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Falas, objetos e corpos

Autores indígenas no alto rio Negro*

Geraldo Andrello

Este artigo trata de um fenômeno recente entre rio Negro): a publicação regular nos últimos dez
os grupos indígenas do noroeste amazônico (alto anos de livros de mitologia e histórias de clãs espe-
cíficos, tal como ainda hoje contadas por pessoas
* Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no pertencentes a diversos grupos da região, como os
33º Encontro Anual da Anpocs, 26-30/10/2008, Ca- Desana, Tukano, Tariano e Baniwa. A edição des-
xambu, MG, no GT-26 “Novos modelos comparativos:
antropologia simétrica e sociologia pós-social”, coorde- ses escritos tem sido viabilizada pela Federação das
nado por Márcio Goldman e Eduardo Vargas, a quem Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN),
agradeço os comentários e a indicação para publicação. que já publicou oito volumes em uma coleção in-
Agradeço igualmente a Stephen Hugh-Jones, com quem
grande parte dos argumentos apresentados vem sendo
titulada Narradores Indígenas do Rio Negro.1 Essa
discutida e elaborada em conjunto, e a Eduar­do Viveiros iniciativa vem atendendo ao interesse demonstrado
de Castro, por suas valiosas sugestões a uma versão preli- por várias pessoas em efetuar o registro das narrati-
minar do texto. As reflexões aqui apresentadas integram- vas de seus pais e avós, e, dessa maneira, conservá-
se ao projeto “Effects of intellectual and cultural rights
protection on traditional people and traditional know- las para as novas gerações, as quais se consideram
ledge. Case studies in Brazil”, coordenado por Manuela hoje em dia demasiadamente voltadas para as coisas
Carneiro da Cunha no Cebrap. Agradeço à coordena- dos brancos e da cidade. Os volumes publicados
dora e aos membros desse projeto, com quem várias das
idéias aqui expostas vêm sendo regularmente discutidas. são de autoria compartilhada, com um homem
Todos os problemas e lacunas são, evidentemente, de mais velho, e conhecedor em detalhes da história de
minha inteira responsabilidade. seu grupo, narrando o texto a seu filho, que, mais
Artigo recebido em novembro/2009 versado no português, trata de traduzir a narrativa,
Aprovado em maio/2010 contando em geral com o apoio de um antropólogo
RBCS Vol. 25 n° 73 junho/2010

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para transformá-la em texto escrito.2 Mas, uma vez ligadas a um projeto coordenado por advogados do
preparado o manuscrito, o processo não se encerra, Instituto Socioambiental – ONG brasileira, par-
pois sua publicação na forma de um livro não é, em ceira da FOIRN – com o objetivo de identificar
hipótese alguma, parte secundária na empreita. No alternativas para a salvaguarda de criações intelec-
que se segue, tentarei levantar algumas hipóteses tuais de povos indígenas. O horizonte desse projeto
não apenas sobre o registro e a tradução para o por- era o de apreender formas particulares de produção
tuguês dessas narrativas, mas também sobre o valor e circulação de conhecimentos entre os grupos in-
desses objetos-livro entre os índios do Uaupés, para dígenas do alto rio Negro e Xingu, apostando na
cuja produção alguns de seus etnógrafos vêm sendo possibilidade de que elas próprias pudessem suge-
chamados a participar. rir mecanismos alternativos para sua proteção ju-
Poder-se-ia pensar inicialmente que, uma vez rídica. Em suma, em face da aceleração crescente
impressa, a narrativa está salva, que a memória foi da disponibilização de informações em formato
preservada e que estará, por meio de novos supor- digital via internet, bem como inspirando-se em
tes, disponível às futuras gerações indígenas. Assim novos tipos de licenças de acesso que começam a
valorizados, o problema passa a ser a proteção dessas surgir – basicamente, o regime Creative Commons
expressões e conhecimentos indígenas contra usos (CC)4 –, pretendia-se a proposição de alternativas
indevidos por terceiros. Esse tipo de avaliação vin- aos mecanismos vigentes de propriedade intelectual
cula-se diretamente ao debate contemporâneo acer- e de direito autoral quando o assunto fosse direitos
ca de direitos intelectuais coletivos, das iniciativas culturais indígenas. Algumas das conclusões desse
de registro de patrimônio imaterial e da idealização projeto são ilustrativas.
de medidas de “salvaguarda”, que visam assegurar Por ocasião de uma das reuniões locais promo-
tais direitos a seus detentores. Os povos indígenas vidas pelo projeto no ano de 2007, uma lideran-
da região ao alto rio Negro talvez figurem entre os ça indígena sugeriu que o termo “proteção” (para
mais familiarizados com essas discussões na Amazô- direitos culturais) soava impróprio, uma vez que
nia hoje em dia. Há mais de uma década, algumas conotava algo como “guardar” ou “esconder”. De
das associações indígenas da região, dispondo de seu ponto de vista, como diretor da FOIRN, o ob-
uma variada gama de apoios, de agências interna- jetivo dos projetos de registro cultural em curso na
cionais a órgãos de governo, passando por ONGs região era o de gravar narrativas, cantos, danças e
nacionais e transações com empresas privadas, vêm cerimônias, o que por si só já indicava o interes-
desenvolvendo uma série diversificada de atividades se de mostrar, de divulgar – “se não tudo, alguma
e projetos genericamente classificados sob a rubrica coisa.... mostrar com cuidados”. Essa interpretação
da revitalização cultural. No contexto da implan- dos próprios objetivos do projeto, bem como ou-
tação de escolas indígenas diferenciadas, passando tras intervenções indígenas que tiveram lugar ao
por projetos de valorização das formas tradicionais longo de uma série de encontros, levou a uma re-
de uso dos recursos naturais, até a venda de artesa- flexão por parte de um dos coordenadores jurídicos
nato com “valor cultural agregado”, e, por fim, uma do projeto, que assinalava, precisamente, a disso-
experiência recente de registro de um “bem cultu- nância entre os interesses dos índios e dos advoga-
ral” local como patrimônio imaterial,3 vários tipos dos, que, juntos, vinham levando o projeto adiante.
de conhecimento indígena vêm sendo registrados e Para os advogados, o foco recaia sobre a circulação
publicados na forma de produção literária, audio- potencial de uma “obra intelectual” e sua eventual
visual ou como material didático. A coleção Narra- apropriação, especialmente as que começam a ser
dores Indígenas do Rio Negro é provavelmente a de disponibilizadas em formato digital via internet. A
maior visibilidade fora da região. questão jurídica central era a necessidade ou não
Em função desse notável conjunto de experiên­ de autorização prévia, seja no âmbito do sistema
cias, certos grupos nelas envolvidos, tais como al- dos direitos autorais ou na adoção das licenças
guns clãs tukano, baniwa, wanano e tariano, parti- CC – pagamento ou não pelo acesso, a depender
ciparam nos últimos dois anos de algumas oficinas do uso pretendido. Para os índios, a autorização,

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ainda que necessária, não se tratava de um assunto Lana publicou, com o apoio da antropóloga Berta
contratual, isto é, o que se visava em primeira ins- Ribeiro, o livro Antes o mundo não existia, cuja se-
tância não era exatamente a um retorno, financeiro gunda edição veio a ser o primeiro volume da nova
ou de qualquer outro tipo, garantido pelo direito coleção. Há outros casos recentes de autores indí-
de propriedade intelectual, mas sim à possibilidade genas residindo em Manaus que conseguiram pu-
entreaberta pela divulgação de sua “cultura” para blicar seus manuscritos com o apoio de instituições
estabelecer novas relações no contexto de uma au- públicas e editoras dessa cidade (ver Gentil, 2005;
diência ampliada.5 Tariano, 2002).
Se o problema inicial era de caráter jurídico, A existência de todos esses casos mais ou me-
novos elementos vieram à tona. A discussão jurídi- nos recentes sugere que a nova coleção não respon-
ca vai então cedendo espaço para reflexões de outra de apenas à necessidade em geral apontada de se
ordem, e passa-se a falar em termos de políticas pú- registrar conhecimentos que podem desaparecer –
blicas e sobre a necessidade de programas e ações ou que necessitam de algum tipo de proteção. En-
que apóiem a criação de novas relações culturais, tre outras hipóteses, parece plausível afirmar que,
paralelamente, por exemplo, às ações governamen- como trataremos adiante, o uso da escrita e dos
tais voltadas para inclusão digital. Não se trata aqui préstimos dos antropólogos para produzir livros
de avaliar ou tentar imaginar as ações apropriadas. vieram, de fato, a se prestar para a atualização de
O interesse dessa história para nossos fins reside no diferenças entre clãs tukano, desana, tariano e ou-
fato de que as conclusões do projeto, ou ao me- tros, ao longo de um processo histórico em que as
nos uma parte delas, sugerem novos problemas a práticas rituais que criavam as ocasiões para a rei-
serem tratados: por que, afinal, o interesse em am- teração das diferenças sociais a partir de falas e diá­
pliar relações? Qual a especificidade de tal impulso logos cerimoniais foram progressivamente abando-
no contexto sociológico do alto rio Negro? De que nadas. Mas se há razões para pensar o fenômeno
maneira os livros prestam-se a esse propósito? em termos das relações entre os diferentes grupos
Muito antes do advento da internet, e mesmo indígenas, é preciso não perder de vista as rela-
da emergência dos debates relativos à propriedade ções desses com os brancos, relações que vieram se
intelectual dos povos tradicionais, escritos indíge- adensando e se expandindo incessantemente desde
nas oriundos do alto rio Negro, reconheça-lhes ou o século XVIII.
não a autoria, começaram a circular e ganhar algu- É, portanto, necessário considerar antes de
ma notoriedade. Sua existência, bem como a da co- tudo certas características específicas que apresen-
leção Narradores Indígenas do Rio Negro, são tal- tam os povos indígenas do alto rio Negro, bem
vez manifestações do fenômeno identificado acima, como sua história, no contexto mais geral da Ama-
que aparentemente vem se tornando cada vez mais zônia, o que nos dará em seguida a oportunidade de
visível. É preciso, portanto, ponderar que a cole- esboçar, em linhas gerais, o conteúdo que os livros
ção editada pela FOIRN associa-se a uma linhagem produzidos pelos autores-narradores do rio Negro
nem tão recente, em geral oculta sob as publica- oferecem ao leitor da região e de alhures.
ções dos próprios antropólogos. É o caso do baré
Maximiano Roberto, que já ao final do século XIX
entregou a Stradelli o manuscrito de sua Lenda do Elementos de sociologia rionegrina
Jurupari (Stradelli, [1896] 1964; Câmara Cascudo,
2001). Nos anos de 1950 e 1960, os antropólogos Em escritos recentes, Stephen Hugh-Jones
Marcos Fulop (1954) e Gerardo Reichel-Dolmatoff (2001, 2002, 2009, s/d.) vem empreendendo uma
(1971) trabalharam com informantes igualmente revisão dos materiais etnográficos do alto rio Ne-
letrados, que pareciam interessados em colaborar gro, e em particular aqueles oriundos dos grupos
em suas pesquisas pela oportunidade que entre- de língua tukano do rio Uaupés, buscando estabe-
viam de efetuar o registro de mitos tukano e desana lecer alguns contrastes com relação às sínteses teóri-
respectivamente. Nos anos de 1980, o desana Luís cas elaboradas desde os anos de 1980 para as terras

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baixas sul-americanas (Rivière, 1984; Viveiros de hierarquia social, redes comerciais de longa distân-
Castro, 1993, 1996, 2002; Overing, 1984, 1991, cia, atribuição de significados religiosos às paisagens.
1995; Overing e Passes, 2000). Segundo o autor, Em suma, uma maior ênfase em relações pacíficas e
apesar de apresentarem avanços teóricos significati- de troca do que na guerra e no canibalismo. Se, de
vos com relação às teorias clássicas da aliança e da um lado, esse conjunto de atributos distingue niti-
descendência, essas sínteses mantêm como referên- damente essas sociedades daquelas que enfatizam o
cia de base o parentesco, seja privilegiando a afini- idioma da predação, ele também não as enquadra
dade, ou seu aspecto de valor relacional absoluto tal automaticamente no modelo concorrente, pois aqui
como se manifesta na predação canibal ou guerrei- se trata de relações pacíficas entre grupos locais dis-
ra– economia simbólica da alteridade –, seja realçan- tribuídos em escala regional, o que não se confunde
do o cognatismo e a consangüinidade na produção com a convivialidade gerada pela partilha cotidiana
da comunidade, e, assim, os valores de partilha e de e interna ao círculo dos parentes consangüíneos, ou
convivialidade – economia moral da intimidade.6 cognatos, que conforma o grupo local.
A dificuldade de descrever os grupos do alto rio A precedência dos arawak no alto rio Negro é
Negro seguindo exclusivamente uma dessas duas uma hipótese baseada em informação arqueológica
alternativas leva o autor a concluir que a constru- e em comparações com grupos aruak de outras par-
ção desses modelos é, em boa medida, pautada pela tes da América do Sul, bem como na ampla disper-
experiência etnográfica junto a grupos indígenas es- são dessa família lingüística pelo continente (Hill,
pecíficos, como, de um lado, os guerreiros Araweté 1998; Hill e Granero, 2002), mas constitui tema
ou Jivaro, ou, de outro, os pacíficos Piaroa. Em to- polêmico entre os especialistas na região. Não ha-
dos esses casos, trata-se de grupos que exibem uma vendo espaço, e sequer sendo o caso, de entrar aqui
feição sociológica marcadamente distinta daquela nessa discussão, cabe, entretanto, ressaltar que há
dos grupos do alto rio Negro: sociedades formadas um amplo consenso entre os pesquisadores do alto
por pequenos grupos locais dispersos e atomizados, rio Negro quanto ao fato de que as sociedades indí-
e cuja organização social não apresenta a existência genas da região demonstram um sistema complexo
de segmentações sociocêntricas, sendo antes basea- de relações intercomunitárias, no âmbito das quais,
da em parentelas cognáticas e egocentradas. Há for- e ao lado do papel emblemático da exogamia lin-
te tendência à endogamia de parentela e no próprio güística, verifica-se a ocorrência de trocas cerimo-
âmbito do grupo local, que é considerado uma uni- niais em vários níveis. Amplamente conhecidos na
dade politicamente autônoma. Esse quadro básico literatura etnográfica por seu nome na língua geral
é, de maneira importante, coerente com a vigência amazônica (nheengatu), os chamados “dabucuris”
de classificações sociais por gradientes de distância são, por assim dizer, o evento chave da esfera po-
genealógico-residencial, exprimindo um dualismo lítico-ritual e consistem em cerimônias de ofereci-
concêntrico e fronteiras bem marcadas entre exte- mento de alimentos ou itens artesanais especializa-
rior e interior (Viveiros de Castro, 1993). dos e associados a grupos específicos.7 Constituem
Paisagem bastante distinta é encontrada no alto episódios que se encadeiam ao longo do tempo, em
rio Negro, região que, ademais, abriga um sistema ciclos de prestações e contraprestações envolvendo
social aberto que se estende por milhares de quilô- principalmente clãs aliados pertencentes a grupos
metros quadrados, composto por quase três dezenas exogâmicos patrilineares distintos (Tukano, Desa-
de grupos indígenas pertencentes às famílias lingüís­ na, Baniwa, Pira-Tapuia etc.), muito embora ocor-
ticas tukano, arawak e maku. Os processos histó- ram também entre clãs agnáticos hierarquicamente
ricos e políticos que resultaram na formação desse classificados no interior de um mesmo grupo exo-
extenso sistema social regional vêm sendo objeto de gâmico e, até mesmo, no interior de um grupo lo-
hipóteses recentes, que defendem uma precedência cal, em geral formado por homens de um mesmo
dos grupos arawak na região, para os quais é atri- patri-clã casados com mulheres oriundas de grupos
buída a origem dos aspectos mais marcantes dessas exogâmicos diferentes residindo virilocalmente.
sociedades: sistemas regionais de integração política, Nesse último caso, um dabucuri pode ser oferecido

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pelos homens às mulheres ou às pessoas mais velhas compartilhada de todos os grupos da região – em
do grupo local. seu conjunto referidos como “gente de transforma-
É, a meu ver, importante notar que o fato de os ção” –, bem como sua divisão em subconjuntos,
dabucuris ocorrerem em vários níveis reflete um es- que passam a se relacionar coletivamente como
quema seqüencial de diferenciações cosmológicas, cunhados ou como irmãos maiores e menores,
que liga o tempo da transformação ou da emergên- os narradores passam a tratar da história de seu
cia mítica dos ancestrais dos grupos atuais às histó- próprio clã, de sua fixação em um território e
rias mais recentes de dispersão e fixação de cada um eventualmente de sua dispersão. Em suma, os vo-
deles em seus respectivos territórios. Tal esquema lumes consistem em um esforço para dar conta da
pode ser divisado nas inúmeras versões do extenso ligação do grupo do próprio narrador ao proces-
ciclo mítico da origem do mundo e da humanida- so global de formação do sistema social da região
de, cujos ancestrais foram trazidos ao rio Uaupés no como um todo, informando assim sobre as várias
ventre de uma cobra-canoa. As diferenciações efe- modalidades de relação que entretêm com as ou-
tuadas nessas narrativas ocorrem antes, depois e ao tras unidades do sistema.
longo dessa viagem-gestação da proto-humanidade As trocas cerimoniais – os dabucuris – cria-
(C. Hugh-Jones, 1979; Reichel-Dolmatoff, 1971), vam a ocasião para a exibição pública e a circulação
constituindo subjetividades que virão a correspon- daqueles operadores materiais – flautas, adornos
der às posições possíveis nos dabucuris do tempo de penas e bebidas fermentadas e alucinógenas –
presente: em seu conjunto, tais diferenciações – da- que propiciam ao longo da narrativa as sucessivas
quela primordial de gênero até aquelas que separam transformações dos seres do começo e, assim, sua
cunhados próximos e distantes e irmãos maiores e diferenciação progressiva; exceção feita às flautas
menores – constituem o campo relacional do qual sagradas, rigorosamente proibidas à contemplação
os dabucuris são uma, e talvez a principal, expres- feminina. Quando esses instrumentos eram toca-
são. É igualmente importante notar que as dife- dos, as mulheres eram mantidas em compartimen-
renciações do tempo mítico são efetuadas à me- tos separados, e só passavam a participar das danças
dida que aparecem na narrativa certos operadores quando eles eram novamente escondidos pelos ho-
materiais, tais como as flautas sagradas – roubadas mens fora da maloca. A exibição de instrumentos e
pelas primeiras mulheres, que adquirem com isso ornamentos, bem como a farta distribuição de cer-
capacidades reprodutivas específicas –, os adornos veja de mandioca e as sessões de ingestão do caapi
cerimoniais – obtidos pelos ancestrais junto às di- faziam-se acompanhar, além dos cantos entoados
vindades, e que irão propiciar que a verdadeira hu- em paralelo às danças, de outro componente ver-
manidade se diferencie dos peixes e animais –, a bal, que antecedia o momento da entrega formal
cerveja de mandioca e o alucinógeno caapi – cujas das dádivas. Antes de proceder a ela, as duas partes
variedades e potências, ao serem diferencialmente envolvidas dispunham-se frente a frente, separadas
apropriadas, irão distinguir os grupos exogâmicos pelas dádivas que seriam entregues, e punham-se
entre si. Nas narrativas, esses objetos e substâncias a recitar de maneira agressiva suas respectivas ge-
são partes de corpos. As flautas e o caapi, em seus nealogias e histórias. As exortações mutuamen-
diferentes tipos e variedade, surgem a partir do te dirigidas eram feitas quase ao mesmo tempo, e
corpo decomposto de dois irmãos que nascem do acompanhadas de um tipo de coreografia que si-
primeiro parto, ao passo que o conjunto de ador- mulava um ataque com lanças (ver Chernela, 2001;
nos, vomitado por divindades, dará forma ao cor- S. Hugh-Jones, 1979). Pode-se supor que o sentido
po dos primeiros seres humanos.8 tomado pelas coisas oferecidas em uma dada oca-
De modo geral, os livros da coleção Narradores sião reforçava então a posição dos doadores em face
Indígenas do Rio Negro oferecem versões particu- dos receptores, de maneira que tanto os objetos
lares desse extenso ciclo mítico compartilhado. Nos entregues, como aqueles exibidos de modo perfor-
capítulos finais dos volumes, a narrativa se particu- mático, incorporavam valores sociais, isto é, consis-
lariza, pois após detalhar minuciosamente a origem tiam em veículos de qualidades inalienáveis que um

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determinado grupo dava a ver, buscando fazer valer zada em termos de descendência ou território”, ou,
sua posição hierárquica e prestígio político. Pode-se como discute Hugh-Jones, a oposição brideservice/
supor também que as narrativas longamente tradu- bridewealth societies, cujos pólos ocultam significa-
zidas e transcritas nos livros constituem uma ver- tivas variações internas. Para este autor, a inclusão
são pormenorizada e reflexiva dessas falas agressivas generalizada dos grupos amazônicos no pólo das
performaticamente proferidas nos rituais de troca. brideservice societies passaria ao largo de uma gama
É precisamente nesse sentido que Stephen Hu- variada de estratégias matrimoniais observáveis em
gh-Jones (s/d.) sugeriu que no alto rio Negro, em uma mesma sociedade e, em particular, daquilo que
contraste com outras regiões da Amazônia, certos se passa no alto rio Negro, onde a regra de residên-
objetos de valor e, em dadas circunstâncias, mes- cia pós-marital é virilocal e o serviço da noiva abso-
mo bens de uso ordinário fazem as vezes de pes- lutamente inusual. Coerente com isso, e para tentar
soas, isto é, aqui não seria possível uma distinção precisar o papel que os livros indígenas desempe-
radical entre coisas e pessoas, tal como se costuma nham no interior dessa discussão mais ampla, po-
generalizar para a Amazônia – o autor refere-se es- demos recorrer, justamente, aos casos dos dois clãs,
pecificamente à corrente classificação dos grupos Tukano e Tariano, que auxiliei na produção de seus
amazônicos sob a rubrica de brideservices societies, respectivos manuscritos.
proposta em oposição às bridewealth societies por
Collier e Rosaldo (1981). Assim, sugere que, em
complemento aos estilos analíticos baseados na lin- Oyé e Koivathe
guagem do parentesco, para o alto rio Negro, e de
maneira mais ampla para os sistemas regionais pré- Do conjunto de cerca de quarenta clãs tuka-
colonias da Amazônia, uma abordagem em termos no, distribuídos atualmente entre os rios Uaupés,
de troca de dádivas e economia política poderia ser Papuri e Tiquié, além de vários indivíduos e famí-
bastante frutífera. Essa sugestão parece-me, aliás, ir lias dispersos ao longo de comunidades situadas nas
na mesma direção daquela proposta por Viveiros margens do rio Negro, o grupo corriqueiramente
de Castro (1993, p. 105) quando adverte quanto chamado de Oyé, ou Oyé Porã, “filhos de Oyé”,
aos perigos de uma essencialização do modelo do é reconhecido como um dos que se situa entre as
atomismo sociopolítico amazônico. Tal advertên- posições de mais alta hierarquia do conjunto como
cia precede a enunciação de uma de suas principais um todo. Seu lugar tradicional, aquele que lhes
afirmações, referente à limitação do foco no paren- coube ao cabo da extensa saga de deslocamentos
tesco para dar conta “das propriedades globais dos espaciais que se seguiu ao igualmente, ou mais, ex-
sistemas sociais da região”. O autor aponta então tenso período da transformação descrito nos mitos
que a sociologia da Amazônia não pode ser apenas de origem, é a chamada comunidade do Pato, Dia
a sociologia do parentesco, mas também de outros Katapa, localizada no curso médio do rio Papuri,
“circuitos de intercâmbio”. A questão, em suma, em um ponto relativamente próximo da foz desse
parece-me equivalente: dar conta dos processos su- rio, que lança suas águas no rio Uaupés à altura da
pralocais. Cachoeira de Iauaretê, Yai Poewa, a grande cacho-
As ressonâncias não param aí. Pois, ainda de eira das onças.
acordo com Viveiros de Castro, não haveria, no pa- Iauaretê é um ponto de referência mito-histó-
rentesco ou alhures, fórmula global de totalização rico de grande relevância, cenário de importantes
do socius na Amazônia, já que ali as dinâmicas su- acontecimentos do período mítico, bem como da
pralocais não conformam morfologias bem acaba- história subseqüente de fixação, ou territorializa-
das, mas articulam-se em rede, isto é, demonstram ção, dos vários grupos exogâmicos ao longo do rio
uma natureza mais histórica do que estrutural. O Uaupés. Foi também um ponto estratégico ao lon-
problema passa a ser, então, o da dificuldade de se go da história da colonização, presente nas primei-
trabalhar com tipologias – seja, como aponta Vivei- ras crônicas de viajantes do século XVIII e, por fim,
ros de Castro (Idem, ibidem), “uma estrutura finali- lugar escolhido para a instalação do maior centro

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missionário do rio Uaupés pelos salesianos no iní- poldino, que a essa altura já tinha sua autoridade
cio do século XX. Ao longo de cinco décadas, entre reconhecida pelo próprio SPI (Serviço de Proteção
1930 e 1980, seus grandes internatos abrigaram aos Índios) mediante uma carta-patente. Leopoldi-
centenas de alunos indígenas de várias gerações. A no liderava um importante clã de chefes tariano,
escolha dos salesianos fazia realmente sentido, pois conhecido pelo nome de Koivathe.
Iauaretê é o ponto de convergência de duas regiões A distribuição dos grupos tukano e arawak
desde então densamente habitadas: o rio Papuri, nessa porção do médio Uaupés, incluindo parte
onde se encontram os Oyé, inúmeras outras malo- significativa de seu afluente Papuri, bem como a
cas tukano, desana e pira-tapuia em suas margens, origem de tal configuração sociológica podem ser
além de vários assentamentos maku-hupda nas ca- apreendidas em seu conjunto por meio de narrati-
beceiras de seus igarapés; e o alto rio Uaupés, com vas como a dos Oyé e a dos Koivathe, que se mos-
extensos trechos contínuos de presença wanano e traram particularmente interessados nos últimos
cubeo. A distribuição desses grupos falantes de lín- anos em produzir versões especificamente voltadas
guas da família tukano pelo Papuri e alto Uaupés para circular na forma escrita, como volumes da co-
remonta à viagem da cobra-canoa dos ancestrais, leção Narradores Indígenas do Rio Negro. Ambos
motivo comum a todas as versões da mitologia dos são reconhecidos como grupos de alta hierarquia
povos tukano orientais do Uaupés, que subiu pelas pelos demais clãs tukano e tariano, porém, como se
águas em sentido leste-oeste em busca do verdadei- passa com a grande maioria dos grupos do alto rio
ro rio de leite, um lugar destinado desde o início Negro, atualmente não possuem flautas sagradas e
dos tempos para a fixação de uma verdadeira hu- adornos cerimoniais, e há muitas gerações deixaram
manidade.9 de viver em malocas. Como é bem documentado e
Em sentido diferente, por uma via terrestre sabido, o abandono das malocas em favor de casas
desde a bacia do rio Içana, ao norte, em direção familiares alinhadas é apenas a manifestação visí-
ao alto Uaupés, são relatados a transformação e o vel de mudanças que ocorreram em vários níveis a
crescimento de um dos grupos de língua arawak da partir da implantação das missões salesianas, e que
região, os Tariano, composto por cerca de quinze se traduziram, sobretudo, na proibição de certos
clãs igualmente hierarquizados entre si. Após al- rituais e do xamanismo, bem como na entrega de
cançar a margem do alto Uaupés, os clãs tariano adornos e instrumentos sagrados aos padres. Em
empreenderam um extenso deslocamento ao longo seus respectivos manuscritos, os Oyé e os Koivathe
do curso desse rio, estabelecendo suas malocas em assinalam o grande abalo moral provocado pela in-
vários pontos rio abaixo, transpondo até mesmo o tolerância dos missionários e pelas exigências que
território dos Arapasso, situado abaixo da Cachoei- lhes foram impostas, as quais em grande medida se
ra de Iauaretê. Mas foi também nessa cachoeira que viram obrigados a aceitar em função da segurança
os clãs tariano de alta hierarquia se fixaram, alocan- que vieram a representar as missões em pleno ci-
do vários outros clãs inferiores em suas imediações. clo da borracha, quando a violência e a opressão
O deslocamento e a fixação dos Tariano no Uaupés por parte de seringueiros e balateiros corriam soltas
ocorreram ainda em período anterior ao contato pelo rio Uaupés. Mas, ainda que sem os meios tra-
com os brancos, de maneira que as primeiras infor- dicionais que eram empregados para reiterar ritual­
mações mais precisas sobre os Tariano já os descreve mente suas respectivas posições hierárquicas, clãs
como um grupo inserido em um sistema de trocas como os Oyé e os Koivathe gozam ainda hoje de
permanentes com os grupos de língua tukano, in- notável prestígio. Em alguma medida, isso se passa
clusive no sistema de exogamia lingüística que os porque sua origem e trajetória são reconhecidas por
interliga (ver Nimuendaju, [1927] 1982; Koch- outros grupos indígenas com os quais se relaciona-
Grunberg, [1909-1910] 1995; Bruzzi, [1949] ram historicamente. E com seus livros buscam, por
1977).10 Em 1929, quando os primeiros salesianos certo, cuidar para que tal reconhecimento perdure.
se estabeleceram em Iauaretê, foram recepcionados É, pois, por meio de seus manuscritos que vie-
por um importante chefe tariano chamado Leo- mos a saber como, ao longo de sua história, amplia-

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ram suas alianças. Os dois grupos demonstram ex- res junto a outros grupos, e, com isso, tendo acesso
tensas genealogias, nas quais o ponto de partida se a bens manufaturados trazidos pelos brancos.
refere a uma situação em que as trocas matrimoniais Se relações pacíficas foram estabelecidas com
se restringiam àqueles cunhados que lhes coube ao os Tukano, houveram, por outro lado, relações beli-
final do tempo mítico, isto é, quando o crescimen- cosas com outros, em particular com os Wanano, o
to dos grupos passou a ocorrer por meio de relações primeiro grupo com o qual os Koivathe passaram a
sexuais. Essa fase corresponde ao estabelecimento trocar mulheres após sua saída do Içana. O motivo
de um domínio territorial, por sua vez vizinho da- da guerra com os Wanano, outro tema importan-
queles dos clãs que se tornam os parceiros preferen- te de seu manuscrito, foi, justamente, a dissolução
ciais das trocas: no caso Tariano-Koivathe, um clã do primeiro casamento com uma mulher wanano.
baniwa específico, os Oalipero-dakenai; no caso dos Conta-se que, vivendo entre os Koivathe, essa mu-
Tuykano-Oyé, um clã desana, os Botea-Porã. Nos lher sentia-se maltratada e, além disso, reclamava
dois casos, clãs que ocupam igualmente altas posi- por não poder participar dos rituais das flautas sa-
ções hierárquicas em seus respectivos grupos exogâ- gradas dos Koivathe. Ela foge para junto de seus pa-
micos, e com os quais o intercâmbio de mulheres rentes, e se sucede um ataque dos Wanano à maloca
fazia-se acompanhar da troca de itens cerimoniais, Koivathe. Estes estão preparados e matam muitos
como enfeites de penas e dentes de animais. Com o Wanano, cujos corpos são deixados para apodrecer
passar do tempo e o crescimento dos grupos, tanto em um igarapé, que passará a ser conhecido como
os Oyé como os Koivathe diversificam seu leque de “Igarapé do Tapuru” – os corpos em putrefação
alianças, e passam também a obter mulheres junto fizeram aparecer muitos desses vermes. Ou seja,
a outros grupos, como, no caso Oyé, entre outros cadáveres abandonados à putrefação, dos quais os
clãs desana e entre os Arapasso, Pira-Tapuia e Ta- matadores nada incorporam, ao contrário do que se
riano, e, no caso Koivathe, entre os Wanano, Pira- passa entre certos grupos em que a predação guer-
Tapuia e Tukano. Este segundo caso, Koivathe, é o reira constitui uma forma de obtenção de identida-
mais expressivo em termos de expansão de alianças, des exteriores, na forma de nomes, cantos, essências
já que o estabelecimento de novas relações é con- (Viveiros de Castro, 1993; Fausto, 2001; Descola,
comitante ao movimento de migração da bacia do 1993). Mais tarde, a relação com os Wanano será
Içana para a do Uaupés, e ao longo do qual exer- reatada, e até hoje este grupo é um daqueles com os
ceram papel de liderança sobre vários outros clãs quais os Koivathe continuam trocando irmãs.
tariano. Sua fixação na Cachoeira de Iauaretê, onde Se com os cunhados ancestrais as relações de
até hoje vive a maioria de seus descendentes, é con- troca envolviam itens do diversificado conjunto
solidada por meio de um casamento de um jovem de adornos cerimoniais, com os novos cunhados
koivathe com uma moça tukano pertencente a um conquistados ao longo de uma trajetória histórica
clã de chefes que, no passado, ocupava essa mes- a troca de mulheres parece preponderar, e o confli-
ma cachoeira – não se tratam dos Oyé.11 A história to mostra-se como uma possibilidade latente. No
subseqüente, tal como contada pelos dois grupos, primeiro caso, as trocas ocorreriam entre grupos
aponta que, quando os brancos começaram a che- pertencentes a um mesmo patamar hierárquico; no
gar a Iauaretê para arregimentar trabalhadores para segundo, esse aspecto – isogamia – seria secundá-
a construção do forte de São Gabriel, na segunda rio, pois aqui a linguagem do parentesco ou da des-
metade do século XVIII, os cunhados tukano aden- cendência strictu sensu perde importância, uma vez
tram o rio Papuri, e os Tariano Koivathe mantêm-se que se trata de estratégia política, abertura à histó-
no lugar, estabelecendo mais cedo relações com os ria. Este quadro de possibilidades de intercâmbio
colonizadores, em cujos negócios irão se envolver é complementado por informações relativas a ex-
e, com isso, angariar novos meios para reforçar sua pedições guerreiras que, no passado, mobilizavam
posição de liderança sobre outros grupos – trata-se tanto os Koivathe como os Oyé para o roubo de
da posição de intermediários que vieram a assumir, mulheres e adornos cerimoniais de grupos distan-
colaborando com a arregimentação de trabalhado- tes, o que denota que, não obstante a existência de

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Falas, objetos e corpos  13

cunhados preferenciais, ancestrais ou não, a guerra Como disse Lévi-Strauss em relação à noção de
para o saque de objetos rituais e mulheres coexistia Casa, trata-se de uma estrutura social na qual os
como forma de aumentar renome e prestígio. Tanto interesses políticos e econômicos se expressam na
na troca pacífica como no saque guerreiro, objetos única linguagem disponível, a do parentesco, mas
cerimoniais e mulheres ocupam a mesma posição, apenas para subvertê-la (1982, p. 187). Ora, é pre-
o que reitera a equivalência entre riquezas e pessoas, ciso considerar portanto que, do ponto de vista de
constituindo uma atualização histórica da indiscer- grupos como os Oyé e os Koivathe, e de vários ou-
nibilidade entre pessoas e coisas, própria às narrati- tros cujas posições hierárquicas constituem o objeto
vas míticas do Uaupés – lembremos dos operadores de um esforço permanente de afirmação, a circula-
materiais que promovem a série sucessiva de dife- ção de um livro de sua própria autoria, contendo
renciações do tempo mítico antes apontada. os pormenores das narrativas que fundamentavam
A ampliação de alianças e a mobilização de aquelas falas que tinham lugar nos dabucuris de
vários meios para obtê-las denotam uma ênfase outrora, vem representar um meio estratégico para
particular em relações políticas de largo espectro, estabelecer seu próprio lugar, ou seu próprio ponto
e com um foco específico na reiteração de posições de vista, diante de outros clãs, tanto os agnáticos,
hierárquicas. Esse caráter performático no âmbito como os aliados.
das relações externas sugere, como já o fez Stephen Parece-me plausível, assim, sugerir que os livros
Hugh-Jones (1993, 1995), a aplicação não rigorosa indígenas condensam em um mesmo objeto as por-
da noção de Casa de Lévi-Strauss a esses patriclãs ções materiais e imateriais do patrimônio distintivo
do Uaupés, que, por se identificarem sobretudo por dos clãs do Uaupés. Se os itens materiais legados
meio da transmissão de um patrimônio composto pelos ancestrais, como as flautas sagradas e as caixas
por itens materiais e imateriais, seriam pessoas mo- de ornamentos cerimoniais, foram levados pelos
rais – casas são sistemas cognáticos, situados para missionários, os nomes e muitos dos conhecimen-
além da estrutura elementar, em geral atribuída aos tos continuaram a ser transmitidos no decorrer das
sistemas de parentesco amazônicos. Isto é, tal como gerações. E esse aspecto invisível e imaterial mostra-
no caso das sociedades ditas “de Casa”, no Uaupés, se potencialmente passível de incremento através
apesar da existência de um ideal de casamento com de um objeto dos brancos, os livros. Em Iauaretê,
irmãs de cunhados ancestrais, que redundaria na que, desde o fechamento dos internatos salesianos
troca restrita bilateral, não vigoraria uma regra úni- no final dos anos de 1980, vem conhecendo um
ca, prescritiva e positiva, de casamento; e assim o acelerado processo de urbanização,13 torna-se cada
campo sociopolítico se abre, permitindo estratégias vez mais importante tornar visível e atribuir uma
de expansão das alianças. De fato, as narrativas oyé forma material a esses conhecimentos ainda dispo-
e koivathe esclarecem que se há, de um lado, gru- níveis para marcar distinções sociais tradicionais,
pos de cunhados ancestrais, parceiros preferenciais que vêm sendo eclipsadas por outras que passam
em trocas matrimoniais, há, de outro, uma indi- a vigorar – professores, funcionários, comerciantes,
cação muito precisa acerca de outros grupos com soldados, profissões quase que exclusivamente exer-
os quais essas alianças são proibidas. Os Tukano cidas ali pelos índios. É nesse contexto que vivem
não devem se casar com mulheres wanano, pois hoje os Koivathe e a quase totalidade dos Oyé. As-
são considerados seus pahkó-maki, “filhos de mãe”, sim como objetos e instrumentos cerimoniais leva-
primos paralelos matrilaterais;12 já os Tariano não dos pelos padres, as falas ancestrais proferidas nos
podem se casar com mulheres desana, consideradas dabucuris referiam-se aos nomes e feitos dos ante-
suas irmãs. Ou seja, se há um casamento preferen- passados, e, em seu conjunto, representam o que
cial, parece vigorar, sobretudo, uma regra negativa algumas pessoas de Iauaretê referem-se como sua
relativa a apenas um grupo restrito de parentes. No “riqueza”, cujo valor virtual, wapatisehé, é reivindi-
mais, as opções de casamento e estabelecimento de cado por meio de sua origem: foram obtidos pelos
relações de alianças são múltiplas, pois com todos ancestrais em sua transformação mítica e repassados
os demais é possível criá-las. através das gerações. Inscritas no papel, essas falas

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ensejam um novo tipo de materialidade, que apa- “comedores de tapuru”.14 Podemos aventar, dessa
rentemente vem compensar a visibilidade perdida maneira, que, para além de uma circulação local
dos grandes rituais do passado. Ou seja, à medida entre as comunidades indígenas da região, o que
que passam a circular, esses objetos-livro trariam o se pretende com os livros é também rebater essa
potencial de gerar o mesmo efeito que se alcançava imagem construída no contexto das relações com
com a exibição dos objetos-rituais nos dabucuris, os brancos, pois, apropriando-se da escrita e dos
isto é, a afirmação de um lugar, ou de um ponto de papéis, um dos mais fortes índices da civilização,
vista singular, no contexto de um amplo sistema de os autores dos livros fazem questão, sobretudo, de
relações. enunciar os nomes de seus ancestrais, que são, ao
Como se dá essa transformação do valor é uma mesmo tempo e ainda hoje, seus próprios nomes
questão em aberto e que merece ser continuamente pessoais e o de seus clãs.15
observada – afinal, a coleção Narradores Indígenas
do Rio Negro é ainda um fenômeno relativamente
recente e há pouca informação sobre o raio de circu- Livros, nomes, riquezas
lação de seus volumes. É possível que, do ponto de
vista das relações entre diferentes grupos indígenas, Os nomes dos clãs aparecem regularmente no
sua eficácia jamais possa se igualar àquela das anti- título de todas as publicações, cujo texto irá narrar
gas performances rituais, mas, por outro lado, é certo em detalhes seu surgimento. Uma aparição que se
que os livros podem circular para muito além do lu- refere, ao mesmo tempo, ao nome, ao ancestral e a
gar de seus autores, e mesmo muito além dos luga- seu grupo. Com efeito, assumindo papéis rituais es-
res onde vivem seus parentes mais distantes. Eles são pecializados – chefes, guerreiros, xamãs, cantores e
vendidos pela FOIRN em São Gabriel da Cachoei- servidores – e ordenados hierarquicamente de acor-
ra – e pelo Instituto Socioambiental em São Paulo. do com a ordem de surgimento de seus ancestrais,
Este não é um ponto em hipótese alguma descon- os clãs do Uaupés não são qualificados por um con-
siderado por seus autores, aliás, bem ao contrário: ceito nativo específico. São chamados simplesmen-
os Tukano com quem trabalhei estavam bem cien- te de kurupa, “grupo”, um termo que pode ser apli-
tes da circulação potencial de seu livro e esperavam cado em contextos muito diferentes. Mas todos eles
mesmo que pudesse chegar às mãos daqueles grupos possuem um nome próprio, que em geral é o pró-
tukano que, segundo eles, baixaram o Rio Negro prio nome do ancestral fundador. Esse é exatamen-
e o Amazonas desde os primeiros tempos da colo- te o caso dos Koivathe e Oyé. Especialmente entre
nização e, ainda hoje, sem esquecer de sua origem, os Tukano, todos os membros do clã são chamados
viveriam como brancos em cidades como Belém ou com a expressão “filhos de X”, como, por exem-
Rio de Janeiro (ver Andrello, 2006a, cap. 6). Para os plo, Oyé Porã, filhos de Oyé. O nome do ancestral
Tariano Koivathe, o envolvimento crescente com o do clã é sua principal marca distintiva, denota sua
mundo dos brancos requer que os jovens conheçam posição em uma escala hierárquica e, em muitos ca-
sua história e sejam capazes de dizer quem são eles sos, é o nome principal de um estoque limitado de
em novas situações que passam a enfrentar – como, nomes transmitidos em gerações alternadas – em
por exemplo, as possibilidades que vêm surgindo de geral, o nome do ancestral fundador cabe ao filho
freqüentar cursos universitários em Manaus com a mais velho das famílias que pertencem ao clã. É a
abertura de vagas especiais para índios. atribuição do nome de um antepassado a uma pes-
Mas o que se pretende evidenciar nesse caso soa que lhe garante uma alma específica, aquela que
não é uma indianidade genérica, algo que a his- se aloja no peito e corresponde à respiração, ao so-
tória do contato se encarregou de criar por meio pro – ehêri-porã, “filho da respiração”. Trata-se um
de sucessivos programas de “civilização de índios”, modo de subjetivação, que se efetua à medida que
isto é, como uma condição selvagem igualmente uma parte da força de vida (katisehe) acumulada no
compartilhada por todos os grupos nativos do rio período da transformação mítica é acoplada a uma
Uaupés, ou do rio “dos Uaupés”, os incivilizados pessoa. Com a morte, esta alma retorna à casa de

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Falas, objetos e corpos  15

origem, de maneira que pode ser reciclada com o sanal dos Tukano, que o trocam regularmente por
nascimento de novos membros do clã. outros artefatos específicos produzidos por outros
Todos esses processos são operados por meio grupos. Esse banco é um objeto mencionado em
de um conhecimento especializado, os basesehé, as inúmeras partes da narrativa mítica, notadamen-
encantações xamânicas sopradas com fumaça de ta- te logo no começo, quando o “Avô do Mundo”
baco, que se dão a conhecer por meio dos mitos de vivia uma existência solitária, adornado e cercado
origem, de maneira que seus melhores narradores por seus “instrumentos de vida e transformação”:
são os detentores desse conhecimento esotérico, os sentava-se sobre esse banco, segurava uma forquilha
kumua, os xamãs verticais do Uaupés (Buchillet, de madeira com um cigarro encaixado e seu bastão
1990, 1995; Hugh-Jones, 1996). É por isso que de comando. A seu lado, encontrava-se um suporte
os livros indígenas mais detalhados, e “completos”, como o descrito acima, e sobre ele apoiava-se uma
como se diz, são aqueles cujos autores dominam cuia de ipadu.16 Ou seja, na composição de objetos
um grande repertório dessas encantações. Um bom montada para o lançamento do livro, este ocupa o
exemplo disso é o penúltimo volume publicado lugar da cuia de ipadu. Todo o conjunto está sus-
na coleção Narradores Indígenas do Rio Negro, o penso pelas mãos de um homem paramentado com
Livro dos Antigos Desana – Guahari Diputiro Porã, pinturas e um cocar de penas na cabeça. Não se
produzido por dois homens de um importante clã vê sua face: o banco está à altura do abdômen, o
desana do igarapé Urucu, afluente do médio Papu- suporte de cuia (ausente) corresponde a seu tórax;
ri. São pai e filho, um kumu experiente e seu filho o livro lhe esconde a face, mas sobre ele se projetam
em fase de formação respectivamente (ver Tõra- as penas de seu cocar. Atrás desse homem, vêem-se
mü Bayar e Guahari Ye Ñi, 2004). O mais velho vários outros homens do clã, todos exibindo coca-
deles fez questão de introduzir no texto várias das res com penas de arara vermelhas e azuis. Na capa,
encantações que vão surgindo ao longo dos aconte-
cimentos narrados, muitos deles constituindo por
si mesmos as fórmulas mágicas, outras expressando
as ações ou o pensamento dos seres míticos. Mas
outro detalhe referente a esse volume que merece
destaque diz respeito a uma cena produzida pelos
membros desse clã desana por ocasião de seu lança-
mento público, na maloca da FOIRN na cidade de
São Gabriel da Cachoeira em junho de 2004. Esse
episódio nos permitirá tratar mais detalhadamente
do valor desses objetos-livros em sua relação com
os nomes.
Apesar de não ter presenciado esse evento, che-
gou-me às mãos uma foto da ocasião, na qual um
exemplar do livro se encontrava sobre um suporte
feito com varetas enfeixadas, amarradas umas às ou-
tras pelo meio e abertas nas extremidades de modo
a formar um círculo superior e outro inferior – esse
objeto apresenta o aspecto de dois cones inverti-
dos, um apoiando-se sobre o outro pelas pontas;
corresponde assim ao formato aproximado de uma
ampulheta. Este suporte, por sua vez, está apoiado
sobre um banco esculpido em madeira, todo deco-
rado com pinturas. Este banco é um objeto muito
comum no Uaupés, sendo uma especialidade arte- Arquivo Instituto Socioambiental. Fotógrafa: Roberta Dabdab.

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o próprio livro leva uma ilustração composta pelos separar-se definitivamente da gente-peixe, despin-
mesmos objetos, bancos, suportes, cuias, forquilhas, do-se de suas roupas de peixe e assumindo defini-
cigarros e bastão. A imagem da capa do livro traz, tivamente a forma humana. Os ancestrais tukano
portanto, uma montagem de objetos equivalente são, em sua capacidade de reprodução e cresci-
àquela da qual ele próprio faz parte. O conjunto mento, protótipos da humanidade, mas retiram tal
de objetos é emoldurado na imagem por uma mul- qualidade, descrita como a força de vida que irão
tiplicidade de corpos adornados. Tudo isso parece legar a seus descendentes, do mundo subaquático
ser uma espécie de revelação ritualizada da imagem dos peixes. Ao fazê-lo, condensam um nome e um
do próprio clã. Os que vieram para o lançamen- corpo no próprio ato de seu aparecimento: vários
to, entre índios de vários outros clãs, lideranças e de seus nomes são nomes de peixe e seus corpos são
mesmo brancos, saíram dali carregando seus exem- considerados “ossos de peixe”. A expressão marie
plares que, assim, irão se distribuir por vários rios katsehé wa'í-o'ari, “nossos ossos de peixe de vida”,
e comunidades, e mesmo cidades distantes – havia engloba nomes e ossos de peixe. Os objetos que são
gente ali de Manaus e São Paulo. evocados ao longo da narrativa constituem um ín-
Qual o significado dessa montagem de obje- dice material, uma forma visível, da força de vida
tos? E, sobretudo, o significado da imagem como alojada nos ossos de peixe. Eles próprios são, assim,
um todo, que os Desana projetaram sobre a variada ossos de peixe. Sua multiplicação é entendida como
audiência presente no evento? Como foi dito, os aumento da força de vida.
objetos da imagem, incluindo aqueles que adornam O aparecimento de um ancestral encontra-se,
os corpos, são abundantemente mencionados nos por assim dizer, entre os principais acontecimen-
mitos registrados nos livros, e é significativo que tos míticos para os grupos do Uaupés, mas não há
em pelo menos dois volumes eles apareçam tam- espaço aqui para tratar dos detalhes desse processo
bém como ilustração da capa. A meu ver, é possível tal como é elaborado nas narrativas. O importan-
afirmar que o lançamento do livro desana exprime te é que o corpo do ancestral ganha existência por
de maneira exemplar uma relação entre pessoa, meio de uma composição de objetos similar àquela
nome e corpo, mas também uma forma nova de já mencionada, em que o banco é o quadril, o su-
objetificação dessa relação. O que esta nova forma porte de cuia é o tórax, a cuia é o coração e a res-
de exibição parece manter, no entanto, é a mesma piração. Esses objetos, acompanhados da forquilha
relação entre interior e exterior, ou entre a unidade do cigarro e do bastão ritual, compõem, assim, o
e a multiplicidade, por meio da qual se concebem corpo prototípico do ancestral, e sua matéria-prima
pessoas e coletivos no Uaupés. Explico. seria o quartzo branco existente no mundo de bai-
Nas histórias narradas nos livros, os ancestrais xo.17 Pode-se dizer que constituem a contrapartida
têm aparição em pontos específicos da trajetória da interior dos adornos cerimoniais, que evidenciam
cobra-canoa. Seu surgimento ocorre em diferentes a forma exterior do corpo humano. Se estes foram
casas subaquáticas, onde vive a gente-peixe, e que vomitados e entregues pelo Avô do Mundo aos de-
correspondem a pontos de parada da extensa jor- miurgos responsáveis pelo aparecimento da huma-
nada. Nessas casas, os tripulantes desembarcam, nidade, aqueles eram seus instrumentos de vida e
cantam e dançam, e, assim, se multiplicam. Essa transformação, com os quais deu início ao surgi-
multiplicação tem como referente a piracema dos mento do mundo. Os detalhes dessa seqüência de
peixes, que, aos olhos dos humanos de hoje, são acontecimentos primordiais podem ser verificados
suas festas e rituais. A proto-humanidade, porém, em todos os volumes da coleção Narradores Indí-
compartilhava com a gente-peixe de uma mesma genas do Rio Negro. O interessante é que, no caso
condição. Nessas festas-piracema, surgem os ances- desana de que estamos tratando, o próprio livro
trais dos humanos atuais, cujos grupos seguem au- vem a ser acoplado a esse conjunto geral de objetos
mentando em número à medida que a cobra-canoa e corpos que formaram a cena de seu lançamento
se aproxima do Uaupés, onde, ao passar por um público. Dessa maneira, o livro torna-se, ele pró-
buraco em uma laje da cachoeira de Ipanoré, irão prio, parte da imagem do clã: um ancestral, que é o

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Falas, objetos e corpos  17

conjunto banco-suporte-livro, tendo às suas costas balmente ativados e, por assim dizer, tratados com
numerosos membros do grupo, os diversos corpos leite e suco de frutas doces, que podem também
adornados atrás do homem que sustenta o banco. estar armazenados na cuia.18 Como se comenta em
O grupo numeroso que ali se encontra exprime, geral, o kumu tem que ir em pensamento até a casa
sobretudo, o crescimento da força de vida do an- onde surgiu o nome, e soprar os nomes de todos os
cestral, isto é, expressa em sua pluralidade a multi- objetos em um cigarro. Sua fumaça será então ba-
plicação do princípio incorporado na figura única forada sobre a criança que recebe o nome. Tal pro-
do ancestral, portador de um nome, que é, ao mes- cedimento permite atribuir uma alma à pessoa, na
mo tempo, o nome do clã. Ao longo da viagem da forma dos objetos de vida e transformação, os ossos
cobra-canoa, o crescimento do grupo de um ances- de peixe, a parte dura e, como os nomes, impere-
tral específico é descrito como a multiplicação dos cível da pessoa. Assim, o nome é, ainda que alma,
adornos cerimoniais que ele carrega em uma caixa considerado um segundo corpo introjetado no cor-
– as mesmas levadas pelos missionários a partir do po exterior. Ora, que função cumpre o livro ao ser
início do século XX, confeccionadas em palha e no inserido na montagem do corpo do ancestral senão
interior da qual os ornamentos cerimoniais eram materializar o nome em seu próprio título. A es-
cuidadosamente conservados. crita parece aqui prestar-se a um novo uso: em sua
Como afirmei, o referente dessa imagem é a pi- materialidade, torna-se parte do corpo artefactual
racema, a festa na qual os peixes se multiplicam. Do do ancestral, bem como de seu corpo ampliado na
ponto de vista dos humanos atuais, seus ancestrais imagem do clã. Além disso, ele condensa todo um
dançavam com os peixes, faziam uso das flautas exis- corpus de conhecimento. Não é por acaso, portan-
tentes em suas casas no fundo do rio. E assim seu to, que substitui a cuia de ipadu, associada também
grupo aumentava, isto é, seus adornos se multipli- à capacidade de pensamento e reflexão.
cavam. O variado conjunto de adornos cerimoniais Índice material e repositório de conhecimen-
constitui sua progênese. A piracema é o verdadeiro tos, os livros de mitologia parecem, portanto, obje-
protótipo da capacidade de reprodução, que não tos particularmente adaptados ao processo de fabri-
depende de relações sexuais. Os objetos cuja com- cação xamânica da pessoa, no qual a distinção entre
posição conforma o corpo do ancestral, bem como corpo e alma é essencialmente borrada. O livro é
os adornos que denotam o crescimento de seu gru- corpo, pessoa, ou uma parte destacável da pessoa;
po, são índices que descrevem tal capacidade. São materialmente visível, é inequivocamente investido
igualmente índices de força de vida, da capacidade de sua essência metafísica, de seu nome. No lança-
de demonstrar atividade diante de outrem, quali- mento do livro desana, tudo isso está implícito. Um
dade agregada no interior dos corpos como bancos, comentário de um autor tariano parece explicitar
suportes e cuias, mas que se evidenciam e se realçam essa interpretação. Por ocasião de um período de
externamente por meio dos adornos ritualmente trabalho com narrativas míticas, ele disse o seguin-
exibidos. Possuindo uma dimensão interior e outra te: “com tudo isso, é como que se meu avô tivesse
exterior, único e múltiplo, o corpo ancestral dissol- ressuscitado”. À medida que vai ganhando forma,
ve a dicotomia entre pessoas e coisas. o manuscrito, que resulta de processo intenso de
O nome é o próprio conjunto banco-suporte- pensamento e reflexão à frente da tela do computa-
cuia – o suporte de cuia é feito de varetas amarradas dor, parece permitir ainda que o conhecimento seja
entre si por cipós, concebidas como veias que con- revelado. O mesmo narrador contou-me que, desde
duzem o conteúdo da cuia à base estável – o banco. que começamos a trabalhar em seu livro, seu avô
Ou seja, no que se refere a seus ancestrais míticos, lhe aparece em sonho freqüentemente. Falando-lhe
os povos do Uaupés não separam os aspectos visí- ao ouvido, esse antepassado ensina-lhe os mesmos
vel e invisível, material e imaterial, eles são uma e cantos e histórias que, em sua juventude, não lhe
mesma coisa. Por isso, quando se atribui nome a prendiam a atenção. Com esses elementos, passa,
uma pessoa, o kumu deve lançar mão de uma en- não raras vezes, a buscar esclarecer detalhes das his-
cantação apropriada, na qual esses objetos são ver- tórias com outros parentes vivos mais velhos e, com

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18  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 25 N° 73

isso, começa até mesmo a conseguir curar certas dos protótipos e dos índices, evoca claramente o
doenças com encantações apropriadas que está, em livro Art and agency, de Alfred Gell (1998). Há
seus mais de 60 anos, aprendendo. várias sugestões interessantes nesse trabalho para
Em suma, os livros da coleção Narradores In- um tratamento aprofundado dos objetos rituais
dígenas do Rio Negro apresentam-se como objetos no Uaupés, pois a proposta do autor no sentido
plenamente aptos a serem subsumidos em um con- de tratar os objetos de arte a partir de seu aspecto
ceito tukano utilizado tanto para a riqueza cerimo- relacional, e da agência que exercem no contexto
nial como para as mercadorias dos brancos: ahpeká, das relações sociais em que se inserem – em vez
termo composto por ahpe, “outro”, e ká, “coisas”. de analisá-los sob o prisma dos códigos simbólicos
“Coisas outras”, portanto, uma expressão englo- que expressam – evoca muito nitidamente a con-
bante que se aplica, em primeira instância, às espe- cepção uaupesiana de que os ossos de peixe e os
cializações artesanais dos diferentes grupos, como o chamados objetos de vida e transformação são as-
banco confeccionado pelos Tukano, o ralo baniwa, sim qualificados por encapsularem, precisamente,
a canoa tuyuka e assim por diante. Índices de di- força de vida, em tukano, katisehé. É por meio de
ferenças sociais internas que, uma vez projetados sua inserção nos corpos via nominação que se pro-
para o contexto do mito, no qual a humanidade picia subjetivação, uma potencialização da força-
indígena atual diferenciou-se tanto dos peixes fala da pessoa, u'unkusehé, que, assim, poderá agir
e animais como dos brancos, irão recair precisa- intencionalmente sobre o mundo, expressando co-
mente sobre os objetos cerimoniais e as merca- nhecimento ou soprando encantações. Os objetos
dorias. Tudo isso é qualificado como ahpeká. As encapsulam vida, não no sentido biológico, mas no
mercadorias são o ahpeká dos brancos, incluindo sentido de capacidade de agência, de intencionali-
aí os papéis, o dinheiro. E os adornos cerimoniais, dade. Tal qualidade advém da composição daquele
ainda que idênticos entre si, são também conside- segundo corpo, o nome. Força de vida, portanto,
rados o ahpeká de cada grupo indígena específico. que é manejada na construção de um corpo artefac-
Uma expressão que explica o conceito é isa weki- tual. Vida como intencionalidade e corpo feito de
simia kio’ke, literalmente, “aquilo que nossos avós artefatos, duas outras idéias que fazem parte lingua-
possuíram”. Essa expressão surgiu assim que soli- gem proposta por Gell.
citei a um Tukano que traduzisse para sua língua a Mas ao sugerir que objetos podem ter agência,
palavra “riqueza”, usada com muita freqüência para atributo que normalmente determina a condição
explicar aos brancos o sentido que os índios atri- de sujeito, o autor trata de distinguir entre agentes
buem a seus objetos e adornos. Segue-se à tradução primários e secundários. Coisas e artefatos seriam,
a seguinte exegese: ao nascer, um branco já tem di- em suas palavras, “agentes secundários”, através dos
nheiro no banco; no caso dos índios, o banco é sua quais os “agentes primários”, pessoas em sentido
roça, mas possuem ainda suas relíquias ancestrais. pleno, “distribuem sua agência em certo meio cau-
Obtidas pelos antepassados remotos junto à gente- sal” (Idem, p. 20). Nesse sentido, para que objetos
peixe, vieram a ser incrementadas por certo tipo de exerçam agência é preciso que haja pessoas na vizi-
akpeká dos brancos, os livros. A analogia entre os nhança dessas coisas inertes, ou seja, o que conta é
brancos e a gente-peixe é patente, mas não há es- sua inserção em uma rede de relações sociais, não
paço aqui para tratar desse tópico. Convém, para importando o que uma coisa (ou mesmo uma pes-
finalizar, voltar ao tema da expansão das relações soa) é em si mesma. O pressuposto dessa formula-
que se pretende propiciar por meio dos livros. ção é que o outro imediato em uma relação social
não é necessariamente um ser humano. Levando-se
em consideração o que até aqui foi dito a respeito
Distribuição, transformação, valor dos objetos cerimoniais dos Uaupés, parece estra-
nho, em princípio, considerá-los agentes apenas
A linguagem utilizada para interpretar o aco- de segunda classe. É possível que do ponto de vista
plamento dos livros ao corpo ancestral, aquela tukano as coisas se passem exatamente de maneira

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Falas, objetos e corpos  19

inversa, pois, como vimos, os instrumentos de vida gem como uma parte desanexada do protótipo. Nas
e transformação preexistem à humanidade. Seriam, palavras do autor, índices são “signos naturais” de
assim, como fontes de força de vida, um dispositivo seus respectivos protótipos, tal como a relação entre
primário de agência, cujo manejo xamânico visa, fumaça e fogo. Abdução de agência por meio de
precisamente, transferir essa virtualidade aos corpos um índice implica, pois, a existência de uma rela-
humanos no próprio ato de sua fabricação. ção de tipo parte-todo deste para com o protótipo
Há, porém, que se considerar que todos os (Idem, p. 104). É nesse sentido que se pode pensar
objetos postos em cena nas narrativas míticas são em uma noção de pessoa como algo distribuído em
intrinsecamente ligados ao Avô do Mundo e à gen- um dado meio, para além de suas fronteiras cor-
te-peixe, junto a quem os demiurgos os adquirem. porais. Um exemplo significativo desse dispositivo
Pode-se pensar, neste caso, que os agentes primá- fornecido por Gell provêm do estudo de Nancy
rios corresponderiam a essas duas posições, a da Munn sobre as formas simbólicas de transformação
divindade-avô e a da alteridade-animal; da combi- do valor na ilha de Gawa. Como os tantos outros
nação de suas capacidades objetificadas dependeria participantes nas trocas de colares e braceletes do
a emergência daquilo que os grupos do Uaupés circuito do Kula, dispersos por inúmeras ilhas e ar-
designam como a verdadeira humanidade.19 Mas quipélagos, os homens de Gawa são “pessoas espa-
qual o estatuto exato da relação entre essas entida- ço-temporalmente estendidas” (Idem, p. 229). Esse
des e seus objetos? Eles possuem as coisas ou são espaço-tempo opera, de acordo com a interpretação
as coisas? Esse não é um problema desconsiderado de Gell, como um campo de forças exercidas por
por Gell. Ao contrário, tomando com referência a objetos de valor, todos eles ligados ao nome de pes-
relação de um soldado com seus armamentos e ou- soas de renome e prestígio, mas em contínua circu-
tros instrumentos letais – como as minas implan- lação. Por seu intermédio, essas pessoas são capazes
tadas pelos soldados de Pol Pot no Camboja que de influenciar estratégias e decisões de outros ho-
mataram ou mutilaram milhares –, ele tende para a mens em lugares muito distantes, para muito além
segunda alternativa, sugerindo que artefatos como de seus parceiros mais imediatos. Os objetos ligados
armas constituem o nexo de ligação dos agentes a seu nome são índices de sua presença corporal, de
com outros entes sociais. As armas de um soldado suas capacidades e beleza, uma vez que são adornos
são parte de sua pessoa, são o que fazem dele o que corporais, e, assim, parte de sua pessoa. São belos
é. Sugere, assim, a noção de “pessoa distribuída”, de na mesma medida que antigos e poderosos. Do que
acordo como a qual um agente não se localiza ape- já foi dito sobre os livros indígenas do rio Negro,
nas dentro dos limites circunscritos por seu próprio vê-se que a ressonância entre eles e os objetos de
corpo. Sua agência social realiza-se, de fato, pela valor de Gawa é patente. Pois, a distribuição dos
proliferação de partes desanexadas de sua pessoa exemplares de um livro por entre várias comuni-
na forma artefactual. Apesar de manter a distinção dades, associações e escolas indígenas da região,
entre agência primária (da pessoa) e secundária (do além de sua comercialização pela FOIRN na cida-
artefato), Gell, após extenso percurso argumentati- de de São Gabriel da Cachoeira, permite ampliar
vo – que passa por vários exemplos etnográficos, da o raio de ação de um clã específico e, nesse sen-
feitiçaria por exúvias à animação de ídolos –, con- tido, ampliar sua influência para além dos círcu-
clui que, em termos da posição que podem ocupar los sociais mais próximos, nos quais sua posição é
em redes de agência social humana, artefatos ou mais usualmente reiterada ritualmente por meio
seres humanos “podem ser considerados quase que dos dabucuris.
inteiramente equivalentes” (Idem, p. 153). Mas há ainda outro ponto que, a meu ver, per-
Objetos são, assim, índices que permitem ab- mite aprofundar tal paralelo. Refiro-me àquilo que
dução de agência das entidades que descrevem, Gell chama de “mapa espaço-temporal dinâmico”,
ou mesmo que representam visualmente, isto é, qualificando com essa expressão os intrincados ca-
de seus protótipos. O ponto a destacar é que, em minhos nos quais circulam os objetos do Kula. Esse
certos casos, um índice pode ser tanto uma ima- mapa resulta de uma construção baseada na experi-

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ência e na memória acumuladas pelas pessoas, bem livros a origem do homem branco é igualmente es-
como em um mundo historicamente construído clarecida, pois seu ancestral era o irmão mais novo
que “se encontra lá”, isto é, em um extenso espaço do ancestral dos índios, que, por sua índole violen-
contínuo e aberto povoado por muitos outros sujei- ta, veio a ser, de acordo com os Oyé, levado pela
tos. Um mundo, segundo o autor, no qual os pen- cobra-canoa para os outros continentes. Como no
samentos se expandem, se encontram, disputam e caso do Kula, a produção e a circulação de livros
se afirmam, por meio, precisamente, dos objetos indígenas exprimem assim uma forma da cognição
de valor. Mente e mundo tornam-se coextensivos, que, no transcurso da história, veio a englobar a fi-
uma condição necessária para a participação bem- gura do homem branco.
sucedida nas trocas Kula, isto é, para uma trans- É portanto no interior desse mapa espaço-tem-
formação do valor dos objetos em renome. Uma poral que se processa o valor por meio do qual uma
transformação positiva, portanto. comunidade se faz viável como parte de um exten-
São as coordenadas circunscritas por esse mapa so sistema relacional. Renome e prestígio – “fama”,
que, a meu ver, permitem operar aquilo que Nancy no caso dos moradores da ilha de Gawa – consti-
Munn (1986, pp. 8-10) chamou de expansão, ou tuem o resultado desejado do processo, e que passa
extensão, de um espaço-tempo intersubjetivo. De por uma avaliação do “eu” por “outros” significati-
maneira significativa, os livros indígenas do rio vos – não é preciso que você conheça pessoalmente
Negro concentram-se em larga medida em deta- alguém para que este saiba de sua existência e lhe
lhar como, em diferentes episódios, o mundo veio reconheça prestígio, pois objetos de valor ligados a
a se constituir como tal, e, sobretudo, em apontar seu nome estão sempre lhes chegando às mãos por
um conjunto de referências espaço-temporais que meio das trocas do Kula. A partir disso, a hipótese
funcionam como coordenadas para o estabeleci- mais ampla que sugiro é a de que o processo re-
mento dos diferentes grupos na região, e mesmo cente de produzir e fazer circular livros no alto rio
alhures. Os manuscritos costumam contemplar o Negro constitui-se igualmente como uma ação que
processo de dispersão dos vários clãs em pontos es- visa expandir as dimensões de controle espaço-tem-
pecíficos, detalhando o nome de cada um e o nome poral de seus autores, para usar novamente a termi-
do lugar que lhes coube, em geral nos próprios rios nologia de Nancy Munn. É um processo no qual
da região. Seguem relatando os processos de expan- a alteridade participa como um elemento organi-
são de alianças empreendidas pelo grupo do autor zador, o solo a partir do qual o “eu” se constitui,
ao longo de sua história, e é preciso levar em con- pois atravessando os círculos dos parentes próximos
sideração que a própria narrativa da diversificação e distantes para, então, circular entre os brancos
de suas relações ao longo do tempo constitui par- de rio abaixo, pretende persuadi-los a adotar uma
te de seu patrimônio no presente. Aparentemente, perspectiva propriamente tukano – ou tariano, de-
ao registrá-la e tentar fazê-la circular por circuitos sana etc. – acerca de quem eram de fato os “índios
cada vez mais amplos, os autores demonstram um Uaupés”. Isto é, uma imagem projetada pelos auto-
esforço em desenvolver, nos termos propostos por res dos livros acerca de si mesmos, dirigida tanto a
Munn, relações espaço-temporais progressivamente outros grupos indígenas da região como aos brancos,
mais distantes de seu contexto imediato. Antes da de cujas técnicas e objetos vieram a se apropriar. A
trajetória particular de seu grupo, tratam de enu- circulação dos livros é, portanto, uma forma de dis-
merar um conjunto extenso de “casas de transfor- tribuição do nome e da pessoa; configura-se como
mação” existentes ao longo do curso dos rios Ne- uma ação que combina a riqueza herdada a novas
gro e Uaupés, os pontos de parada da cobra-canoa, capacidades incorporadas historicamente para afe-
bem como sua partida desde o Lago de Leite. Nos tar o juízo de outros sobre si. Um processo que visa
manuscritos de hoje, o Lago de Leite é situado na à transformação do ponto de vista de outrem, que
Baía da Guanabara, e muitas das casas de transfor- idealmente deve coincidir com o seu próprio.
mação são as próprias cidades situadas ao longo de Em suma, os livros parecem se prestar como
seu percurso, como Belém e Manaus. Em todos os um recurso estratégico em um processo constante

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de expansão de relações. Um dispositivo que per- diabo. Os índios possuíam a cultura, os brancos, a
mite de maneira inédita a distribuição ampliada da chamada civilização. Nomes, cantos, adornos ceri-
pessoa e de seu nome, e, potencialmente, a parti- moniais são os instrumentos da cultura, por meio
cipação de uma comunidade local em um mundo dos quais os ancestrais indígenas fizeram aumentar
que veio incessantemente se expandindo. e transmitir força de vida às atuais gerações. Merca-
dorias, incluindo papéis – o dinheiro, a Bíblia –, foi
o que coube ao ancestral do branco no conhecido
Nota final episódio mítico da má-escolha, do qual os grupos
indígenas do rio Negro oferecem inúmeras versões.
Foi tratando da produção desses livros indíge- Dessa maneira, a medida de comparação, ou o ter-
nas que Stephen Hugh-Jones cunhou recentemente mo de mediação, do que seria uma antropologia re-
a expressão “antropologia faça você mesmo”.20 O versa dos índios do rio Negro (ver Wagner, [1975]
autor aludia a um espaço emergente de colabora- 1986) não seria realmente “cultura”. O mais forte
ção entre índios e antropólogos no alto rio Negro candidato, como vimos, é a noção de ahpeká, as
na produção dos livros indígenas, o que evidencia “coisas outras”, que hoje engloba tanto as riquezas
a natureza sempre co-autoral das descrições etno- tradicionais como as mercadorias.
gráficas, poucas vezes reconhecidas na história da Fazendo circular os livros, entre si e mesmo en-
disciplina. Mas Hugh-Jones também alerta para tre os brancos, o papel e a escrita tornam-se objeti-
os riscos que envolvem esses experimentos, pois, ficações de um novo tipo nas mãos dos índios. Não
ao explicitar a posição indígena como autores ou se referem a um valor meramente utilitário – pre-
co-autores de textos escritos por antropólogos, es- servar a memória, pleitear propriedade sobre conhe-
sas iniciativas remetem a uma concepção restrita de cimentos –, pois nesse caso, e ainda de acordo com
“cultura”, que acaba por direcionar a etnografia ao Wagner, eles seriam a mesma coisa que os livros dos
mito e ao ritual, deixando de lado, por exemplo, o brancos: “nossos ‘fantasmas’, nosso passado, onde
modo de vida e as atividades de subsistência, coisas vive uma parte tão grande daquilo que chamamos
em geral englobadas em nossa concepção de cultu- nossa “Cultura”. É certo que os livros dos índios
ra. O resultado é que a visão corrente na antropo- contam seu passado e os feitos dos ancestrais, e,
logia amazônica quanto à existência de um fundo além do mais, eles provavelmente não hesitariam
cultural compartilhado em face do qual os diferen- em dizer que ali está a sua “cultura”. Mas, como
tes grupos tukano corresponderiam a variações lo- já diagnosticou Stephen Hugh-Jones, há um claro
cais é posta em segundo plano. Pois, do ponto de equívoco em torno do termo cultura. A apropria-
vista indígena, o esforço em transformar narrativas ção indígena do termo parece introduzir ainda mais
em textos escritos quer, precisamente, evidenciar as ambigüidade na cultura. Wagner sugeriu que isso
diferenças entre suas respectivas “culturas” – seus se deve ao fato de que os antropólogos imaginam
cantos, danças, nomes e versões próprias das histó- uma cultura para pessoas que não imaginam algo
rias de origem. como sua própria “cultura”. Mas a história da et-
As aspas no termo cultura denotam, precisa- nografia no rio Negro começou depois que os ín-
mente, um uso indígena da noção (ver Carneiro da dios já haviam passado por toda uma outra história
Cunha, 2009). Trata-se de um uso bastante pecu- de civilização e catequese, de modo que a cultura
liar, e cujo aprendizado se deu a duras penas, pois solicitada pelos antropólogos, e mesmo por alguns
essa cultura que diferencia os índios entre si – cada etnógrafos salesianos, foi facilmente imaginada pe-
qual possui a sua própria –, diferencia-os de seu los próprios índios: tratava-se daquilo que “nossos
próprio ponto de vista conjuntamente dos brancos avós possuíram”, e que ao longo da história lhes foi
de uma maneira inusitada: os brancos simplesmen- expropriado. Ou, ao menos, quase.
te são despojados de “cultura”, pois não possuem Esse último ponto não é nada trivial, pois,
nomes ou “etnias”. Além disso, condenaram his- como foi discutido, se adornos e instrumentos fo-
toricamente as culturas indígenas como coisas do ram levados pelos padres, tudo aquilo que hoje se

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registra nos novos livros não havia como ser carre- vida comunitário fora das antigas malocas e sem os
gado. Além disso, foram-se certos objetos, e vieram rituais tradicionais. Hoje, as relações com os bran-
outros, as mercadorias e os papéis. É também por cos diversificaram-se de maneira jamais imaginadas,
meio deles que hoje em dia a grande maioria das pois além de padres e patrões, há os antropólogos,
comunidades indígenas da região torna viável o seu as ONGs, os funcionários de vários órgãos de go-
mundo vivido. Em Iauaretê, concomitantemente verno, os turistas etc. Ou seja, o espaço-tempo in-
ao interesse de certos moradores de determinados tersubjetivo que envolve brancos e índios se alargou
clãs em produzir livros de mitos, uma boa parte historicamente e parece ter aberto, ao menos, uma
dos dabucuris ocorre por ocasião de efemérides possibilidade inaudita, pois a apropriação dos livros
escolares, como os dias das mães, dos pais, o dia e da escrita tornou-se uma forma pela qual os ín-
do soldado, do professor e assim por diante. E por dios intentam controlar e inverter a perspectiva dos
meio desses dabucuris a circulação de mercadorias brancos sobre o que era e quem eram os índios. Se
e dinheiro é, em certa medida, agenciada e a comu- isso se tornará uma forma de transformação posi-
nidade, produzida. Algo próximo a esse processo tiva de valor, isto é, se este processo vai realmente
ocorre entre os Piro da Amazônia peruana, entre os criar novas condições de viabilidade de seu mundo
quais, conforme descreve Gow (2001), verifica-se a vivido, é cedo para avaliar.
substituição dos rituais de iniciação feminina por
festas comunitárias relacionadas com a introdução
da educação escolar. Gow aponta que o xamanis- Notas
mo associado às divindades celestes, assim como
as narrativas míticas acerca de contatos com seres 1 Ver Barbosa et al. (2000); Cornelio et al. (1999);
celestiais, foram desaparecendo em um processo Diakuru e Kisibi (1996); Fernandes e Fernandes
paralelo ao abandono progressivo dos rituais de (2006); Maia e Maia (2004); ?ahuri e Kümarõ (2003);
iniciação, quando as meninas eram adornadas para Tõramü Bayar e Guahari Ye Ñi (2004); Umúsin Pan-
lõn Kumu e Tolamãn Kenhíri ([1980] 1995).
que se mostrassem belas aos olhos daquelas mesmas
divindades. O abandono dos rituais, do xamanismo 2 A redação e os dados apresentados neste artigo deri-
vam de minha experiência direta como antropólogo-
e das histórias relacionadas com seres celestiais cede
colaborador em dois volumes da coleção Narradores
lugar às festas das comunidades nativas e ao enga- Indígenas do Rio Negro. O primeiro deles já se en-
jamento com o conhecimento dos brancos, o que contra publicado (ver Maia e Maia, 2004); o segundo,
leva o autor a se perguntar se, em alguma medida, que traz uma versão tariano do ciclo mítico de origem
não se trata de processos relacionados. Ou seja, em dos povos do rio Uaupés encontra-se em fase de pre-
que medida a presença decrescente dos deuses no paração. Alguns argumentos apresentados ao longo do
mundo vivido piro dos Piro se explica pela presença texto beneficiaram-se largamente de um diálogo direto
crescente do homem branco. Para tanto, Gow su- com Stephen Hugh-Jones sobre a etnografia rionegri-
gere uma incursão prolongada na história do século na de um modo geral e, em particular, sobre o interesse
XIX a fim de verificar como os gringos foram in- dos índios da região na produção de manuscritos.
ventados pelos Piro. 3 Trata-se do registro da Cachoeira de Iauaretê, rio Uau-
A importância crescente dos brancos no in- pés, como “lugar sagrado dos povos indígenas dos rios
Uaupés e Papuri” pelo Iphan (Instituto do Patrimônio
terior do mundo tukano ou tariano é igualmente
Histórico e Artístico Nacional), em agosto de 2006
inegável. Em seus respectivos livros, dá-se conta
(ver Andrello, 2006b; Oliveira e Andrello, 2008).
tanto da origem de seus poderes específicos como
4 Oferecer uma obra sob uma licença Creative Com-
dos primeiros episódios em que com eles trava-
mons não significa abrir mão de seus direitos autorais.
ram relações. Aproximações exploratórias, fugas e Significa oferecer alguns dos direitos para qualquer
violência, mas também alianças e trocas; tudo isso pessoa, mas somente sob determinadas condições,
aparece nos relatos. E, por fim, a implantação de- como, por exemplo, de uso “não comercial”. Para
finitiva das missões, o batismo cristão e a obtenção mais informações ver <http://www.creativecommons.
de um nome civilizado, e todo um novo estilo de org.br>.

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Falas, objetos e corpos  23

5 Relatos, reflexões, depoimentos indígenas e outros va- líder do grupo que ocupa o topo da escala hierárquica
riados materiais relacionados com o projeto “Inovar tukano. Contam ainda que, uma vez estabelecidos na
para Avançar: propondo novas formas de salvaguarda margem direita da cachoeira, abaixo da foz do Papuri,
aos direitos intelectuais coletivos dos povos indígenas” haveria recebido dois emissários de Waûro, que ofe-
podem ser encontrados em <http://ct.socioambiental. recia sua filha em casamento ao filho de Koivathe.
org>, acessado em 14/1/2010. É preciso salientar que A versão tukano, por sua vez, conta que o primeiro
a conclusão a que chegaram os advogados que coorde- casamento entre os dois grupos ocorreu quando, já
navam o projeto foi, em grande medida, sugerida por vivendo em Iauaretê, os Tukano decidiram viajar até
Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo consultor o Içana para “procurar uma esposa” para o filho de
convidado a participar do projeto e que presenciou seu chefe entre os Tariano. Efetuada essa aliança, os
alguns dos encontros Tariano haveriam decidido se estabelecer permanen-
6 As duas expressões, economia simbólica ou economia temente no Uaupés. A contradição entre as narrativas
moral, denotando, respectivamente, relações de alte- quanto a esse ponto tem várias implicações que espero
ridade e intimidade, foram sugeridas por Viveiros de poder tratar em outra ocasião. Vale frisar, no entanto,
Castro (1996) para qualificar de maneira esquemática dois aspectos relevantes para a presente discussão: em
duas das principais tendências analíticas no interior primeiro lugar, é importante esclarecer que em várias
da etnologia das terras baixas sul-americanas narrativas aponta-se que todos os clãs tukano estive-
ram reunidos próximos a uma serra existente na cabe-
7 Entre as várias referências e descrições na literatura
ceira do igarapé Turi, afluente do baixo Papuri. Com
etnográfica, ver o sumário em Brandhuber (1999) e
o crescimento, dispersaram-se, e foi quando alguns se
também Chernela (2001).
fixaram por certo período na cachoeira de Iauaretê.
8 Para uma análise detalhada de uma narrativa tukano Adentram definitivamente o Papuri com a chegada
que descreve o conjunto de transformações sucessivas dos brancos, como apontamos acima. Várias narrati-
que leva ao surgimento da humanidade, bem como o vas apontam igualmente que, ao começarem a se ca-
papel aí desempenhado por um conjunto de objetos sar com mulheres dos grupos situados no Uaupés, os
chamados “instrumentos de vida e transformação”, Tariano vieram progressivamente a perder sua língua
bem como por substâncias como o caapi, o ipadu e o original, da família arawak, e adotar a fala de seus no-
tabaco, ver Andrello (2006a, cap. 6) vos cunhados de língua tukano. Atualmente, apenas
9 Habitam tradicionalmente a bacia do rio Uaupés, em um dos clãs tariano, localizado no alto Uaupés e de
territórios brasileiro e colombiano, cerca de quinze baixa posição hierárquica, mantém a língua original.
grupos de língua tukano oriental: Tukano (propria- 12 A terminologia de parentesco no Uaupés é de tipo
mente dito), Desana, Pira-Tapuia, Wanano, Tuyuka, dravidiano, ou de duas seções, na qual está implícito o
Arapasso, Cubeo, Miriti-Tapuia, Carapanã, Makuna, casamento ideal com a prima cruzada bilateral, e, as-
Bará, Barasana, Tatuyo e Siriano. Os grupos de língua sim, a replicação de alianças ao longo do tempo. Mas
arawak encontram-se situados ao norte do Uaupés, na realidade há uma terceira categoria na geração de
nas bacias dos rios Içana, Xié, Cuiari e Guainia. São ego, além de consangüíneos e afins, que são os filhos
eles: Baniwa, Curipako, Warekena e Baré – os Taria- de mãe – filhos ou filhas da irmã da mãe –, com quem
no, ao migrar para a bacia do Uaupés, adotaram a lín- o casamento não é recomendado. Nesse caso, o casa-
gua tukano há muitas gerações. Todos esses povos são mento preferencial é, de fato, com a prima cruzada
ribeirinhos e agricultores. Nas porções interfluviais patrilateral, pois a prima cruzada matrilateral é uma
da bacia do Uaupés encontram-se os povos de língua “filha de mãe”. Para essas especificidades do sistema
maku, caçadores-coletores semi-nômades: Hupda, uaupesiano com relação aos demais sistemas de paren-
Yuhup, Daw e Nadeb. tesco amazônicos, ver Cabalzar (2009)
10 Ver Eduardo Neves (1998) para uma datação da mi- 13 Boa parte da população das comunidades do alto
gração dos Tariano do Içana ao Uaupés a partir de Uaupés e Papuri passou a estabelecer residência per-
pesquisa arqueológica realizada em Iauaretê, pesquisa manente em Iauaretê após o fechamento dos interna-
essa baseada igualmente em vários relatos orais dispo- tos, em função da necessidade de cuidar das crianças
níveis sobre o grupo. em idade escolar. Além disso, ao longo dos anos, a
11 Contam alguns homens koivathe que ao chegar a oferta de educação foi se ampliando. Hoje, há um co-
Iauaretê seu antigo líder, ele próprio chamado Koiva- légio mantido pelo governo do Amazonas no local,
the, haveria encontrado Waûro, o “chefe dos tukano”, com estudantes de ensino fundamental e médio em

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número superior a mil. A população total do povoado pessoa que está sendo nomeada, para que seja serena e
hoje é de cerca de 3 mil pessoas, pertencentes a oito tranqüila. A matéria-prima dos objetos é também alvo
diferentes etnias: Tariano, Tukano, Desana, Pira-Ta- de cuidados, e estes são citados várias vezes em dife-
puia, Arapasso, Wanano, Tuyuka e Maku-Hupda rentes versões: de quartzo, de ouro, de ferro. Invaria-
14 É, de fato, a própria denominação do rio que o in- velmente é agregado o adjetivo “vida”: cuia de quartzo
dica, pois “rio Uaupés” é uma forma contemporânea de vida, cuia de ferro de vida, e assim por diante, para
abreviada daquele que foi por muito tempo conhecido todos os objetos. Ao final, explicita-se que se trata dos
com o “rio dos Uaupés” ou “rio dos Boapés”, dia posaya objetos de vida e transformação do nome que se quer
em tukano, isto é, o “rio dos índios”. Uaupés ou Bo- atribuir à pessoa. Para um exemplo de transcrição
apés eram, portanto, os índios que, assim chamados, desse tipo de encantação, ver Andrello (2006a, pp.
eram pejorativamente qualificados como “comedores 264-266). Ver também S. Hugh-Jones (2002), que
de tapuru”, as larvas encontradas no pau das árvores e trata do sistema de nominação do Uaupés de maneira
palmeiras em decomposição. Gente que não tinha sua mais ampla, apontando a existência de três tipos de
própria comida, que vivia da comida de outros. Uma nomes: além desse considerado sagrado, há também
gente qualquer, sem valor, sem nome, sem riquezas. os apelidos e os nomes de brancos, de uso vocativo
Sem civilização, em suma, selvagens simplesmente mais usual. O nome sagrado, baseke-wame, corriquei-
ramente traduzido como “nomes de benzimento”, não
15 O nome Boapés, ou Boupés (Uaupés) foi no passa-
é empregado correntemente. Há uma aura de segredo
do atribuído aos habitantes desse rio, cujo nome nas
em torno deles. Podem ser empregados, por exemplo,
fontes mais antigas é Caiari, e também a um poderoso
na feitiçaria.
chefe cuja maloca situava-se, precisamente, na cacho-
eira de Iauaretê. Os feitos de Boupé são narrados em 19 Fica esta formulação como uma sugestão a ser desen-
relatos coletados já no século XIX por Brandão de volvida em outra ocasião, já que remete à complexa
Amorim ([1928] 1987) e Stradelli ([1896] 1964). O questão acerca da relação entre transmissão vertical e
livro que os Tariano estão elaborando relata as mesmas captura horizontal como formas alternativas ou com-
histórias, entre elas a da guerra com os Wanano aci- plementares de constituição de pessoas e coletivos no
ma mencionada. Mas agora corrigem o nome de seu Uaupés. O problema refere-se mais precisamente ao
ancestral: Koivathe. Da mesma forma, fazem questão papel da chamada predação ontológica (Viveiros de
de apontar os nomes de seus três filhos, Kuenaka, Kali Castro, 1993) entre esses grupos.
e Kui, que, até hoje, são os principais nomes pessoais 20 “DIY Anthropology (Do it yourself Anthropology)”.
atribuídos a crianças do sexo masculino nascidas no Esse foi o título de uma confêrencia proferida no con-
seio de seu clã gresso anual da Society of Anthropology of Lowland
16 Pó de coloração verde escuro, muito fino, elaborado South America (SALSA), Santa Fé, Estados Unidos,
com as folhas de coca torradas e moídas (Erythro- 2007.
xylum coca), de uso ritual. Possui efeito psicoativo,
e se considera que ao mascá-lo a pessoa ganha perspi-
cácia e capacidade de transmissão de conhecimento. bibliografia
Sobre esse conjunto de objetos e a recorrência de sua
aparição nos volumes da coleção Narradores Indíge-
Andrello, G. (2006a), Cidade do Índio: tras-
nas do Rio Negro, ver Hugh-Jones (2009)
formações e cotidiando em Iauaretê. São Paulo,
17 Todos os objetos que aparecem no mito são feitos des-
Editora da Unesp/ISA/NuTI.
sa matéria, cuja existência no mundo atual se concen-
tra no patamar inferior do cosmos. Entre os adornos
. (2006b), “Nossa história esta escrita
cerimoniais, há um colar com um cilindro pingente nas pedras: conversando sobre cultura e patri-
de quartzo perfurado. Brancura e dureza são as carac- mônio com os índios do Uaupés”. Revista do
terísticas salientes dessa matéria-prima, o que sugere Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 32:
uma aproximação aos ossos (de peixe), pois no con- 130-151.
junto dos adornos esta peça é a mais evidentemente Barbosa, M. et al. (2000), Upíperi Kalísi: his-
imperecível. tórias de antigamente, histórias dos antigos Ta-
18 Conta-se que essa aplicação de substâncias doces so- liaseri-Phukurana. São Gabriel da Cachoeira,
bre os objetos presta-se a moldar a própria índole da FOIRN.

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Falas, objetos e corpos  25

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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS  171

Falas, objetos e corpos: SPEECHES, OBJECTS, AND paroles, objets et corps:


autores indígenas no alto BODIES: INDIGENOUS AUTHORS auteurs indigÈnes dans le
rio Negro IN UPPER RIO NEGRO. haut rio Negro

Geraldo Andrello Geraldo Andrello Geraldo Andrello

Palavras-chave: Noroeste amazônico; Keywords: Northwest Amazon; Mythol- Mots-clés: Nord-ouest amazonien ; My-
Mitologia; Ritual; Direitos culturais; Po- ogy; Ritual; Cultural rights; Indigenous thologie; Rituel; Droits culturels; Politi-
lítica indígena. policy. que indigène.

Este artigo focaliza um fenômeno recen- This article focuses on a recent phenome- Cet article aborde un phénomène récent
te entre os grupos indígenas do noroeste non among the indigenous groups of the entre les groupes indigènes du Nord-
amazônico: a publicação regular de livros northwest Amazon: the publication of a ouest amazonien: la publication régulière
de mitologia e histórias de clãs específi- series of books containing the mythol- de livres de mythologie et de clans spé-
cos, pertencentes a diversos grupos da ogy and history of various specific clans cifiques, appartenant à divers groupes de
região (Desana, Tukano, Tariano etc). belonging to diverse indigenous groups la région (Desana, Tukano, Tariano, etc).
Os livros são de autoria compartilhada, of the region (Desana, Tukano, Tariano, Les livres sont écrits conjointement entre
com um homem mais velho narrando o etc.). The books are co-authored by the un homme plus âgé, qui raconte le texte
texto a seu filho, que, mais versado no indigenous narrators themselves, gener- à son fils, et celui-ci qui, connaissant
português, traduz a narrativa, contando ally older men, who tell the stories to a mieux le portugais, traduit la narrative
em geral com o apoio de um antropólogo son, literate in Portuguese and respon- avec, en général, un anthropologue, qui
para transformá-la em texto escrito. Essa sible for translating the narrative, and l’aide à la transformer en un texte écrit.
iniciativa, respaldada pela Federação das generally with the assistance of an an- Cette initiative, soutenue par la Fédéra-
Organizações Indígenas do Rio Negro thropologist who transforms the narra- tion des Organisations Indigènes du Rio
(FOIRN) e alguns de seus aliados gover- tive into a written text. This initiative, Negro (FOIRN) et certains de ses alliés
namentais e não-governamentais, tem supported by the regional indigenous gouvernementaux et non-gouvernemen-
despertado interesse no âmbito dos deba- federation (Federação das Organizações taux, soulève l’intérêt dans le cadre des
tes atuais em torno dos direitos intelectu- Indígenas do Rio Negro - FOIRN) and débats actuels qui portent sur les droits
ais de povos indígenas e tradicionais, e de its governmental and non-governmental intellectuels des peuples indigènes et
como proceder ao seu reconhecimento e partners, has awakened interest on the traditionnels, et sur comment procéder
proteção. Por outro lado, no âmbito local, issues and fostered debates surrounding à leur reconnaissance et protection. Par
o uso da escrita e dos livros atualiza uma the recognition and protection of intel- ailleurs, dans un cadre local, l’emploi de
dinâmica ritual, por meio da qual esses lectual rights of indigenous and tradi- l’écriture et des livres met à jour une dy-
textos eram transacionados oralmente no tional populations. On the other hand, namique rituelle par laquelle ces textes
passado. O artigo levanta hipóteses acerca in the local context, the use of writing étaient transmis oralement dans le passé.
das formas de subjetivação e objetificação and books has modernized the tradi- L’article propose des hypothèses sur les
em questão, levando em consideração as tional ritual dynamic in which these texts formes de subjectivation et d’objectiva-
relações dos grupos indígenas entre si, e have been orally transmitted. The article tion en question, tenant en compte les
destes com os brancos. raises hypotheses on the forms of subjec- rapports des groupes indigènes entre eux
tification and objectification in question, et envers les blancs.
taking into consideration the relation-
ships of indigenous groups among them-
selves as well as with the so-called ‘white’
Brazilian society.

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