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Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Disciplina: Teoria Antropológica


Professora: Elizabeth Pissolato
Aluna: Júlia Pessôa Varges

Sessão 8: Reciprocidade (1) Sociedade e o lugar das trocas

“Dar, receber e retribuir”: as noções de troca para Malinowski e Mauss

O celebrado clássico da Antropologia “Os Argonautas do Pacífico Ocidental”, de


Bronislaw Malinowski, e o também clássico “Ensaio sobre a Dádiva”, de Marcel Mauss,
são publicados com um intervalo de apenas três anos (o primeiro em 1922, o segundo em
1925). É possível traçar, entre as duas obras, diversas aproximações, sobretudo no que
tange aos sistemas de troca em sociedades primitivas, investigadas pelos dois
antropólogos, e que constituem uma abordagem essencial para um dos temas tradicionais
dos estudos antropológicos: a relação entre indivíduo e sociedade.
Em “Argonautas” (1976), Malinowski faz uma detalhada descrição do kula, um
sofisticado sistema de trocas entre ilhas da Melanésia, obra que tornou-se referência para
toda a reflexão sobre reciprocidade e o fundamento do social nas Ciências Sociais,
sobretudo para Mauss, considerado um dos fundadores da Antropologia francesa, que
cunha a noção de “fato social total” e a aplica ao kula, definindo conceito nas premissas
que seguem abaixo, situando a relação de troca que se dá nele para além das concepções
meramente econômicas, mas como um todo orgânico e interrelacionado, visão de que,
apesar de não sob o conceito fundado por Mauss, Malinowski também compartilhava.

Nesses fenômenos sociais, como nos propomos chamá-los, exprimem-


se, de uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e
morais – estas sendo políticas e familiares ao mesmo tempo –;
econômicas – estas supondo formas particulares da produção e do
consumo, ou melhor, do fornecimento e da distribuição –; sem contar
os fenômenos estéticos em que resultam estes fatos e os fenômenos
morfológicos que essas instituições manifestam. (MAUSS, 2003, p.
187)

Assim, o kula, como descreveu Malinowski, é um sistema intertribal de trocas


praticado na Melanésia, pelos trobriandeses, envolvendo transações locais e em todo o
arquipélago. Em sua dinâmica, colares e braceletes de conchas aparentemente destituídos
de valor econômico ou estético eram oferecidos entre alguns integrantes das tribos com
um certo intervalo de tempo, percorrendo depois um mesmo circuito fechado, mas em
sentido inverso. Depois de um certo período, os objetos recebidos são repostos em
circulação; e é justamente nessa continuidade da circulação que circula seu valor, num
sistema de trocas em que a posse provisória dos objetos em circulação fornece prestígio
e renome. Dotado também de valor simbólico e político, o kula é recebido por quem
possui poderes obtidos pela magia ou por heranças familiares. Todos os nativos desejam
participar do kula, mas somente alguns o conseguem, daí seu caráter hierárquico, que
também aparece na abordagem dos sistemas de troca por Mauss.
Além da presença da hierarquia nas relações de troca, o princípio da reciprocidade
nestas relações é indelével a elas para os dois autores. Na descrição do kula, Malinoswki
destaca que a troca dos artigos atende a limites e regas. Uma delas, como mencionamos,
é o princípio hierárquico, de modo que as transações são executadas somente entre
parceiros estabelecidos de modo definido, exigindo “a satisfação de certas formalidades
e constitui uma relação permanente, para toda a vida” (MALINOWSKI, 1976, p. 77).
O que nos interessa na presente análise e a reciprocidade presumida nesta relação,
que é tão fundamental para constituir a troca que pode ser enquadrada como uma
obrigatoriedade do kula, estando inclusive sujeita a sanções e represálias. Assim,
Malinowski frisará que, como uma de suas regras, o kula “consiste na doação de um
presente cerimonial em troca do qual, após certo lapso de tempo, deve ser recebido um
presente equivalente” (MALINOWSKI, 1976, p. 80). Outro fundamento importante que
se deve ressaltar é que “cabe ao doador estabelecer a equivalência do contrapresente, que
não pode ser imposta e não pode haver regateio ou devoluções na troca”
(MALINOWSKI, 1976, p. 82).
Desta forma, Malinowski, entendendo o kula como uma totalidade da sociedade
trobriandesa, destaca que os nativos, apesar de conhecerem as normas do kula, não o
reconhecem como este todo social. Ele afirma que “os nativos estão cientes dos seus
próprios motivos, conhecem os objetivos das ações individuais e as regras que as
coordenam” , contudo, “nem mesmo o nativo mais inteligente consegue ter uma ideia
exata a respeito do Kula como uma grande construção social organizada, e menos ainda
de suas implicações e funções sociológicas” (MALINOWKSI, 1976, p. 72).
Também neste sentido, compreendendo e demarcando a complexidade dos fatos
sociais totais, Mauss ressalta, em “Ensaio sobre a dádiva” (2003), que considera somente
“o caráter voluntário, aparentemente livre e gratuito”, “todavia imposto e interessado”,
de tais trocas e prestações; cuja forma assumida é normalmente a de presente generoso,
mesmo quando os gestos que acompanham a transação revelam apenas formalismo e
ficção onde há, na verdade, obrigação e interesse econômico. Diante de tais dinâmicas, e
em diálogo com a reciprocidade já observada por Malinowski em “Argonautas” (1976),
Mauss se questiona sobre que forças determinam a reciprocidade – aparentemente apenas
presumida, mas analisada criteriosamente, obrigatória – destes atos de troca.

Qual é a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo


atrasado ou arcaico, faz com que o presente recebido seja
obrigatoriamente retribuído? Que força há na coisa dada que faz com
que o donatário a retribua? (MAUSS, 2003, p. 188)

Ainda no “Ensaio sobre a Dádiva”, Mauss ressalta que nunca foi constatada a
existência de sociedades que sequer se assemelhassem ao que é concebido como
“economia natural”, de simples trocas de bens, produtos ou riquezas entre indivíduos. São
sempre as “coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam” (2003, p.
190), num processo que envolve não apenas a troca de bens ou riquezas, móveis ou
imóveis, de coisas que tenham, de fato valor ou utilidade econômica; mas objetos como
os do kula, que, como Malinowski destacara, não possuíam tal valor ou utilidade; mas
eram dotados do simbolismo ritual que permeia este tipo de contrato.
Trata-se, antes de tudo, de gentilezas, banquetes ritos, serviços,
militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras em que o mercado é
apenas um dos momentos e onde a circulação de riquezas constitui
apenas um termo de um contrato muito mais geral e muito mais
permanente (MAUSS, 2003, p 191).

Mauss chama este sistema de “sistema de prestações totais”, que tem como
característica principal o fato de as prestações e serem feitas sobretudo de forma
“voluntária”, embora sejam, na realidade, obrigatórias, sob pena de guerra privada ou
pública no caso das sociedades estudadas. O sistema de prestações totais também
pressupõe a aliança entre duas tribos, em que tudo é complementar - ritos, casamentos,
sucessão dos bens, postos militares ou sacerdotais etc. - e supõe a colaboração das duas
metades da tribo. Destarte, é a complementaridade que une os grupos por meio da dádiva,
que opera necessariamente no ciclo de “dar, receber e retribuir”, complementaridade que
também é observada por Malinoswki (1976, p.80) , conforme apontamos, quando afirma
sobre o dever em se “receber” um presente equivalente após ter sido receptor da “doação
de um presente cerimonial”: “Dar, receber e retribuir”.

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