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O DIREITO PENAL DO INIMIGO E O CONCEITO DE “NÃO PESSOA”

Jakobs defende que devem existir dois tipos de Direito, um voltado para o cidadão e
outro voltado para o inimigo. Segundo o autor, “não se trata de contrapor duas esferas
isoladas do Direito penal, mas de descrever dois pólos de um só contexto jurídico-penal”1.
O Direito voltado para o cidadão caracteriza-se pelo fato de que, ao violar a norma, ao
cidadão é dada a chance de restabelecer a vigência dessa norma, de modo coativo, mas
como cidadão, pela pena2. Neste caso, o Estado não vê no indivíduo um inimigo, que
precisa ser destruído, mas o autor de um fato normal3, que, mesmo cometendo um ato
ilícito, mantêm seu status de pessoa e seu papel de cidadão dentro do Direito. Além do que,
não pode despedir-se da sociedade pelo seu ato4.
Porém, existem indivíduos que pelos seus comportamentos: pelos tipos de crimes que
cometem (delitos sexuais), ou pela sua ocupação profissional (criminalidade econômica,
tráfico de drogas), ou por participar de uma organização criminosa (terrorismo), “se afastou,
de maneira duradoura, ao menos de modo decidido, do Direito, isto é, que não proporciona
a garantia cognitiva mínima necessária a um tratamento como pessoa” 5, e portanto devem
ser tratados como inimigos, sendo que para este se volta o Direito Penal do Inimigo.
Percebe-se que a tese defendida por Jakobs é estruturada sobre o conceito de pessoa
e de não-pessoa. Para ele, o inimigo é uma não-pessoa, “pois um indivíduo que não admite
ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios do
conceito de pessoa”6.
Para Jakobs, indivíduo e pessoa são distintos. O indivíduo pertence à ordem natural, é
o ser sensorial, tal como aparece no mundo da experiência. Os indivíduos são animais
inteligentes, conduzindo-se pelas suas satisfações e insatisfações conforme suas
preferências e interesses, ou seja, sem referência a nenhuma configuração objetiva do
mundo externo em que participam outros indivíduos7. A pessoa, por outro lado, está
envolvida com a sociedade (mundo objetivo), tornando-se sujeito de direitos e obrigações
frente aos outros membros do grupo do qual faz parte, propiciando a manutenção da ordem
no mesmo8.
Portanto, “a persona es algo distinto de un ser humano; este es resultado de procesos
naturales, y aquélla un producto social que se define como la unidad ideal de derecho y
deberes que son administrados a través de un cuerpo y de una conciencia”9.
Quando comete um delito ao cidadão é previsto o devido processo legal que resultará
numa pena como forma de sanção pelo ato ilícito cometido. Ao inimigo o tratamento é
diverso, a ele o Estado atua pela coação, a ele não é aplicada pena e sim medida de
segurança10.
O autor afirma que o delinqüente por tendência não pode ser tratado como um cidadão
que age erroneamente, pois o mesmo está intrincado numa organização criminosa
colocando em perigo a legitimidade do ordenamento jurídico pelo fato de rechaça-lo e não

1
CANCIO MELIÁ, Manuel, in JAKOBS, Günter. CANCIO MELIA, Manuel, Direito Penal do Inimigo, moções e
críticas. Org. e Trad.: André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005,
p. 21.
2
Idem, p. 32-3.
3
Idem, p. 32.
4
Idem, p. 26-7.
5
Idem, p. 35.
6
Idem, p. 36.
7
JAKOBS, Günter. La idea de la normativización en la Dogmática jurídico-penal, in Moisés Moreno
Hernández (coordenador), Problemas capitales del moderno Derecho penal a principios del siglo XXI,
Cepolcrim, D. R. México D.F.: Editorial Ius Peonale, 2003, p. 69 e ss.
8
JAKOBS. Günter apud MARTÍN, Luis Gracia. Consideraciones críticas sobre el actualmente “Derecho
Penal del enemigo”. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología. 2005, n. 07-02. Disponível em:
<http://criminet.urg.es/recpc/07/recpc07-02.pdf> Acesso em: 02 jun.2005, p. 25.
9
JAKOBS. In Moisés Moreno Hernández. Op. Cit., p. 72.
10
JAKOBS. In JAKOBS;CANCIO MELIÁ. Op. Cit., p. 24.
se adaptar a ele11. Assim, “quem inclui o inimigo no conceito de delinqüente-cidadão não
deve assombrar-se quando se misturarem os conceitos de guerra e processo penal” 12. Com
estas afirmações, Jakobs sustenta que a separação entre Direito Penal do cidadão e Direto
Penal do inimigo visa proteger a legitimidade do Estado de Direito, certamente voltado para
o cidadão.
Jakobs defende o Direito Penal do Inimigo afirmando que, o Estado tem o direito de
procurar a segurança frente aos inimigos, sustentando que a custódia da segurança é uma
instituição jurídica. E argumenta que os cidadãos têm o direito de exigir do Estado as
medidas adequadas a fim de fornecer esta segurança13. Portanto, o Estado não deve tratar o
inimigo como pessoa, pois do contrário vulneraria o direito à segurança das demais
pessoas14.
Câncio Meliá crítica o nome utilizado por Jakobs para descrever a teoria em análise,
ele argumenta que, “Direito penal do cidadão é pleonasmo, e Direito penal do inimigo uma
contradição em seus termos”15. Além disso, ele constitui tão só a reação do ordenamento
jurídico contra indivíduos perigosos, e que para tanto a reação é desproporcional e não
condiz com a realidade. Alega que, mesmo sem levar-se em conta os estudos de psicologia
social em casos importantes para o Direito Penal do Inimigo, como tráfico de drogas,
criminalidade de imigração, terrorismo, por exemplo, percebe-se na prática que as reações
de combate dirigem-se mais para de inimigos em sentido pseudo-religioso do que na
acepção tradicional- militar do termo16.
Uma crítica pode ser feita quanto à afirmação de Jakobs de que o inimigo é uma não
pessoa. Desse conceito decorre uma indagação, se o conceito de Direito Penal do Inimigo
parte do pressuposto de que existiriam não-pessoas, resta saber se este conceito de não-
pessoas é prévio ao Direito Penal do Inimigo ou se é uma criação do mesmo. Dito de outro
modo, ou os inimigos estariam identificados antes da incidência do Direito Penal do Inimigo
ou somente seriam classificados como tais após a incidência do mesmo. Resta que a
resposta afirmativa deva ser dada pela segunda opção, conforme afirma Jakobs, pois do
contrário, estar-se-ia supondo que o Direito Penal do Inimigo pudesse ser aplicado também
aos cidadãos, pois como saberia-se se tratar realmente de um inimigo?17.
Ocorre que, num Estado de Direito, e garantidor da dignidade do ser humano, o status
de pessoa não pode ser ou deixar de ser atribuído a alguém, ou seja, ninguém pode ser
classificado como não-pessoa18. Assim, em não podendo existir não-pessoas, também, não
poderá existir Direito Penal do Inimigo.
Seguindo na análise do conceito de inimigo, o qual seria um indivíduo que abandonou
de forma permanente e duradoura o Direito, e partindo da a afirmação de que o Direito em
questão é o dos cidadãos, e que este Direito somente possa ser infringindo por quem seja
destinatário de suas normas, e, conforme afirma o Direito Penal do Inimigo este só pode ser
uma pessoa, por certo se chega à conclusão de que o inimigo também é uma pessoa, pois
infringe reiteradamente as normas de Direito dos cidadãos. E para que se comprove que
este indivíduo em questão tenha infringido realmente o Direito dos cidadãos ele terá que ser
submetido necessariamente a um processo penal que por certo deverá ser o dos cidadãos,
pois ele entra no processo como cidadão e protegido pelas garantias desse Direito19.
Conseqüentemente, se ao fim do processo ficar comprovado que o indivíduo cometeu
o ato ilícito deverá sofrer as conseqüências jurídicas do Direito Penal dos cidadãos, pois foi
este Direito que o mesmo infringiu e pelo qual foi julgado. E, mesmo que seja com o
processo que o indivíduo perca sua condição de pessoa e passe a ser um inimigo, não resta
11
Idem, p. 36.
12
Idem, p. 37.
13
Idem, p. 29.
14
Idem, p. 42.
15
Idem, p. 54.
16
Idem, p. 70-1.
17
MARTÍN, Op. Cit, p. 27- 8.
18
CONDE, Muñoz. Edmund Mezger y el Derecho penal de su tiempo. Estudios sobre el Derecho penal en
el nacionalsocialismo, Ed. Tirant lo Blanch: Valencia, 2002, p. 118.
19
MARTÍN. Op. Cit., p. 29.
dúvida de que o mesmo deverá transcorrer coberto das garantias processuais próprias dos
cidadãos, resultando logicamente que o indivíduo ao ser condenado permanece na condição
de pessoa20. Desse raciocínio conclui Luis Garcia Martín que,
en principio, al Derecho penal del enemigo sólo le es posible partir de la
existencia previa de personas, y que si esto es así, entonces los contenidos y las
reglas materiales de ese Derecho no podrán ser otras distintas a las del Derecho
penal del ciudadano. La argumentación desarrollada, sin embargo, y como he dicho
al principio, no tiene más valor que el dialéctico, y por consiguiente no puede ser
acogida como decisiva en contra del Derecho penal del enemigo21.

Outrossim, pode-se alegar que o Direito Penal do Inimigo é uma reação do sistema
jurídico, frente aos problemas sociais como os riscos do mundo pós-modernos, internamente
disfuncional22. Pois, “os fenômenos, frente aos quais reage o Direito penal do inimigo, não
tem esta periculosidade terminal pra a sociedade como se apregoa deles”23. A importância
dada a estes fenômenos está em que tratam-se de comportamentos delitivos que afetam
elementos essenciais e vulneráveis da identidade das sociedades, principalmente num plano
simbólico24. Assim, uma resposta juridicamente-funcional deveria estar na afirmação do
Direito Penal da normalidade, e não na afirmação de um Direito Penal para o inimigo.
Portanto, “a resposta idônea no plano simbólico, ao questionamento de uma norma
essencial, deve estar na manifestação de normalidade, na negação da excepcionalidade”25.
Ao afirmar-se o sistema jurídico-penal normal se nega ao infrator a capacidade de
questionar o sistema, e principalmente seus elementos essências ameaçados. Se pelo
contrário, se entender possível e legítimo um Direito Penal do Inimigo, ter-se-á que
reconhecer, também, a capacidade do infrator de questionar a norma, pois este Direito
excepcional prescinde de uma demonização de certos grupos de autores, implícita em sua
tipificação da reprovação de seus atos26, porém baseada em critérios de periculosidade,
configurando um Direito Penal do autor, desprovido das garantias e prerrogativas
processuais de um Estado de Direito.
Para concluir, é bom frisar a lição de Prittwitz, que reconhece o sucesso incrível do
Estado de Direito nos últimos dois séculos, ainda que considerando muitos retrocessos,
como o nazismo, por exemplo, e as variadas velocidades desse processo em diversas
partes do mundo. O autor reafirma este sucesso mesmo frente às políticas dos EUA que
defendem a liberdade por meio da violação do direito à liberdade. Este sucesso, afirma o
autor, deve ser observado na busca por uma reposta aos riscos da sociedade atual, não
devendo dar espaço para outro que não seja o Direito compatível com um Estado
Democrático de Direito27.

20
Idem, ibidem.
21
Idem, p. 20 e 30.
22
CANCIO MELIÁ. In JAKOBS;CANCIO MELIÁ. Op. Cit., p. 76.
23
Idem. Ibidem.
24
Idem, p. 77.
25
Idem, p. 78.
26
Idem, p. 80.
27
PRITTWITZ. Op. Cit., p. 45.

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