísticos,
uma dessas publicações, em dois volumes, permanece como um dos pilares fundamentais da história dos materiais
artísticos, pesquisa fomentada e bancada pela coroa britânica.
23
Daniel Varney Thompson (1902–1980), Inglaterra. Foi historiador da arte, tradutor e professor de Harvard e do
Courthald Institute. É comumente lembrado como o tradutor da versão definitiva em inglês para o tratado Il Libro
dell´Arte de Cennino Cennini. Thompson reproduziu inúmeras experiências e receitas do tratado para que pudesse
compreender melhor a obra e assim, traduzí-la satisfatoriamente. Escreveu 18 obras relacionadas a tecnologia dos
materiais de pintura, principalmente dos períodos da antiguidade e da idade média.
25
perspectiva a ordem, conteúdo e a relevância dos manuscritos. Além disso, foi fundamental para
entender a real disponibilidade dessas obras: quais foram publicados, datas de publicação e as
línguas para os quais foram traduzidos.
Foram de grande valia, para análises científicas sobre a funcionalidade química e física do
pigmento vermilion, as pesquisas de Nöller (NÖLLER, 2013), Roy (ROY et al., 1993) e para o
experimento prático, os excepcionais estudos de Melo (MELO et al., 2013) e de Miguel (MIGUEL
et al., 2011). A pesquisa desses portugueses, é hoje, a mais completa e compreensiva sobre o
vermilion como material químico dentro das artes visuais, a reprodução prática desse estudo teria
sido um fracasso sem o conteúdo pertinente dos portugueses. As pesquisas mais antigas, de Bell
(THOMPSON, 1956, p. 98), Toch (TOCH, 1911) e Gettens (GETTENS; FELLER; CHASE, 1972),
e serviram de sustentação para as pesquisas citadas acima, tornaram-se habituais fontes consultadas.
A história e os conceitos alquímicos tomaram forma através das obras de Burckhardt
(BURCKHARDT, 2006) e de (JUNG, 1990). Enquanto o primeiro trata do tema a partir de uma
visão espiritual, quase esotérica, o segundo mostrou-se útil por sua visão que analisa a alquimia pela
perspectiva da psicologia e pela sua analogia com o inconsciente humano. A obra de Mircea Eliade
(ELIADE, 1979) provou-se como uma das mais importantes para esse estudo, contribuindo com um
entendimento profundo dos primórdios dos ritos mágico-religiosos que se desenvolveriam naquilo
que conhecemos hoje como alquimia.
A obra de Francoise Choay (CHOAY, 2001), voltada a conservação e arquitetura, foi de
extrema valia para acrescentar indagações acerca da conservação e da salva guarda do patrimônio,
mas principalmente, para suscitar reflexões pertinentes a definição de autenticidade dentro das artes
visuais.
Os conceitos de espiritualidade e sacralidade no fazer artístico, mais precisamente na pintura,
que estão automaticamente relacionados aos simbolismos alquímicos do vermilion, foram escritos
tomando como base as obras de Bucklow (BUCKLOW, 2009) e James Elkins (ELKINS, 2000).
Podemos dizer que todos os conceitos ontológicos por trás do constructo24 desse estudo, apoiaram-
se nessas obras essenciais: elas foram a espinha dorsal da presente dissertação.
Estabelecendo-se um entendimento mais amplo da bibliografia, foi possível discernir quais as
reais dificuldades para a análise e apresentação pormenorizada do assunto. O maior desafio, em
primeiro lugar, mostrou-se na análise e compreensão das receitas do processo de fatura do
vermilion, pois as mesmas revelaram-se vagas, nos obrigando a testar várias proporções entre os
ingredientes, assim como nos basear em estudos mais recentes sobre a aplicação prática dessas
24
Constructo.: construção puramente mental, criada a partir de elementos mais simples, para ser parte de uma teoria.
26
receitas, única solução encontrada para viabilizar um processo de fatura mais assertivo. É um ponto
pertinente a ser discutido mais adiante.
Um problema menor resultou na impossibilidade de discernir se certas receitas eram na verdade
cópias originárias de outros textos mais antigos ou se de fato foram escritas no período no qual o
documento foi datado. Além disso, houve inconveniências, num pequeno número de textos raros e
de difícil acesso, pois era necessária a obtenção de suas versões originais, no caso, em latim e
grego25. O objetivo era concluir o estudo etimológico conferindo quais foram os termos usados
originalmente e não em suas versões para o inglês. Felizmente, a grande maioria dos textos continha
uma reprodução de suas páginas originais, acompanhados de uma versão para o inglês, ou, eram
uma versão do inglês contendo notas acerca dos termos originalmente usados, em apenas um dos
textos26 não foi possível o acesso a sua versão original.
Outra dificuldade estabeleceu-se na compreensão da definição dos nomes, isto é, na própria
compreensão etimológica acerca dos pigmentos vermelhos. Há uma enorme imprecisão quanto ao
uso desses termos nos manuscritos analisados, um mesmo termo era usado para diferentes
pigmentos, em outros casos, uma mesma substância possuía vários nomes distintos, sobretudo no
período medieval. Originalmente, essa dissertação possuía o objetivo de estudar exclusivamente o
pigmento vermilion. No entanto, essa última problemática da bibliografia histórica fez necessário
organizar e incluir a história de outros pigmentos vermelhos como um pano de fundo contextual
para possibilitar maior clareza sobre o vermilion, sendo que, sua etimologia, história e
características físicas confundem-se com outros pigmentos vermelhos dos períodos estudados.
25
Algumas traduções adaptam o nome da cor para um termo mais contemporâneo, tornando-se imperativo examinar
os textos em suas línguas originais para identificar com máxima precisão o uso original dos termos.
26
Manuscrito de Leyden e Estocolmo.
27
2. ALQUIMIA
Nesse capítulo define-se de modo panorâmico e cronológico os principais conceitos filosóficos
que moldaram a alquimia. Fundamental para contextualizar o leitor sobre os simbolismos
associados aos pigmentos e no modo de racionalização dos artesãos e alquimistas medievais acerca
das origens dos materiais. Essas associações são notáveis no processo de fatura dos pigmentos a
serem analisados nesse estudo, particularmente nas simbologias associadas ao vermilion.
27
Mircea Eliade (1907-1986), romeno, naturalizado norte-americano. Historiador, linguista, filósofo e filólogo,
especialista na história das religiões ocidentais e orientais.
28
No sentido de interpretar ou considerar algo como profano, diabólico.
28
A classificação por gênero para tudo aquilo que rodeia o homem possui um importante papel na
simbologia do vermilion, como será visto adiante. O planeta (natureza) era classificado como do
gênero feminino. Essa antiga associação, que milhares de anos mais tarde tornar-se-ia o termo mãe-
terra, nos ajuda a entender a mentalidade do homem arcaico, que segundo Eliade, consideravam as
29
rochas, metais e minerais como fetos, gerados nas entranhas ou útero (grutas e cavernas) da terra.
(ibid, p. 35)
Essa concepção embriológica desenvolve-se, explicando que os minérios e metais mais comuns
estão no começo da gestação, enquanto os mais nobres e raros estão no fim da gestação. Isso
implica no tanto no conceito de gestação quanto no de purificação: a natureza melhora a condição
dos materiais, amadurecendo-os: o chumbo desenvolve-se para tornar-se ferro e o ferro para tornar-
se ouro, um metal perfeito, já maduro. Portanto, fica implícito que a natureza possui um plano de
melhoria da matéria, ela naturalmente desenvolve um plano de evolução para os metais, em outras
palavras, ela “tende a perfeição” (ibid, p. 34).
29
Titus Burckhardt (1908-1984), Suíça. Filósofo, Teólogo e Historiador da Arte.
30
cosmo30. Esses sacerdotes conseguiam manter um canal de comunicação com o criador ou as forças
da natureza: o ferreiro, em ordem para moldar e controlar o metal, necessitava de um conhecimento
extraordinário, um conhecimento mágico.
30
Teoria da unidade entre o Macrocosmo e o Microcosmo.
31
influência sobre eles, uma prova de que o ferreiro ou metalúrgico detinha conhecimento e poderes
incomuns.
Para essas civilizações pré-racionalistas, “[...] a chegada da metalurgia não foi uma simples
invenção, mas uma revelação” (ibid, p.13, tradução nossa). Para Burckhardt esse é possivelmente o
primórdio de uma relação entre a matéria (metais) e o existencialismo (plano espiritual) que fariam
papel fundamental na alquimia e principalmente na leitura dos simbolismos implícitos no processo
de fatura do vermilion.
Desta forma, assim como a agricultura necessitava de rituais sagrados de fecundidade, o mesmo
acontecia para a mineração e a metalurgia. O ferreiro, assim como a Terra-Mãe, fazia o papel de
genitor. (ELIADE, 1979, p. 41) O homem colaborava com a natureza, ajudando-a a cumprir sua
finalidade e alcançar seu ideal. O ferreiro acelerava o ritmo de maturação, de certa forma o homem
“substituía o tempo”. (ibid, p. 43) Assim como a enxada é a principal ferramenta da agricultura, na
metalurgia, é o forno, que desmancha os metais. Ele tem o papel de um útero artificial, onde o metal
completa sua gestação.
Por configurar-se como um útero artificial, uma maneira de enganar os deuses, necessitava da
ajuda de ritos, tabus, rezas e precauções: os ferreiros submetiam-se a abstinência sexual, pois
deveriam estar puros para a manipulação dos embriões da Terra-Mãe, as mulheres não eram
permitidas nas proximidades do forno, além de outros ritos, superstições e tabus. (ibid, p. 48) Eliade
relata a importância do forno em diversas culturas proto-xamânicas e volta a questão da fertilidade:
como precaução para que a forja fosse bem sucedida, oferecia-se um sacrifício de criação ao forno:
sacrifício material ou simbólico, de sangue, ou de um ser vivo, para animar a operação a ser
concretizada. Há aqui, o conceito de transferência de uma vida, para que o forno cumpra seu papel
adequadamente (ibid, p. 51).
O ferreiro e o oleiro controlam o fogo, que é o agente da transmutação, a manifestação de uma
força mágico-religiosa que pode mudar o mundo operando a passagem da matéria de um estado
para outro. (ibid, p. 62) Forjando ferramentas, o ferreiro disponibiliza meios para aprimorar a
agricultura, a pecuária, a arquitetura, a defesa e a milícia da tribo. A importância dessa atividade e
desse conhecimento é fundamental para a fertilidade, a sobrevivência e o desenvolvimento humano.
O conhecimento desse fazer criou toda uma mitologia da arte e da técnica, o poder de
materializar substâncias amorfas em objetos funcionais significava conhecer fórmulas mágicas que
permitiam inventá-los, a posse de um segredo de fabricação e construção. (ibid, p. 79) O prestígio
dessa atividade, reflete-se inclusive em deuses ferreiros31, assim como nos deuses que portavam
armas mágicas forjadas por ferreiros míticos: eram as ferramentas mágicas desses ferreiros
31
Alguns exemplos são: Kôshar, Tvashtri, Ptá, Cananeu, Thor, Vulcano, Tubal Caim, etc.
32
lendários que deram parte de seus poderes ou condições para derrotar seus inimigos (ibid, p. 82).
Para ilustrar a importância da atividade da metalurgia no dia a dia dessas tribos, em situações mais
terrenas, Eliade narra:
Fica claro, mais uma vez, a denotação de que o ferreiro é detentor de um conhecimento especial,
que por ser sagrado e nobre, atribui a ele certas responsabilidades e deveres em sua comunidade. É
por isso que a transmissão dos segredos do ofício, passados oralmente numa atmosfera envolta de
mistério e sacralidade, exigia iniciações com ritos praticamente religiosos: há uma enorme
responsabilidade e honra no exercício desse ofício, em prol da comunidade (ibid, p. 78). Devido à
complexidade da atividade, surgem as confrarias de ferreiros, responsáveis pelos ritos iniciáticos
dos primeiros ferreiros.
Esses ritos de introdução do ofício deram origem as sociedades secretas. Segundo Marcel
Granet32, a sistematização da alquimia tem seus primórdios nessas confrarias (ibid, p. 86). Um
indício disso é Tubal Cain33, palavra secreta34 que os Maçons usam como passe, usado pelos
membros que conquistam o terceiro grau maçônico, nas saudações dentro da ordem (MORGAN,
2006, p. 41). O nome Tubal Cain é uma referência ao mito do primeiro ferreiro, mencionado no
livro bíblico gênesis35.
32
Marcel Granet (1884 – 1940). Sociólogo, etnólogo e sinologista francês.
33
Em português, usado separado (Tubal Caim) ou junto (Tubalcaim). Nos EUA, sempre separado (Tubal Cain) e
também usado numa adaptação inglesa, praticamente um trocadilho: “Two Ball Cane” (Caim Duas Esferas). Não
encontramos nenhuma fonte que explicasse o sentido do trocadilho contendo os simbolismos de “duas esferas”.
34
Também chamado pelo maçons brasileiros de “passe”, “sign” na língua inglesa.
35
“22. Zilá também deu à luz um filho, chamado Tubalcaim, artífice de todo instrumento cortante, de bronze e de
ferro; a irmã de Tubalcaim foi Naamá.” Gênesis, 4; 22.
33
e ritos dos fundidores e ferreiros” (ELIADE, 1979, p. 86). Isso explica a importância dos elementos
metálicos, das pedras e minerais, a origem do trabalho externo do alquimista (vistos mais adiante),
que viria a desenvolver mais tarde o que chamamos de química. Embora o alquimista não trabalhe
com a bigorna e o martelo, faz uso por sua vez do forno, uma continuidade dos segredos de
manipular e controlar o fogo, herdado da metalurgia e dos ferreiros do período proto-xamânico.
Segundo Burckhardt, assim como os xamãs proto-históricos, os alquimistas não diferenciavam a
ciência empírica de filosofia mística (BURCKHARDT, 2006, p. 241, tradução nossa). Em outras
palavras, uma mistura de proto-ciência e metafísica, feita através da observação e manipulação das
substâncias da natureza, funcionando de forma filosófica e empírica. Os registros dos modos de
operação dessa atividade física e filosófica, são receitas e textos metafóricos, repletos de alegorias e
simbolismos.
Através desses registros, temos hoje, alguma compreensão sobre os dogmas mantidos por essa
ocupação, remontando a tempos muito mais arcaicos do que o cristianismo, desenvolvendo-se a
partir de superstições com origens pré-históricas. Segundo Burckhardt e Eliade, embora a alquimia
fosse um campo do conhecimento que englobava o folclore de inúmeras civilizações da idade do
ferro ou anteriores, esse conhecimento foi passado de forma oral entre babilônicos, chineses,
indianos e árabes chegando finalmente ao Egito, durante o período dinástico, onde tomou forma
mais definida, (ibid., p.16, tradução nossa) as fontes escritas mais antigas são desse período.
Moíses nasceu aproximadamente em 1391 a.c. e morreu em 1271 a.c., portanto, se Hermes
viveu pouco depois do profeta cristão, é possível estimar que esse período coincide com o auge do
36
O nascimento de Moíses é aproximadamente 1512 a.c.
37
Cidade milenar na atual Cisjordânia.
34
38
Ação de rarefazer, de tornar menos denso, espesso, numeroso ou frequente.
35
como uma doutrina clara e objetiva, todas as formas de religião herdaram traços da gnóstica
alquímica, embutindo esses conceitos nesses novos dogmas.
As fundações dos dogmas judaico-cristãos foram moldadas a partir dos princípios de
transformação e purificação advindos da alquimia, antes da idade média. Gradualmente o judaísmo
e o cristianismo definiram seu corpo de crenças com maior clareza, e quando plenamente
desenvolvidos, foi a vez da alquimia tardia ser influenciada pela linguagem e pelos fundamentos
judaico-cristãos, completando um círculo. Isto quer dizer que houve uma retroalimentação
dogmática entre essas formas de espiritualidade. Essas influências podem ser facilmente detectadas
em textos alquímicos que citam Cristo e outros elementos judaico-cristãos. Jung, toca nessa
questão:
39
Redenção. 1. Ato ou efeito de redimir. 2 Salvação. 3 Resgate. 4 Libertação. 5 Auxílio.
36
verdade. Jung também cita uma correspondência desse princípio com os mitos dos heróis egípcios e
gregos:
40
Jesus Cristo de Nazaré, filho de Deus.
41
Redenção: 1. Obter novamente; 2. Conseguir a libertação ou a salvação de outrem ou de si. 3. Tirar ou sair do perigo
ou da condenação; 4. Oferecer ou receber compensação; 5. Ser reabilitado em relação a (crime, falha ou pecado); 5.
Tornar-se puro em relação a; 6. Sentir arrependimento. Fonte: httpp://dicionarioaurelio
42
“Porque o Senhor é o nosso juiz; o Senhor é nosso legislador; o Senhor é o nosso rei; ele nos salvará.” . Fonte:
http://www.bibliaon.com/versiculo/isaias_33_22/
37
própria redenção, através de um caminho pessoal. Ele torna-se seu próprio redentor, articulando
sua própria obra em busca do lápis. Talvez seja por isso, que os textos cristãos tiveram necessidade
em especificar que Cristo é o único redentor, ou único salvador, eliminando o dogma pagão-
alquímica de que cada um faz seu opus, eliminando o perigo da busca de um caminho pessoal e da
subjetividade.
43
“A Grande Obra”, princípio mencionado nos manuscritos alquimicos.
44
Inferno. Uma metáfora que convida o alquimista a purificar o caos que reside dentro de nós, nossos demônios
internos.
45
Nigredo. Primeiro estágio das transformações alquímicas.
38
Como observa Elkins, é interessante notar que todos os autores que se debruçam no tema da
alquimia, tocam muito pouco no mérito prático do laboratório alquímico, isto é, da atividade
sensorial de manipulação dos materiais. Preocupam-se muito mais em suas interpretações das
metáforas, da linguagem alegórica e dos significados religiosos. Inesgotáveis páginas foram escritas
sobre as analogias entre espiritualidade e o trabalho alquímico, mas quase nenhuma sobre os
pensamentos e a manipulação sensorial que regem o ato da ação física dentro do laboratório. Elkins
diz que o teor dos textos que tentam explicar a alquimia são “uma verdade generalizada sobre a
alquimia, fácil de se sobrestimar.” (ELKINS, 2000, p. 73, tradução nossa)
O trabalho interno foi e continua a ser explorado a exaustão, mas o trabalho externo,
comumente recebe um tratamento quase que superficial, geralmente culminando na explicação de
que se tratava dos primórdios da proto-ciência, no tatear do que viria a ser a química. No entanto, o
trabalho externo, que envolve um tatear sensível do consciente e inconsciente durante o manipular
das ferramentas e dos materiais, guarda forte relação com o fazer artístico, principalmente com a
pintura medieva, período no qual o pintor necessitava de um verdadeiro conhecimento alquímico
40
para produzir pigmentos, materiais e finalmente usá-los numa obra, que diga-se de passagem, quase
sempre possuía uma temática religiosa ou de transcendência.
Elkins ilustra brilhantemente a problemática sobre as tentativas de se escrever um texto que
verbaliza o ato de pintar, que também é o caso de textos que tentam racionalizar a alquimia.
46
Vilém Flusser (1920 -1991) Praga. Filósofo tcheco, naturalizado brasileiro. Atuou por cerca de 20 anos como
professor de filosofia, jornalista, conferencista e escritor. Especialista em linguística e semi-ótica.
41
e inconscientes entre as cargas simbólicas implícitas nos materiais, assim como durante a
manipulação das ferramentas de pintura e de seus ritmos disciplinados47, que remetem a
experiências primitivas mágico-religiosas, uma espécie de ação ritualística filosófica-devocional,
uma atividade certamente transcendente, quando praticada com profunda intimidade operacional.
Flusser, de forma objetiva, desfere: “Eu posso chegar a Deus por meio de uma ação disciplinada
(por exemplo, a alquimia) e, assim, salvar minha alma.” (FLUSSER, 2011, p. 81).
47
Poderíamos fazer aqui, uma analogia com a oração e principalmente com os mantras, atividades que facilitam a
concentração e que possuem conexão mágico-religiosas.
48
Demokritos. Autor de Physical and Mystical Matters, 100 a.c. (Não se trata de Demokritos de Abdera, 376 d.c.). É
importante observar que Demócrito provavelmente não criou totalmente a teoria, mas apenas organizou-a de forma
mais compreensível.
49
Empédocles (490 a.c. – 430 a.c.), Grécia. Filósofo e pensador pré-socrático grego e cidadão de Agrigento (Sicília).
50
A manipulação das substâncias minerais e vegetais, literalmente as experiências “químicas” e “físicas”.
42
Duas regras são fundamentais para compreender o diagrama, a primeira é que “elementos
concordantes podem se transformar um no outro, os discordantes não.” (BUCKLOW, 2009, p. 53,
tradução nossa)
Portanto, seguindo o diagrama, nota-se que fogo e água, assim como terra e ar, são discordantes,
sendo assim, sabemos que não podem se transformar um no outro. Água nunca se tornará fogo,
assim como o ar nunca se transformará em água.
A segunda é que: “Elementos que estão próximos no círculo [concordantes] compartilham uma
qualidade, elementos opostos [discordantes] não compartilham suas qualidades.” (BUCKLOW,
2009, p. 53, tradução nossa). Cada um dos elementos possui outros dois “concordantes”, isto não
quer dizer que eles podem se transformar um no outro, mas que “compartilham” de uma
“qualidade”, em outras palavras, operam por uma mesma variante ou se comportam de modo
similar. Tomemos como exemplo a terra. Ela é concordante com o fogo, logo, “compartilham” da
qualidade “seco”. Terra também é concordante da água, e compartilham a qualidade “frio”. As
qualidades “quente” e “frio”, são ativas, enquanto as qualidades “seco” e “úmido” são passivas,
essas qualidades são a chave para desencadear as mudanças de um elemento em outro: é pelo
“calor” que a água se transforma em “ar”, condensando, e pelo “frio” que se transforma em “terra”,
solidificando. O esquema serve para entender como através da ação de algumas “qualidades” é
possível analisar concordantes ou discordantes e transmuta-los para diferentes “estados da matéria”,
gasoso, líquido, sólido (BURCKHARDT, 2006, p. 94, tradução nossa).
43
2.8. Hilemorfismo
O hilemorfismo é um conceito cosmológico metafórico, o qual Bucklow acredita ser melhor
compreendido através da filosofia oriental conhecida como Tao51, ilustrado através do princípio do
Yin e Yang52. O hilemorfismo reconhece que todas as coisas possuem forma e matéria e que ambas
são opostas entre si embora complementam-se, sendo então princípios complementares. No
Taoísmo, a forma é o yang e matéria o yin (ibid., p. 78).
No texto de Aristóteles53, explica-se a natureza oposta mas complementar desses princípios
na observação de que “a matéria quer forma (amante) e a forma quer se doar a ela (amada) ”. A
mesma explicação denota que estão em função uma da outra. O universo surgiu como resultado do
desejo da forma de formar a matéria e pelo desejo da matéria de ser formada, cada uma “realizando
o desejo da outra” (ibid., p. 80). Forma é associada a uma infinidade de substantivos que passam a
ideia de pares complementares, o mesmo acontece com a matéria. Os mais universais são os pares
masculino/feminino e ativo/passivo. Outros opostos compreendem inerte/volátil, convexo/côncavo,
essencial/substancial, luz/trevas, matemático/musical, vertical/horizontal, qualidade/quantidade
entre muitos outros (ibid., p. 81).
51
Tao (do chinês: 道). Significa, literalmente, o caminho, conceito que só pode ser apreendido por intuição. O tao não
é só um caminho físico e espiritual; é identificado com o absoluto que, por divisão, gerou os opostos e
complementares yin e yang, a partir dos quais todas as "dez mil coisas" que existem no Universo foram criadas.
Princípio fundamental do taoísmo.
52
Yin e Yang. Princípios orientais que surgiram com o Tao. Yin e Yang são forças opostas e complementares.
53
Aristóteles (384 a.c.-322 a.c.), Grécia. Filósofo aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande.
45
“[...] os dois princípios, passivo e ativo, são, além de todas as manifestações visíveis, os
polos primordiais e determinantes de toda existência. Dessa perspectiva, a matéria permanece um
aspecto ou função de Deus. ” (ibid., p. 58, tradução nossa). O que Burckhardt quer dizer é que se
tudo possui um oposto complementar, e se as coisas possuem uma predestinação, objetivo ou
função definida, há então, implícito nesse pensamento, a operante de uma força capaz de traçar esse
destino pré-definido. Há claramente aqui, a tentativa de delinear um pensamento existencialista,
articulando questões metafísicas, a tentativa de explicar o sentido de tudo, a de uma força superior
criadora.
2.9. Declínio
Ao final da idade média, o lado metafísico ou espiritual da alquimia começa a ceder lugar
para seu aspecto mais racional, influenciada pelos novos pensamentos científicos surgidos na
Europa, gradualmente dando passos mais largos em direção a ciência.
Os ritos mágico-religiosos acabaram perdendo sua utilidade conforme a cultura tornava-se
mais racional, transformando-se em superstições e incorporados as religiões, escondidos nas
simpatias e no conhecimento ancestral que ecoa na voz do folclore popular de todos os continentes,
antagonistas da razão e do pensamento científico. A alquimia morria, e em seu lugar, sobraria
somente a parte mais analítica, objetiva e funcional do trabalho externo, o que viria ser o que
chamamos hoje de química.
47
3. OS VERMELHOS TRADICIONAIS
Nesse capítulo, define-se a etimologia do termo vermelho, apresentando uma análise das
propriedades físicas, origens e etimologia dos pigmentos vermelhos que servem de contexto para
abordarmos o vermilion e compreender sua problemática de definição durante a antiguidade e a
idade média.
Nas línguas que descenderam do celta e do germânico, a raiz da palavra vermelho é o termo
“Reud”, que originou os termos contemporâneos rot (alemão), red (inglês), rood (holandês), entre
outros. A raiz de descendência latina vulgar são os termos “Rubeus” e “Russus”, que originou os
termos rojo (espanhol), rosso (italiano), rouge (francês), entre outros. O termo vermelho, parece ser
específico somente nas línguas galício, catalão e português (SILVESTRE; VILLALVA;
PACHECO, 2014, p. 1). Há de se considerar um substantivo para rojo usado na Espanha, com
grande similaridade ao termo português: bermejo.
O dicionário etimológico espanhol de Echegaray, define que a palavra espanhola bermejo tem
origem: “[...] Del latín vermícülus [...]” 55. Um dicionário português de etimologia, da virada do
54
TRIANA; Jaime. Etimologias Gregas y Latinas del Español. Universidad Nueva Leon: Madrid. 1984. p. 19.
55
ECHEGARAY; Eduardo. Diccionario General Etimologico de la Lengua Española. Faquineto: Madrid. 1887. p. 272.
48
século, define que a palavra vermelho vem: “[...] Do lat. Vermiculus [...]” 56. No dicionário
etimológico de Nascentes, um dos primeiros escritos no Brasil, a palavra vermelho tem origens no
termo latino: “[...] Vermiculu [...]” 57
, provando que ambos os termos, espanhol (bermejo) e
português (vermelho) possuem raiz na palavra do latim vulgar vermiculu.
Conclui-se então que a palavra vermelho é usada somente na região da Catalônia58, Galícia59,
Portugal e Brasil. Todas outras línguas de raiz latina usam termos ligados as raízes rubeus ou
russus, para definir a cor vermelha, enquanto em toda a Espanha, o termo bermejo compreende um
substantivo qualitativo para a palavra rojo.
Um estudo da Universidade de Cambridge 60 demonstra que o termo latim vulgar vermilion, é
um derivado de vermiculu, que por sua vez, é um sufixo diminutivo de verme. O termo original
verme, significa literalmente verme, e vermiculu, corresponde ao diminutivo pequeno verme, nome
dado pelos romanos a um pigmento vermelho de extrema importância na história da pintura, a ser
detalhadamente estudado mais adiante.
56
FIGUEIREDO; Candido. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa. 1899. p. 2060.
57
NASCENTES, Antenor. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Acadêmica: Rio de Janeiro. 1955. p. 272.
58
Comunidade autônoma da Espanha, situada ao nordeste da península ibérica.
59
Região ao noroeste da antiga “Hispânia”, hoje, região entre o norte de Portugal e Espanha.
60
ALKIRE; et al. Romance Languages: A Historical Introduction. Cambridge University Press: London. 2010. p. 295.
49
Portanto, a palavra vermelho tem origens na matéria prima de um pigmento vermelho, fazendo
referência a um material de pintura e revelando a importância da história da tecnologia dos
materiais artísticos: o próprio nome da cor está diretamente vinculada ao pictórico.
3.2.1. Ocres
Nas pinturas do período neolítico podemos observar o uso de pigmentos naturais nas primeiras
pinturas feitas pela humanidade. Esses pigmentos inorgânicos, são definidos como compostos
genéricos pois formam-se a partir de uma infinidade de substâncias minerais, responsáveis por
atribuir sua cor (EASTOUGH et al., 2005, p. 285). Tratam-se de rochas ou porções de terra colorida
retiradas da superfície do solo, compostos principalmente de óxidos e hidróxidos de ferro.
O termo ocre é derivativo do termo grego ὠχρός ou ōkhrós, seu significado é pálido, ou
amarelo pálido. Apesar do termo grego estar relacionado ao amarelo, ele é usado para indicar
diversas colorações terrosas, sendo as mais comuns o amarelo, laranja, vermelho e violeta, em
inúmeras intensidades. Os ocres vermelhos mais puros são formados principalmente por compostos
do grupo mineral da hematita, os menos puros contém maior proporção de quartzo, argila, gesso e
mica. (EASTOUGH et al., 2005, p. 285)
50
Os mesmos ocres vermelhos empregados nas pinturas parietais da pré-história foram usados em
todos os períodos da história da arte e continuam sendo usados. Durante a idade média muitas terras
51
avermelhadas receberam nomes sugestivos que geralmente descrevem o local de onde o pigmento
fora extraído, muitos desses nomes ainda são usados nas tintas industriais. Entre eles, o terra rosa 61
(ou terra rossa), vermelho de Veneza62, vermelho indiano63 e o terra de Pozzuoli64 são os mais
usuais. Atualmente, essas cores raramente são produzidas com terras naturais, fazendo uso de
óxidos de ferro sintéticos como substitutos (MAYER, 2006, p. 35). As tradicionais terras de Siena,
apesar de pertencerem ao grupo dos ocres, são formadas por um composto diferente, por isso serão
analisados mais à frente.
O que confere cor aos óxidos vermelhos é a proporção entre óxidos de ferro e outros minérios
no composto. Desta forma, é possível encontrar na natureza, e hoje em forma de óxidos sintéticos65,
as mais variadas intensidades de vermelho, embora sempre de valor terroso. Como veremos mais
adiante, o vermilion pode exibir diferentes intensidades, e dependendo do modo como foi
produzido, pode apresentar coloração um pouco mais terrosa, sendo possível confundi-lo com
outros vermelhos terrosos, embora normalmente seja mais intenso do que os ocres vermelhos.
A Sociedade dos Corantes e Coloristas66 (Bradford, Inglaterra) e a Associação Americana
Têxtil dos Químicos e Coloristas67, criaram um método de identificação de corantes e pigmentos
baseado em suas substâncias químicas, que os identifica através de um código internacional
padronizado chamado Color Index68 (Índice de Cor) ou CI. É através do CI que identificamos a
origem, composição, procedência e fabricantes de um pigmento ou corante. As mesmas instituições
se encarregam de classificar índices de permanência desses pigmentos e corantes, com as
classificações variando entre I (excelente), II (bom), III (regular) e IV (impermanente).
Os ocres vermelhos geralmente recebem índice de permanência I (excelente), isto é,
configura-se como um material que não perde a cor ou esmaece com o tempo. O IC (Color Index)
do pigmento geralmente é PR10269, código genérico usado para a maioria dos ocres vermelhos
naturais.
61
Terra Rosa (Terra Rosa). Ocre vermelho, mais amarelo do que outros quando misturado a cores claras (tint).
62
Vermelho Veneziano ou Vermelho de Veneza (Venetian Red). Um ocre vermelho, menos intenso e mais amarelado
do que o Terra de Siena Queimada (Burnt Sienna).
63
Vermelho Indiano ou Vermelho da índia (Indian Red). Um ocre vermelho violetado e mais amarelado.
64
Terra de Pozzuoli (Pozzuoli Earth). Ocre vermelho que apresenta coloração entre um Vermelho Indiano (Indian Red)
e Vermelho Veneza (Venetian Red), dependendo da marca. Geralmente apresenta maior quantidade de argila do que
outros vermelhos ocres mencionados nesse estudo.
65
A Kremer oferece uma vasta gama de ocres vermelhos. http://shop.kremerpigments.com/en/pigments/iron-oxide-
pigments-01:.03:..html.
66
http://www.sdc.org.uk/
67
http://www.aatcc.org/
68
http://www.colour-index.com/
69
http://shop.kremerpigments.com/en/pigments/red-moroccan-ochre-116430:.html
52
3.2.2. Sinópia
Os textos ocidentais mais antigos sobre pigmentos vermelhos na antiguidade são de
Teofrastus70, Vitruvius e Plínio71. Todos esses autores clássicos mencionam o nome de um
pigmento vermelho chamado de sinopia. Ele era descrito como uma espécie de “ocre vermelho”,
isto é, uma terra vermelha provavelmente de baixo croma: “uma terra, mas relativamente pura em
óxido de ferro”.
Plínio indica que a origem do nome foi definida a partir da cidade portuária de Sinop72 (na
grafia antiga, Sinope73), na Turquia, onde era embarcado para comercialização, embora na verdade
tenha sido um produto originário da Capadócia74, Turquia. Descreve a sinopia como “[...] uma
rubrica75 da mais alta qualidade. Essa última, chega muito próximo ao minium [...] [...] É com esse material
que eles aplicam camadas de baixo ao minium, numa adulteração que é empregada extensivamente.”
(PLINÍO, 1855, liv. 34, cap. 14, tradução nossa). A comparação de Plínio entre sinopia e minium é
curiosa, sendo que, as rubricas são geralmente ocres avermelhados, portanto sua cor é geralmente
um vermelho (marrom) terroso, enquanto o minium, como veremos adiante, é praticamente um
laranja claro, no entanto, Plínio diz que a cor de ambos é próxima.
De qualquer forma, o texto indica que Plínio fazia distinção entre os dois pigmentos,
provavelmente refletindo o conhecimento geral dessa época. A importância da última descrição de
Plínio consiste no indício de que numa comparação de intensidade cromática, o sinopia é menos
intenso do que o mínio, sendo o primeiro empregado como “base”, e o mínio como “finalização”,
indicando através da ordem de aplicação quais os materiais mais cromáticos.
O entendimento das características do sinopia é relativamente simples, pelo menos a partir
dos textos da antiguidade clássica e do início da idade média. As problemáticas surgem nos textos
de pintura por volta do séc. XIV, que mencionam o termo sinopia relacionando a cor dos pigmentos
chamados de lacas76. Eastlake ilustra uma dessas comparações, citando uma passagem do
manuscrito de Alcherius77: “[...] sinopia é um vermelho mais vermelho que o vermilion[...] [...]feito
70
Teofrastus: Theophrastus (372 a.C. — 287 a.C.), em grego: Θεόφραστος. Nascido em Eresos, foi
um filósofo da Grécia Antiga, sucessor de Aristóteles na escola peripatética.
71
Gaius Plinius Secundus; Plínio, O Velho (23 a.c.-79 a.c.). Filósofo naturalista grego, autor de “Naturalis Historia”.
72
Do árabe: س ي نوب
73
Do grego: Σινώπη, ou Sinōpē, historicamente conhecida como Sinope, ou sᵻˈnoʊpi
74
Do turco Kapadokya.
75
Rubrica: nome que os romanos davam aos materiais usados para selar ou para escrever documentos, dando uma
coloração avermelhada a escrita ou ao selo de cera.
76
Laca: Todo corante usado como um pigmento, resultando geralmente em tintas transparentes. Geralmente com a
adição de alguma substância “fixativa”, para que a cor não desbote.
77
(TURNER, 1998).
53
de laca”. (EASTLAKE, 1847, p. 116), o autor também cita outros manuscritos do período78 que
relacionam a sinopia com lacas.
Uma segunda problemática a ser considerada, é que se tornou comum, a partir da idade
média, principalmente na Itália, dar o nome de sinópia ao estágio de “esboço” de uma pintura, sua
“fundação”79 ou desenho inicial, tanto nas técnicas de afresco quanto nas técnicas de têmpera para
iconografia. Sinópia parece ter se tornado um termo relativamente comum para denominar qualquer
esboço avermelhado. O termo é usado até hoje, principalmente nos círculos de pintura de ícones.
Na citação de Alcherius, temos duas problemáticas: como poderia ser o sinopia, mais
intenso do que vermilion, como disse Alcherius, sendo que se trata de um óxido de ferro? Além
disso, a maioria das terras naturais e óxidos apresentam corpo opaco, caso completamente diferente
das lacas, que sempre apresentam intensa transparência. Portanto, põem-se em dúvida a
assertividade das descrições de Alcherius e de outros textos do período ligando o sinope com as
lacas.
Mayer, de uma perspectiva mais recente, refere-se categoricamente que o “sinope é o antigo
nome romano para o óxido de ferro natural” (MAYER, 2006, p. 62), não deixando quaisquer
dúvidas sobre suas propriedades, podendo então, ser definido como um vermelho terroso.
78
Manuscrito de São Audemar e uma referência vaga a outro manuscrito, a ser: “Manuscrito do British Museum”.
79
Em inglês, comumente chamado de “underpainting”; em italiano, “sottostrato”; em francês “ebauché”.
54
Eastough esclarece que “durante a idade média, o nome foi usado para outros ocres vermelhos
de menor distinção, dando origem ao termo sinopia, até hoje usado na Itália para ocres vermelhos
em geral” (EASTOUGH et al., 2005, p. 327). Conclui-se a possibilidade de que o termo sinopia
tenha sido usado de modo genérico, principalmente após o sec. XIV, para denominar inúmeros
outros pigmentos vermelhos, portanto, material inorgânico constituído de óxido de ferro, um
composto “genérico”, logo, pertencente ao grupo dos ocres, vistos anteriormente.
Vale observar que, como vimos anteriormente, na análise dos ocres vermelhos, o vermilion
pode exibir diferentes intensidades dependendo do modo como foi produzido, podendo apresentar
coloração um pouco mais terrosa, sendo possível confundi-lo com outros vermelhos terrosos. É
exatamente essa característica de grande alcance de nuances entre esses pigmentos que torna a
definição precisa dessas cores tão complexa, explicando o porquê das inúmeras atribuições errôneas
em textos antigos, como veremos adiante.
Nenhuma das fontes consultadas cita a aparente relação sonora entre os nomes sinopia, sinope,
sinopis com o termo cinabro, cinapro ou cinabre. Para todos os efeitos, concluiu-se que, se a
etimologia de sinope e cinabro em algum momento se cruzaram, essas informações não foram
encontradas em nenhuma publicação.
O sinopia geralmente recebe índice de permanência I (excelente), isto é, configura-se como
um material que não perde a cor ou esmaece com o tempo. Esta definição também reforça a
conclusão de que o sinopia não poderia ser uma laca, sendo que a grande maioria delas apresenta
algum problema de permanência, enquanto as terras e óxidos são famosos por sua excelência no
quesito permanência. O IC (Color Index) do pigmento geralmente é PR10280, código genérico
usado para a maioria dos ocres vermelhos naturais.
80
http://shop.kremerpigments.com/en/pigments/red-moroccan-ochre-116430:.html, 2016.
55
Durante a idade média, os termos Cor de Siena, Terra de Siena ou somente Siena,
começaram a serem usados para denominar as terras provenientes da cidade de Siena, na região da
Toscana, Itália. Por volta do séc. XIX, os termos mais específicos Terra de Siena Natural81 e Terra
de Siena Queimada82 foram usados para definir distinção entre os matizes, sendo a primeira (terra
de Siena natural) do matiz amarelo, a segunda (terra de Siena queimada) é o resultado da tostagem
ou aquecimento da primeira, até que se torne vermelha. As terras de Siena queimadas naturais, são
na verdade, terras de Siena naturais que sofreram mudança de matiz naturalmente através da ação
do sol e do calor, extraídas do solo já avermelhadas. Depois do séc. XIX, os termos começaram a
ser usados para definir de forma genérica para qualquer terra amarela ou vermelha mesmo aquelas
não produzidas na Itália e também as sintéticas. (EASTOUGH et al., 2005, p. 345). Podemos
observar, na figura 13, a mistura de Siena queimada, kermes (ou cochinilha) e cinza, para colorir a
roupa da figura de Maria, a esquerda.
Por tratar-se de um ocre vermelho mais específico, a terra de Siena queimada é raramente
confundida com outros pigmentos vermelhos, como as lacas, o mínio, o cinabro ou o vermilion. É
possível que, por esse motivo, sua etimologia ou história tenha pouca relação com esses outros
pigmentos.
81
Em inglês, Raw Sienna.
82
Siena Queimada ou Terra de Siena Queimada (Burnt Sienna). Vermelho ocre intenso, leva o nome da localidade
onde é encontrada, embora a grande maioria seja feito de óxidos sintéticos. No caso específico dessa cor, há uma
enorme quantidade de versões nas mais variadas tonalidades, as diferenças não estão somente no valor, mas também
no croma, podendo variar entre mais escuras, mas claras, mais terrosas, mais intensas ou mais rosadas.
56
Podemos observar o uso de ocres vermelhos, provavelmente terra de Siena, na figura 14,
principalmente nos meios-tons e sombras mais acentuadas do lado esquerdo do rosto da virgem.
A terra de Siena queimada recebe índice de permanência I (excelente), isto é, configura-se
como um material que não perde a cor ou esmaece com o tempo. O IC (Color Index) do pigmento
natural é geralmente o PR10283, código genérico usado para a maioria dos ocres vermelhos naturais.
Alguns fabricantes usam o IC PBr7 para identificar o siena queimada, embora esse mesmo
código seja usado de forma genérica também para sombras e terras calcinadas com traços de
hematita ou manganês. A grande maioria das sienas queimadas encontradas no mercado são feitas
com óxidos de ferro sintéticos, geralmente recebendo o IC PR101 ou PR101:1.
83
http://shop.kremerpigments.com/en/pigments/red-moroccan-ochre-116430:.html
57
Essa é uma (de várias) das passagens de Plínio que dificultam enormemente a pesquisa acerca
dos vermelhos. Apesar de Plínio nomear o capítulo como referente ao “cinabro”, fica incerto se o
autor está se referindo de fato ao cinabro ou na verdade ao mínio, pois diz que os gregos chamam
esse pigmento de miltos (seria na verdade, cinabro?), mas segundo Thompson, miltos era o termo
usado pelos gregos para denominar ainda outro pigmento: o mínio (THOMPSON, 1956, p. 105).
Para tornar tudo ainda mais confuso, a história sobre a substância resultante da batalha entre o
dragão e o elefante, encontra-se deslocada aqui, pois é um mito comumente relacionado ao sangue
de dragão, seu nome tem origem exatamente nesse mito.
De acordo com Church (CHURCH, 1915, p. 186), Laurie (LAURIE, 1910, p. 215) e mais
recentemente Eastough (EASTOUGH et al., 2005, p. 111), entendemos hoje, que o sangue de
dragão é um pigmento resultante da pulverização de uma resina vegetal, originária da extração da
seiva de uma grande variedade de espécies de uma planta, geralmente encontradas em regiões
tropicais e subtropicais da África, Oriente Médio e Ásia. Um outro dado que comprova a relação
estreita entre os pigmentos vermelhos, e o uso de forma genérica de muitos desses termos,
apresenta-se no nome científico84 da a planta que produz a resina sangue de dragão: Dracanea
Cinnabaris, o termo cinnabaris relaciona-se ao termo grego de ainda outro pigmento sem nenhuma
relação química, o cinabro. (EASTOUGH et al., 2005, p. 148).
Cennino faz citação do pigmento sangue de dragão desencorajando seu uso e inclui uma
importante referência ao modo como o material era usado no período: “Uma cor chamada de
sangue de dragão é vermelha. Essa cor é usada ocasionalmente em papiro, para iluminuras. Deixe
a de lado, e não mantenha muito respeito por ela, pois sua constituição não lhe trará muito
crédito.” (CENNINI, 1954, p. 26)
Cennino provavelmente se refere ao fato de que o sangue de dragão é na verdade um
corante85, ou laca transparente, e, portanto, como a grande maioria das lacas, não é um material
permanente. É importante notar que, Cennino faz referência a seu uso para pinturas em papel ou
pergaminho e não em suportes rígidos, portanto, usado para iluminuras. Isto indica que o pigmento
era tradicionalmente usado em meios aquosos e não oleosos, conforme o costume da prática de
pintura de pergaminhos, por motivos processuais provavelmente relacionados a sua durabilidade
quando em contato com o óleo86.
84
Nome dado pelo botânico escocês Isaac Bayley Balfour, em 1880.
85
Corante: Matéria solúvel, geralmente transparente, impermanente ou de baixa durabilidade, diferente dos
pigmentos, que tendem a oferecer maior opacidade, permanência e durabilidade.
86
Sendo o objetivo analisar o vermilion e não o sangue de dragão, foi considerado irrelevante continuar a análise da
problemática sobre o uso do sangue de dragão, pois já torna-se claro de que são pigmentos distintos.
58
Mayer identificou as propriedades do sangue de dragão, também concluindo que se trata de uma
laca. Sua citação corrobora com a opinião de Cennini, de que a cor possui permanência inferior, o
que confirma a lógica na sugestão de Cennini em evitá-la:
No site da loja inglesa L. Cornelissen & Son87, uma das únicas na Europa que ainda
comercializa o pigmento, a descrição do material é a seguinte: “Usado para dar coloração
vermelho rubi para vernizes. Mantem cor moderadamente duradoura”, portanto, a cor, ainda hoje,
continua a ser uma resina pulverizada em pigmento, usado como colorante para vernizes, uma
espécie de “laca”.
É importante considerar que, em forma de pó, antes de ser misturado a um veículo, o
vermilion e o sangue de dragão não apresentam diferenças cromáticas drásticas, tornando
relativamente difícil uma identificação precisa. Por outro lado, quando transformados em tinta,
sobretudo a diferença de transparência e corpo dos pigmentos, não deixam dúvida de tratar-se de
87
L. Cornelissen & Son, loja de materiais artísticas em londres, uma das mais antigas do mundo, fundada em 1855.
http://www.cornelissen.com/
59
substâncias diferentes. Portanto, mais uma vez, a problemática de identificação dos pigmentos nos
textos da antiguidade pode ser melhor compreendida.
O sangue de dragão, diferente dos pigmentos anteriores, não recebe IC começando com a
letra “p” pois não é pigmento, mas uma resina pulverizada, isto é, uma laca ou corante para verniz
e, portanto, não possui índice de permanência. O IC (Color Index) do corante geralmente é NR3188,
código usado somente para essa resina quando em forma de corante.
3.2.5. Mínio
Em quase todos os manuscritos e tratados de pintura, desde a antiguidade até o
Renascimento, há a descrição de um pigmento vermelho comumente denominado em latim de
minium, minio ou miltos89. Vitruvius90, em seu tratado De Architectura 91 dedica dois capítulos
inteiros a esse material, mostrando sua importância nesse período. Segundo Thompson, “Stupium
era de fato o verdadeiro nome em latim para ele [minium]” (THOMPSON, 1956, p. 101, tradução
nossa). Esse mesmo termo (stupium) não foi encontrado em nenhuma outra fonte bibliográfica
usada nesse estudo, Thompson não deixa claro quando o termo stupium foi trocado pelo termo
mínio e não há indicações sobre as fontes onde o termo aparece92. O termo mínio (minium), por sua
vez, aparece abundantemente na bibliografia consultada.
88
Note que ele não recebe o código “P” a frente, pois não é pigmento, “NR” significa “Natural Red”.
http://shop.kremerpigments.com/en/dyes-und-vegetable-color-paints/dragons-blood--powder-37000:.html
89
Thompson e Plinio são os únicos a citar o termo.
90
Marcus Vitruvius Pollios, ou Vitrúvio (I a.c. ). Arquiteto romano.
91
“Os Dez Livros da Arquitetura”. Extenso tratado romano em 10 volumes.
92
Assumimos que o termo stupium foi substituído pelo termo minium, e que no período em que esse termo foi usado
era possível que os escritores se referiam a qualquer uma das substâncias mencionadas anteriormente: óxido de
chumbo ou sulfeto de mercúrio.
60
Thompson teoriza sobre duas versões sobre as origens do termo minium. A primeira teoria
faz ligação direta do pigmento com a atividade dos monges medievais iluministas: “[...] miniare
significa trabalhar com minium [...] e a pessoa que trabalhava com minium era chamado miniator,
e as coisas que deveria miniar eram chamadas de miniatura [...] (ibid., p. 102, tradução nossa). É
possível então, que o pigmento em questão tenha começado a ser chamado de minium a partir das
atividades pictóricas dos mosteiros medievais. A segunda teoria será vista mais adiante.
Os mais famosos estudiosos da tecnologia dos materiais da antiguidade, como Thompson
(ibid., p. 100), Max Doerner93 (DOERNER, 1934), A.P. Laurie94 (LAURIE, 1910, p. 214),
Maximillian Toch95 (TOCH, 1911, p. 45), Ralph Mayer96 (MAYER, 2006, p. 127), George L,
Stout97 (GETTENS; STOUT, 1942, p. 131), Eastlake (EASTLAKE, 1847, p. 452) e Merrifield
(MERRIFIELD, 2010, p. 654) identificam o pigmento como tetróxido de chumbo (Pb3O4).
93
Max Doerner (1870-1939), Alemanha. Estudou na Academia de Artes Plásticas de Munich. Viajou pela Europa,
principalmente pelos países baixos e para a Itália pesquisando sobre pintura antiga. Escreveu um dos livros mais
importantes sobre a tecnologia dos materiais artísticos na língua alemã.
94
Arthur Pillans Laurie (1861-1949), Escócia. Engenheiro químico pioneiro na análise científica de pinturas. Professor
de química da Royal Academy of Arts assim como de várias universidades americanas. Escreveu dez livros sobre a
tecnologia dos materiais artísticos.
95
Maximilliam Toch (1864-1946), ew York, EUA. Engenheiro químico que trabalhou na indústria de tintas, também um
dos pioneiros do uso da ciência na análise de obras de arte. Estudou na Columbia University. Escreveu cinco livros
sobre a tecnologia dos materiais artísticos. Tio materno de Ralph Mayer.
96
Ralph Mayer (1895-1979), New York, EUA. Engenheiro químico, pintor e restaurador. Trabalhou na indústria de
tintas e como professor na Arts Student League of New York e na Columbia University. Escreveu dois livros sobre a
tecnologia dos materiais artísticos, incluindo em 1940 a obra que ainda compreende um dos manuais de tecnologia
dos materiais mais importantes da história, o “Manual do Artista”. Maximilliam Toch era seu tio.
97
George Leslie Stout (1897-1978), Winterset, Iowa, EUA. Restaurador e diretor de museu, fundou o primeiro
laboratório para estudo de conservação de obras nos EUA. Escreveu quatro obras sobre a tecnologia dos materiais
artísticos e restauração. Sua participação durante o resgate das obras roubadas pelos nazistas durante a Segunda
Guerra Mundial é retratada no filme “The Monuments Men” (2014).
61
O tetróxido de chumbo pode ser encontrado na natureza, mas também pode ser feito
artificialmente, através de um processo “barato e fácil de se fazer [...] não dependendo de nenhum
mineral raro” (THOMPSON, 1956, p. 101, tradução nossa). Laurie fala que o processo era
conhecido desde o ano 320 a.c. e consistia em torrar cuidadosamente o litargírio98, até que a
substância caracteristicamente amarela alaranjada, mudasse de cor para um laranja mais
avermelhado (LAURIE, 1910, p. 214).
Observa-se que a grande maioria dos manuscritos até o Renascimento usam constantemente
dois termos identificados como pigmentos vermelhos: minium e cinabro, o segundo aparecendo em
maior quantidade (ver Tabela 3), as vezes apresentando algum tipo de variação, mas com a mesma
raiz etimológica: cynabro, cinnabro, cinabrio, cinnabar, cinnabrium, cinnabarium, cinnabaris,
kinnabaris, cinnabaris, entre outras similares. A obra de Plínio é um tradicional exemplo da
problemática minium/cinabro, sendo provavelmente a mais controversa e comentada em inúmeros
estudos.
No capítulo 36 da Historia Naturalis, chamado “os usos religiosos do minium”, Plínio fala
sobre uma terra vermelha conhecida desde os tempos romanos, usada para propósitos sagrados. Ela
era empregada nos ritos que pintavam o rosto das estátuas de júpiter de vermelho, assim como a
face dos generais vitoriosos durante suas entradas triunfais em Roma. Também cita que essa cor é
de “alta estima” na Etiópia, onde os nobres também a usam para propósitos sacros, de modo similar
ao dos romanos. Ele não especifica nenhuma outra característica complementar sobre a cor. 36) É
98
Também conhecido como dióxido de chumbo (PbO), substância amarela-alaranjada, as vezes chamado na
antiguidade de Massicot, derivada do aquecimento do carbonato básico de chumbo (2PbCO3·Pb(OH)2) (CHURCH,
1915, p. 147).
62
interessante observar que Plínio identifica o mínio como vermelho, mas todas as amostras modernas
do pigmento demonstram que o mesmo tende a uma coloração mais alaranjada.
Em outro capítulo, intitulado “a descoberta e as origens do minium”, Plínio diz que
Teofrastus aponta que a descoberta do pigmento se deu por acidente, através “da queima da terra
vermelha encontrada em uma mina de prata” e que em seu tempo (de Teofrastus) o pigmento já era
encontrado na Espanha, mas também encontrado em forma de “areia”, na cidade chamada de
Ephesus99. Seu processo de adequação era, primeiro pulverizar a areia e depois, lavá-la. ). É
interessante considerar o fato de que vários pigmentos naturais passam pelo processo de queima
para mudar sua tonalidade, portanto, a citação de que o mínio citado por Plínio passa pelo processo
de queima não garante que de fato, trata-se de mínio. Além disso, a Espanha, como veremos
adiante, já era famosa pelo comércio de cinabro e não minium.
No capítulo intitulado “cinnabaris” (cinabro), Plínio narra que “não lhe espanta essa cor ser
tão estimada”, sendo que as terras chamadas de rubricas, já eram apreciadas desde o período das
guerras troianas. Até aqui, parece correto assumir que Plínio faz distinção entre as rubricas (sinopia)
e cinabro (cinnabaris), mas ao mesmo tempo, a citação das rubricas denota uma possível indicação
de que Plínio vê alguma semelhança de cor entre os dois pigmentos, levando a acreditar que em
termos cromáticos, não apresentavam diferenças drásticas. Acrescenta que: “os gregos a chamavam
[o que Plínio chama de cinnabaris] de miltos, e davam ao minium o nome cinnabaris”. (PLINÍO,
1855, liv. XXXIII, cap. 38) Esta última citação de Plínio acaba por gerar mais dúvidas do que
elucidações, levando a acreditar que tanto Plínio quanto os gregos possuíam dificuldade em
distinguir o mínio do cinabro.
Thompson ajuda a esclarecer, definindo que o termo minium era usado para identificar mais
de um pigmento vermelho: [...] minium significava ou laranja de chumbo [tetróxido de chumbo] ou
sulfeto vermelho de mercúrio [cinabro]” indicando ser de difícil definição, provavelmente
impossível, precisar sobre o que tratavam os textos do período (THOMPSON, op. cit., p. 102,
tradução nossa). Clarke (CLARKE, 2001a) corrobora com a mesma informação. Portanto, conclui-
se que, nos termos usados em textos pré-medievais, o termo minium e cinabro são comumente
trocados e confundidos.
Os autores mais recentes, sem nenhuma exceção, corroboram com a opinião de que mínio e
cinabro são pigmentos diferentes: “Cinnabar [cinabro] também foi descrito pelos autores clássicos
romanos os quais consistentemente referiam-se ao mesmo como minium, um termo o qual, é claro,
99
Éfeso: do grego clássico: Ἔφεσος; em latim: Ephesus; em turco: Efes. Foi uma cidade greco-
romana da antiguidade, situada na costa ocidental da Ásia Menor, próxima à atual Selçuk, província de Esmirna,
na Turquia.
63
hoje foi apropriado pelo vermelho de chumbo100.” (EASTOUGH et al., 2005, p. 111, tradução
nossa). Portanto, mínio é identificado hoje como vermelho de chumbo (tetróxido de chumbo)
enquanto cinabro, como sulfeto de mercúrio. Se de fato a teoria abraçada por todos os estudos
recentes é correta, a descrição de Plínio sobre um pigmento vermelho, quando trata sobre o mínio,
faz sentido, pois o cinabro é claramente menos alaranjado que o mínio.
Thompson elabora uma segunda hipótese para a origem do termo minium que poderia
explicar o uso de um mesmo termo (minium) para dois pigmentos diferentes (tetróxido de chumbo e
sulfeto de mercúrio): era possível encontrar cinabro nas margens do rio Minium, na Espanha, atual
rio Miño. O cinabro extraído nessa área era chamado de minium em alusão a localidade de sua
extração, levando a confusão de distinção entre ambos os pigmentos (AGLIO; MOYA, 2003, p.
157). É importante lembrar que isso é apenas uma teoria sem comprovação científica, embora soe
como possível.
100
Também conhecido como Óxido de Chumbo. (AGLIO; MOYA, 2003, p. 155)
64
101
É comumente um laranja claro, mas não extremamente intenso, enquanto o vermilion pode variar entre vermelho,
vermelho alaranjado ou simplesmente laranja, pouco mais intenso que o minium, quando comparados em forma de
pó.
102
Mesma substância usada hoje como anti-oxidante ou anti-corrosivo para metais, comumente usadas para proteger
portões e outras peças de ferro. (MAYER, 2006).
103
(THEOPHILUS, 1847, p. 58)
104
Assim como o próprio termo vermilion, como veremos adiante, é mais um caso de um produto tecnológico oriental
que penetra no ocidente através dos alquimistas mulçumanos que se assentaram na espanha, herdando uma raiz
árabe em seu nome.
105
http://shop.kremerpigments.com/en/pigments/kremer-made-and-historic-pigments/red-lead--minium-
42500:.html
65
3.2.6. Cinabro
O estudo do cinabro é de alta importância para a compreensão do vermilion. Como discutido
mais a frente, tratam-se do mesmo pigmento, apesar de pequenas diferenças em seu processo de
origem. No começo do século XVIII, o químico Herman Boerhaave (Holanda, 1668-1738), em seu
livro Elementa Chemiae, descreve o cinabro como: “Uma linda substância dura, pesada e metálica,
rochosa avermelhada, que se quebra em pedaços brilhantes, claros e angulosos” (EASTOUGH et
al., 2005, p. 111, tradução nossa).
O cinabro é um mineral geralmente semitransparente, avermelhado, constituído principalmente
de mercúrio e encontrado na natureza, impregnado em rochas vulcânicas ou na superfície de fontes
termais com temperaturas regularmente próximas a 80° C. Invariavelmente apresenta traços de
outras substâncias como o enxofre, calcita, quartzo, pirita, entre muitas outras. A substância
química identificada como o cinabro é o sulfeto de mercúrio106, α-HgS (AGLIO; MOYA, 2003, p.
155).
As pedras naturalmente avermelhadas eram achadas em rios, como cita Plínio sobre o rio
Minium, ou em pedreiras, cavernas e grutas, extraídos através da mineração. Era comercializado em
forma de pedras ou em pó. Era indicado para uso medicinal, geralmente para problemas cutâneos,
ou como pigmento para diversos meios artísticos e funções decorativas (THOMPSON, 1956). No
caso do uso artístico, o pó era misturado a um veículo (óleo, seiva, albumina, proteína ou água)
gerando uma tinta vermelha.
O uso mais antigo do cinabro foi identificado no sítio arqueológico da cidade neolítica de
Çatalhöyük, na Turquia, civilização datada de 9000 anos atrás. O pigmento era usado em ritos de
sepultamento, onde certas partes do corpo eram pintadas de vermelho107. Também foi usado em
outras na américa central, pela cultura Maya, assim como na Turquia, para ritos funerários,
cobrindo o corpo do cadáver com o pigmento. Aparentemente, a quantidade de pigmento está
relacionada a importância da pessoa, como pode ser observado nas imagens do sarcófago e dos
restos mortais da Rainha Vermelha (Figura 20). Na cultura Vinča108, no território da Sérvia, o uso
do pigmento para decorar a cerâmica foi identificado como do início do VIº milênio, período
neolítico109.
106
Também conhecido como Sulfeto Vermelho de Mercúrio (AGLIO; MOYA, op. cit.).
107
HADDOW; Scott. Çatalhoyuk 2015 Archive Report. 2015, p. 95.
108
Também chamada de cultura Turdaș ou Turdaș-Vinča, foi uma cultura do neolítico da Europa Central e Sudeste
Europeu, nos Balcãs, região da Sérbia, Hungria, Bulgária e Romênia. Datada do período entre 5700–4500 a.c.
109
KVASCEVA et al., New Evidence for the Use of Cinnabar as a Colouring Pigment in the Vinca Culture. 2012.
66
Na China, o uso mais antigo do pigmento foi identificado como da cultura Yangshao, outra
cultura neolítica, entre 5000 e 3500 a.c. Em muitos sítios, o cinabro era usado para cobrir ambientes
e locais cerimoniais, para colorir cerâmicas e pulverizado sobre o corpo dos nobres em funerais110.
As verdadeiras origens das relações entre os ritos funerários e o cinabro não são completamente
claras, no entanto, é observável a relação entre o pigmento e pessoas de poder nessas sociedades,
como nobres, reis e sacerdotes.
Segundo Thompson, várias minas supriam a Europa e o oriente, localizadas na China, Irã
(antiga Pérsia) e Etiópia, no entanto, os romanos, tinham como preferência as pedras que provinham
da Espanha, e acreditavam que o melhor tipo era espanhol, da cidade de Almadén. A exploração do
cinabro como pigmento foi comprovada111 nessa região entre 5000 a 6000 a.c.(VIº milênio) durante
os períodos neolítico112 e calcolítico113
Na época em que os romanos ocuparam Almadén, levavam o cinabro a Roma para purificar o
pigmento na capital, controlando melhor o processo e obtendo o produto mais puro possível,
produzindo cerca de 900 kg de cinabro por ano (MELO et al., 2013, p. 210) atestando a grande
importância econômica do pigmento. Os romanos usavam o pigmento de diversas formas, para
110
LIU; Li. The Chinese Neolithic: Trajectories to Early States. Cambridge: London. 2004.
111
HUNT; et al. Neolithic and Calcolithic - VI to III Milennia BC - Use of Cinnabar (HgS) in Iberian Peninsula: Analytical
Identification of Lead Isotope Data for an Early Mineral Exploitation of the Almadén (Ciudade Real) Mining District.
History of Research in Mineral Resources: Espanha. 2011.
112
Entre o Xº e IIIº milênios.
113
Também chamada Idade do Cobre. Aproximadamente 2500 a 1800 a.C
67
inúmeras atividades. As bebidas servidas em banquetes comemorativos eram tingidas com cinabro,
assim como as estátuas do deus Júpiter. Como visto antes, Plínio relata o uso do cinabro em
atividades sagradas. O rosto dos imperadores ou chefes de estado eram cobertos por cinabro durante
as comemorações dos triunfos, ocasião na qual o imperador adentra a cidade numa espécie de
parada ou desfile, após a conquista de um território, com intuito de mostrar ao povo seus inimigos
capturados em batalha, espólios da guerra e espécies exóticas de animais conseguidos na região
conquistada. Há novamente aqui, uma relação do pigmento com a posição de poder, ou com a
vitória ou triunfo (PLINÍO, 1855, liv. XXXIII, ch. 36.).
Quanto a sua etimologia, em uma nota exclusiva da tradução em espanhol do livro de Cennino
Cennini114, o tradutor La Torre115 supõem que o termo cinabro tem suas origens no termo persa
Zinjafr116 (AGLIO; MOYA, op. cit., p. 156).
O manuscrito árabe identificado com o código A12060117, escrito por Al-Muizz ibn Badis118
aproximadamente no ano 1025, traduzido por Levey119, identifica as raízes etimológicas do termo
cinabro com a palavra Zanjafr120, termo similar aquele apontado por La Torre. Segundo Levey,
114
Cennino Cennini.: Artista italiano do Quattocento, autor do importante tratado sobre pintura, Il Libro dell´Arte.
115
Fernando Olmeda La Torre, Espanha. Escritor, tradutor e pesquisador de pinturas da antiguidade.
116
زن ج فر. Francis Joseph Steingass: Persian-English Dictionary. http://dsal.uchicago.edu/dictionaries/steingass/
117
Conhecido como “Umdat al-kuttabw a'uddat dhawi al-albb”.
118
Al-Muizz ibn Badis: do árabe ( ;ب ادي س ب ن ال م عز ال دول ة ف شر1008 — 1062) foi o terceiro emir zirida de Ifríquia,
aproximadamente a atual Tunísia, que reinou entre 1016 e a sua morte.
119
Martin Levey (1913-1970), Filadélfia, EUA. Químico, matemático e linguista. Doutor em História da Ciência.
120
Em árabe: فر زن ج
68
“Tufat al-ahbdb diz que é preparado com mercúrio (zibaq) e enxofre, mas ao mesmo tempo um
mineral". A citação indica que, no oriente, o termo zanjafr de fato coincide com o material em
questão (sulfeto de mercúrio) e denota a importante informação de que os árabes, por volta de 1000
d.c., já faziam distinção entre o material natural e uma versão sintética produzida artificialmente
(LEVEY, op. cit., p.21). A natureza dessa versão sintética será discutida mais à frente.
A definição etimológica nos dicionários de inglês 121 também apontam para origens no oriente
médio, com pequenas variações, como zinjafr, shangarf122, zanjafr ou zinjifrah e também
confirmam que os termos árabes deram origem ao termo grego, Kinnabari.
A citação da palavra kinnabari foi encontrada na obra de Teofrastus (THEOPHRASTUS, 1746,
p. 135), segundo Gettens, esse termo grego é mais tarde, latinizado pelos Romanos como
Cinnabaris e depois como Cinnabrium e finalmente dando origem a um termo italiano latinizado,
cinabro (GETTENS; STOUT, 1942, p. 171).
121
Merriam-Webster: http://www.merriam-webster.com/, 2016.
122
ش ن گرف. Enacademic.com: http://en.academic.ru/dic.nsf/enwiki/34115/Cinnabar, 2016.
69
Toda a bibliografia analisada revela que, assim como na antiguidade clássica havia considerável
problemas de identificação e terminologia entre cinabro e mínio, no renascimento a mesma
problemática continua, dessa vez, entre os termos cinabro e vermilion, embora, como veremos
adiante, essa problemática seja de melhor resolução e entendimento.
No tratado renascentista de Raffaelo Borghini 123 por exemplo, encontra-se a clara descrição da
fatura de uma substância que certamente trata-se de vermilion, mas o autor usa o termo cinabrio
(BORGHINI, 1730, p. 167). Alguns outros exemplos idênticos podem ser encontrados no
manuscrito Montpellier, no Compositiones Variae (Codex Lucensis 490) e em outras obras,
possivelmente por tratarem-se de cópias textos mais antigos.
Cennino Cennini, em seu tratado, Il Libro Dell´Arte, parece ser um dos primeiros ocidentais a
registrar com clareza uma distinção entre cinabro e vermilion: o material natural, chamado de
cinabro (usando o termo em latim italianizado, cinabrese) e o material artificial, chamado de
vermilion. Ele também faz a pertinente indicação de que o cinabro era usado no período
exclusivamente para afrescos enquanto o vermilion para “[...] vários tipos de têmperas [...] melhor
para painéis do que para paredes” (CENNINI, 1954, p. 21–24, tradução nossa). Têmperas, nesse
caso, indicam inúmeros preparos de tintas, oleosas e aquosas.
123
Raffaello Borginhi (1537 - 1588), Florença, Itália. Escritor, comediógrafo, poeta e crítico de arte italiano.
70
Conclui-se então, que cinabro é o sulfeto de mercúrio: um mineral natural encontrado em várias
regiões do ocidente Europeu e do oriente. Sua etimologia tem origens no termo persa Zinjafr. A
substância não tem qualquer relação química com os pigmentos analisados anteriormente.
O cinabro geralmente recebe índice de permanência I – II (excelente - bom), isto é,
configura-se como um material com boa (e não excelente) resistência a luz ou as intempéries. O IC
(Color Index) do pigmento geralmente é PR106124, código tanto para o sulfeto de mercúrio natural
quanto para o artificial125.
124
http://shop.kremerpigments.com/en/pigments/natural-cinnabar-monte-amiata-10610:.html, 2016.
125
Mais sobre a forma de sulfeto de mercúrio artificial no capítulo denominado Vermilion.
71
3.2.7. Kermes
Antes de uma análise do cinabro artificial, isto é, vermilion, torna-se primordial que se faça
uma análise das lacas vermelhas, pois, como será visto adiante, elas contribuem principalmente
para a questão etimológica do vermilion.
Na catedral de Sta. Sofia, na cidade de Kiev, Ucrânia, encontra-se um afresco pintado no
séc. XI. A cena foi identificada como uma narrativa tirada de um apócrifo126, “a Virgem Maria,
recebendo o Carmim e o Púrpura” (Figura 26). A imagem faz parte de um grupo de composições
que narram a passagem de Maria pelo templo de Jerusalém. Em comum com esse afresco
ucraniano, há na mesquita Kariye, na Turquia, um mosaico bizantino do séc. XII representando a
mesma cena (Figura 27 e 28). A passagem bíblica representada nessas obras foi tirada do evangelho
de Tiago127 ou na versão em inglês, chamado de Livro de João (Book of James (10:2)):
Como define-se mais adiante, o carmim é uma cor que durante a antiguidade era extraída de
um inseto da família coccus, a espécie de inseto usada na Europa no período o qual o afresco foi
pintado, chamava-se kermes. A passagem não é clara quanto as condições dos materiais recebidos
por Maria: parece que recebe os pigmentos puros para tingir os fios ainda descoloridos. No entanto,
as imagens do afresco e do mosaico parecem conter a representação de fios, nesse caso,
aparentemente já tingidos em carmim e púrpura. É possível que ambos sejam uma interpretação dos
artistas para realizar uma obra de grafismo mais interessante, contendo os fios já coloridos. Não
houve acesso ao texto original em latim ou em grego do apócrifo para averiguar quais os termos
usados originalmente, portanto, define-se que os tradutores assumiram que a palavra kokkus trata-se
da cor carmim. De qualquer forma, esse é o véu que Maria tece, mas deixa temporariamente de
lado, quando recebe a visita do anjo Gabriel durante a Anunciação.
126
Obra ou escritura de tema religioso que foi destituída de autoridade canônica, não é válida segundo o vaticano.
127
Nos EUA, chamado de Book of James.
128
Na versão em português, traduzido como “Zircão”.
129
Provavelmente referente ao Púrpura de Tíria. Pigmento roxo extraído da concha Murex.
72
A inclusão dessa cor no evangelho e atribuição do tingimento feito pela mãe de Cristo
mostra a importância do pigmento nesse período, provavelmente relacionado as simbologias
inerentes do material: são as únicas cores dignas para cobrir o templo.
Figura 26 Artista ucraniano desconhecido, “Virgem recebe o Carmim”, fresco, aprox. de 1100.
Fonte: https://goo.gl/u6Drz9, 2016.
Figura 27 Artista bizantino desconhecido, “Virgem recebe o Carmim”, mosaico, séc. XII.
Fonte: http://goo.gl/WEcnff, 2016.
73
Figura 28 Artista bizantino desconhecido, “Virgem recebe o Carmim”, mosaico, séc. XII.
Fonte: http://goo.gl/WEcnff, 2016.
Existem seis espécies da família dos Coccoidea ou insetos-escama, parente próximo das
cigarras, todos parasitas de diferentes tipos de plantas ou frutas europeias130, esses minúsculos
insetos escamados, produzem um pigmento vermelho intenso com traços da cor magenta. Dentre
eles, o mais usado no mundo antigo foi o inseto Coccus Illicis (ou Kermes Illicis) um ancestral do
inseto Kermes Vermilio, entre outras espécies similares. Era encontrado no arbusto chamado na
língua portuguesa de Árvore Kermes ou Carrasco (Quercus Coccifera) que crescia no oriente
próximo, Espanha, sul da França, sul da Itália e em várias ilhas da Grécia, especialmente em Creta
(SCHWEPPE; ROOSEN-RUNGE, 1986, p. 254).
Para produzir a cor, somente os insetos do gênero feminino eram usados, cuidadosamente
retirados dos arbustos e então cozidos num grande caldeirão para precipitar um extrato vermelho, o
extrato de kermes. O cozimento era feito com uma solução que servia como mordente131,
geralmente rica em sais metálicos, preferivelmente o sulfato ou óxido de alumínio sem traços de
ferro. O alumínio era obtido em forma de minério puro (sólido) ou em forma de argila, sendo esse
segundo a forma mais comum na antiguidade de obter a solução metálica (ibid, p. 255).
Quando pronto, o extrato de kermes era usado em forma líquida, mergulhando diretamente
tecidos e peças de vestuários no extrato para que fossem tingidos. Em forma de corante em pó,
130
Kermococcus Ilicis ou Coccus Ilicis, encontrado na árvore conhecida como Azevinho ou Azinheira130 (Quercus Ilex),
em toda região do mediterrâneo e apesar de suas incríveis similaridades, não produz a cor. Porphirophorus Polonicu,
encontrado nas raízes da planta polenesa Scleranthus Perennis. Coccus Uvae-ursi e Coccus Fragariae encontrados na
fruta Arctostaphylos Uvae-ursi e em espécies de morangos russos. Porphyrophorus Hamelii, encontrado na Armênia.
131
Mordente.: Nesse contexto, o termo refere-se a uma substância adicionada a um corante para que a cor torne-se
resistente a água, ou em alguns casos, resistente a luz. Em raros casos, também intensifica a cor. O mordente também
é chamado de “fixador”. O termo mordente é mais comumente usado pelos artistas como referência a algum tipo de
substância usada como cola, como por exemplo: no caso da aplicação de folhas de ouro numa superfície usando um
“mordente”.
74
servia de matéria prima para a fatura de uma laca, tinta transparente a base de óleo ou outros meios
aquosos. A substância que dá cor ao extrato é conhecida hoje como ácido carmínico ou ácido
kermésico (ibid., p. 256). A cor resultante é um matiz magenta com alguma inclinação ao vermelho.
Diferentes quantidades de matéria prima para preparar o extrato influenciam na intensidade e no
poder de tingimento, enquanto a própria natureza da matéria prima, isto é, a cor dos insetos, podem
apresentar diferenças de matiz. A cor dos animais naturalmente pode variar entre mais vermelho ou
mais próximo ao magenta.
O termo kermes também aparece nas escrituras sagradas. Kitto132 em suas notas que
esclarecem inúmeros termos bíblicos, sugere que a origem do nome kermes tem origem na antiga
Pérsia ou Armênia133 e relaciona sua raiz etimológica com a palavra árabe kirmiz134. Esse
pigmento135 era chamado pelos hebreus de tola136 (similar ao termo hebraico tula, literalmente
132
John Kitto (1804-1854), Inglaterra. Escritor especialista em textos bíblicos e enciclopédicos. Escreveu dezesseis
obras relacionadas ao assunto, principalmente sobre a história e o contexto histórico dos lugares descritos na bíblia.
133
“[...] conhecido pelos egípcios nos tempos de Moisés, pois os israelitas devem ter levado com eles para o Egito; - os
árabes receberam o nome kermes junto com o corante, da Armênia e da Pérsia, onde eram domésticos e há muito
conhecido.” (KITTO, 1836, p. 238)
134
قرمز. Apesar de Kitto transcrever o fonético do termo árabe para o inglês como Kirmiz, consultamos o Sr. Muradi,
Iraniano, que nos ajudou a entender a fonética: a transcrição em português seria algo próximo a “quer-mez”, ou
“guer-mez”. O som da primeira sílaba vem “da garganta”, uma mistura entre “que” e “gue”. O som pronunciado pelos
árabes é de difícil pronúncia pelos brasileiros, há uma complexa vocalização envolvida, tornando a palavra bem
diferente quando comparamos pronunciada por um iraniano e por um brasileiro.
135
Na verdade, se trata de um corante (solúvel) e não pigmento (insolúvel).
136
“[…] tola or tola schani. Tula significa verme, e, segundo a analogia usada pela palavra kermes, significaria
literalmente ser “tingido com verme”[…]” (KITTO, 1836, p. 238)
75
verme), de kokkus pelos gregos e coccus pelos romanos (KITTO, 1836, p. 238). O árabe Ibn
Beither137 denominava-o de “corante armênio” e os lexicografistas138 árabes atribuem alguma
relação do termo a palavra armena karmasal (HARRIS, 1833, p. 286). O manuscrito árabe
Hierozoic139 traduzido e comentado por Samuel Bochart140, de 1663, cita os seguintes termos de
origem árabe, como possíveis fontes etimológicas: kirmiz, kermez, kirmizi, kermez, kermezi,
alkamus, alkermez141 e karmasal, os dois últimos, da língua armena (BOCHART, 1663, p. 625).
A terminologia de pigmentos usada na Bíblia revelou o frequente uso do termo latino coccus
(e suas variações gregas kokkis). Nas duas versões da Bíblia Clementine Vulgate142, há citações dos
termos coccumque e coccoque (Exodus 25:4). Em duas transcrições em grego (Novum Testamentum
Graece143 e Septuagint144), encontramos na primeira (Revelação 17:4), o termo kokkinos145
(traduzido como “escarlate”) e na segunda (Exodus 25:4), o mesmo termo, kokkinos146,
corroborando com a versão de Kitto de que os gregos e romanos usavam comumente palavras com
a raiz coccus como referência ao inseto ou para a própria cor.
137
Também conhecido como Ibn al-Baytar (1197 – 1248). Alquimista, Farmaceuta, Botânico, Médico e Cientista.
138
Escritores e estudiosos de etimologia.
139
Obra árabe sobre alquimia.
140
Samuel Bochart (1599 - 1667). Francês erudito, especialista em etimologia e textos bíblicos com vasta experiência
em textos gregos e romanos, também possuía profundo conhecimento das línguas orientais tais como o hebraico,
siríaco e o árabe. Também assinava seu nome latinizado como Samuele Bocharto.
141
“Al” significa nesse caso, o artigo definido “o”. Como “o Kermes”.
142
Editio Typica, Biblia Sacra Vulgatae, 1598. Tradução da Bíblia feita por São Gerônimo, do latim antigo, para o latim
comum.
143
Publicado em 1898 por Eberhard Nestle, também conhecida como publicação Nestle-Aland.
144
Texto sagrado traduzido do hebreu para o grego (koiné).
145
“[...] πορφυροῦν καὶ κόκκινον”: “[…] em purpura e escarlate.”
146
[...]καὶ ὑάκινθον καὶ πορφύραν καὶ κόκκινον.”: “[...] e azul, e púrpura e escarlate”.
76
Há de se observar a ausência dos termos de raiz ligadas a vermiculum nos textos sagrados,
que não foram encontrados em nenhum dos textos bíblicos analisados para esse estudo. Por outro
lado, termos com a raiz vermiculum aparecem em abundância nos manuscritos sobre tecnologia de
pigmentos escritos em latim. Isso corrobora com as citações, como a de Plínio, que indicam o uso
da terminologia associada a raiz vermiculum pelo povo romano e do uso dos termos com raiz
associada a kokkus (coccus) ou kermes aos gregos.
No papiro de Leyden, um manuscrito da antiguidade tardia, escrito em grego e encontrado
no Egito147, datado aproximadamente do ano 300 a.c. (CLARKE, 2001a, p. 6), é possível encontrar
o uso de um termo diferente de kokkus em algumas receitas, sendo o termo krimnos, relativamente
parecido. Os tradutores do papiro, Caley e Jensen, afirmam que é “evidentemente um material
vermelho de tingimento, mas sua natureza e origem é desconhecida por nós.” (CALEY; JENSEN,
2008, p. 59, tradução nossa). No mesmo manuscrito há uma única passagem com o termo “kermes
da Síria”148. Como não houve nenhuma maneira de obter o texto original em grego, neste caso
assumiu-se que o tradutor fez uma tradução literal de kokkus ou coccus, optando por inserir o termo
kermes na tradução final.
Uma terceira receita mostra o uso simultâneo dos termos krimnos e kermes, como pigmentos
distintos. O texto parece considerar krimnos como de qualidade inferior (ibid., p. 72). Uma
descrição exata da cor do pigmento pode ser encontrada no papiro de Estocolmo (um dos
fragmentos do papiro de Leyden) que descreve: “[...] se quiser [a cor] vermelho-cereja149 então
adicione krimnos” (ibid., p. 77, tradução nossa). Não há textos que nos levem a concluir se krimnos
e kermes tratam-se exatamente do mesmo pigmento, embora essas últimas descrições indiquem que
se tratam de cores muito similares. Além da descrição da cor, a familiaridade entre os nomes
também reforça a ideia de que krimnos seja algum termo regional para o kermes, nessa hipótese,
tratando-se de praticamente o mesmo pigmento, mas extraído de algum outro inseto da família
coccoidea, provavelmente de uma subespécie local.
147
Encontrado no sepulcro de um corpo mumificado.
148
(CALEY; JENSEN, 2008, p. 78).
149
A descrição “vermelho cereja” é um indicativo de que a cor é sem sombra de dúvida uma laca vermelha animal,
extraída de algum inseto da família coccoidea.
77
Laurie cita que o kermes foi usado “[...] até a introdução da cochinilha150 vinda da América
no século dezesseis, por qual foi gradualmente substituído. Aparentemente, Cortés151 enviou os
primeiros relatórios sobre o inseto cochinilha para a Europa em 1523, e sabemos que Matthioli 152
o menciona como muito comum em 1549”(LAURIE, 1910, p. 271, tradução nossa).
Uma citação de Church mostra que em 1915, na Europa, o kermes já havia desaparecido por
completo, a mesma citação reforça a ideia de que todas essas cores derivadas de corantes animais
não possuem, a grosso modo, nenhuma diferença ou, pouca. Segundo o autor “[...] seu emprego na
pintura europeia parece ter caído em desuso, primeiramente por causa das lacas indianas e depois
pelas lacas de cochinilha. A matéria colorífica produzida por esses três tipos de insetos estão
intimamente aliadas quimicamente” (CHURCH, 1915, p. 207, tradução nossa). Church, portanto,
define que todos os corantes avermelhados de origem animal são substâncias com grande
similaridade, levando a conclusão de que é praticamente impossível discernir diferenças entre as
cores do kermes e da cochinilha, sem uma análise química precisa.
O estudo de Kirby, feito para a National Gallery153 mostra que por volta de 1550 o uso do
kermes já estava em declínio, corroborando com a informação citada por Matthioli. Esse mesmo
estudo analisa várias obras de mestres italianos, detectando o uso do kermes antes de 1550 em
quase154 todas as pinturas investigadas, após essa data, o uso da cochinilha é quase exclusivo.
(KIRBY; WHITE, 1996, p. 70) Essa conclusão, corrobora com a teoria anteriormente citada de
Church.
150
Pigmento animal, com as mesmas características do kermes, também extraído de um tipo de inseto similar. Sua
etimologia vem do termo coccus, a partir do termo cochineae (BOCHART, 1663).
151
Hernán Cortés (1485 – 1547), espanhol conquistador do povo Azteca, região central do México.
152
Pietro Andrea Gregorio Matthioli (1577 – 1699), italiano de Siena, médico e botânico do Renascimento.
153
A National Gallery, fundada em 1824, é um dos mais importantes museus da Europa. Abriga uma preciosa coleção
de mais de 2.300 pinturas, que datam desde a metade do século XIII até o início do século XX. É um dos museus que
mais investe em pesquisas laboratoriais no campo da pintura, referência na área.
154
A única outra exceção, compreendendo o madder. Cor similar ao kermes, mas de origem vegetal.
78
Eastlake (1847, p. 116) nos aponta as origens da palavra vermilion como um derivativo do
termo vermiculus, que por sua vez, é derivado (e diminutivo) de kermes155. A mesma teoria de que o
termo vermilion tem origens no termo kermes é proposta por Church:
Nos manuscritos consultados para esse estudo, diversas terminologias ligadas a raiz kermes
são usadas, principalmente o termo vermiculum. No Compositiones Vareae (Codex Lucenses 490),
há uma receita que claramente faz alusão a uma cor púrpura (carmim), usando o termo vermiculi. O
mesmo termo, com raízes no termo vermículum e suas variações, é encontrado no Mappae
Clavicula e no Coloribus Facientis (Manuscrito de S. Audemar).
Após as definições de Church e Eastlake, assim como pelo resto das citações e informações
colhidas para esse estudo, é possível entender que os termos kermiz, kirmiz, krimnos, kermes,
vermes, vermiculi, vermiculus e vermiculum traçam uma linha de ancestralidade sonora e escrita
partindo de uma mesma raiz. Assim como coccus, coccum, coquum, possuem outra relação,
partindo de uma raiz etimológica diferente.
155
Literalmente, vermes, do grego.
79
A informação mais segura é que todos eles, em algum ponto da antiguidade tardia,
denotavam uma relação a um corante animal, isto é, uma laca de cor magenta. Provavelmente, um
nome genérico usado para várias famílias dos insetos coccoidea. Baseado na sonoridade do termo
kermes e na cor desse corante, conclui-se que o termo moderno carmim partiu da raiz etimológica
desse termo, a palavra armênia kirmiz (SCHWEPPE; ROOSEN-RUNGE, 1986, p. 256, tradução
nossa).
O vermilion é uma substância de origem mineral, enquanto kermes (e suas variações) é uma
substância animal. O primeiro é um pigmento156, enquanto o segundo é um corante ou laca157. Além
disso, os pigmentos extraídos dessas diferentes fontes resultam em materiais de cores e
transparências distintas. Vermilion sendo um vermelho claro, levemente terroso e de corpo opaco,
kermes sendo um carmim (magenta avermelhado) com corpo transparente. Portanto, o pigmento
extraído do kermes é, quando comparado com os outros vermelhos analisados nesse estudo, o mais
distante da cor do vermilion. Além disso, tratam-se de substâncias químicas totalmente diferentes.
No entanto, a história do kermes é de suma importância para o estudo pormenorizado sobre o
vermilion, sendo que o último recebeu seu nome baseado numa terminologia ligada ao primeiro.
O kermes e o alizarin (cochinilha) geralmente recebem índice de permanência II-III (bom-
regular), isto é, configuram-se como materiais com boa ou regular resistência a luz ou as
intempéries, possuindo alguma chance de esmaecer, escurecer ou sumir. O IC (Color Index) do
156
Matéria insolúvel, geralmente opaco e permanente.
80
kermes geralmente é NR3158, pois não é um pigmento, mas um corante. O IC (Color Index) do
alizarin (cochinilha) geralmente é NR9159, pois também é considerado um corante. É possível
simular a cor natural do kermes e do alizarin fazendo uso de uma grande diversidade de corantes
sintéticos, inclusive da mistura de mais de um corante, embora a formulação mais comum seja a
mono-pigmentária de IC (Color Index) PR83.
158
http://shop.kremerpigments.com/en/dyes-und-vegetable-color-paints/natural-organic-dyes-und-vegetable-color-
paints/kermes-lice-36045:.html
159
http://www.naturalpigments.com/alizarin-crimson-pigment.html. Esse mesmo índice de cor (NR9) também é
usado para uma versão vegetal da cor, o Madder Lake.
81
4. O PIGMENTO VERMILION
Neste capítulo analisa-se os pormenores da história do vermilion e sua etimologia, sendo o
pigmento vermelho tradicional com a mais extensa e profunda carga simbólica. Esse capítulo
divide-se em dois assuntos distintos: as propriedades físicas e suas qualidades simbólicas
pertinentes a alquimia. Suas propriedades físicas e químicas são definidas, como sua cor, qualidades
corpóreas (reológicas) e problemáticas de permanência. Também é analisado os diferentes métodos
de fatura e a adequação do vermilion em produto final para fatura de tinta.
4.1. História
A grande maioria das obras mais recentes, consultadas para esse estudo descreve o vermilion160
como um pigmento vermelho puro, vermelho brilhante ou vermelho claro (MAYER, 2006, p. 127).
Mayer, por exemplo, especificamente descreve o pigmento como um vermelho puro, embora
provavelmente refira-se a sua versão feita a partir do método molhado, que será discutido adiante.
Tanto Gottsegen (GOTTSEGEN, 2006, p. 173) quanto McCormack (MCCORMACK, 2000)
descrevem o pigmento como um vermelho intenso161.
160
Nos países de língua portuguesa de Vermelhão ou Vermelho da China; Chamado de Vermilion (raramente
Vermillion, com dois eles) nos países de língua inglesa; nos de língua hispânica Bermellón (Vermell na Catalônia);
Vermellon na França e na Itália de Vermiglione.
161
Em ambos os casos, usam os termos da língia inglesa deep red.
82
Os textos entre os períodos da antiguidade tardia até o renascimento consultados para esse
estudo, usam termos que não descrevem de forma precisa a intensidade da cor. Em diversas
imagens de obras da antiguidade e da idade média, identificadas como contendo vermilion, é
possível identificar variadas intensidades de vermelho, assim como variadas nuances de matiz,
apresentando desde vermelhos mais intensos, beirando um vermelho primário, até intensidades mais
baixas, beirando um vermelho terroso. A questão cromática do vermilion será amplamente discutida
mais adiante.
162
Tabela com essas marcas se encontra na página X, Figura X.
83
mas há apenas uma substância química conhecida originalmente como vermilion: o sulfeto de
mercúrio163.
Todas essas substâncias modernas são uma substituição do pigmento original, portanto não
correspondem à mesma família química usada na idade média ou no renascimento. Todas essas
cores modernas mostram diferenças cromáticas, além de diferenças de propriedades corpóreas. As
famílias de pigmentos mais usadas pela indústria de tintas para substituir o vermilion são os
pirrolos, os naftóis e os cádmios, embora Mayer tenha citado que todos esses pigmentos, como por
exemplo, o cádmio “[...] não pode substituir seu matiz [do vermilion] particular. ” (ibid., p. 127).
O vermilion foi provavelmente um dos vermelhos intensos mais usados na história da arte,
compreendendo um material de inquestionável importância histórica. A fama do vermilion é
notória, sua aura repleta de história possui o poder de suscitar respeito e admiração em artistas que
pesquisam a história dos materiais históricos. Mas, devido ao fato de ter se tornado obsoleto, essa
história, assim como sua simbologia, se torna cada vez mais distante e desconhecida dos pintores
contemporâneos.
163
Conhecido na química por HgS. Material parecido com o quartzo em sua simetria e propriedades óticas. WEAST,
R.C. Handbook of Chemistry and Physics. EUA: CRC Press, 1978.
84
Figura 38 Robert Campin (Mestre de Flemalle), “Retábulo de Méride”, Óleo sobre Painel, 1425.
Fonte: https://goo.gl/KGeIHv, 2016.
85
Thompson atribui o conhecimento desse processo artificial como uma tecnologia alquímica
levada a Europa ocidental por volta do ano 1200 d.c. Refere-se ao período em que os árabes,
chamados de mouros pelos cruzados, penetraram no ocidente europeu através da conquista da
península Ibérica, um processo que teve início aproximadamente em 700 d.c. e declínio por volta de
1500 (THOMPSON, 1956, p.104). No entanto, como vimos no capítulo sobre o cinabro, segundo
Levey, Tufat al-ahbdb em seu manuscrito, fornece indícios de que o processo de fatura artificial já
era conhecido pelos árabes pelo menos já em 1000 d.c. (LEVEY, op. cit., p.21), duzentos anos antes
do que os europeus ocidentais.
Thompson diz ser impossível identificar quando e por qual cultura esse processo foi criado:
“se nos tempos helenísticos, pelos alquimistas sírios ou árabes, pelos bizantinos ou pelos
europeus”, embora mais de uma fonte aponte para o oriente. Portanto, afirma-se como única certeza
a disseminação desse conhecimento pelos árabes. O único fato passível de ser provado, é que a
receita para se fazer cinabro artificial ainda era uma novidade nos manuscritos ocidentais do séc.
XVIII, e completamente corriqueiras durante o séc. XIV (THOMPSON, 1956, p. 104).
86
Figura 40 Jan Van Eyck, “Virgem e Menino”, Óleo sobre Painel, 1434.
Fonte: https://goo.gl/ugqHnv, 2016.
A problemática da troca dos nomes entre vermilion e cinabro foi parcialmente causado pela
dificuldade em discernir uma distinção precisa entre sulfeto de mercúrio natural e sintético, pois
“quimicamente e fisicamente, o cinabro artificial não difere do natural[...] é praticamente
impossível determinar sua origem.” (GETTENS; STOUT, 1942, p. 172, tradução nossa). Mais
recentemente, o mesmo se confirma através da pesquisa de Walsh, Eastough, Siddal e Chaplin: [...]
a similaridade entre as versões natural e sintética levarão indubitavelmente a imprecisão de sua
determinação.” (EASTOUGH et al., 2005, tradução nossa).
Para todos os efeitos, o consenso entre os cientistas e historiadores sobre a definição entre
vermilion é cinabro é: o cinabro é um mineral encontrado na natureza, o vermilion é uma substância
feita de modo artificial, através de um processo alquímico. Essa distinção torna-se segura na
afirmação de Eastough: “O termo Cinnabar é atualmente usado como referência a sua forma
mineral natural; a forma sintética, normalmente chamada Vermilion. ” (ibid., p. 111, tradução
nossa). Passa-se agora a usar essa convenção durante a continuidade desse estudo, referindo-se a
vermilion somente para designar o material artificial, e cinabro para o material natural.
87
Hydroxyanthrapurin
Kermes Transparente Animal C22H20O13
(Ácido Carmínico)
Dihydroxyanthraquinone
Cochinilha Transparente Animal C14H8O4
(Alizarina)
Sulfeto de Mercúrio
Cinabro Semi-opaco Mineral HgS
(Natural)
Sulfeto de Mercúrio
Vermilion Semi-opaco Mineral HgS
(Artificial)
Tabela 2 Comparação entre os Vermelhos.
Fonte: Nossa, 2016.
Quando analisamos as cores entre todos esses pigmentos, compreende-se melhor a falta de
precisão quanto ao emprego de seus nomes entre sinopia, sangue de dragão, minium, cinabro e
vermilion, que apresentam forte similaridade cromática, principalmente em forma de pó. Os
corantes ou lacas kermes e cochinilha apresentando diferenças cromáticas mais distintas do que os
pigmentos minerais e o único vegetal, sangue de dragão.
89
Figura 42 Jan Van Eyck, “Retrato de Homem com Turbante”, Óleo sobre Painel, (detalhe), 1433.
Fonte: https://goo.gl/uSTV2Y, 2016.
Através das fotografias desses pigmentos incluídas na tabela acima, é possível entender que
algumas dessas cores são realmente muito parecidas, enquanto outras, nem tanto. É compreensível,
portanto, o motivo pelo qual essas cores eram confundidas nos períodos da antiguidade,
principalmente por olhos destreinados, seja numa obra de arte, pintura parietal, ou no ato da compra
dos materiais. É perfeitamente possível que até os próprios comerciantes, que adquiriam o produto
de viajantes ou de importadores, não tivessem completa certeza de estar adquirindo um produto ou
outro. O mesmo pode-se dizer dos artistas ou “clientes finais”. Também seria necessário considerar
que, por conta dessa dificuldade de distinção das cores, os próprios comerciantes pudessem
adulterá-las ou vender uma pela outra de forma deliberada, provavelmente misturando quantias de
produtos mais baratos a produtos mais caros. Não é nenhum espanto que ainda no renascimento os
termos ainda fossem confundidos e que houvesse imprecisão acerca de todas essas cores.
164
Projeto que pretende indexar informações sobre receitas de materiais artísticos. Disponível em:
https://arb.mpiwg-berlin.mpg.de/
90
kermes
Manuscrito de Leyden 300 a.c. Grego krimnos minium - -
Historia Naturalis -
77 a.c. Latim - - cinnabaris -
Plínio
De Architectura -
15 a.c. Latim - minium - -
Vitruvius
Materia Medica -
I d.c. Grego kokkus - kinnabari -
Dioscórides
coccus siricum vermiculu[m]
Mappea Clavícula 800 d.c. Grego cinnabaris
coccarin minium
Compositiones Variae 780-800 Latim, Grego, coccum bermiculum
- cinnabarim,
(Codex Lucensis 490) d.c. Espanhol coccarin uermiculum
cenobrii
De Diversis Artibus - minio
1100 d.c. Latim - cenobrium -
Teófilo
cinabriis
cinabrium
Segreti per Colori 1425-50 Latim kermes minium -
cinabrio
cinapro
cynobrio
1464- minie
Clm 20174 (Munchen) Latim - cynobrium -
1473 minio
cinobrium
O estudo de Roy fornece um resumo etimológico compreensivo, que sumariza nosso estudo
dos vermelhos, sintetizando as principais conclusões encontradas em outros estudos consultados:
Conclui-se sobre a etimologia do cinabro: o termo persa zinjafr deu origem ao termo grego
kinnabari, que por sua vez foi latinizado para cinnabrium e finalmente cinabro. É inconclusivo se o
termo sinope ou sinopia possui alguma relação na raiz cinabro.
Conclui-se que a etimologia do vermilion segue a seguinte linha: o termo armeno kirmiz
(quer-mez) deu origem a terminologia grega kermes. O termo kermes deu origem a duas outras
raízes: vermes (latim) e kokkinos (grego). O diminutivo de vermes deu origem a vermiculum e
finalmente, vermilion. Uma figura ilustrativa (Figura 43) foi preparada para exemplificar
visualmente a conclusão, de modo a facilitar o entendimento, mostrada abaixo:
92
4.2.3. Impermanência
As únicas fontes históricas consultadas que relatam problemas de impermanência cromática
com o pigmento processado de sulfeto de mercúrio (vermilion e cinabro) são os textos de Plínio e
Vitruvius. Como forma de contornar esse problema, os textos recomendam a proteção da camada
pictórica através da aplicação de um verniz, feito com óleo e cera. A fonte mais antiga dentre as
consultadas que relata problemas com a cor é de 1942, citando que ela tende a escurecer
principalmente quando exposta a luz direta e abundante. Por outro lado, “inúmeros exemplos em
pinturas testificam sua essencial estabilidade, e amostras observadas resistiram a exposição do sol
por pelo menos dez anos” (ROY et al., 1993, p. 166)
93
165
A série química dos halógenos, halogênios ou halogéneos é o grupo 17 (7A) da tabela periódica dos elementos,
formado pelos seguintes elementos: flúor, cloro, bromo, iodo, astato e Ununséptio. Esse grupo, juntamente com o
94
A pesquisa mais recente de Keune e Boon (KEUNE; BOON, 2005) parece chegar na mesma
conclusão: o vermilion pode apresentar problemas de permanência relacionados a fotos
sensibilidade quando em contato com a água, principalmente quando há montantes consideráveis
de cloro.
Segundo McCormack, o uso do pigmento puro, num meio oleoso, como no caso da tinta a
óleo, representa uma prática mais segura. (MCCORMACK, 2000)
grupo 18 (8A), dos gases nobres, são as únicas famílias formadas unicamente por não-metais. A palavra provém do
grego e significa formador de sais. Eles são elementos representativos.
95
166
Transformação de um ou mais elementos sólidos em gasosos, formando um terceiro elemento.
167
A pesquisa de (MELO et al., op. cit., 2014) põem em cheque a necessidade da sublimação.
168
Importante lembrar que, nesse caso, o método usado pelos holandeses, descrito por Roy é o método molhado.
169
“Beta” HgS.
170
“Alfa” HgS.
96
citação mais antiga encontrada na obra de Merrifield, como protosulfureto, a de Church e Doerner,
como ethiops, e a de Gettens como metacinabro (GETTENS; FELLER; CHASE, 1972, p. 53).
Aparentemente, a transformação para o segundo estágio, alfacinabro ou sulfeto de mercúrio
vermelho, é reversível, portanto, a substância pode passar pelo estágio de vermilion mas voltar a seu
estágio de metacinabro ou sulfeto de mercúrio negro caso a temperatura seja elevada demais. No
caso de temperatura insuficiente, não se transformará em vermilion, permanecendo metacinabro.
Mais informações sobre esse fenômeno são citadas no capítulo sobre os processos modernos de
fatura do pigmento, mais adiante.
171
Cennini deliberadamente omite sua receita, pois as mesmas “são encontradas facilmente”, portanto de
conhecimento comum. Sugere que o pigmento seja comprado pronto, em lojas especiais de cores.
172
Pórfiro é uma rocha do grupo das rochas ígneas, de textura porfirítica. É um produto de erupções vulcânicas. Os
principais minerais contidos nos pórfiros são o quartzo, feldspatos alcalinos e a biotita.
97
em forma de cone, com a base de acabamento opaco, para ser usado na adequação das partículas,
após a maceração com pistilo e porfírio.
173
http://www.bibliaon.com/versiculo/salmos_11_6/
98
substância de poder militar é mais tardia do que a associação medicinal, advinda de seu poder de
cauterizar. (PARTINGTON, 1960, p. 19)
O enxofre também foi usado, mais tarde, como importante constituinte de fertilizante, mas a
popularização dessa função só acontece em grande escala por volta de 1890 174, portanto, sua
associação com fertilidade é relativamente recente. (BUCKLOW, 2009, p. 62)
Portanto, a associação mais antiga relacionada a substância está vinculada ao fogo. Essa
associação não vem somente do fato de que quando aquecido se torna inflamável, mas também pelo
fato de que os vulcões exalam forte cheiro de enxofre quando em erupção, além de expelir enxofre
líquido, que torna-se sólido conforme é resfriado. (BUCKLOW, 2009, p. 62) Portanto, é inevitável
a associação com o inferno, demônios, calor e principalmente o fogo.
Em termos de simbologia hilemórfica, o enxofre é forma. Forma, pois, além de literalmente
possuir forma sólida e definida, é inflamável e perigoso, queima e marca tudo aquilo que toca,
portanto, dá forma e não se deixa moldar, é ele quem molda. Poderíamos chama-lo de matéria
ativa, considerado, portanto, masculino. Segundo Bucklow, “O Enxofre é a semente com a qual
tudo virá a ser” (BUCKLOW, 2009, p. 85, tradução nossa).
O Deus grego que representa o enxofre não poderia ser outro além de Hades175, filho de Cronos
e Rhea, irmão de Zeus. Hades também era chamado de Plutão, pelos romanos176, embora o deus
Hades tenha relação com plutão, na alquimia, o elemento enxofre é representado pelo planeta
marte177.
Hades é o rei do hy, lugar mítico para onde vão os mortos, também conhecido como “o reinado
de todas as almas mortas”. A história mitológica mais significativa com a participação de Hades
como coadjuvante é a “Abdução de Persephone”, a ser narrada com mais detalhes adiante. Hades
provavelmente serviu de inspiração para a figura demoníaca cristã, embora fisicamente para os
gregos e romanos fosse representado como um homem comum, de barba, carregando uma espécie
de garfo ou tridente (daí a associação moderna do demônio carregando esse instrumento) e
acompanhado de um cachorro de três cabeças, o cérbero, que guardava os portões do submundo.
(ROMAN; ROMAN, 2010, p. 183)
174
Fonte: http://www.tandontech.net/fertilisers.html
175
Segundo a etimologia, o termo Hades, na antiguidade, pode ter significado “invisível”, e por isso ele também é
conhecido por ser o rei do “mundo invisível”. Seu elmo ou capacete dá esse poder a aquele que o usar.
176
Também foi confundido e depois “unificado” a outro deus romano, chamado Dis.
177
Por sua vez, o planeta marte é relacionado, na mitologia romana, com o deus da guerra, Marte.
99
Enxofre
Elemento Fogo
Planeta Marte/Sol
Deidade Hades
Hilemorfismo Forma
Taoísmo Yang
Imagética Animal Leão
Gênero Masculino
Temperamento Ativo
Tabela 4 Simbolismos do Enxofre
Fonte: Nossa, 2016.
4.3.2. O Mercúrio
O mercúrio é um elemento químico de número atômico 80 e na tabela periódica recebe a
abreviação química de Hg. É o único metal líquido em condições normais de temperatura e pressão.
A temperatura de ebulição é de 356.73° C, excepcionalmente baixo para um metal. Ele é usado
como agente de dissolução (não consumação) de muitos metais, como o ouro e a prata, para formar
amalgamas, sendo as poucas exceções não dissolúveis nesse caso, o ferro e a platina. A etimologia
do nome vem do grego hydrargyrum, significando prata líquida ou água de prata. Recebeu o nome
a partir do deus romano Mercúrio.
O mercúrio é um metal pesado, portanto, tóxico: “em qualquer forma é venenoso, com toxidade
comumente afetando os sistemas neurológicos, gastrointestinais e renais. O envenenamento pode
resultar da inalação de seu vapor, ou da ingestão ou absorção de mercúrio através da pele”
(RAMACHANDRAN, 2015, p. 1, tradução nossa)
Essa toxidade e seus sintomas já eram conhecidos no oriente no séc. IX. O sábio Ibn Sina, no
séc. XI, já recomendava que fosse aplicado como remédio apenas na epiderme, de forma
superficial. Durante o Renascimento, foi amplamente usado no tratamento de sífilis (NORM et al.,
2008, p. 1, tradução nossa).
O mercúrio é mais famoso por seu uso na mineração, compreendendo ainda hoje, o principal
campo de conhecimento ao qual é associado. Por volta de 1200, começa a ser usado no oriente para
o refinamento de ouro. O ouro impuro era misturado com mercúrio e aquecido, as impurezas eram
sublimadas no processo, deixando apenas o ouro puro (BLANCHARD, 2005, p. 1157, tradução
nossa). Esse processo, além de ser usado na mineração, também era usado por ferreiros e joalheiros
100
A deusa grega que representa e é representada pelo mercúrio é Persephone, filha de Zeus e
Demeter. Zeus promete a mão de sua filha Persephone para seu irmão Hades, sem a permissão de
Demeter. Como a mãe não concordava com a união, Hades rapta-a e a leva para o inferno
(submundo) onde se tornam marido e mulher. A mãe de Persephone, Demeter, exige o retorno da
filha. Num impasse, temendo a ira tanto de seu irmão quanto da esposa, Zeus decide que ela terá de
dividir metade do seu tempo com Demeter, e a outra metade com Hades. A história, quando
revelados os aspectos simbólicos, mostra-se como uma alegoria do ciclo da vida, da fertilidade. O
verão é o período da visita de Persephone a terra, para visitar a mãe, e o período de inverno, sua
volta ao inferno, onde é rainha juntamente com Hades. (BUCKLOW, 2009, p. 227) Persephone tem
um papel duplo pois é responsável tanto pelo desabrochar das flores na primavera quanto pela
101
infertilidade dos campos durante o inverno. Além dessas, também está associada a morte, por ser a
rainha do submundo, esposa de Hades. (ROMAN; ROMAN, 2010, p. 392)
Mercúrio
Elemento Água
Planeta Vênus/Lua
Deidade Persephone
Hilemorfismo Matéria
Taoísmo Ying
Imagética Animal Unicórnio
Gênero Feminino
Temperamento Passivo
Tabela 5 Simbolismos do Mercúrio
Fonte: Nossa, 2016.
Jabir ibn Hayyan178 define como “teoria do enxofre-mercúrio” o dogma que usa dois elementos
para representar o princípio da união complementar hilermórfica, no qual um elemento é a forma
(enxofre), e o segundo, a matéria (mercúrio). Ele também narra a correspondência entre o fogo e a
água como representantes dentre os quatro elementos da forma e matéria, de modo que, o fogo é o
enxofre e água o mercúrio – “a combinação dos opostos é a fonte da vida”. Note que a teoria de
Jabir se apoia na teoria de Empédocles, que por sua vez exemplificava os opostos complementares a
partir dos elementos fogo/água e também como correspondente dentre os deuses Hades/Persephone
(BUCKLOW, 2009, p. 32).
178
جابر بن حیان, (721 – 815 d.c.). Jabir ibn Hayyan Al-Azdi, também chamado numa forma latinizada de Geber.
Alquimista islâmico, nascido na cidade persa de Tus, considerado o “criador” da química moderna.
179
Hierofania.: Do grego hieros (ἱερός), sagrado; e faneia (φαίνειν), manifesto.
103
Demayerne, médico (alquimista) e pintor, responsável por uma das mais importantes
compilações180 de pintura do período (BUCKLOW, 2009, p. 226).
180
Tratado Sloane 1862, conhecido também como Manuscrito Demayerne.
104
181
Jabir ibn Hayyan:
105
Em primeiro lugar, a forma e matéria devem se unir de forma a criar um equilíbrio, ou uma
harmonia. Portanto, há necessidade de uma união de pesos iguais, caso contrário, não haveria
equilíbrio.
Em segundo, é necessário pesar esses elementos para descobrir qual a proporção ideal para
equilibrá-los. Os pensadores alquimistas (matemáticos, astrônomos e estudiosos das ciências
naturais) consideravam o peso como uma qualidade. Portanto, aplica-se alguns conceitos da teoria
dos quatro elementos, pois assim como todos outros elementos químicos, o mercúrio e o enxofre
possuem correspondentes na tabela periódica medieval: os elementos da matéria182. Eles são
essencialmente compostos pelos elementos água (mercúrio) e fogo (enxofre). Nos tratados
alquímicos, a água é “duas vezes mais pesada” que o fogo, portanto, temos um elemento mais
pesado do que outro, nos dando dois pesos diferentes. Portanto, se a água é duas vezes mais pesada
do que o fogo, para criar uma combinação harmônica entre os pesos (qualidade), seria necessário o
dobro de fogo para equilibrá-los, tornando a mistura balanceada, ou, como diria Teófilo, para
encontrar um ritmo perfeito entre eles.
Em alguns textos alquímicos, a receita para equilibrar ou igualar os elementos de fogo e água é
aproximadamente “dezoito para oito” (18:8), ou aproximadamente “dois e um quarto para um” (2
1
⁄4:1), arredondando para uma proporção de 2:1. Essa proporção simbólica é fundamental para que
“[...] cada parte do fogo (enxofre) tenha um parceiro de água (mercúrio)”. (BUCKLOW, 2009, p.
93).
Desse modo, as receitas que obedecem essa proporção simbólica, ou hilemórfica, sempre terão
maior quantidade de enxofre (fogo) e menor quantidade de mercúrio (água). Conclui-se que
proporção “dois para um” (2:1) encontrada na grande maioria das receitas, é a simbólica: a união
harmoniosa de “partes iguais” entre os dois elementos (BUCKLOW, 2009, p. 94).
Essa alegoria simbólica pode ser considerada como uma poesia numérica que nos dá uma pista
sobre a necessidade de harmonizar ou equilibrar os ingredientes, a intenção de sugerir aos leitores
que é necessário estabelecer um equilíbrio ou harmonia entre os elementos da natureza para que
seja possível desvendar seus segredos.
Desse modo, a proporção funcional, do ponto de vista da química moderna, não faz sentido
nessas receitas. Se as proporções ideais para fazer vermilion não são reveladas nessas receitas, quais
seriam elas? Os detalhados artigos de Melo (MELO et al., 2013), Miguel (MIGUEL et al., 2011),
Nöller (NÖLLER, 2013) e Clarke (CLARKE, 2001b) são os mais recentes no campo e tornaram-se
essenciais para a obtenção de parâmetros científicos recentes. Acerca das proporções entre mercúrio
e enxofre descritas nas receitas da antiguidade e da idade média:
182
Terra, água, ar e fogo.
106
Portanto, torna-se claro que a grande maioria das receitas antigas trazem a proporção
simbólica, que não é a ideal para o processo de fatura. O estudo de Melo baseia-se num manuscrito
específico (Livro de Como se Fazem as Cores), que em contrapartida a todos os outros, faz uso de
uma proporção em maior concordância com a proporção química ideal: 2.267 kg de mercúrio e 453
gr de enxofre. Isto quer dizer que a proporção é aproximadamente de cinco partes para uma (5:1).
Clarke, em 2001, publicou dois estudos sobre o vermilion. Em um deles, define parâmetros
similares ao de Melo, acerca da proporção entre os ingredientes:
Clarke, em seu segundo estudo, cita dessa vez que a proporção ideal seria “seis para um” (6:1)
por peso, aproximadamente seis partes de mercúrio para uma de enxofre (CLARKE, 2001a),
exatamente a mesma proporção citada por Melo, definindo-se então como proporção química ideal.
Analisando as proporções contidas nos manuscritos e comparando-as com as proporções usadas
nos estudos recentes, a diferença mais notável é de fato, como Melo observa: nas antigas receitas
consultadas há quantidades muito maiores de enxofre quando comparadas aos parâmetros
modernos. Melo, em seu experimento cita que a proporção usada para sua reprodução do pigmento
183
Quantidade igual de moléculas.
184
Rocha de textura lisa.
185
Instrumento ou ferramenta em forma de bastão ou pilão, usado para para moer substâncias num invólucro
(almofariz).
186
Estequiometria.: 1. investigação e determinação quantitativa das relações entre reagentes e produtos numa reação
química; estequioquímica. 2. p.ext. proporção dos elementos químicos num composto (p.ex., H2O).
107
foi “1.047 g. de mercúrio e 0.1674 g. de enxofre” (MELO et al., 2011, p. 290), exatamente como a
proporção de 6:1 citada por Clarke.
As receitas grifadas em cinza escuro são os únicos com maior quantidade de mercúrio. As
receitas grifadas em cinza claro sugerem uma proporção de simbologia numérica hilemórfica e as
receitas grifadas em branco sugerem a mesma quantidade entre os dois ingredientes (1:1). Dentre
quinze receitas, sete mostram o uso da proporção simbólica.
Outra observação a ser levada em consideração, como veremos mais tarde no estudo de Clarke,
é que mesmo as receitas que invertem a proporção simbólica, usando maior quantidade de mercúrio
que enxofre, são consideradas hoje como receitas que levam enxofre em excesso. Como vimos
anteriormente, a proporção ideal seria “seis para um” (6:1) por peso, aproximadamente seis partes
de mercúrio para uma de enxofre (CLARKE, 2001a).
109
Portanto, do ponto de vista moderno, isto é, da química, todas as receitas consultadas para esse
estudo fazem uso de proporções com excessiva quantidade de enxofre. As únicas exceções sendo a
receita número 181 do manuscrito Bolognese, que é a segunda com a menor quantidade de enxofre,
compreendendo 1.360 kg de enxofre e 360 gr de mercúrio, uma proporção de (1:3 ¾) e aquela com
menor quantidade sendo o Libro de Como se Fazem as Cores. Motivo pelo qual Melo, Miguel e
Clarke escolheram essa receita para proceder com seu experimento prático.
Acerca do uso da proporção simbólica, faz-se a pergunta: o uso dessa simbologia numérica é
realmente prova da consciência do uso de uma linguagem alquímica recorrente, aliada ao desejo de
transmitir uma mensagem simbólica aos leitores ou simplesmente o ato mecânico de copiar, ipsis
literis, outras receitas?
110
5. REPRODUÇÃO DO PIGMENTO
Nesse capítulo define-se uma compilação de receitas dos períodos entre a antiguidade tardia até
o renascimento, com o objetivo de usá-las como guia para uma experiência prática: a fatura do
pigmento. Juntamente com os dados colhidos sobre as receitas históricas, incluiu-se a adição de
uma análise das investigações científicas mais recentes sobre tais processos de fatura. Registra-se
passo a passo os experimentos e analisa-se os resultados obtidos.
Apesar de algumas dessas receitas usarem o termo cinabro, entre outros termos, mas não
vermilion, não há dúvida de que todas elas são para produzir sulfeto de mercúrio, pois os
ingredientes são especificamente mercúrio e enxofre sublimados num processo de queima. A seguir,
a reprodução, na íntegra, de cada uma das receitas encontradas nos manuscritos apresentados na
tabela.
111
Clarke traduz a receita para o inglês usando o termo vermilion. Aglio cita que o manuscrito
usa na verdade o termo cinobrium (AGLIO; MOYA, 2003, p. 157). Consultando a transcrição em
latim original de Burnam, encontramos os termos cinnabari, cinnabarin e bermiculum, não
encontramos188 o termo cinobrium, citado por Aglio, embora o termo seja da mesma raiz
etimológica.
187
A maioria das receitas traduzidas para o inglês usam o termo flask (frasco). No texto original, o termo usado é
ampullam (ampôla).
188
Sendo essa, a única publicação consultada numa biblioteca distante, não foi possível verificar novamente e ter
absoluta certeza de que o termo de fato não estava na transcrição consultada.
112
Capítulo I. Vermilion
Se deseja fazer Vermilion, pegue um frasco e cubra o lado de fora em argila. Depois pegue uma
parte em peso de mercúrio e duas partes de enxofre branco ou amarelo apoiando o frasco em três
ou quatro pedras. Cerque o frasco com fogo de carvão, mas devagar, depois cubra o frasco com
uma pequena telha. Quando ver que a fumaça que sai da boca do frasco é da cor de palha, cubra-o;
quando sair fumaça amarela, cubra-o; quando ver fumaça vermelha, da cor do vermilion, saindo,
tire do fogo, e terá excelente vermilion no frasco (SMITH; HAWTHORNE, 1974, p. 26 , tradução
nossa).
Smith cita, numa nota de tradução, que o texto original em latim faz uso dos termos
vermiculum e cinnabaris189, embora ele opte por simplificar o termo para vermilion. As
palavras vermiculum (Vermiculü) e cinnabaris podem ser vistas na caligrafia em latim original
(SMITH; HAWTHORNE, 1974, p. 97).
189
“No uso moderno, esses termos são restritos, respectivamente, as formas artificiais [vermilion] e naturais [cinnabar]
do sulfeto de mercúrio. No entanto, tanto Vermiculum quanto Cinnabaris são usados em diferentes seções do Mappae
Clavicula para o que é sempre o produto artificial [vermilion], e nós mantivemos a diferença em nossa tradução.”
(SMITH; HAWTHORNE, 1974, p. 26).
113
Se quiser fazer cinabro, pegue enxofre, o qual existem três tipos, branco,
preto e amarelo; quebre-o numa pedra seca, adicione a ele duas partes de
mercúrio, com peso igualados numa balança, quando tiver misturado
ambos cuidadosamente, coloque-os num frasco de vidro, cubra-o
inteiramente com argila, bloqueie a boca para que gases não escapem e
coloque perto do fogo para que seque. E então enterre em carvões em brasa
e tão logo começe a esquentar, ouvirá um ruído dentro, quando o mercúrio
se une ao enxofre em brasa. Quando o ruído cessar, imediatamente retire o
frasco, abra-o e retire a cor (THEOPHILUS, 1847, p. 44, tradução nossa).
190
Uma das muitas receitas para fatura de vermilion encontradas no Manuscrito Segreti per Colori (Bolognese MS),
visto mais adiante, é claramente uma transcrição dessa mesma receita de Teófilo reproduzida aqui.
114
191
Em inglês, Montpellier Manuscript.
192
Há na verdade três receitas, mas as outras duas usam cinabro natural como matéria prima. São na verdade receitas
de adequação da pedras minerais, isto é, macerar as partículas até que formem um pó mais fino.
116
Os termos em latim usados nessa receita são cinabrii e cinaprium. (ibid., p. 251) Clarke
optou por traduzir literalmente o termo para cinabro e não adaptá-lo para vermilion. Numa outra
receita, não reproduzida aqui, sobre como tingir couro (pele animal) usa o termo vermiculum, mas
provavelmente em referência ao inseto kermes193. É mais um indício da problemática terminologia
dos pigmentos vermelhos.
193
Também é possível que isso seja uma referência ao pigmento vermilion, já pronto e pulverizado.
194
Peter ou Pierre de São Omero (Petrus de Sancto Audemaro). Não há nenhum outro registro ou informações
pertinentes sobre o escritor dessa obra em nenhum outro manuscrito ou documento do período ou posterior.
195
Temperar: na pintura, transformar pigmento em tinta passível de ser alastrada num suporte.
117
180. Para fazer Vermilion. – Pegue 453 gr de enxofre vivo, com 453 gr de
mercúrio, e 120 ml de latão, coloque os num recipiente bem coberto com
lutum sapientiae, aplique calor até que uma faca exposta a boca do
recipiente não descolore ou torne-se azul, e você terá bom Vermilion (ibid.,
p. 478, tradução nossa).
196
Argila “filosofal”, termo usado em manuscritos alquímicos, mas que se referem aos materiais barro ou argila
comum, quando trata-se do “trabalho externo” do alquimista. O significado do trabalho externo e interno é explicado
no cápitulo sobre alquimia.
118
182. Para fazer Vermilion. – Pegue uma parte de mercúrio e duas partes de
enxofre, limpo, amarelo e bem macerado; coloque-os numa garrafa e
cubra-a levemente com lutum sapientiae; depois coloque no forno,
colocando primeiro em fogo leve; cubra a boca da garrafa com uma telha;
e quando tiver uma fumaça amarela, mantenha o fogo até que a fumaça se
torne vermelha ou violeta; então retire do fogo, e quando estiver frio, terá
um bom vermilion (ibid., p. 480, tradução nossa).
186. Para fazer Vermilion de modo rápido – Pegue 453 gr de chumbo, 453
gr de mercúrio e quatro partes de enxofre amarelo; macere todos juntos, e
coloque´-os num pote de cerâmica sobre o fogo por 14 horas, e estará
pronto (ibid., p. 480, tradução nossa).
5.1.8. Il Riposo
Entre os tratados do Renascimento o de Raffaelo Borghini é menos conhecido do que os
populares tratados de Leonardo e de Alberti. No entanto, os dois últimos não oferecem nenhuma
descrição ou receita para o pigmento Vermilion, tornando o tratado de Borghini uma peça
importante em nosso estudo, a única que representa um texto do Renascimento. O tratado foi escrito
em Firenze, por volta de 1550. Borghini, em seu texto original em italiano latinizado, usa o termo
cinabrio.
211. Hoje há uma nobre cor para [ser usada com] óleo, o cinabro, o qual
pode ser feita dessa forma. Pegue três partes de enxofre e duas partes de
mercúrio, misture-os bem entre si, coloque-os numa garrafa de vidro, leve
ao fogo por seis horas, moderadamente, depois que a garrafa se quebrar, se
encontrará dentro um cinabro muito bom (BORGHINI, 1730, p. 167,
tradução nossa).
Figura 55 Il Riposo.
Fonte: http://goo.gl/GqOvmf, 2016.
Essa receita é curta e vaga, sendo a única que cita diretamente a maceragem com o uso
específico de um almofariz197. Os termos usados na língua original são sinabre e vermillon.
197
Ferramenta para macerar ou triturar substâncias, geralmente com formato de uma pequena bacia ou pia,
esculpido em pedras lisas, como o mármore, granito ou ágata, ou modelado em cerâmica. Parecido com o “pilão”.
121
Portanto, o estudo também adverte que o alfacinabro pode voltar a ser metacinabro em
temperaturas acima de 580º C, resultando em metacinabro misturado a matéria amorfa escura, a
transformação cessa em 374° C (MELO et al., 2013).
O estudo de Nöller e Renate (NÖLLER, 2013) não tinha como objetivo a reprodução do
pigmento, trata-se de um estudo cromático, isto é, sobre a cor resultante do pigmento. No entanto,
ao narrar a história do material, assim como estudos anteriores, considera que o ponto de
transformação ocorre através de sublimação em 588º C. (NÖLLER, 2013).
Abaixo, a tabela reúne os pontos de transformação vistos nos estudos mais modernos. As
experiências práticas realizadas com o método molhado estão assinaladas com o símbolo “*”, na
frente do autor do estudo. Os estudos que não realizaram um experimento prático estão assinalados
em itálico.
Temperaturas
Estudo Metacinabro>Alfacinabro Alfacinabro>Hypercinabro
Melo et al. (2011) 235° C -
*Bell et al. (2010) 269º C -
Melo et al. (2013) 374° C 580° C
Miguel et al. (2011) 350° C/370°C/400° C 580° C
*Dickson (1959) - 344° C
Gettens et al. (1972) 580° C -
Nöller (2013) 588° C -
Tabela 8 Temperaturas.
Fonte: Nossa, 2016.
122
O estudo de Melo mostra que as operantes processuais, mesmo sobre condições controladas,
podem apresentar resultados que apresentam diferenças:
[...] o pote com metacinabro foi colocado sobre as brasas e aquecido por 2 – 3 h. Depois desse
tempo de reação, geralmente, uma conversão completa era observada; mas, em outras tentativas,
depois de 6 – 8 h a reação ainda não estava completa (Munir aqueceu o sistema por cerca de um
mês com 250º C, com somente conversões parciais) (MELO et al., op. cit., p.212, tradução nossa).
Com a soma das informações colhidas nessas fontes mais recentes, mais os padrões
detectados nas receitas tradicionais, traçou-se um plano de ação para produzir algumas experiências
práticas, na tentativa de produzir o pigmento vermilion.
5.3. Reprodução
Mercúrio com pureza de 99.9%, assim como enxofre, com pureza de 95% foram usados em
todos os experimentos. Frascos limpos e higienizados foram reservados, assim como argila, para
que os mesmos pudessem ser lacrados, como mandam as receitas. Lacrar os frascos é fundamental
não somente para manter a temperatura, mas para conter o vapor tóxico gerado no procedimento,
por esse motivo o mesmo foi banido em Veneza, por volta de 1294 (ibid., p. 77). Durante o
procedimento de queima e de abertura dos frascos uma máscara especial para vapor tóxico foi
usada. Para manipular os frascos e todos os materiais após a queima, luvas descartáveis de silicone
foram usadas.
Como um guia para os primeiros experimentos, criamos uma tabela com todos as diferentes
operantes extraídas de diferentes receitas da antiguidade, dentre as consultadas para esse estudo,
para que fosse usada como um guia a ser consultado durante a experimentação prática.
Operantes
Outras Derret.
Data (d.c.) Manuscrito Mercúrio Enxofre Maceragem Frasco Cobertura Orifício Tipo de Fogo Tempo
Subst. Enx.
Mappae Cerque com
800 1 2 _ _ _ _ Coberto _ Fumaça
Clavicula Fogo
750/800 Compositiones 2 1 _ _ Sim _ _ _ Forno Fumaça
Enterrado
1100 Theophilus 2 1 _ _ Sim Vidro Coberto _ Fumaça
Carvões
Fogo
1261 Hayvin 2.260 kg 453 g _ _ Sim _ Coberto Sim Fumaça
Moderado
Montpellier
1300 2 1 _ _ Sim Vidro Coberto _ Sempre Lento Ruído
172
S. Audemar
1300/1400 1 2 _ _ _ Vidro Coberto _ _ Vapor
174
S. Audemar
1300/1400 1 2 _ _ _ Vidro Coberto _ Muito Lento Vapor
175
Toleravelmente Cor
1425/1450 Bolognese 179 2 1 _ Sim _ _ Coberto _
Forte Vermelha
120 ml
1425/1450 Bolognese 180 1 1 _ _ _ Coberto _ Calor Faca
Latão
123
Fogo Conteúdo
1425/1450 Bolognese 181 360 g 1.360 g _ Sim Sim _ Coberto _
Moderado Subir
Fogão (Fogo
1425/1450 Bolognese 182 1 2 _ _ _ _ _ _ Fumaça
Leve)
Carvão (Pouco
1425/1450 Bolognese 183 1 2 _ _ Vidro _ _ Fumaça
Fogo)
4 453 g
1425/1450 Bolognese 186 453 g _ Sim Cerâmica _ _ Sobre o Fogo 14 h
partes Chumbo
1500 Il Riposo 2 3 _ _ Sim Vidro _ _ Moderado 6h
Tabela 9 Operantes.
Fonte: Nossa, 2016.
2 2
Mercúrio 1 parte 2 partes 1 parte 2 partes 1 parte 1 parte
partes partes
RESULTADOS
Cinza Cinza
Cinza Cinza Cinza Cinza Cinza Cinza
Cor Metálico Metálico
Metálico Metálico escuro escuro escuro escuro
escuro escuro
Material
Material Pó e
metálico
Forma metálico Mercúrio Crosta Crosta/Pó Crosta Crosta Crosta
amorfo
amorfo Separados
+ Crosta
Sublimação
_ _ _ _ _ _ _ _
Vermelha
Tabela 10 Bateria I: Carvão sem Controle de Aquecimento
Fonte: Nossa, 2016.
Figura 62 Queima.
Fonte: Nossa, 2016.
A maior parte dos experimentos que levavam maior quantidade de enxofre resultaram numa
massa amorfa, cinza escura, com aparência de queimada. Os experimentos contendo maior
quantidade de mercúrio, a proporção hilemórifica ou simbólica, apresentaram como resultado uma
massa cinza metálica, de textura quebradiça (Fig. 63).
Em somente dois casos, com maior quantidade de mercúrio, foi possível observar uma matéria
de cor marrom profundamente escura (Fig. 64, esq.), mas ao meio das inúmeras partículas escuras
foi possível discernir partículas de cor carmim escura (Fig. 64, dir.). Foi necessário partir a massa
com uma espátula para uma análise mais detalhada.
Processo de
Colher Colher Colher Colher Colher Colher Colher
Mistura
Tempo de
5 min. 5 min. 10 min. 10 min. 10 min. 10 min. 10 min.
Mistura
Tipo do Frasco de Frasco de Frasco de Frasco de Frasco de Frasco de Frasco de
Invólucro Vidro 100 ml. Vidro 100 ml. Vidro 100 ml. Vidro 50 ml. Vidro 50 ml. Vidro 50 ml. Vidro 50 ml.
Cobertura do Tampa e Tampa e Tampa e Tampa e Tampa e
Argila Argila
Invólucro Argila Argila Argila Argila Argila
Tipo de Carvão Carvão Carvão Carvão Carvão Carvão Carvão
Aquecimento Vegetal Vegetal Vegetal Vegetal Vegetal Vegetal Vegetal
Média de Aprox. 200º Aprox. 200º Aprox. 400º Aprox. 400º Aprox. 300º Aprox. 300º Aprox. 300º
Temperatura C C C C C C C
Temperatura Aprox. 300º Aprox. 300º Aprox. 700º Aprox. 700º Aprox. 600º Aprox. 600º Aprox. 500º
Máxima C C C C C C C
129
Tempo de
30 min. 30 min. 1 h. 1 h. 1:30 h. 1:30 h. 2:00 h.
Cozimento
Cinza Cinza
Cinza Cinza Cinza Cinza Cinza
Cor Avermelhado Avermelhado
Escuro Escuro Escuro Escuro Escuro
Escuro Escuro
Crosta Crosta Crosta Crosta Crosta Crosta Crosta
Forma
Arenosa Arenosa Arenosa Arenosa Arenosa Arenosa Arenosa
Tabela 11 Bateria II: Carvão e Termômetro de Mercúrio.
Fonte: Nossa, 2016.
198
Cor usada X.
130
Em outras tentativas, o pó tomou forma do frasco, observando que a parte inferior, aquela em
contato direto com o frasco, parece ter obtido uma coloração escura mais forte, aparentemente
queimada (Fig. 67).
Em duas únicas tentativas dessa bateria, observou-se o acúmulo de uma fina e transparente
película de matéria com coloração de um vermelho surpreendentemente intenso nas paredes dos
frascos (Fig. 68). A matéria em questão parece ter sido sublimada nas paredes do frasco. A matéria
resultante no fundo do frasco possuía coloração marrom violetada, com pequenas partículas soltas
de mercúrio. A matéria vermelha colhida das paredes do frasco resultou num pó demasiadamente
escuro quando macerado. Abaixo, uma tabela que organiza todas as variantes desses experimentos,
assim como os resultados obtidos.
131
Figura 68 Sublimação I.
Fonte: Nossa, 2016.
Mercúrio 10 g. 10 g. 10 g. 10 g. 10 g. 10 g.
Enxofre 6 g. 2 g. 2. g. 2. g. 2. g. 2. g.
Processo de Pistilo e
Pincel Pincel Pincel Pincel Pincel
Mistura Pincel
Tempo de Aprox. 1
Aprox. 1 h Aprox. 1 h Aprox. 1 h Aprox. 1 h Aprox. 1 h
Mistura h
Frasco de Frasco de
Tipo do Frasco de Frasco de Frasco de Frasco de
Vidro Vidro 50
Invólucro Vidro 50 ml. Vidro 50 ml. Vidro 50 ml. Vidro 50 ml.
100 ml. ml.
Cobertura do Tampa e Tampa e Tampa e Tampa e Tampa e
Tampa
Invólucro Argila Argila Argila Argila Argila
Tipo de Carvão Carvão Carvão Carvão Carvão Carvão
Aquecimento Vegetal Vegetal Vegetal Vegetal Vegetal Vegetal
Média de
350° C 230° C 230° C 230° C 230° C 230° C
Temperatura
Temperatura mais de
300° C 300° C 300° C 300° C 300° C
Máxima 400° C
Tempo de
2:42 h 3:00 h 4:00 h 4:00 h 4:00 h 5:00 h
Cozimento
RESULTADOS
Sublimação
_ Sim Sim _ _ _
Vermelha
Partículas Partículas Partículas
Obs _ Pó Violetado Pó Violetado
Vermelhas Vermelhas Vermelhas
Tabela 12 Bateria III: Carvão e Termômetro Digital.
Fonte: Nossa, 2016.
199
A queima foi efetuada pelos artistas Felipe Zuzuki e X.
133
A maioria dos experimentos dessa bateria resultaram numa matéria cinza escura, as vezes
levemente violetada, as vezes levemente marrom violetado. Em poucos experimentos foi possível
observar, no fundo da olha, uma crosta pouco mais avermelhada (Fig. 72).
Toda a matéria resultante dessa bateria de experiências, após devida maceração, resultaram em
pigmentos demasiadamente escuros. Abaixo, todas as variantes usadas nesses experimentos estão
organizadas numa tabela.
134
Processo de
Pincel Pincel Pincel Pincel Pincel Pincel Pincel
Mistura
Tempo de Aprox. 1 Aprox. 1 Aprox. 1 Aprox. 1 Aprox. 1 Aprox. 1
Aprox. 1 h
Mistura h h h h h h
Tipo do
"Olha" "Olha" "Olha" "Olha" "Olha" "Olha" "Olha"
Invólucro
Cobertura do
Argila Argila Argila Argila Argila Argila Argila
Invólucro
Tipo de
Chapa Chapa Chapa Chapa Chapa Chapa Chapa
Aquecimento
Regulagem
4,5 4 5 4,5 4,5 6 7
Chapa
Média de
250° C 200° C 370º C 220° C 220° C 390° C 420° C
Temperatura
Temperatura
300° C 260° C 390° C 255° C 255° C 450° C 480° C
Máxima
Tempo de
2h 3h 3h 6h 9h 30 h 30 h
Cozimento
RESULTADOS
Sublimação
_ _ _ _ _ _ _
Vermelha
Partículas Partículas
Vermelho Vermelho
Obs _ _ _ _ _
Escuro Escuro
(Fundo) (Fundo)
Tabela 13 Bateria IV: Chapa Aquecedora, Termômetro Laser e Olhas.
Fonte: Nossa, 2016.
200
Claridade ou valor: intensidade referente a quão claro ou luminosa é a cor em questão.
136
Outros experimentos resultaram numa massa marrom avermelhada, dessa vez, mais clara. O
resultado era promissor, desde que todos os experimentos anteriores resultaram em vermelhos mais
escuros, mesmo após a maceração.
Em pelo menos dois experimentos, alguns setores da matéria resultante apresentaram coloração
vermelha intensa, sendo necessário a cuidadosa separação entre setores mais escuros e setores de
coloração vermelha mais intensa (Fig. 75). Obteu-se, após macerado num almofariz, um pigmento
de coloração vermelha alaranjada (Fig. 76). É importante notar que nas figuras, o que se vê é o pó
resultante da separação da matéria, portanto, não constitui a matéria integral resultante dos
experimentos.
137
Exp 29 Exp 30 Exp 31 Exp 32 Exp 33 Exp 34 Exp 35 Exp 36 Exp 37 Exp 38
Mercúrio 6.6 g 6.0 g 6.0 g 2.0 g 2.0 g 2.0 g 2.0 g 2.0 g 1.0 g 2.0 g
Enxofre 0.6 g 2.3 g 2.3 g 0.4 g 0.4 g 0.4 g 0.4 g 0.4 g 0.2 g 0.4 g
Processo de
Pincel Pincel Pincel Pincel Pincel Pincel Pincel Pincel Pincel Pincel
Mistura
Tempo de
1 h. 1 h. 1 h. 1 h. 1 h. 1 h. 30 min. 45 min. 45 min. 45 min.
Mistura
Tipo do Vidro 100 Vidro 100 Vidro 200 Vidro 100 Vidro 100 Vidro Vidro 100 Vidro Vidro 100 Vidro
Invólucro ml. ml. ml. (alto) ml. ml. 100 ml. ml. 100 ml. ml. 100 ml.
138
Cobertura do
Tampa Tampa Tampa Tampa Tampa Tampa Tampa Tampa Tampa Tampa
Invólucro
Tipo de
Chapa Chapa Chapa Chapa Chapa Chapa Chapa Chapa Chapa Chapa
Aquecimento
Regulagem
4,5/5 5 5 6,5/7 6,5/7,5 7 7 6 9/9,5 8
Chapa
Média de Aprox. Aprox. Aprox. Aprox. Aprox. Aprox. Aprox. Aprox. Aprox. Aprox.
Temperatura 380° C 350° C 350° C 420° C 470° C 470° C 470° C 380° C 500° C 370° C
Temperatura Aprox. Aprox. Aprox. Aprox. Aprox. Aprox. Aprox. Aprox. Aprox. Aprox.
Máxima 420° C 390° C 380° C 470° C 490° C 490° C 490° C 410° C 520° C 400° C
Tempo de
19 h 23 h. 25 h 35 h. 33 h. 30 h. 24 h. 3 h. 4 h. 4 h.
Cozimento
Termômetro Laser Laser Laser Laser Laser Laser Laser Laser Laser Laser
RESULTADOS
Exp 39
Mercúrio 1.0 g
Enxofre 0.2 g
Tempo de Cozimento 45 h.
Termômetro Laser
140
6. FATURA DA TINTA
Nesse capítulo define-se os processos da fatura da tinta, isto é, a confecção de um veículo e da
mistura desse veícula a carga inerte (pigmento), para que resulte numa pasta com consistência
adequada de tinta. Para isso, analisa-se os veículos e os processos usados nos períodos condizentes
com nossos objetivos. Registra-se passo a passo o experimento da fatura de tinta.
Posteriormente, a tinta é analisada, definindo suas características cromáticas e corpóreas
(reológicas), e comparadas a tintas industriais feitas com sulfeto de mercúrio. As cores produzidas
para esse estudo são identificadas através do sistema Pantone e Notação Munsell.
6.1. Veículos
6.1.1. Óleo de Linhaça Prensado a Frio
As tintas, de modo geral, são compostas de dois ingredientes: um veículo, ou meio líquido,
que possa dar alastramento a mistura, transformando-a numa pasta e uma carga inerte, nesse caso,
pigmento, responsável por dar cor a mistura. No caso da tinta a óleo, o veículo é necessariamente
algum tipo de óleo vegetal, no caso da aquarela, o veículo é necessariamente, água.
A maioria dos tratados medievais analisados para esse estudo são vagos quanto ao uso de
óleo nas tintas. Dão atenção quase que exclusivamente a fatura de têmperas a ovo e tintas magras201
para iluminuras e afrescos. Há no entanto, inúmeras provas do uso da tinta a óleo durante a idade
média e até mesmo anteriormente. Como exemplo, a citação sobre o uso do óleo de linhaça como
veículo nos manuscritos de Teófilo Presbyster202, aproximadamente do ano 1100 (mas
provavelmente mais antigo), no manuscrito de Heraclius e no manuscrito de Ghiberti203, que cita o
uso do óleo por Giotto204, por volta de 1290 (EASTLAKE, 1847, p. 46). A receita para produção
artesanal de óleo de linhaça de Teófilo é a seguinte:
[...] pegue [as sementes da] linhaça e seque numa panela sobre o fogo, sem
água. Depois, coloque num porfírio e macere com um pistilo até que se
torne um pó fino; coloque novamente na panela, colocando um pouco de
água, até que fique bem quente. Depois, coloque num tecido e coloque
numa prensa, na qual azeite, nozes ou papoula são prensados na mesma
maneira. Com esse óleo, mistura minio, cinabro, sobre uma pedra, sem
água [...] (THEOPHILUS, 1847, p. 25, tradução nossa).
201
Tintas que levam como veículo substâncias aquosas, não oleosas.
202
Theophilus Presbyter (circa 700-800 a.c.), Norte da Europa. Monge bizantino autor do manuscrito românico De
Diversis Artibus, também chamado de Schedula Diversarium Artium.
203
O manuscrito de Ghiberti compreende a última seção do manuscrito Commentaries. (WOOD, 2007, p. 272)
204
Giotto di Bondone, Florença. Conhecido pela “introdução” da perspectiva nas pinturas do renascimento.
141
Próximo ao ano 1500, no alto Renascimento, há maior incidência de receitas para tintas
feitas com óleo vegetal, usadas para pinturas em painéis. A receita do Libro dell´Arte de Cennino
Cennini é outra referência sobre os veículos usados em pinturas na idade média:
Quando fizer esse óleo, poderá ser cozido de outras formas além dessa; é
mais perfeito para pintura, mas para mordente tem de ser cozido ao fogo.
Pegue seu óleo de linhaça, e durante o verão coloque-o numa frigideira de
cobre, ou vasília, e deixe no sol até que chegue agosto. Se deixa-lo até que
reduza seu volume pela metade, ele será perfeito para pintura. Saiba que o
achei em Florença como o melhor que se pode encontrar (CENNINI, 1954,
p. 59, tradução nossa).
Ambas as receitas nos mostram que o óleo vegetal usado é o óleo da linhaça. No
entanto, a receita de Teófilo define a maneira de se extrair o óleo a ser usado misturado ao
cinabro, enquanto a receita de Cennini indica um processo de adequação ou modificação do
óleo prensado a frio, resultando no que comumente chamamos hoje de “óleo de sol”.
Há de se observar que o óleo de linhaça disponível nas lojas de materiais artísticos de
hoje é diferente do óleo disponível na europa medieval. O óleo na idade média, assim como no
renascimento, era extraído esmagando as sementes da linhaça num moinho ou prensa, método
que denominamos hoje de prensagem á frio (EASTLAKE, 1847, p. 321). O óleo de hoje, é
produzido através de um processo industrial que envolve o amolecimento das sementes através
de calor produzido por vapor para a máxima extração de óleo das sementes. Após a extração,
uma preparação de ácido sulfúrico é misturada ao óleo para remover a mucilagem causada pela
extração a calor. Há também outros processos, ainda mais modernos, como a extração com
solventes e o refinamento com substâncias alcalinas 205 (GOTTSEGEN, 2006, p. 75). O
processo que envolve a adição de substâncias alcalinas resulta num óleo chamado hoje de óleo
alkalí. É evidente que tratam-se de materiais diferentes. De qualquer forma, ambas as receitas
fazem uso de óleo de linhaça prensado a frio, portanto, define-se como o óleo mais indicado
para a reprodução da tinta desse estudo, mais condizente com o material usado nesses
períodos.
Mas há ainda o método de adequação do óleo, descrito por Cennini, expondo-o ao calor
do sol até que o mesmo “reduza pela metade”. Gottsegen explica resumidamente o que
acontece nesse processo e as características do material resultante: “[...] o óleo resultante é
205
Daí o nome Óleo Alkalí. A substância alcalina serve para reduzir a acidez do óleo. Baixos teores de acidez são bons
para reduzir a tendência do óleo de amarelar. O mesmo é depois lavado para remover os sais precipitados pelos
agentes alcalinos.
142
muito viscoso, um pouco clarificado e de boa secagem. O óleo é parcialmente polimerizado 206
e um pouco oxidado207; é um bom nivelador208” (ibid., p. 75, tradução nossa).
Mayer corrobora com as seguintes contribuições sobre o processo: “[...]a ação do sol e
do ar tem três aspectos: oxida parcialmente, polimeriza parcialmente e alveja efetivamente o
óleo [...] aumenta sua rapidez de secagem e suas qualidades protetoras e niveladoras”
(MAYER, 2006, p. 187). Este óleo espesso, alterado pelo calor, é chamado de óleo secante209,
óleo secativo, quando espessado através de métodos artificiais de calor, e chamado de óleo de
sol quando espessado através do calor natural do sol.
Gottsegen cita que “[...] o óleo prensado a frio é preferível, por sua baixa viscosidade
e boa habilidade de absorção” (GOTTSEGEN, 2006, p. 205, tradução nossa). Essa afirmação
põem em dúvida quais óleos devem ser usados: o óleo prensado a frio puro citado por Teófilo
ou aquele adequado através do método de Cennini, também chamado de óleo de sol. Portanto,
foi necessário recorrer a estudos recentes que identificam quais os tipos de óleos usados em
pinturas dos mesmos períodos das receitas usadas em nosso estudos.
A partir de estudos que dissecam a estrutura de pinturas a óleo de primitivos flamengos
entre 1434 e 1540, assim como de primitivos alemães entre 1445 e 1510, escolas que
popularizaram o uso da pintura a óleo em cavalete em toda a europa, Billinge apresenta uma
extensa tabela que mostra óleo de linhaça prensado a frio como o veículo mais usado nas
pinturas analisadas, em segundo lugar, o óleo de linhaça prensado a frio espessado por calor
(polimerizado ou óleo de sol). A pesquisa de Carlyle nos aponta quais direções devem ser
tomadas acerca do uso de ambos os óleos:
[...] a escolha do óleo dependia não somente do pigmento usado, mas
também da estação. Óleos tratados somente pelo cozimento ou
[cozidos] em conjunto com compostos metálicos (secantes) para
acelerar sua secagem eram as vezes recomendados somente para os
dias de inverno, quando úmido, o clima frio aumentava o tempo de
secagem (CARLYLE, 1995, p. 3, tradução nossa).
206
Quando o óleo oxida, ele também polimeriza, isto é, sua estrutura molecular muda de forma que uma vez
solidificado, torna-se uma substância diferente da original. Nesse caso, engrossando. (GOTTSEGEN, 2006, p. 75)
207
Os óleos vegetais não secam por evaporação, mas por oxidação. Isto é, aborvem oxigênio e solidificam formando
um filme elástico e resistente. (GOTTSEGEN, 2006, p. 75) O que Gottsegen quer dizer por “um pouco oxidado” é que o
óleo já se conserva num estado “pré-seco”, embora continue elástico e dê alastramento.
208
Nivelador por que “nivela” ou “some” com as marcas de pinceladas, ao contrário do óleo de linhaça comum, que
possui tendência de conservar as marcas feitas pelas cerdas do pincel.
209
Drying Oil: Óleo secativo, que seca formando uma película elástica. Não confundir com secante, tratando-se de um
material empregado na pintura completamente diferente.
143
Nossa conclusão é a de que para produzir a tinta, fazendo uso dos mesmos materiais
usados na época, serão necessários dois óleos vegetais: óleo de linhaça prensado a frio e esse
mesmo óleo aquecido até que fique polimerizado, também conhecido como óleo de sol. Testes
com ambos os óleos, assim como uma mistura entre os dois, serão produzidos e comparados.
Um litro de óleo de linhaça prensado a frio foi colocado numa travessa larga de vidro.
A travessa foi deixada num telhado (Fig. 77), numa área que pudesse receber sol abundante
durante todo o período do dia, sem ser coberto por qualquer projeção de sombra de alguma
parede ou objeto mais próximo. A travessa foi coberta com um vidro comum, para evitar que a
água da chuva fosse colhida pelo recipiente. Algumas peças de borracha foram colocadas entre
o vidro e a travessa para deixar espaço suficiente para que a transpiração do óleo pudesse
evaporar para fora da travessa sem formar gotas de água no vidro. A travessa permaneceu
nesse local, sem ser tocada, durante três meses, quando foi finalmente retirada. Uma camada
de mucilagem escura, solidificada, se encontrava na superfície. Abaixo dessa camada foi
possível escorrer o óleo resultante do processo para um novo recipiente.
Observou-se que, ao contrário do que descrevia a receita, uma quantidade pequena de
óleo foi perdida, sendo que a quantidade de óleo usada originalmente não diminuiu pela “sua
metade”. Nossa estimativa é a de que aproximadamente cerca de 1/6 do óleo original, ou
menos, foi transformado em linóleo seco e descartado.
144
Segundo Mayer (MAYER, 2006), o óleo polimerizado possui propriedades reológicas capazes
de nivelar a pincelada e saturar a tinta, acentuando seu croma210. Testes foram realizados com nosso
óleo polimerizado e as pinceladas tornaram-se de fato mais niveladas. A cor das pinceladas com as
quais um pouco desse óleo foi usado se tornaram levemente mais vibrantes pela ação de saturação
causada pelo óleo.
6.2. Dispersão
Segundo Gottsegen e Mayer, para se faturar artesanalmente tinta a óleo, o pigmento deve ser
primeiramente misturado com uma espátula dura e pouca quantidade de óleo, usando como área de
trabalho uma peça sólida de pedra (mármore ou granito) ou vidro (liso ou jateado). O óleo deve
penetrar completamente no pigmento, sem deixar nenhuma molécula seca. Deve-se atentar ao uso
excessivo de óleo nesse estágio, não é necessário atingir a pastosidade de tinta ainda, mas uma pasta
relativamente dura e espessa (GOTTSEGEN, 2006, p. 209). Depois desse estágio, é necessário o
uso de uma moleta211, ferramenta tradicional feita de cristal ou vidro, usada para fatura de tinta. A
mesma deve ser colocada em cima da massa espessa de tinta deslizando com a mistura até que seja
espalhada ou “aberta” na superfície em uma fina camada que possa ser trabalhada. A tinta estará
pronta após a mistura ter adquirido consistência macia e brilhante (MAYER, 2006, p. 202).
O vermilion foi colocado no centro de uma superfície de vidro e pouco a pouco adicionamos
nossa mistura de óleo polimerizado e óleo de linhaça prensado a frio ao pigmento. Misturando com
o auxílio de uma espátula dura, porém flexível, atingimos uma massa densa, porém relativamente
maleável. A pasta foi espalhada pela superfície de trabalho para facilitar a dispersão com moleta.
210
Referente ao valor (luminosidade) e cor (intensidade).
211
O termo em inglês para a ferramenta é muller, literalmente moedor. No entanto, a ferramenta é usada para
dispersão e não para moagem, desde que o pigmento já se encontra em forma de pó. Em nenhuma fonte inglesa
explica-se a a falta de precisão do termo. As obras traduzidas ou escritas em português repetem o termo inglês,
usando o termo “moagem” para dispersão, mas usam o termo Moleta ao invés de moedor. Nas lojas brasileiras de
materiais artísticos ou para restauração é comum o uso do termo Mol para identificar a Moleta, mesmo não havendo
quaisquer citações a esse termo nas bibliografias em português. É possível que seja uma corruptela do termo inglês
muller.
146
Figura 80 Dispersão.
Fonte: Nossa, 2016.
Figura 81 Dispersão
Fonte: Nossa, 2016.
147
212 Como visto anteriormente, código exclusivo e universal atribuído a cada uma das substâncias pigmentárias usadas nas tintas
para diferencia-las.
213 Como visto enteriormente, loja tradicional de materiais artísticos em Londres.
214 Loja de materiais artísticos de Firenze, Itália. Oferece uma linha de tintas artesanais, feita na própria loja, com pigmentos
Artist´s Oil (Lefranc) Chinese Red Vermilion Hue PR255 Pyrrole (Diketo)
PR254 Pyrrole (Diketo)
Artist´s Oil (Lefranc) French Red Vermilion Hue PO72 Benzimidazolone (Azo)
PR255 Pyrrole (Diketo)
Artist´s Oil (Lefranc) Red Vermilion Hue PV19 Quinacridone
PR168 Anthraquinone
Blockx Pyrrolo Vermilion PO73 Pyrrole (Diketo)
Blue Ridge Cadmium Vermilion PR108 Cádmio
Tabela 15 Tintas Industriais com Etimologia Baseadas nos termos Cinabro e Vermilion.
Fonte: Nossa, 2016.
Nöller cita que a era comum obter um vermilion mais claro através da adição de trissulfeto
de antimônio215 ao sulfeto de mercúrio. O método holandês, do séc. 17 continha ainda outras
substâncias misturadas ao sulfeto de mercúrio, como o antimônio, ferro, cálcio ou chumbo. Isto faz
com que a diferença de cor seja notável quando comparamos o vermilion feito pelo processo seco
com o vermilion de processo molhado. Segundo Nöller, no começo do séc. 19, na Índia, era
possível obter mais de dezoito vermelhos diferentes com o processo molhado. (NÖLLER, 2013, p.
3)
Na obra Uma Notação de Cor (MUNSELL, 1907), Munsell confere a notação 5R 5/9 para o
pigmento chamado vermilion (MUNSELL, 1907, p. 27). Não há apontamento para qual o processo
de fatura do pigmento usado para receber essa notação, se o mesmo foi processado pelo método
molhado ou seco, ou se o pigmento é sulfeto de mercúrio natural (cinabro) ou artificial (vermilion),
podendo tratar-se de qualquer um dos dois. Essa notação determina um parâmetro de intensidade e
o valor específico para essa amostra de vermilion usada por Munsell, mas isso não quer dizer que
todo vermilion seja exatamente igual. Como exemplo, em outras publicações científicas, foi
possível encontrar notações Munsell com diferentes parâmetros, provando que de fato, diferentes
pigmentos podem apresentar diferentes cores, resultado das diferentes operantes usadas em seus
processos de fatura. As diferentes notações Munsell encontradas são: 5R 5/10 (FRANK, 2011, p.
99), 5R 5/12 (VÁRIOS, 2006, p. 40), em outro 5R 5/14 (PIPES, 2003, p. 145).
É notável que o parâmetro que define a matiz dessas cores é igual em todas as notações (5R),
representando um vermelho puro, ou seja, sem proximidade ao laranja ou ao violeta. O parâmetro
que define o valor dessas cores também é o mesmo em todas as notações (5), mostrando que não se
trata de um pigmento muito claro ou escuro, mas de valor mediano (5). O parâmetro que define a
intensidade mostra-se diferente em todas as notações, compreendendo 9,10, 12, e o mais intenso,
14. Abaixo, a Tabela 16 organiza as notações Munsell encontradas em diversas obras. As mesmas
não oferecem os códigos Pantone para as cores em questão:
215 Sb2S3.
151
Figura 82 Vermilion
Fonte: Nossa, 2016.
10.0R
39 2349U
5/14
Dentre os mais de 40 experimentos feitos para esse estudo, o pigmento resultante mais
intenso, quando comparado a várias terras naturais como a Sombra Queimada (Burnt Siena), é
claramente mais intenso e claro, identificado com notação Munsell 10.0R 5/14 e código Pantone
2349U. A tendência do vermelho obtido é de sub-tom alaranjado, criando sub-tons rosados quando
em tints (misturado ao branco). Uma reprodução fotográfica pode ser vista abaixo:
Figura 83 Amostra
Fonte: Nossa, 2016.
153
Tabela 18 Comparação
Fonte: Nossa, 2016.
As marcas industriais que mais se aproximam do pigmento resultante dos experimentos são
a Michael Harding, Rublev e Master Pigments, enquanto as marcas Holbein e Cornelissen
mostraram-se mais intensas e com maior tendência ao vermelho magentado. Nenhuma das marcas
de tintas industriais que oferecem o vermilion genuíno indica qual o processo de fatura do
pigmento. No entanto, é provavelmente seguro afirmar que o processo de fatura das tintas
industriais que mostram-se mais intensas é o método molhado e não o seco.
Os testes preparados para compreender e documentar as propriedades corpóreas desse
pigmento, quando transformado em tinta a óleo, apresentaram os seguintes resultados:
A grande maioria das amostras contendo carga média de tinta secaram em 24 horas.
Todas as tintas mostraram excelente alastramento e aderência.
Todas as tintas possuíam entre excelente e boa cobertura.
Todas as tintas mostraram corpo semi-opaco ou semi-transparente.
Todas as amostras, após secagem, possuíam película brilhante.
Todas as amostras, após secagem, possuíam película de excelente flexibilidade.
154
Alastramento Excelente
Aderência Excelente
Brilho Intenso
Elasticidade Excelente
Tabela 19 Propriedades do Vermilion.
Fonte: Nossa, 2016.
155
7. CONCLUSÃO
Durante a antiguidade, o termo cinabro era usado para denominar inúmeros pigmentos
vermelhos, palavra comumente empregada para identificar a substância tóxica natural conhecida
como sulfeto de mercúrio, extraída de minas por toda a europa. Por sua vez, o termo vermilion
possui raízes conectadas ao persa kirmiz, nome originalmente usado no oriente médio para
denominar uma laca de origem animal, ou a própria cor carmim. O termo vermilion foi mais tarde
usado pelos europeus ocidentais para denominar a substância resultante do processo de síntese
artificial de sulfeto de mercúrio, também ou cinabro, processo de tecnologia provavelmente do
oriente próximo ou da china. Aparentemente, o termo português vermelho é a única língua que
possui suas raízes ligadas diretamente a esse pigmento. A existência de uma versão natural e de
uma versão artificial com as mesmas características e a constante confusão entre outros pigmentos
vermelhos tornaram praticamente impossível discernir com absoluta certeza as origens de todos
esses termos.
A questão da impermanência do material está relacionada com traços de impurezas, sobretudo
de substâncias halógenas, como o cloro. O contato das matérias primas usadas em sua fatura, ou do
próprio pigmento, com água contaminada por halógenos é determinante para a deteriorização da cor
em longo prazo. É possível que o posterior processo de lavagem do pigmento, usado para a remoção
de enxofre e para facilitar a maceração no almofariz, sejam a principal causa de contaminação do
vermilion usado nas obras da antiguidade. Há de se considerar como uma prática inteligente o uso
do pigmento puro sem que o mesmo passe por uma lavagem.
As receitas da antiguidade possuem parâmetros de fatura que fazem uso de proporções
simbólicas entre as matérias primas enxofre e mercúrio. A relação entre os números denota o uso de
um simbolismo numérico tradicionalmente usado em textos alquímicos para ilustrar a necessidade
de harmonização entre as matérias naturais, nesse caso, o fogo (enxofre) e água (mercúrio). Essa
proporção, uma espécie de poesia matemática, prova a associação do pigmento com os fundamentos
da alquimia. Além da simbologia por de trás da proporção das substâncias usadas para sua criação,
não deve ser deixado de lado a simbologia implícita no próprio processo de queima dos materiais: a
transformação de duas substâncias simbolicamente opostas numa terceira substância. Há uma óbvia
conotação de transcendência do material, pois o mesmo é resultado da união de dois elementos
ordinários num terceiro mais nobre, útil aos pintores. É notável que todas essas simbologias façam
alusão ao próprio ato de criação divina, porém dessa vez, criação efetuada pelas mãos do homem.
Lê-se aqui, um princípio de pensamento iluminista na alquimia, sendo possível comparar o processo
de fatura do pigmento com o processo criativo, tornando o pigmento ou a cor num símbolo do
próprio processo de pintura, o poder criado pelo homem de moldar a matéria amorfa em algo
reconhecível e extraordinário, um paralelo com o poder de Deus.
156
tintas industriais: há diferenças de valor, intensidade e matiz. Essas diferenças estão relacionadas ao
controle das diferentes operantes no processo seco, ou, pelo fato de que os pigmentos comparados
com o pigmento desse estudo foram originados a partir do processo molhado.
A resposta para a hipótese de que o uso de um material moderno como substituto de um
material tradicional representaria um distanciamento da realidade dependerá das diferentes
perspectivas advindas das diferentes áreas de atuação. Para o artista interessado no estudo das
técnicas dos velhos mestres, a discussão do uso de materiais substitutos aos originais nos parece
óbvia: configura-se como um distanciamento da realidade. O emprego de materiais legítimos e não
de substitutos é imperativo para uma verdadeira investigação científica. Quando um artista faz uso
de um pigmento moderno, comprado numa loja, e outrora faz uso de um pigmento processado no
ateliê, através de um processo arcaico, complexo e demorado, há uma certa diferença na postura de
uso do material. Em suma, não se faz uso de um material moderno da mesma maneira que se faz
uso de um material histórico artesanal, a começar pelo zêlo com que o artista possui em conservar
ou gastar esse material valioso. É inevitável que o artista reflita com total cuidado com o modo
como usará determinado pigmento, devido a seu valor e raridade. Não se deve subestimar o fato de
que o material certamente possui o poder de invocar na imaginação do artista figuras e símbolos
relacionados a sua história: indícios de como, quando e por quem esse material fora empregado.
Esses indícios podem figurar como meros coadjuvantes ou participarem como centro gerador ou
motivador de uma obra.
Para os profissionais de conservação, essa é uma questão que sempre ficará em inferior posição
as questões de longevidade, permanência e integridade física da obra. No caso específico do
vermilion, a problemática de detrimento da capa pictórica em função de sua sensibilidade a luz
quando contaminado por halógenos, deve ser considerado, embora a conclusão desse estudo sugere
que essa deteriorização é causada pela contaminação de cloro no sulfeto de mercúrio, sendo
possível então, obter vermilion livre de problemáticas de conservação. Portanto, se a questão da
permanência tem importância maior nessa área, a resposta é que contanto que o pigmento seja
similar em cor e estável, o distanciamento da autenticidade na perspectiva química é irrelevante.
Já no caso dos processos artísticos, a questão da autenticidade estará diretamente vinculada ao
conhecimento que o artista ou observador retém sobre o material. Nesse caso, pode considerar
irrelevante as problemáticas de conservação, dando maior importância a perspectiva química e ao
uso do pigmento autêntico, mesmo que ele possua problemas de conservação. Para o artista que
murgulha numa pesquisa histórica sobre pintura, torna-se impossível desvincular-se dos símbolos e
das imagens evocadas pelos materiais autênticos. Portanto, o uso de um substituto ou de uma
material autêntico pode influenciar o artista em processo ou a fruição de uma obra.
158
O caso é agravado no processo criativo de artistas com o hábito de faturar seus materiais e que
constantemente fazem uso de seu conhecimento alquímico, trazendo mudanças fundamentais no
processo de pintura contemporâneo. A amplitude de informação que um único material histórico
fornece ao pesquisador é suficientemente rica para abrir um vasto leque de possibilidades, mesmo
que o pesquisador perambule somente numa pesquisa teórica que explora a história das
características, do uso e da simbologia de um material. Há ainda, a possibilidade de se aprofundar
numa pesquisa prática que disseca os métodos de fatura do mesmo, abrindo ainda outros caminhos.
Seja lá qual o enfoque da pesquisa escolhida pelo artista pesquisador, seja ela histórica,
simbólica ou prática, essa experiência pode fazer com que o mesmo tenha uma diferente postura
perante o material. Como exemplo, a aplicação de um material feito pelo próprio artista em sua obra
torna a experiência diferente de quando faz-se uso de um material industrial: a postura do artista
perante a ferramenta faz com que ele empregue o material de forma nunca antes considerada. O
artista, que necessitou se embrenhar no contexto histórico desse material certamente acessa e
articula signos e significantes extraídos de sua memória que habitam essa pesquisa, influenciando
inúmeras etapas de seu processo: o modo como aplica a tinta, sua quantidade, em quais setores da
pintura ela será aplicada, as cores que serão usadas paralelamente e uma outra infinidade de
escolhas que afetarão o resultado estético da obra. Em suma, o material ganha vida própria,
dificilmente empregado de forma aleatória, sempre usado através da influência e consideração de
seu contexto específico. Essa postura materializa-se em obras que mostram indícios da jornada de
pesquisa. Em suma, a prática do uso de materiais autênticos ou da fatura de materiais podem se
tornar o início de uma pesquisa que é o principal propulsor da produção pictórica.
159
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