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​Direção de Arte de “Amor, Plástico e Barulho (2014): um olhar1

Thais Helena da Silva Leite2

Erly Vieira Júnior3

Universidade Federal do Espírito Santo

Resumo

O presente artigo se propõe a lançar um olhar sobre o trabalho da equipe de arte


do filme que ganhou o Candango de Ouro no Festival de Brasília/2013 como
melhor direção de arte, de Melhor Filme/Prêmio Abraccine 2013 e na Mostra
Filmes Livre/2014.

Palavras chave: cinema; direção de arte; paleta de cores; props; dressing;


locação

1.Introdução

O primeiro longa-metragem dirigido pela pernambucana Renata Pinheiro é


uma ficção que conta a história de Jaqueline (Maeve Jinkings), cantora de música
brega que já emplacou alguns sucessos e agora amarga o declínio de sua
carreira, e de Shelly (Nash Laila), uma jovem dançarina que sonha em se tornar
cantora. Já nos primeiros minutos, quando a banda Amor com Veneno entra em
uma boate, encabeçada por Jaque, fica claro que ela e Shelly vão disputar os
holofotes, emolduradas pelo universo Brega.

2. Locação/Cenografia

Pernambuco respira o brega. A gente tem, hoje, uns 400


artistas que vivem do brega. A Região Metropolitana tem
umas 60 casas de shows. Em termo de show business,
aqui em Pernambuco, o brega responde por 70%. Até
shows grandes têm que ter uma bandinha de brega,
afirma Fábio Tenório, empresário da banda Torpedo e
dono de casas de show em entrevista a G1.

1
Trabalho apresentado para a disciplina Direção de Arte, UFES 2019/1

2
Aluna finalista do curso de Cinema e Audiovisual, UFES-ES. e-mail:​euthaishelena@gmail.com
3
Orientador do trabalho. Professor do curso de Cinema e Audiovisual- UFES/ES
O brega nordestino, em especial na periferia pernambucana atualmente faz
muito sucesso nos nights clubes, bem como nos programas de tv locais. Esse
show business foi retratado no filme de Renata Pinheiro, em alguns momentos
até com estética de documentário, principalmente em se tratando das locações,
onde se processa essa cultura urbana popular.

A locação principal é a casa de show Bate Papo especializada em brega


contemporâneo, no Arruda, que promove festas principalmente às
segundas-feiras, o ano inteiro. Mostrar o universo da música brega do jeito que
ele realmente é, documental, sem muita maquiagem nem julgamento.
Figura 1- frente do Bate Papo figura 2 - palco da boate Bate Papo

Figura 3 - visão panorâmica da casa de show Bate Papo

Já para as filmagens na locação da Boate Metrópoles, em Boa Vista, o terraço


foi transformado em casa de shows com pisca-piscas, luminárias recicladas no
formato de abacaxis e folhagens de todo o tipo.
Não há dúvida de que o Brega Pop é pastiche, que
Jameson define como “a cópia idêntica de algo cujo
original jamais existiu” (2002: 45).
Mas é justamente nesse processo de simulacro que a
estética brega embaralha as divisões entre a cultura
popular e a cultura de consumo e permite que camadas
subalternas em parte ignorem os sistemas que trabalham
para sua exclusão. (FONTANELLA, 2005: 109)

Nesse filme Renata Pinheiro ambienta os ensaios, os shows, a relação


profissional com um produtor, a ascensão e queda de intérpretes do brega, as
redes de divulgação.

Ao mesmo tempo era necessário retratar/ambientar a crueza da realidade do


cotidiano do universo brega. Por isso, o Dia: um contraste entre sonho-luzes
artificiais-música da noite e moradia pobre-transporte de kombi-roupas de usar em
casa. Os períodos do dia servem de elemento narrativo, explanando a miséria
econômica e sentimental das duas rivais. A locação dos quartinhos de aluguel
reforça esse viés documental,representado por um tipo de cortiço, cujo
proprietário é Amadeo, o empresário da banda da qual elas fazem parte. A
cenografia também contribui para assinalar a diferença entre Jaqueline x Shelly.
Enquanto Jaqueline tem uma penteadeira com espelho, já no quarto de Shelly,
tem só uma espelho improvisado sobre a cadeira e para reforçar sua juventude foi
colocado um boneco do Pica-pau.

3. Figurino

Todo desenhado por Joana Gatis, é um figurino com cores vivas, como que
emolduradas pelas músicas alegres do tecnobrega ou brega pop.

A moda do Brega Pop tende a combinar roupas


inspiradas nas estéticas elitistas, geralmente em tons
exagerados, com suas referências populares e uma
funcionalidade ligada à exposição estratégica do corpo.
As roupas femininas abusam de decotes, fendas, barrigas
e ombros à mostra, geralmente deixando ver marcas do
bronzeado (FONTANELLA 2005: 105)
Figura 4- figurino Dia de Jaqueline Figura 5 - figurino Jaqueline modelo

Figura 6 - Figurino Dia de Jaqueline

Figura 7 e 8 - Figurino Praia Jaqueline

Característica de Jaqueline do começo ao fim do filme, personagem que


representa uma mulher mais madura, sensual, que já experimentou o sucesso e
já firmou uma imagem: roupa decotada, marquinha de biquini como rotina que tem
que ser permanentemente refeita.

Shelly é a mais jovem, dançarina que sonha ser cantora. Figurino diurno com
sandália baixa-rasteirinha, roupas baratas, bijuteria discreta e prateada firmando a
diferença com Jaqueline: roupas e bijuterias coloridas, com tecidos de melhor
qualidade, salto alto.

Quanto ao figurino da noite, cores vivas, brilho, texturas com transparências,


modelagem do corpo numa clara composição de sensualidade e erotismo.

A maquiagem e o cabelo reforçam a diferença entre elas: Jaqueline com a pele


maltratada e unhas grandes alaranjadas.A noite, maquiagem carregada. Shelly no
contraponto usa maquiagem discreta, esmalte rosinha em unhas curtas, com
exceção da sombra carregada, como se isso fosse um tipo de padrão no brega.

A mudança de Shelly, sua ascensão, vai sendo pontuada pela equipe de arte:
após ficar loira (símbolo do erotismo, com sua referência a Marilyn Monroe) passa
a usar batom vermelho e unhas longas. E no paralelo, a decadência de Jaqueline
é pontuada por roupas mais claras.
Figura 9 - Shelly Noite depois que ficou loira

4. Props/Dressing

Já o valor de sedução do corpo no Brega Pop está ligado


à sua dinâmica em relações entre corpos e aos
significados eróticos que pode produzir. (FONTANELLA,
2005:111)

Assim, reforçando o erotismo como algo que faz parte do pensamento de uma
parte significativa da periferia no universo brega, um objeto de cena como a
coberta com o desenho de uma mulher nua, usada no cotidiano da personagem,
traz para a cena esse pensar, esse sentir.

Figura 10 - Colcha de Shelly

Outro destaque é o copinho de plástico rasgado que embala a cena mais


melancólica do filme, quando ​Jaqueline (Maeve Jinkings), canta “chupa que é de
uva”, invertendo a sensação de erotismo, alegria, relaxamento para um momento
de fossa, depressão e tristeza . Compondo a cena com uma fala curta, “O
sucesso é um copinho de plástico bem vagabundo” ela se dá conta que o seu está
rasgado e prestes a ser jogado fora. A fugacidade do sucesso. Sua decadência.

5. Paleta de Cores

A juventude como elemento distintivo entre decadência e estrelato.

A atmosfera abstrata é aquela que se liberta de um plano


ou de uma cena (e às vezes da integralidade de um
filme), mas que não é visível porque não está
materializada através de uma forma concreta..
(MARTINS,2014: .86/87)

A criação da atmosfera para a ascensão ao estrelado de Shelly se contrapõe a


decadência de Jaqueline. Esse conflito como base da trama, norteou a paleta de
cores.

Shelly sendo apresentada ao espectador, nas cenas dia do início, primeiro na


interrna/bar está num cenário rosa , com roupa e acessórios rosa, cor que é
também do seu biquini na externa/praia. ​Criar essa atmosfera da mocinha recém
egressa da adolescência, com uma paleta de cores pastéis, no intuito de
apresentá-la de forma infantil: cheia de ilusões de quem está começando uma
carreira e ainda não sabe que a juventude não é eterna.

A cor como ferramenta de linguagem cinematográfica atua em “Amor, plástico


e barulho” como fio condutor. Quando Shelly fica loira, ​o vermelho entra em cena
no seu figurino e maquiagem. Vermelho da sensualidade, do erotismo, elementos
definidores do tecnobrega: é a transformação de Shelly.

A oposição entre Jaqueline e Shelly, tem como significante a curta carreira


para as mulheres que cantam no universo musical brega, que se refere, numa
constante substituição por novos rostos jovens, com grande presença do
erotismo. A entrada do vermelho quase inevitável por estar intimamente associado
a esse ambiente de sensualidade, “busca dar uma identidade à realidade de alma
brega”.

São vermelhas as luzes na locação boate quando Shelly dança com Alan
(parceiro musical de Jaqueline), que se revezam com luzes verdes. Vermelho é o
batom de Jaqueline no auge da carreira e de Shelly quando começa sua mudança
para cantora.

Com conflito permanente e em transformação, a opção da paleta de cores foi


trabalhar com cores complementares: o verde secundário entra em vários tons. O
verde contribui para emoldurar as personagens: na locação do cortiço (frente da
casa, corredores, sala do empresário-um dos locais de ensaio) e da boate as
paredes são verdes, sendo essa última em tons saturados.

Figura 11 - sala de ensaio na casa de Amadeu

Verde também é a roupa dos dançarinos com ponto de foco vermelho no


batom de Jaqueline, no período que ela era a cantora da banda e chamada de
musa. Verde também é a parede do quarto de Jaqueline e seu figurino dessa
cena, em contraste com a bermuda de Shelly vermelha, quando essa última vai
pedir um batom vermelho emprestado e Jaqueline consente: essa aproximação
vai mostrando a transformação de Jaqueline que não está mais sendo chamada
para cantar enquanto Shelly já está se apresentando nos palcos como cantora.
Vermelho é a cor do sucesso aqui.
A poética da visão das texturas deve-se principalmente
ao papel que elas representam na formação das
tonalidades de cor, ao desenho das tramas que fabricam,
imprimindo ritmo à visão, à transparência, opacidade,
brilho que ofereciam, além de seus significados
simbólicos e subjetivos. (HAMBURGER 2005: 43​)

Num universo onde o corpo erótico tem papel de destaque, a equipe de arte
fez um trabalho interessante com os brilhos (Vestidos e acessórios com pedras:
pulseira, brincos, colares), com a transparência (figurino do bar: saída de praia), o
desenho da colcha de Shelly com a mulher nua que deu ritmo a visão (figura 10),
todas referências criadas a partir das texturas.
F​igura 12: Figurino Jaqueline na boate Figura 13 -saída de praia de Jaqueline

Considerações

“Amor, plástico e barulho” conseguiu trazer para as telas o universo brega em


suas várias instâncias: ​uma proliferação de produtores culturais da própria
periferia, como distribuidores, músicos, dançarinas (as), coreógrafos,
compositores, intérpretes, e sua dinâmica de trabalho entrelaçada esse universo,
criando suas próprias estruturas. Renata Pinheiro foi muito feliz na caracterização,
ela mesma com vários trabalhos de direção de arte 4 e como diretora também ,

4
​Deserto​ (2016), de Guilherme Weber, ​Tatuagem​ (2013), de Hilton Lacerda, ​Febre do rato​ (2011),
de Claudio Assis. Prêmio de melhor direção de arte no Festival de Paulínia 2011., ​Estamos juntos
(2011), de Toni Venturi, ​De pernas pro ar​ (2010), de Roberto Santucci, ​Histórias de amor duram
apenas 90 minutos​ (2009), de Paulo Halm, ​Hotel Atlântico​ (2009), de Suzana Amaral, ​A festa da
menina morta​ (2009), de Matheus Nachtergaele, ​Feliz Natal​ (2008), de Selton Mello, ​Baixio das
bestas​ (2007), de Cláudio Assis, ​Árido Movie​ (2006), de Lírio Ferreira, ​Amarelo manga​ (2002) e
Texas hotel​ (1999) de Claudio Assis.
tendo Dani Vilela como diretora de arte e Joana Gatis no figurino. A equipe de arte
cria uma narrativa, tem um papel epidérmico, principalmente se analisarmos o
reduzido número de diálogos.

Referências

FONTANELLA, Fernando Israel. A estética do brega: cultura de consumo e o corpo nas


periferias de Recife. Recife: UFPE, 2005. Dissertação de mestrado, disponível em
http://www.unicap.br/tedeprof/tde_arquivos/16/TDE-2007-11-23T142340Z-78/Publico/Fern
ando%20Israel%20Fontanella.pdf​, acessado em 04 de abril de 2019.
HAMBURGER, Vera. ​Arte em cena: a direção de arte no cinema brasileiro.​ São Paulo:
SEC/Senac, 2014.

MARTINS, India Mara. “​Estratégias visuais e efeito de real na construção do espaço


cinematográfico”. In XII Congresso Latinoamericano de investigadores de la
comunicación. ​Lima: ALAIC, 2014

PEDROSA, Israel. ​O universo da cor.​ Rio de Janeiro: Senac, 2003

VARGAS, Gilka. Reflexões sobre o trabalho de direção de arte: Amor, Plástico e


Barulho in Catálogo sobre direção de artes​. p.108

fotos da filme do portfólio da Diretora de Arte Dani Vilela:


https://www.danivilela.com/retratos

jornal de Pernambuco:
https://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/viver/2015/01/22/internas_viver,5562
53/filme-em-amor-plastico-e-barulho-em-retrata-o-mundo-encantado-do-brega.shtml

sobre o brega:
https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2018/10/26/brega-pernambucano-e-tema-de-
documentario-da-globonews.ghtml

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