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INSTITUTO DE PSICOLOGIA
São Paulo
2019
MANUELA CAMPOS PÉRGOLA
São Paulo
2019
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação
Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Dados fornecidos pelo(a) autor(a)
Aprovada em:
Banca Examinadora
Ao meu companheiro de vida, João, pelo apoio, generosidade, paciência & afeto nosso de
cada dia. Sua presença confere à minha vida o aconchego e o amor que a fazem valer a pena.
À Mary Neide Damico Figueiró, que desde a graduação me acompanha em meus percursos
acadêmicos e me incentivou a prestar o mestrado; pelas leituras cuidadosas que fez dos meus
pré-projetos, pelos conselhos, ensinamentos, a parceria de trabalho e carinho.
À Carla Maria Lima Braga (in memorian), que me “iniciou” nos caminhos winnicottianos, em
2010.
Ao Saulo Durso Ferreira, pela solicitude e dicas pertinentes, me ajudando a repensar muitas
questões referentes a esta pesquisa.
Às amigas que, mesmo distantes de mim fisicamente, estiveram presentes desde muito antes
do início desta trajetória: Mariana Borges, Thalita Antonioli, Marília Querino, Vivian Karina,
Isabela Scolin, Edith Arca, Elizângela Freitas, Ândrea Abreu, Raquel Castro e Diene
Gimenes.
Às amizades que foram frutos do IPUSP e que agora levo para a vida: Camila Morais,
Nattasha Silva e Renan Rossini. Obrigada pelos cafés restauradores & cervejas revigorantes.
À minha família, que apoiou e incentivou minhas andanças e mudanças. À minha sobrinha,
Lua, que tanta alegria (e criatividade) trouxe para a minha vida.
À minha mãe, que se aqui estivesse certamente se interessaria pela teoria winnicottiana da
criatividade.
Felizes aqueles cujos pés
estão bem plantados na terra,
mas que, mesmo assim,
conservam a capacidade de desfrutar
intensas sensações,
nem que seja apenas em sonhos
que são sonhados e recordados.
(Winnicott, 1949)
RESUMO
ABSTRACT
The creativity phenomenon is widely studied in different knowledge areas, such as Education,
Sociology, Anthropology, Philosophy and Psychology. In each one of them it's possible to
distinguish different types of creativity, like the one manifested in the artist, or in the ordinary
human being, and the spontaneous creativity, that can be observed in children. In
Psychoanalysis, an area that considers the individual's affective relationships and the
unconscious existence, there are specificities that allow a different comprehension of the
phenomenon. This work is referenced in D. W. Winnicott's theory of emotional development.
For him, the primary creativity refers to the individual's capacity of recreating the world and
experiencing it in a singular way, providing meaning to their attitudes, thoughts, sensations
and feelings. According to his theory of development, creativity finds its bases in the
satisfatory experience of the omnipotence illusion, which results in the feeling of life being
worth living. This study is intended to investigate and comprehend this concept's construction
and development through Winnicott's work and, because of that, it is necessary to present the
panorama where the author's theory is inserted – which will be done by revisiting the theme in
the work of Winnicott's main interlocuters: Freud and Melanie Klein. Furthermore, the
phenomenon analysis will be differentiated in three levels, the ontologic, descriptive and
clinical points of view. Such investigation will be done through the bibliographic review of
the author's collected works and commentators of his work who investigate the phenomenon,
in and out of the clinical sphere, on the purpose of helping psychoterapists and researches to
understand it.
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
Metodologia .......................................................................................................................... 16
Desenvolvimento .................................................................................................................. 17
CAPÍTULO 1: A CRIATIVIDADE NA HISTÓRIA DA PSICANÁLISE ....................... 20
1.1 Freud e seus comentadores ............................................................................................. 20
1.2 Klein e seus comentadores .............................................................................................. 29
CAPÍTULO 2: ALGUMAS ESPECIFICIDADES DA TEORIA DO
DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL DE WINNICOTT PARA A COMPREENSÃO
DA CRIATIVIDADE ............................................................................................................. 34
2.1 Especificidades da teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott ........................ 34
2.2 Críticas de Winnicott e seus comentadores a Freud e Klein no que se refere à Teoria da
Sublimação............................................................................................................................ 43
CAPÍTULO 3: O CONCEITO DE CRIATIVIDADE ORIGINÁRIA NA OBRA DE D.
W. WINNICOTT .................................................................................................................... 54
3.1 Categorização cronológica dos textos sobre criatividade ............................................... 54
3.2 Especificidades do conceito de criatividade em Winnicott e seus comentadores .......... 56
3.3 Aspectos ontológicos da criatividade.............................................................................. 62
3.4 Aspectos descritivos da criatividade ............................................................................... 70
3.5 Aspectos clínicos da criatividade .................................................................................... 85
CONCLUSÕES....................................................................................................................... 92
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 100
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 103
11
INTRODUÇÃO
O tema da criatividade é amplo, e tem sido pesquisado em diversas áreas, como Artes,
Comunicação, Educação, Filosofia, Antropologia, Sociologia e Psicologia, dentre outras. Para
Alencar e Oliveira, “defini-la ou conceituá-la de forma precisa e concreta é tarefa difícil, visto
que ela se constitui em um fenômeno complexo, difuso, multifacetado e plurideterminado”
(2010, p. 249).
Por existirem diferentes concepções de criatividade, apontadas por diversos autores,
não se pode apreender apenas um significado em relação ao termo, conforme nos apontam as
pesquisas de Alencar e Fleith (2003):
Pode-se constatar que não há acordo quanto ao significado exato do termo nem
consenso acerca da extensão em que essa habilidade se diferencia da inteligência,
ou, pelo contrário, constitui uma faceta da inteligência que não tem sido avaliada
tradicionalmente pelos testes de inteligência (p. 13).
1
Cf. Fleith (2007).
2
“Estudo da criatividade no Brasil: análise das teses/dissertações em Psicologia e Educação (1970/1993)”
(SANTOS, 1995).
12
(...) A maior parte dos trabalhos tratam de estudos empíricos. Além disso, as
abordagens mais utilizadas são a comportamental e a psicométrica, sendo que, dos
estudos empíricos, a maioria são pesquisas experimentais realizadas com maior
frequência em escolas, com alunos de 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental (2005, p.
306).
processo criativo (NOVAES, 1975; ALENCAR, 1986) e as várias características das pessoas
criativas (ALENCAR, 1986).
Fleith e Alencar (2003)3 elaboraram um livro com uma série de artigos sobre a
criatividade, o processo criativo, passando pelas diferentes abordagens em relação ao
fenômeno, além da criatividade nos contextos educacional, organizacional e social; de
importância científica e acadêmica para os pesquisadores sobre o tema.
Na Psicologia, alguns autores4 se dedicaram ao tema da criatividade, tais como:
1. Pires (2010), que enfatiza de que maneira o conceito é encontrado ao longo das fases
de desenvolvimento do indivíduo, a partir do referencial winnicottiano;
2. Barros (2011), que utiliza e define o conceito de criatividade, a partir da perspectiva
winnicottiana, para explicitar a função da fantasia no brincar infantil;
3. Ivo (2012), que busca a relação entre jovens com altas habilidades e a criatividade, na
perspectiva de Winnicott;
4. Ciccone (2013), que descreve os diversos tipos de criatividade presentes na obra
winnicottiana, realizando uma retomada cronológica do tema;
5. Brentan (2014), em seu estudo sobre a expressão da criatividade, do ponto de vista de
Winnicott, em crianças asmáticas;
6. Padovan (2014), que menciona o conceito de criatividade (na Filosofia e na
Psicanálise, e nesta se utiliza do referencial winnicottiano) para construir relações
entre dança, corpo, a experiência de estar no mundo e a prática clínica;
7. Pereira (2014), que, entre outras questões, busca responder de que maneira a
criatividade (enquanto sublimação) se vincula à experiência estética;
8. Aoki (2016), que enfatiza o papel e a importância da criatividade, partindo do
referencial winnicottiano, na construção da parentalidade de crianças com Síndrome
de Down;
9. Durski (2016), que utiliza o conceito de criatividade para descrever o espaço entre
analista e paciente;
10. Silva (2016), que explicita o conceito a fim de vinculá-lo à produção de músicas de
rap na adolescência, se utilizando do referencial de Winnicott.
3
Essa publicação é uma versão modificada e ampliada do livro de Alencar (1986).
4
As teses e dissertações indicadas fazem parte de um levantamento realizado no banco de teses e dissertações da
USP (Universidade de São Paulo) e PUC (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), a partir de 2010,
utilizando-se palavras-chave específicas em relação ao tema. Em seguida, foi realizada a leitura dos resumos dos
trabalhos encontrados e, de acordo com a proximidade com o tema (a perspectiva winnicottiana da criatividade),
foram selecionados os trabalhos aqui apontados.
14
5
Artigos encontrados na busca por meio da página eletrônica (<http://www.pep-web.org/>) do Psychoanalytic
Electronic Publishing (PEP), utilizando-se palavras-chave específicas em relação ao tema. Em seguida, foi
realizada a leitura dos resumos dos trabalhos encontrados e, de acordo com a proximidade com o tema, foram
selecionados os trabalhos aqui apontados.
6
Oremland (1997).
7
Hagman (2014).
8
Fulgencio (2016, p. 17).
15
“um produto da escola freudiana ou psicanalítica”. Porém, como ele mesmo afirmou, “isto
não significa que eu tome como correto tudo o que Freud disse ou escreveu” (1965t, p. 29).
Teoricamente, pode-se afirmar que Winnicott concordava com as ideias freudianas a
respeito do complexo de Édipo, por exemplo, mas, como médico pediatra, observou que
mesmo os bebês poderiam adoecer, caso o cuidado que recebessem não fosse suficientemente
adaptado às suas necessidades.
Portanto, conforme afirma Fulgencio (2016), “Winnicott está, por assim dizer,
realmente nas mãos de Freud e o tem, por assim dizer, nos seus ossos, mas não está sob o
polegar de Freud, não o trata como uma autoridade religiosa a quem se deve idolatria” (p.
18).
Em relação à Melanie Klein, Winnicott concordava com muitas das ideias a respeito
da primeira infância pré-edípica, e as formulações da autora “sobre o desenvolvimento
emocional primitivo e a importância da destrutividade da criança no processo seriam cruciais
para Winnicott”, segundo Phillips (2006, p. 31).
Além disso, Winnicott e Klein tiveram um envolvimento longo, uma vez que
“Winnicott faria a análise do filho de Melanie Klein, Erich, porém sem consentir frente à
exigência de que ela própria supervisionasse o caso. E Melanie Klein viria a analisar a
segunda esposa de Winnicott, Clare” (2006, p. 79).
Assim, a afirmação de Winnicott de que “em nenhum campo cultural é possível ser
original exceto numa base de tradição” (1967b, p. 138) confirma a relevância de retomar as
teorias em relação à criatividade de Freud e Klein antes de adentrar a sua teoria.
O fenômeno da criatividade em Winnicott possui aspectos clínicos e ontológicos9,
além de estar descrito em diversos momentos de sua teoria. O desenvolvimento da
criatividade depende da qualidade das experiências de ilusão vivenciadas no período
denominado dependência absoluta, que vai, aproximadamente, do nascimento aos quatro
meses de vida do bebê. Na saúde, nesse período mãe e bebê vivem uma relação dois-em-um,
ou seja, o bebê não existe sem a mãe, e é esta quem concede os cuidados básicos, físicos e
afetivos, que uma vez também recebeu de sua mãe, quando fora um bebê.
9
O que significa dizer que é a criatividade, ela mesma, que funda a experiência de ser, e está ligada aos modos
de apreensão da realidade. Cf. Santos (2009), Safra (2009), Dias (2003).
16
Metodologia
e estruturado, ao longo da obra do autor, pode-se caracterizar essa pesquisa como teórica, uma
vez que esse tipo de pesquisa “tem como procedimento necessário a retomada daquilo que já
foi produzido diretamente por um autor central e, indiretamente, pelos autores secundários
que desenvolveram esse tema” (FULGENCIO, 2005, p. 49).
Desse modo, a literatura secundária auxiliará a compreender a obra winnicottiana. Os
autores que irão compor esse percurso são: Abram (2000), Caldwell (2007), Dias (2003;
2007), Fulgencio (2003; 2005; 2006; 2014; 2016), Khan (1993), Loparic (1995; 2000; 2005),
Newman (2003), Phillips (2006), Rodman (1990) e Spelman (2015).
Os textos em que o conceito de criatividade originária é trazido por Winnicott foram
selecionados com o respaldo do trabalho que reúne as obras completas do autor, Collected
Works of D. W. Winnicott (2016)13, através da consulta ao índice remissivo (volume 12 da
CW) no item “criatividade”. Posteriormente, os textos foram divididos em três categorias de
análise14: ontológica, descritiva e clínica. No item subsequente são descritas as etapas do
trabalho.
Desenvolvimento
No primeiro capítulo será investigado de que maneira Freud e Klein, com o auxílio de
comentadores de suas respectivas obras, trataram o fenômeno da criatividade em suas teorias.
No segundo capítulo pretende-se apresentar as especificidades da teoria do
desenvolvimento de Winnicott. Nesse momento, os comentadores da obra do autor – que
trataram acerca do conceito, no âmbito clínico ou não – irão auxiliar o entendimento a
respeito da teoria de Winnicott. Na segunda parte do segundo capítulo pretende-se elaborar as
possíveis críticas de Winnicott, bem como de seus comentadores, aos conceitos apresentados
por Freud e Klein no primeiro capítulo, no intuito de compreender quais são as aproximações
e divergências entre as formulações dos autores e de Winnicott.
O terceiro capítulo estará dedicado a demonstrar como o fenômeno da criatividade está
inserido ao longo da obra do autor, apresentando as especificidades deste e de seus
comentadores. Nesse quesito, serão diferenciados três aspectos: o primeiro diz respeito aos
aspectos ontológicos do fenômeno. O segundo se refere aos aspectos descritivos, isto é, como
a criatividade é trazida nas diferentes fases da teoria do desenvolvimento do autor, e o terceiro
13
Que, daqui para frente, será indicada como CW. Para referenciar os textos de Winnicott será indicada a
classificação feita por Knud Hjulmand (1999, 2007), cujo critério é o ano da primeira publicação do artigo ou do
livro do autor. No corpo da dissertação, após a referência do ano de publicação, está a página em que a citação
pode ser encontrada nas edições brasileiras utilizadas neste trabalho.
14
Sugestão apresentada pelo Prof. Dr. Leopoldo Fulgencio, em março de 2018 (exame de qualificação).
18
retoma os textos em que os aspectos clínicos da criatividade são trazidos. Será apresentado
ainda um quadro em que estarão listados os textos e as categorias em que estes se encaixam.
Em seguida, a obra do autor será revisitada cronologicamente, a fim de localizar e explicitar
os textos em que o conceito é trazido.
Abaixo estão os textos que foram utilizados no percurso desta pesquisa, rearranjados
em uma lista cronologicamente disposta, a fim de contemplar duas categorias: os textos
mencionados pela CW15 e os mencionados por outros autores16.
15
Cronologicamente, os textos extraídos do índice remissivo (como consta no volume 12 da CW) no item
“criatividade” são: 4º, 7º, 9º, 13º, 18º, 20º, 23º, 24º, 25º e 26º.
16
Os outros textos adicionados à lista foram encontrados nos trabalhos de Ciccone (2013); Pires (2010);
Newman (2003) e o 2º texto mencionado foi inserido pela autora do trabalho.
19
O ponto de vista tópico diz respeito a uma espécie de ficção teórica, que designa o
psiquismo como se fosse um aparelho e distingue as instâncias psíquicas que compõem as
partes desse aparelho (FULGENCIO, 2003), quais sejam: inconsciente, pré-consciente e
consciente; id, ego e superego. O ponto de vista econômico diz respeito às quantidades de
excitação e, portanto, à libido; e o dinâmico tem relação com as forças pulsionais18 que
operam no aparelho psíquico e, portanto, faz referência às pulsões19.
17
Na edição utilizada (“Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud”) a
tradução para o termo alemão trieb é “instinto”. No restante do texto será utilizado o termo “pulsão”, por dois
motivos: os comentadores de Freud aqui utilizados empregam o termo “pulsão” como tradução do termo alemão
trieb, e para evitar confusões com a palavra “instinto”, que para Winnicott tem o significado de “entidade
biológica integrada imaginativamente” e não tem relação com o trieb (pulsão) de Freud, “entidade
metapsicológica especulativa rejeitada por Winnicott” (LOPARIC, 2005, p. 340, nota de rodapé). Para maior
compreensão sobre as diferenças de tradução entre os termos “instinto” e “pulsão”, cf. Simanke (2014): “O Trieb
de Freud como instinto 1: sexualidade e reprodução” e Fulgencio (2006): “Notas sobre o abandono do conceito
de pulsão na obra de Winnicott”.
18
“Na metapsicologia freudiana, a teoria das pulsões se caracterizou, num primeiro momento, como um
dualismo entre pulsão de autoconservação e pulsão sexual. Mais tarde, Freud (1996c, p.161) realizou uma nova
divisão das pulsões: de um lado, pulsão de vida (sob a qual se encontram englobadas as antigas pulsões de
autoconservação e sexual) e, de outro, a pulsão destrutiva ou pulsão de morte. (...) Para Freud (1996c, p. 162),
essas duas forças fundamentais – pulsões de vida e de morte – determinam toda a variedade dos fenômenos da
21
Segundo FULGENCIO (2006), “as pulsões não são forças físicas, mas psíquicas. Não
são forças propriamente biológicas, mas uma representação psíquica de uma fonte
endossomática ou, ainda, um representante da fonte endossomática” (p. 85). Essa breve
descrição do conceito de pulsão é relevante aqui, pois dará início às discussões que são
pertinentes a esse capítulo. No texto “Os instintos e suas vicissitudes”, Freud descreve20:
Isto é tudo que pode ser dito à guisa de uma caracterização geral dos instintos
sexuais. São numerosos, emanam de grande variedade de fontes orgânicas, atuam
em princípio independentemente um do outro e só alcançam uma síntese mais ou
menos completa numa etapa posterior. A finalidade pela qual cada um deles luta é a
consecução do ‘prazer do órgão’. (...) Distinguem-se por possuírem em ampla
medida a capacidade de agir vicariamente uns pelos outros, e por serem capazes de
mudar prontamente de objetos. Em consequência dessas últimas propriedades, são
capazes de funções que se acham muito distantes de suas ações intencionais
originais – isto é, capazes de ‘sublimação’ (1915c, p. 131).
Dessa vista, nesse texto Freud afirma que as pulsões podem encontrar diversos
destinos: reverter-se em seu oposto; retornar em direção ao próprio eu; sofrer o mecanismo de
repressão21 e serem sublimadas. Em relação a este último destino, Laplanche e Pontalis (2011)
afirmam que se constitui em um processo que explica as atividades humanas que,
aparentemente, não têm relação com a sexualidade, mas encontram “o seu elemento propulsor
na força da pulsão sexual” (p. 495).
Freud define esse conceito como a capacidade do instinto sexual “de ser desviado dos
objetivos sexuais diretos e ser dirigido no sentido de metas mais elevadas, que não são mais
sexuais”, o que o torna “capacitado a efetuar contribuições muito importantes às realizações
sociais e artísticas da humanidade” (1913m, p. 227).
Para Birman (2008), o conceito de sublimação versa sobre a vinculação entre a pulsão
e a cultura, pois, segundo o autor, “Freud procurou, com a mediação propiciada por esse
conceito, interpretar não só a constituição de diferentes registros da cultura, entre os quais a
religião, a filosofia, a arte e a ciência, como também a criatividade psíquica” (p. 13, grifo
nosso).
vida, tal como o par de forças atração e repulsão determina toda a variedade dos fenômenos físicos”
(FERREIRA; RIBEIRO, 2017, pp. 124-125).
19
No texto “O inconsciente” (1915e), Freud aborda os principais aspectos desse conceito, bem como o
funcionamento dos pontos de vista tópico, dinâmico e econômico.
20
As referências bibliográficas referentes à obra de Freud seguirão o padrão estabelecido por Strachey, conforme
o volume XXIV (Índices, Bibliografias, etc.) da “Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud”, publicadas pela Ed. Imago, 2006.
21
Sobre este conceito, cf. Freud, 1915d. Ainda há outra observação importante: na edição utilizada (“Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud”), o termo alemão Verdrängung é
traduzido como “repressão”, conforme traduzido do inglês repression. Porém, os comentadores de Freud aqui
citados optam pela tradução do termo como “recalque”. Portanto, nas citações de seus textos esse será o termo
utilizado.
22
Dessa forma, é possível afirmar que para Freud a criatividade se insere no conceito de
sublimação, como um produto desta. Portanto, o objetivo desse tópico é demonstrar como a
Psicanálise freudiana abordou o tema. Faz-se importante esclarecer que não é o intuito desse
tópico discorrer de que maneira o conceito de sublimação foi construído por Freud ao longo
de sua obra, mas realizar uma breve retomada das diferentes explicações dadas ao conceito,
no decorrer dos principais textos do autor que o abordam.
Tal retomada se faz necessária para, posteriormente, distinguir as especificidades
trazidas por Winnicott ao descrever o fenômeno da criatividade. Portanto, a seguir serão
retomados, cronologicamente, os principais textos freudianos que abordam o conceito, a fim
de compreender suas diferentes facetas. Os textos selecionados decorrem, em sua maioria, das
pesquisas realizadas por Castiel (2006; 2007) e Torezan (2012)22.
É preciso ressaltar que a sublimação não se trata de um conceito completamente
elaborado, ainda que tenha sido conceituado em diferentes momentos da obra freudiana
(CASTIEL, 2006; 2007). Castiel (2007) delimita três momentos da obra do autor na
teorização desse conceito: um primeiro momento, encerrado em 1910, com o estudo sobre
Leonardo da Vinci; em 1914-1915, com “Introdução ao narcisismo” e “Pulsões e seus
destinos”; e em 1920, com “Mais além do princípio do prazer”. A autora afirma que
22
Os trabalhos das autoras são frutos de suas pesquisas de doutorado “Implicaciones metapsicológicas y clínicas
de la conceptuación de la sublimación como proceso psíquico en la obra de Freud” (2003) e “Sublimação, ato
criativo e sujeito na Psicanálise” (2009), respectivamente.
23
Nesse texto, a sublimação consiste, como afirma Castiel (2007), em uma mudança na
meta da pulsão, o que altera também os objetivos sexuais para não-sexuais, como a Arte, por
exemplo. Sendo o conceito apenas citado, sem maiores desdobramentos, é um pouco mais
adiante no mesmo texto que se encontra uma definição que confere ao leitor um contorno em
relação ao tema:
Com que meios se erigem essas construções tão importantes para a cultura e a
normalidade posteriores da pessoa? Provavelmente, a expensas das próprias moções
sexuais infantis, cujo afluxo não cessa nem mesmo durante esse período de latência,
mas cuja energia – na totalidade ou em sua maior parte – é desviada do uso sexual e
voltada para outros fins. Os historiadores da cultura parecem unânimes em supor
que, mediante esse desvio das forças pulsionais sexuais das metas sexuais e por sua
orientação para novas metas, num processo que merece o nome de sublimação,
adquirem-se poderosos componentes para todas as realizações culturais.
Acrescentaríamos, portanto, que o mesmo processo entra em jogo no
desenvolvimento de cada indivíduo, e situaríamos seu início no período de latência
sexual da infância (1905d, p. 167).
A teorização proposta por Freud neste estudo sobre as inibições na vida sexual e na
atividade artística de Leonardo da Vinci fundamenta-se na hipótese de que a
curiosidade infantil sobre a sexualidade é transformada em busca pelo
conhecimento, em pulsão de saber. Assim a pulsão sexual é sublimada em Leonardo
para suas pesquisas que inicialmente serviam para arte e que depois se tornaram
primazia em sua vida, chegando a afastá-lo da pintura. Leonardo foi eleito por Freud
como um modelo do processo sublimatório: assim é possível dizer que este texto
retrata a posição freudiana, ao menos até a data do artigo, quanto à essência deste
conceito (CASTIEL, 2007, pp. 57-58).
A sublimação, portanto, é citada como uma das saídas para satisfazer a pulsão sexual.
Nesse sentido, Freud comenta sobre a força de uma pulsão sob repressão e quando trazida à
consciência, sendo que, no último caso, o poder do desejo se enfraquece, uma vez consciente
pelo indivíduo. “O tratamento psicanalítico coloca-se assim como o melhor substituto da
repressão fracassada, justamente em prol das aspirações mais altas e valiosas da civilização”
(1910a, p. 63).
Dessa forma, na “quinta lição” descrita no texto, Freud discorre sobre as diferentes
saídas que os desejos inconscientes podem encontrar com o tratamento psicanalítico. O
indivíduo se torna capaz de realizar um julgamento daquilo que antes era considerado
impróprio, uma vez que, com a Psicanálise, conseguiu recursos para realizar tal tarefa; ou
admitir que uma parte de seus desejos recalcados pode ser satisfeita, pois a energia da pulsão
sexual tem uma finalidade que não pode (nem conseguiria) ser extinta completamente.
Dentre as saídas está a sublimação, trazida pelo autor como uma solução “muito mais
conveniente” que a repressão, “pelo qual a energia dos desejos infantis não se anula mas ao
contrário permanece utilizável, substituindo-se o alvo de algumas tendências por outro mais
26
elevado, quiçá não mais de ordem sexual” (1910a, p. 63-64), e complementa: “ao reforço de
energia para nossas funções mentais, por essa maneira obtido, devemos provavelmente as
maiores conquistas da civilização” (p. 63). Nesse texto, portanto, a sublimação é trazida como
uma alternativa à repressão e, além disso, caracterizada como processo que resulta em algo de
valor social.
Seguindo cronologicamente, encontra-se o texto “Os instintos e suas vicissitudes”, em
que Freud apresenta uma definição geral das pulsões, importante para a posterior
compreensão da sublimação. No texto é realizada a separação entre sublimação e repressão. A
sublimação passa a ser compreendida como uma das satisfações da pulsão, e a repressão como
um caminho para a pulsão que não é satisfeita. Apesar de não descrever pormenorizadamente
os dois processos, segundo Castiel, nesse texto
A sublimação é citada quando o autor afirma que as pulsões podem trocar de objetos,
o que rearranja o modo de entendimento do conceito. Ainda que a pulsão continue
sexualizada, seu objeto pode ser alterado, via sublimação, não sendo necessariamente
sexualizado. Para Castiel (2007) tal afirmação permitiria “retirar a sublimação da perspectiva
da dessexualização pulsional” (p. 55). De acordo com essa perspectiva, no texto de 1914
sobre as pulsões e sobre o narcisismo, que virá a seguir, comenta a autora
ver com o instinto, e a idealização, algo que tem que ver com o objeto, os dois
conceitos devem ser distinguidos um do outro (1914c, p. 101).
23
Freud desenvolveu duas teorias das pulsões. A primeira foi proposta em Pulsões e destinos da pulsão (1915), e
a outra é desenvolvida em Além do Princípio do Prazer (1920). “A primeira teoria consistia em uma divisão das
pulsões entre pulsões do ego e pulsões sexuais, sendo estas, segundo o autor, voltadas para a manutenção da
espécie, e aquelas à conservação do indivíduo. Em sua segunda teoria, propôs a pulsão de morte, que seria
voltada à descatexização, à inanição, à diminuição da excitação; e a pulsão de vida, que buscava o investimento e
a unificação” (AZEVEDO; MELLO NETO, 2015, p. 68).
24
Cf. Freud (1915e, p. 186).
28
Uma satisfação desse tipo, como, por exemplo, a alegria do artista em criar, em dar
corpo às suas fantasias, ou a do cientista em solucionar problemas ou descobrir
verdades, possui uma qualidade especial que, sem dúvida, um dia poderemos
caracterizar em termos metapsicológicos (1930a, p. 87).
25
Elaborada em “O ego e o id”, sustenta que o aparelho psíquico é composto de três instâncias (id, ego e
superego) e as relações entre as mesmas, não mais a localização psíquica, é do interesse de Freud (CASTIEL,
2007).
29
fonte da criação advinda do processo sublimatório. Tal confusão, que começa a ser
desfeita em 1908, é dissipada dois anos mais tarde no estudo sobre Leonardo da
Vinci. A sublimação é um mecanismo distinto do recalque, é a possibilidade de
satisfação sexual por vias que se distanciam do adoecimento neurótico e, por isso,
Freud lhe atribui uma áurea de superioridade (p. 67).
Melanie Klein (1882-1960) foi uma psicanalista austríaca, uma das precursoras da
Psicanálise de crianças. Segundo Phillips, ela foi a primeira psicanalista a elaborar o que seria
“a intensidade passional da vida emocional precoce” (2006, p. 31). Para Oliveira (2007), uma
das diferenças importantes entre a autora e Freud está na relevância concedida à sexualidade:
enquanto o autor tem o desenvolvimento psicossexual como central em sua teoria, Melanie
Klein enfatiza a agressividade inata do indivíduo.
Segundo Spillius (2011), no início de seu trabalho Klein enfatizava que a base do
brincar seria a externalização da atividade da fantasia26, especialmente da fantasia
inconsciente. Esta, por sua vez, seria o elemento básico do funcionamento mental,
representando não apenas o desdobramento dos impulsos instintivos no campo mental, mas as
tentativas de superar os conflitos e o sofrimento psíquico que têm origens nesses impulsos.
Desse modo, a autora supõe que o brincar seja, além de resultado dos desdobramentos
dos impulsos instintivos, uma tentativa de superar conflitos que são consequência desses
impulsos. Assim, é possível para a criança – bem como para o adulto saudável – pesquisar
acerca dos sofrimentos próprios aos humanos e, ao mesmo tempo, buscar novas soluções para
esses sofrimentos. Para Klein, o brincar se constitui, por si só, como um processo criativo,
uma vez que parte desse processo se baseia na busca de novos objetos para os quais os
impulsos podem ser direcionados, diminuindo, assim, as tensões e os conflitos internos
(SPILLIUS, 2011).
Sua teoria – que dá ênfase ao desenvolvimento emocional primitivo e ao
relacionamento entre mãe e bebê – descreve duas posições que podem reger o funcionamento
psíquico dos indivíduos, bem como seus modos de relação com o mundo: esquizoparanoide e
depressiva. Para que se possa compreender de que maneira essas posições se conectam com o
que Klein denominou criatividade em sua teoria, será feita uma breve apresentação das duas
posições.
No início da vida, o bebê se encontra na posição esquizoparanoide, que diz respeito a
um funcionamento mais precário, em que o ego27 ainda não é suficientemente desenvolvido e
os afetos (amor e ódio, por exemplo) são vivenciados de maneira não integrada.
Além disso, nessa posição a mãe existe para o bebê como objeto parcial, sendo
representada, de modo mais específico, por um seio que se divide em dois, na fantasia do
bebê: um que nutre e alimenta – o seio bom – e outro que o bebê pode destruir e retaliar – o
seio mau. Portanto, a cisão, em bom e mau, por exemplo, é uma característica dessa fase.
Em um texto28 escrito na década de 1930, Klein afirma que nessa fase inicial da vida
da criança, as fantasias sádicas de ataques ao seio mau, por exemplo, começam a se
manifestar. Essas fantasias geram angústia e, no intuito de elaborá-la, mecanismos primitivos
do ego são acionados.
26
Para maior aprofundamento em relação ao conceito de fantasia na obra de Melanie Klein, cf. “Melanie Klein e
as fantasias inconscientes” (OLIVEIRA, 2007).
27
Para uma noção do que significa o conceito de ego para Klein, cf. “A noção de ego em Klein” (capítulo 1.3),
In: “A noção de ego na obra de D.W. Winnicott” (FERREIRA, 2011).
28
“A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego”.
31
Klein afirma que os impulsos sádicos geram ansiedade, e uma maneira de a criança
lidar com as ansiedades decorrentes de seu sadismo é através da simbolização. A autora
descreve o simbolismo como “o fundamento de toda sublimação e de todo talento, uma vez
que é através da equação simbólica que as coisas, as atividades e os interesses se convertem
em tema de fantasias libidinosas” (1930, p. 297). Ela discorre sobre como alcançou essas
ideias:
29
Melanie Klein expõe seu artigo sobre o conceito de posição depressiva em 1935: “Uma contribuição à
Psicogênese dos estados maníaco-depressivos”.
32
O ego tinha cessado de desenvolver sua vida de fantasia e sua relação com a
realidade. Depois de um débil começo, a formação de símbolos se detivera. As
primeiras tentativas haviam deixado sua marca num interesse que, isolado e sem
relação com a realidade, não podia servir de base a novas sublimações (p. 301).
Devido a uma intensa defesa contra o sadismo, Dick não pôde dar continuidade para a
sua formação de símbolos. Nesse caso, o que ocorre é a interrupção de uma cadeia de
acontecimentos que poderiam se dar na vida psíquica da criança: sem o sadismo não há
ansiedade, e sem esta não há desenvolvimento da capacidade de simbolizar. Sem o
desenvolvimento dessas capacidades, uma patologia do tipo psicótico pode se desenvolver.
Segundo a autora:
Klein descreve que conseguiu chegar até o inconsciente desse paciente por meio “dos
rudimentos da vida de fantasia e de formações simbólicas que apresentava” (p. 306), e
33
constata que isso levou à diminuição da ansiedade que ele apresentava no início, o que
indicava que a elaboração da angústia se dava através do uso do simbolismo.
De acordo com Spillius (2011), a psicanalista relaciona o processo criativo aos ataques
destrutivos que ocorrem na fantasia, descrevendo o esforço criativo como uma “tentativa
subsequente de restaurar o dano a objetos sentidos como externos ou internos” (p. 295)30.
Desta forma, para a autora, a criatividade passa a ser vista como uma manifestação do
movimento de reparação – conceito de grande importância na obra desta, que tem origem na
introdução do conceito de posição depressiva.
Portanto, na concepção kleiniana há, na criança, um predomínio do sadismo, anterior à
vivência do Complexo de Édipo, em que certas angústias e defesas são geradas e, em alguns
casos, certas patologias mais graves também. A criatividade se configura como um processo
decorrente da simbolização – e, consequentemente, da sublimação – isto é, daquilo que
funcionaria como uma tentativa da criança de se afastar das angústias oriundas do sadismo.
A seguir serão apresentadas as especificidades do pensamento de Winnicott em
relação à sua teoria do desenvolvimento que são relevantes para a compreensão do fenômeno
da criatividade.
30
Tradução minha.
34
Foi, portanto, por seu contato intenso com bebês e crianças que estavam doentes, física
e emocionalmente, e com psicóticos, que Winnicott centrou sua teoria na importância da
dependência do cuidado ambiental no início da vida do indivíduo.
Conforme afirma Fulgencio, o pensamento de Winnicott postularia que “somente
depois de uma série de conquistas integrativas é que uma criança poderia ter condições de
viver as suas relações emocionais no quadro do cenário edípico” (2016, p. 20). Isto, por sua
vez, descentralizava a questão do Complexo de Édipo e da sexualidade, tidos como centrais
pela Psicanálise freudiana e kleiniana.
35
Winnicott foi o primeiro dos analistas a chamar a atenção para o fato evidente de
que uma mãe cuida carinhosamente do seu bebê, o frui e o cria: não só no interior
somático do seu útero mas também nos primeiros estádios da descoberta e da
percepção do que lhe foi dado de forma inata, e da pessoa em que ele, com o tempo,
se diferenciará e se efetivará (KHAN, 1993, p. 43).
Apesar de começar no início da vida, a integração não deve ser tida como algo que
ocorrerá automaticamente. Em relação à dependência, o autor descreve em seu texto “Da
dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo”, de 1963, estágios do
desenvolvimento que, ao longo de sua jornada de vida, o indivíduo saudável irá percorrer:
dependência absoluta, dependência relativa e rumo à independência ou independência
relativa.
Pelo estágio denominado dependência absoluta entende-se uma série de processos que
caracterizam a quase total adaptação da mãe em relação ao bebê. Isso ocorre porque ela
mesma encontra-se em um estado dependente e frágil, mas que pode identificar-se com seu
bebê a partir de suas próprias experiências como tal32. Esse estágio dura, aproximadamente,
até os seis meses de vida do bebê33.
Nessa etapa, segundo Winnicott, “todos os processos de uma criatura viva constituem
um vir-a-ser, uma espécie de plano para a existência (...). Qualquer irritação, ou falha de
adaptação, causa uma reação no lactente, e essa reação quebra esse vir-a-ser” (1965r, p. 82).
Aqui, o autor se refere aos padrões que podem ser instaurados na vida de um pequeno
indivíduo, dependendo das condições adaptativas da mãe. Caso o bebê precise reagir mais do
que simplesmente ser, “então existe uma séria interferência com a tendência natural que existe
na criança de se tornar uma unidade integrada” (1965r, p. 82).
31
Cf. Winnicott (1988, p. 136).
32
Winnicott dá a esta condição da mãe o nome de “Preocupação Materna Primária”, que será pormenorizada
adiante.
33
A duração aproximada descrita por Winnicott (1965r, p. 84) é de, aproximadamente, seis meses. Em Dias
(2003, p. 165) tem-se a referência a esse estágio com duração de, aproximadamente, quatro meses.
36
O início das relações objetais é complexo. Não pode ocorrer se o meio não propiciar
a apresentação de um objeto, feito de um modo que seja o bebê quem crie o objeto.
34
A escolha de Winnicott pelo termo “psique”, segundo Loparic (2000), “se deve, pelo menos parcialmente, à
etimologia. Em grego antigo comum, “psyché” significa primeiramente vida, inclusive vida animal, e só
secundariamente alma imaterial ou imortal, si-mesmo consciente ou pessoa enquanto centro de emoções, desejos
e afetos. Seja como for, segundo Winnicott, a psique está no bebê, num certo sentido e grau, desde o início da
vida. Ela não é uma substância ou uma instância, e si um modo de operar da natureza humana” (pp. 361-362).
35
Fulgencio (2014), afirma que o self “corresponde a experiência da unidade empírica do indivíduo na sua
relação com o mundo” (p. 189). “O self central poderia ser considerado como o potencial herdado que está
experimentando a continuidade da existência, e adquirindo à sua maneira e em seu passo uma realidade psíquica
pessoal e o esquema corporal pessoal” (WINNICOTT, 1960c, p. 46).
36
Cf. Winnicott (1945d, p. 274) e Dias (2003), Cap. III e IV.
37
Todas as tarefas só poderão ser realizadas através dos cuidados fornecidos pelo
ambiente, que no início se consiste na própria mãe suficientemente boa, que, nas palavras do
autor “é aquela que é capaz de satisfazer as necessidades do nenê no início, e satisfazê-las tão
bem que a criança, na sua saída da matriz do relacionamento mãe-filho, é capaz de ter uma
breve experiência de onipotência” (1965n, p. 56). Dias (2003) relaciona cada uma das tarefas
básicas aos cuidados concernentes ao ambiente da seguinte forma:
37
Cf. “O ‘animal humano’” (LOPARIC, 2000) e Fulgencio (2016, pp. 36-38) para maiores esclarecimentos
sobre a elaboração imaginativa.
38
A tradução da palavra alemã Trieb pela palavra inglesa Instinct, segundo Fulgencio (2003) “borrou as
diferenças entre as concepções de Freud e as de Winnicott, pois, neste último, Instinct tem um sentido que não
corresponde ao Trieb de Freud” (p. 166). Winnicott define esse termo da seguinte maneira: “Instinto é o termo
pelo qual se denominam poderosas forças biológicas que vêm e voltam na vida do bebê ou da criança, e que
38
exigem ação. A excitação do instinto leva a criança, assim como qualquer animal, a preparar-se para a satisfação
quando o mesmo alcança seu estágio de máxima exigência. (...) Tampouco há muita diferença entre seres
humanos e animais” (1988, p. 57).
39
Sobre a função do pensar e da mente, cf. Winnicott (1989s; 1954a).
39
Segundo Phillips (2006), o que abre a possibilidade para que o bebê se desenvolva no
sentido de uma independência relativa é o encontro com um primeiro objeto que esteja fora de
sua realidade subjetiva, um objeto que seja “não-eu”, isto é, transicional. Na transicionalidade,
Winnicott afirma que a criança não é mais a criadora do mundo, mas também aquela que pode
povoá-lo com suas próprias experiências internas.
40
Nas páginas 70-73 há uma descrição pormenorizada destes fenômenos.
41
Cf. Winnicott (1984h; 1958b).
42
Esta etapa se refere a uma redescrição de Winnicott da “posição depressiva” de Melanie Klein (WINNICOTT,
1988, p. 140; DIAS, 2003, p. 258; PHILLIPS, 2006, p. 156).
40
Portanto, essa etapa traz à criança a capacidade de sentir culpa, mas ainda depende da
postura da mãe para que isso seja realizado. Winnicott denominou “círculo benigno” o que
ocorre nessa etapa do desenvolvimento. Ao liberar sua impulsividade instintual, o bebê é
capaz de sentir culpa e, portanto, oferecer um “gesto restitutivo verdadeiro” (WINNICOTT,
1958o, p. 27) à mãe. Dessa forma, o círculo benigno depende da capacidade da mãe de tolerar
o gesto agressivo do bebê (que pode ser uma mordida, um tapa, etc.) e, ao mesmo tempo, o
gesto que irá reparar o ataque anterior (uma carícia no rosto da mãe, por exemplo). Para o
autor
(...) Tentou explicar como o indivíduo cresce, para além da dependência, em direção
a um jeito de ser pessoal, como ele se torna a um só tempo comum e característico
de acordo com a percepção que tem de si mesmo e como o ambiente precoce faz
com que isso seja possível (PHILLIPS, 2006, p. 22).
43
Cf. Winnicott (1987e, p. 4).
44
Cf. Winnicott (1954a; 1988).
42
A importância de um ambiente que não seja intrusivo ou insuficiente tem papel central
nas relações de dependência entre mãe-bebê que Winnicott observou. É necessário que haja
uma adaptação contínua, ao longo dos estágios do desenvolvimento, que forneça ao bebê a
capacidade de ser, de integrar experiências e de se relacionar com o mundo externo.
Tendo sido apresentado o panorama geral da Teoria do Desenvolvimento de
Winnicott, é possível averiguar como as noções de criatividade para Freud e Klein se
distinguem da concepção winnicottiana e, em seguida, apresentar de que maneira o autor
compreende esse fenômeno.
2.2 Críticas de Winnicott e seus comentadores a Freud e Klein no que se refere à Teoria
da Sublimação
No primeiro capítulo foi visto como as teorias freudiana e kleiniana abordam o tema
da criatividade. Neste capítulo, será apontado e discutido de que maneira Winnicott, bem
como seus comentadores, discordam das proposições dos autores citados46.
Para iniciar os contrapontos entre as teorias de Freud, Klein e Winnicott no que se
refere à criatividade, pode-se apontar como uma das diferenças o fato da terminologia
sublimação – ainda que utilizada por Winnicott em alguns de seus artigos – não ser
desenvolvida em sua obra, conforme apontou Ciccone (2013)47.
Outro ponto importante que marca a diferença entre as Teorias da Criatividade de
Freud e Winnicott tem a ver com o conceito de sublimação englobar, a fim de compreendê-lo,
termos como “libido” e “pulsão”, próprios da Teoria Metapsicológica (aspecto descrito por
Freud que envolve a dinâmica das pulsões de vida e morte), que não são utilizados por
Winnicott. Em uma carta a Anna Freud, escrita em 1954, Winnicott declara:
45
Cf. Winnicott (1954a, p. 413).
46
Em primeiro lugar será apresentado Freud e em seguida Klein.
47
Os textos em que Winnicott utiliza o termo “sublimação” estão dispostos em ordem cronológica no capítulo
1.2 do trabalho citado.
44
No início da vida humana, os objetos reais não estão lá para serem representados e
amados ou odiados, isto é, acessados por relações cognitivas e apetitivas. Essas
relações pressupõem, diz Winnicott, mecanismos mentais de que um lactante não
dispõe. Tais mecanismos precisam primeiro ser amadurecidos e, para tanto, o
lactante deve desenvolver, anteriormente, uma outra capacidade: a de uso do objeto.
E tem mais: antes de ter a capacidade de usar objetos, o bebê precisa criar a
capacidade de brincar, a qual, por seu turno, pressupõe a experiência de contato e de
identificação primária com a realidade externa. De que experiência se trata? A de ter
criado a realidade que encontra. Na experiência de contato com a realidade
“encontrada criativamente” o sujeito é, imediatamente, o seu objeto (seio, braços),
no sentido de ter controle onipotente sobre o objeto, sem que isso tenha qualquer
conotação pulsional (1995, pp. 52-53).
A teoria winnicottiana irá se distinguir por postular que na relação do bebê com o
ambiente é que se desenvolve seu modo de relação com o mundo, o que levou o próprio
Winnicott a afirmar, sobre o ponto de vista tópico da metapsicologia freudiana:
“Simplesmente não acho válida sua ideia de instinto de morte” (1965va, p. 161). Ainda nesse
mesmo texto citado (“Enfoque pessoal da contribuição kleiniana”) Winnicott elabora as
principais contribuições de Klein à teoria psicanalítica. Porém, faz menção à “manutenção do
uso da teoria do instinto de vida e instinto de morte” como sendo uma “contribuição
duvidosa” (p. 162), ratificando sua posição contrária no que se refere aos termos
metapsicológicos.
Também não se observa na teoria do desenvolvimento de Winnicott a ideia de
“libido”, e nesse sentido pode-se dizer que o autor “critica a proposta de se tratar a natureza
humana em termos econômicos”, como Freud propôs (FULGENCIO, 2003, p. 167). Sobre
esse aspecto da metapsicologia, Winnicott (1958o) expõe sua discordância em relação a Freud
em um texto sobre o sentimento de culpa:
Nas suas formulações teóricas iniciais ele [Freud] estava interessado no id, nome
pelo qual ele se referia aos impulsos instintivos, e no ego, nome pelo qual ele
chamava aquela parte do eu total que se relaciona com o ambiente. O ego modifica o
ambiente para conseguir satisfações para o id, e freia impulsos do id para que o
ambiente possa oferecer o máximo de vantagens, do mesmo modo para a satisfação
do id. Mais tarde (1923) Freud usou o termo superego para denominar o que é aceito
pelo ego para uso no controle do id (1958o, p. 20).
Winnicott voltou sua atenção para a relação do indivíduo com o ambiente, não vendo
necessidade de utilizar terminologias próprias à linguagem de Freud, como é possível notar no
trecho adiante:
(...) Percebemos agora que não é a satisfação instintual que faz um bebê começar a
ser, sentir que a vida é real, achar a vida digna de ser vivida. Na verdade, as
gratificações instintuais começam como funções parciais e tornam-se seduções, a
menos que estejam baseadas numa capacidade bem estabelecida, na pessoa
individualmente, para a experiência total, e para a experiência na área dos
fenômenos transicionais. É o eu (self) que tem de preceder o uso do instinto pelo eu
(self) (1967b, pp. 136-137).
Vê-se que, para Winnicott, é preciso que o indivíduo adquira um eu antes de averiguar
de que forma os instintos exercem influência na vida do indivíduo. No artigo supracitado, “A
localização da experiência cultural”, Winnicott afirma que Freud fez uso do termo sublimação
“para apontar o caminho a um lugar em que a experiência cultural é significativa, mas talvez
não tenha chegado ao ponto de nos dizer em que lugar, na mente, se acha a experiência
cultural” (1967b, p. 133).
No artigo “O lugar em que vivemos”, ele coloca a questão: “O que estamos fazendo
enquanto ouvimos uma sinfonia de Beethoven, ao visitar uma galeria de pintura,
lendo Troilo e Cressida na cama, ou jogando tênis? Que está fazendo uma criança
quando fica sentada no chão e brinca sob a guarda da mãe? Que está fazendo um
grupo de adolescentes, quando participa de uma reunião de música popular?”
(1971q, p. 147). Ele ressalta, então, que há, nesse sentido, uma outra pergunta mais
fundamental a ser feita, que diz respeito a “onde estamos nesse momento (se é que
estamos em algum lugar)” (ibid.) Para ele, a distinção entre interno e externo, bem
como a noção de sublimação, não são suficientes para abordar esse problema
(FULGENCIO, 2006, p. 86).
48
Cf. Fulgencio (2016, p. 54).
47
Não havia na literatura psicanalítica qualquer relato referente ao hiato existente entre
o interior e o exterior. O conceito freudiano de uma sequência do desenvolvimento
do princípio do prazer que se transforma em princípio da realidade ofereceu sua
contribuição para uma compreensão da transição que o bebê humano tem que
transpor, sem que jogasse luz sobre o processo transicional em si (p. 254).
Ele [Winnicott] proporá outra teoria da cultura, não mais concebida como um
processo de sublimação de uma sexualidade reprimida, mas como uma atividade que
visa expandir um determinado modo de relação com a realidade no qual o indivíduo
afirma e encontra a si mesmo no mesmo momento em que encontra o outro (p. 110).
Como foi visto, Winnicott declara que a cultura seria uma expansão dos fenômenos
transicionais, e se constituiria como “fundo comum da humanidade, para o qual indivíduos e
grupos podem contribuir, e do qual todos nós podemos fruir se tivermos um lugar para
guardar o que encontramos” (1967b, p. 138).
Ab’Saber (2018) corrobora esta ideia, ao dizer que “a descoberta da lógica paradoxal
da existência nem dentro nem fora do campo da transicionalidade subjetivante do pequeno
humano”, relacionada às experiências de ilusão e, posteriormente, com o que se define por
cultura, “resolvia o problema teórico clássico psicanalítico do advento da sublimação cultural
das forças sexuais primárias, pensado por Freud por toda a vida” (p. 26).
De acordo com Phillipps (2006), a cultura para Winnicott tem o papel da mãe no
desenvolvimento do bebê, ou seja, facilita o seu crescimento, e na teoria freudiana a cultura
representaria o pai, que insere os limites, a proibição e, consequentemente, a decepção. “É
precisamente esta experiência de ‘retenção da mãe na mente’ que evolui até chegar às
lembranças, tornando-se o lugar por excelência da experiência cultural” (ABRAM, 2000, p.
89), ou seja, a experiência de cuidado proporcionada pela mãe permite ao indivíduo a
possibilidade de viver criativamente.
Winnicott se refere, em seu texto “Teoria do relacionamento paterno-infantil”, à
maneira como a infância e as relações de dependência foram abordadas por Freud e Melanie
Klein, e afirma que “Freud negligenciou a infância como um estado”. Ele se refere ao texto de
Freud chamado “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico” (1911),
no qual são abordadas questões sobre a passagem do princípio do prazer ao princípio da
realidade. Diz Winnicott:
Não é suficiente que se reconheça que o ambiente é importante. Se vai haver uma
discussão da teoria do relacionamento paterno-infantil, então nos dividimos em dois
grupos se há aqueles que não concordam que nos estágios iniciais do lactente este e
o cuidado materno pertencem um ao outro e não podem ser separados (1960c, p.
40).
49
Portanto, ele não está de acordo com as ideias da autora a respeito do tema, e isso se
comprova por sua afirmação: “Em minha opinião, contudo, o importante trabalho de Klein
não chega ao tema da criatividade em si e, portanto, poderia facilmente obscurecer ainda mais
o tema principal” (1971g, p. 101). Segundo Pires,
49
Cf. Winnicott (1971g, p. 101).
50
Psychoanalytic Studies of the Personality.
50
Para Melanie Klein a criatividade como essencialmente reparadora – para ela, arte
era compensação – seria secundária à destrutividade inerente à sexualidade infantil
como testemunhada pelo próprio bebê na posição depressiva. Na nova teoria de
Winnicott, a criatividade era primária, pré-sexual e caracterizava o relacionamento
51
“C. G. Jung - Resenha de Memories, Dreams, Reflections”. Winnicott também desenvolve o tema da
destrutividade no texto “Sobre o uso de um objeto - O uso de um objeto e o relacionamento através de
identificações”.
51
Pode-se observar que Klein e Winnicott seguem caminhos distintos, no que se refere à
importância que cada um deles confere aos conceitos-chave em suas obras (a importância do
ambiente, o complexo de Édipo52, o brincar53, a destrutividade e a criatividade, etc.). De
acordo com as ideias de Phillips (2006), apesar de compartilhar com Klein a importância dada
aos estágios precoces do desenvolvimento, em sua teoria o bebê – ao invés de buscar a
gratificação instintual de um objeto, como teorizou Klein – busca o contato de uma pessoa,
um vínculo. Winnicott havia voltado seu olhar para o relacionamento mãe-bebê.
Sua atenção constante por mais de trinta anos, tanto como pediatra quanto como
psicanalista, ao que as mães e seus bebês realmente faziam juntos havia mudado
suas suposições sobre o que acontecia dentro do bebê. Ele acreditava que Klein e
seus cada vez mais devotados seguidores haviam descrito o bebê isolado do
relacionamento primário recíproco verdadeiro em que ele se desenvolveria e que,
tornando a mãe anônima, eles então haviam sobrecarregado o bebê com
características inatas (2006, p. 147).
52
Cf. Fulgencio e Marchiolli (2013).
53
Cf. Fulgencio (2008).
52
Na mesma direção estão as ideias de Safra (2009), ao afirmar que, para as teorias de
Freud e Melanie Klein, a criatividade “é um subproduto, é uma decorrência de algo (...),
decorrência do funcionamento psíquico”, ao passo que, em Winnicott, “falar que o ser
humano é originariamente criativo é explicar toda organização psíquica do ser humano como
decorrente da criatividade”.
De acordo com Winnicott, o ser humano não é mais compreendido “como se fosse um
aparelho, um aparelho psíquico, movido por forças (as pulsões) e uma energia (quantum de
afeto ou libido)” (FULGENCIO, 2016, p. 19). Desse modo, observa-se que, ao rejeitar a
experiência e considerar apenas fatores intrapsíquicos, as teorias de Freud e Klein não
abarcaram o tema da criatividade como Winnicott o fez – o que pode ser considerado uma
lacuna na apresentação do fenômeno –, isto é, considerando como um dos aspectos
primordiais as relações do bebê com o ambiente.
Desse modo, ainda que não concorde totalmente com as teorias, Winnicott aceita as
proposições de Freud e Klein acerca da criatividade. Porém, em sua teoria do
desenvolvimento há, por assim dizer, um incremento no que diz respeito ao fenômeno, ou
seja, uma criatividade que não mais tem a ver com sublimação ou reparação da destrutividade.
“Foi o Complexo de Édipo – o relacionamento entre três pessoas – e não a vulnerabilidade
dependente precoce do bebê o que Freud viu como o ponto crucial da Psicanálise”
(PHILLIPS, 2006, p. 28).
53
Assim sendo, as considerações feitas até aqui podem indicar a distinção de dois tipos
de criatividade: uma ligada à sublimação das pulsões, isto é, às teorias de Freud e Klein; e
outra, que não tem ligação com o fenômeno da sublimação, mas que depende da experiência
de onipotência no início da vida do indivíduo, que Winnicott denominou criatividade
originária.
Dito isso, em seguida será visto como as especificidades da teoria do desenvolvimento
emocional envolvem-se com o fenômeno da criatividade originária, para verificar de que
maneira Winnicott desenvolve algo que ainda não havia sido formulado na Psicanálise ao
elaborar o fenômeno da criatividade, e no que ele consiste.
54
Foi visto como Freud e Klein trataram o tema da criatividade, bem como os principais
aspectos que caracterizam a teoria winnicottiana. Na primeira parte deste capítulo será visto,
de modo geral54, como tais aspectos se entrelaçam ao fenômeno da criatividade e,
posteriormente, serão realizadas sua descrição e categorização cronológica em três níveis de
análise: 1) Aspectos ontológicos; 2) Aspectos descritivos; 3) Aspectos clínicos.
Esse foi um caminho possível encontrado para compreender a construção do
fenômeno ao longo da obra de Winnicott, uma vez que ao realizar a leitura e investigar os
textos55 do autor que mencionam a criatividade, foi possível observar que o fenômeno está
relacionado a diferentes aspectos.
A fim de situar o leitor para a leitura deste capítulo e facilitar a compreensão de como
o tema foi construído, a seguir será apresentado um quadro, em que os textos estão dispostos,
cronologicamente, diferenciando os aspectos abordados.
54
O fenômeno da criatividade será examinado criteriosamente nos capítulos 3.3, 3.4 e 3.5.
55
Listados nas páginas 18 e 19.
55
Fonte: Elaborado pela autora, com base na bibliografia winnicottiana dos textos que abordam o tema da
Criatividade.
56
Essa capacidade do bebê, que depois pode ser vista por toda a vida do indivíduo, não
advém da sublimação, isto é, de um caminho possível para a pulsão sexual, mas da
experiência do contato com outro ser humano, que se predispõe a apresentar o mundo ao bebê
de modo que este passe a ser parte dele. Portanto, Dias (2003) irá afirmar que Winnicott funda
esse conceito na Psicanálise:
Abram afirma que a criatividade originária “apresenta-se como um impulso inato que
se dirige à saúde e que está inevitavelmente vinculado a muitos dos temas que [Winnicott]
abordou” (2000, p. 84). Ou seja, se estabelece como um fenômeno que está ligado às fases de
dependência do bebê, e que, portanto, tem relação com a qualidade do cuidado e a
importância do ambiente (que no início é a própria mãe do bebê). O modo como o mundo é
apresentado ao bebê influenciará os modos deste de se relacionar com a realidade.
57
56
Do ponto de vista do observador, uma vez que no início não existe, para o bebê, uma realidade que seja “não-
eu”.
57
No capítulo 2.1.
58
Cf. Winnicott (1945d, p. 279).
58
“consegue dar ao bebê a ilusão de que aquilo que ele consegue e toma e encontra é aquilo que
ele criou a partir de seus próprios sentimentos, de seu poder de alucinar” (1996k, p. 52).
O autor ressalta que “é muito importante do ponto de vista teórico que o bebê crie esse
objeto, e o que a mãe faz é colocar o mamilo exatamente ali no momento certo para que seja o
seu mamilo que o bebê venha a criar” (1988, p. 123). Ao se adaptar prontamente às
necessidades de seu filho, a mãe fornece a ele as condições para a vivência da ilusão, isto é,
“de que esse seio real é exatamente a coisa que foi criada pela necessidade” (1947b, p. 101).
Ainda segundo ele,
O bebê vem ao seio quando excitado e pronto para alucinar algo apropriado para ser
atacado. Neste momento, o mamilo real aparece e ele é capaz de sentir que se trata
do mamilo que ele alucinou. Desta forma, suas ideias são enriquecidas por detalhes
reais de visão, sensação e cheiro e, da próxima vez, este material será usado na
alucinação. Deste modo, ele começa a construir uma capacidade de evocar o que é
realmente disponível (WINNICOTT, 1945d, p. 279).
Se o bebê está prestes a encontrar aquilo de que necessita, e está prestes a realizar um
movimento criativo, significa que a mãe – ou quem está realizando a função de cuidados com
este bebê – também está prestes a ser encontrada, pois sabe, ainda que intuitivamente, que sua
59
Winnicott (1988, p. 130).
60
O que ocorre nesse período pode ser caracterizado por um conjunto de minúcias que envolvem a adaptação
quase perfeita da mãe em relação ao seu bebê, e a capacidade deste de encontrar os objetos, no mundo externo,
que satisfazem sua necessidade no momento em que carece deles. “A primeira mamada teórica é representada na
vida real pela soma das experiências iniciais de muitas mamadas” (WINNICOTT, 1988, p. 126).
61
Ainda que Winnicott utilize o termo “alucinar”, para ele o bebê não dispõe de conteúdo mnemônico para tal
ação, uma vez que o que está sendo experienciado ocorre quando o bebê é imaturo emocionalmente. Dessa
forma, “as memórias são construídas a partir de inúmeras impressões sensoriais, associadas à atividade de
amamentação e ao encontro do objeto” (1988, p. 126). Posteriormente é que o bebê adquire a capacidade mental
de “alucinar” o seio no momento em que a mãe está prestes a apresentá-lo.
59
Com a adaptação ambiental adequada, o bebê encontra o objeto que satisfaz suas
necessidades. Pode-se supor, para usar um exemplo didático, que o bebê necessite
mamar. Com a miríade de adaptações ambientais que uma mãe devota faz ao atender
seu bebê, este, pouco a pouco, tem a experiência de encontrar o objeto que satisfaz
sua necessidade ao mesmo tempo em que se integra num self que se relaciona com
esse objeto. Do ponto de vista do bebê, o objeto surgiu, como se fosse derivado de
sua necessidade, e poder-se-ia dizer que o bebê teria criado o objeto (seio) no qual
mama; do ponto de vista do observador, porém, o objeto foi fornecido ao bebê.
Nesse momento trata-se de, em um mesmo gesto (num mesmo conjunto de ações do
bebê e de ações adaptativas do ambiente) gerar tanto o objeto subjetivo (seio) quanto
o self que realiza a ação de mamar. É na ação criativa do bebê, sustentada pelo
ambiente, que surge, ao mesmo tempo, a experiência do self e o encontro com o
objeto (subjetivo, criado pelo bebê) (2014, pp. 189-190).
Uma vez que a realidade externa exige submissão ou aquiescência, ela seria,
escreveu Winnicott, o “arqui-inimigo da espontaneidade, da criatividade e do
sentido de real”. O Princípio de Realidade, como “o fato de que o mundo existe se o
bebê criá-lo ou não”, podia ser experienciado apenas, ele escreveu, “como um
insulto”. Mas se a mãe deu a seu bebê a oportunidade para a ilusão e dosou sua
experiência de realidade, a realidade tem o potencial tanto de nutrir quanto de
60
Nesse sentido, Newman afirma que “viver criativamente, para Winnicott, significava a
capacidade, paradoxalmente desenvolvida junto aos pais, no início, de não ser morto ou
aniquilado sistematicamente pela submissão” (2003, p. 113). Não ser aniquilado significa que
a continuidade de ser é preservada, pois o que ocorre na experiência de onipotência, “sendo
pautado pelo ritmo do bebê e derivando do gesto espontâneo” (DIAS, 2003, p. 124) é
agregado à experiência do bebê.
O que Winnicott irá diferenciar é que não é o fato de ter nascido que faz com que o
indivíduo saiba que existe, como uma “percepção consciente”. É por isso que afirma que
“para ser criativa, uma pessoa tem que ter um sentimento de existência (...), como uma
posição básica a partir da qual operar” (1986h, p. 23). Isto pode ser definido como um
sentimento de familiaridade com o mundo, ou seja, uma sensação, por parte do bebê, de que o
mundo funciona como uma espécie de extensão sua, porque faz sentido, uma vez que foi
criado (apresentado) por ele de modo a não interromper sua continuidade de ser.
Por outro lado, quando o ambiente não é capaz de se adaptar às necessidades do bebê
e, portanto, a ilusão de onipotência não pode ocorrer de maneira satisfatória, fornecendo ao
bebê a sensação de que ele encontrou no mundo o que carecia, “o sentimento de real”, ou o
modo como o indivíduo se relaciona com a realidade fica prejudicado. Winnicott irá dizer que
“a realidade permanece algo que nunca pode ser aceito de maneira completa” (1996k, p. 53).
Isto ocorre pois, segundo o autor,
Acontece uma cisão da personalidade num nível muito inicial, que é um dos
significados da palavra esquizofrenia. Aqui, a criança tem duas relações com a
realidade externa. Numa delas existe uma submissão, o tomar numa base submissa,
e na outra uma experiência puramente imaginária com uma realidade imaginada
(1996k, p. 52).
Dias (2003) reitera que, ao não vivenciar a ilusão de onipotência, alguns indivíduos,
sem “uma base para ser”, podem ter um sentimento de que o mundo e as experiências vividas
não fazem sentido. “Diz-se, em geral, que essas pessoas não aprendem com a experiência,
mas, talvez, seja ainda mais exato dizer que elas não são capazes de viver experiências” (p.
124).
61
À medida que a criança cresce, o sentimento de que foi ela quem criou o mundo não
desaparece, simplesmente, mas se transforma. Tendo vivenciado a dependência absoluta de
forma satisfatória, a experiência de ilusão é substituída pela transicionalidade e,
posteriormente, pela cultura. O processo de viver no mundo passa a ser visto como familiar,
existindo espaço para a possibilidade de contribuir com este e se adaptar, sem que necessite
abrir mão de sua “essência”, por assim dizer.
Um milhar de vezes houve a sensação de que o que era querido era criado e
constatado que existia. Daí se desenvolve uma convicção de que o mundo pode
conter o que é querido e preciso, resultando na esperança do bebê em que existe uma
relação viva entre a realidade interior e a realidade exterior, entre a capacidade
criadora, inata e primária, e o mundo geral, que é compartilhado por todos
(WINNICOTT, 1947b, p. 101).
62
Intitulado Nada Menos que Tudo.
62
63
Referência ao texto de Winnicott com esse título (1949m).
64
“Minha contribuição é solicitar que o paradoxo seja aceito, tolerado e respeitado, e não que seja resolvido”
(Winnicott, 1953c, p.10).
63
A criatividade está relacionada a esses fenômenos como experiência que irá fundar o
sentimento de ser, sendo, portanto, o que se pode chamar de estatuto ontológico. Dito isso, os
textos inseridos nessa categoria, em ordem cronológica, são aqueles que se referem à
criatividade como fundamento da questão do ser, tendo como base, principalmente, a
experiência de ilusão.
No primeiro texto, “Desenvolvimento emocional primitivo”, de 1945, Winnicott
define seu caminho teórico da seguinte forma: “interessado primariamente no paciente
infantil, decidi que deveria estudar a psicose na análise” (1945d, p. 269). Ele quer examinar
de que maneira os estágios primitivos podem se relacionar à psicopatologia da psicose, e
mescla suas proposições com alguns casos clínicos para ilustrar os efeitos de um
desenvolvimento emocional primitivo insatisfatório na vida adulta.
Apesar de descrever casos clínicos, o interesse principal do autor se volta para a
adaptação à realidade. Isso é observado quando apresenta a seguinte questão: “em que época
começam a ocorrer coisas importantes?” (p. 273). Winnicott se dedica a compreender como
um bebê é capaz de vivenciar algo que diz respeito apenas à sua realidade interna e, aos
poucos, estabelecer contato saudável com o mundo exterior. Trata-se de um processo bastante
complexo, e pode-se resumir que o trabalho realizado pelo autor é o de descrever o valor da
ilusão, como se vê no trecho a seguir:
Em 1951, Winnicott escreve uma nota crítica do livro de Marion Milner “On Not
Being Able to Paint”. Apesar do título65, o livro não se trata de saber ou não pintar, mas,
segundo Winnicott, sobre “a maneira subjetiva de experienciar” (1951d, p. 299).
Milner escreve: “conceitos nunca podem ser simplesmente apresentados a mim; eles
têm de ser entrelaçados na estrutura do meu ser, e isto só pode ser feito através de minha
própria atividade” (MILNER apud WINNICOTT, 1951d, p. 299). Percebe-se que a autora
está descrevendo, de modo poético, a experiência criativa, que consiste em o indivíduo
encontrar no mundo aquilo que foi criado, em primeiro lugar, subjetivamente. A autora
ressalta o uso da subjetividade como auxiliar à objetividade, pois afirma que a primeira pode
ser a base para a segunda.
Winnicott parece fascinado pela maneira como Milner concede lugar especial à
subjetividade humana e sua importância para a vida, e concorda com ela ao afirmar que “na
Pintura, na Escrita, na Música, etc., um indivíduo pode encontrar ilhas de paz e, dessa
maneira, obter um alívio momentâneo quanto ao transe primário dos seres humanos sadios”
(1951d, p. 300). As “ilhas de paz” mencionadas pelo autor podem ser os modos através dos
quais os indivíduos, singularmente, se relacionam com a realidade externa, o que se liga à
experiência criativa.
Percebe-se que esse texto não descreve o conceito de criatividade, mas o insere no
contexto da subjetividade, trazido pela autora, assim como faz menção a ele: “ela [Marion
Milner] deseja fazer uma declaração ainda mais fundamental a respeito da criatividade. Ela
quer dizer que esta resulta do que é, para ela, o transe humano primário” (1951d, p. 300).
Nessa passagem, Winnicott se refere ao momento em que mãe e bebê vivem juntos
uma experiência que concede ao mundo externo o que havia sido criado ilusoriamente, o
transe humano primário. O texto se enquadra no ponto de vista ontológico, uma vez que o
que parece chamar a atenção de Winnicott no texto de Milner é a capacidade da autora de
descrever o que está ligado à vivência gratificante da experiência de ilusão.
No texto “A ausência de um sentimento de culpa”, de 1966, Winnicott relaciona a
ausência desse sentimento às personalidades antissociais66. Nessas, houve um bom início para
a criança, em termos de cuidados ambientais, mas, por isso ter se perdido, uma defesa se
estruturou e deu origem aos atos antissociais, como o furto.
65
“Sobre não ser capaz de pintar”.
66
Para aprofundamento neste conceito recomenda-se a leitura do trabalho “A tendência antissocial em D. W.
Winnicott” (GARCIA, 2004).
65
Toda criança precisa tornar-se capaz de criar o mundo (a técnica adaptativa da mãe
faz com que isso seja sentido como um fato), caso contrário o mundo não terá
significado. Todo bebê precisa ter suficiente experiência de onipotência para tornar-
se capaz de ceder a onipotência à realidade externa ou a um princípio-Deus (1984b,
p. 125).
O impulso criativo, portanto, é algo que pode ser considerado como uma coisa em
si, algo naturalmente necessário a um artista na produção de uma obra de arte, mas
também algo que se faz presente quando qualquer pessoa – bebê, criança,
adolescente, adulto ou velho – se inclina de maneira saudável para algo ou realiza
deliberadamente alguma coisa, desde uma sujeira com fezes ou o prolongar do ato
de chorar como fruição de um som musical (p. 100).
67
Winnicott apresenta um material clínico que se encontra em “Sobre os elementos masculinos e femininos ex-
cindidos (split-off) - [II - Material clínico]” (WINNICOTT, 1989vp).
67
dado momento. É dessa forma que Winnicott confere à vivência da ilusão de onipotência, na
fase de dependência absoluta, caráter primordial para o desenvolvimento do viver criativo.
No viver submisso, em que não há criatividade, é possível comparar o funcionamento
desses indivíduos, indicados por Winnicott como esquizoides, ao dos bebês. “Trata-se de
descobrir aqui uma maneira de estudar a perda, pelos indivíduos, de um ingresso criativo na
vida ou da primeira abordagem criativa aos fenômenos externos. Estou interessado na
etiologia” (1971g, p. 99). A criatividade referida por Winnicott diz respeito à maneira como o
indivíduo se relaciona com a realidade externa, que se estabelece no início da vida. Pode-se
resumir o que é explicitado por Winnicott, nesse texto, em relação à criatividade, da seguinte
maneira:
Descobrimos que os indivíduos vivem criativamente e sentem que a vida merece ser
vivida ou, então, que não podem viver criativamente e têm dúvidas sobre o valor do
viver. Essa variável nos seres humanos está diretamente relacionada à qualidade e à
quantidade das provisões ambientais no começo ou nas fases primitivas da
experiência de vida de cada bebê (1971g, pp. 102-103).
Segue uma explanação sobre de que modo a criatividade se faz uma qualidade comum
em homens e mulheres, e a descrição de um caso clínico, no qual Winnicott se mostra
extremamente surpreendido com o resultado de uma atitude sua e a resposta positiva do
paciente em relação a ele. Dessa forma, intitula “elemento feminino puro” o que percebera, a
“dissociação entre o homem ou mulher e o aspecto da personalidade que tem o sexo oposto”
(p. 108), e como isto levava “à aceitação da bissexualidade como qualidade da unidade ou eu
(self) total” (p. 108).
No paciente citado, Winnicott percebe que o elemento feminino puro que havia sido
expelido pode encontrar, na análise, uma unidade, o que forneceu certo sentido à vida do
paciente. Assim, constrói uma teoria dos elementos masculinos e femininos, em homens e
mulheres, ressaltando a possibilidade de esses elementos estarem dissociados, em alguns
casos. Winnicott irá afirmar que o elemento chamado masculino tem relação com o fazer, e o
elemento feminino tem relação com o ser, e completa: “à medida que o bebê cresce, nenhum
sentimento do eu (self) surge, exceto na base desse relacionamento no sentimento de SER” (p.
114).
Portanto, observa-se que o autor pretende deixar claro ao leitor, mais uma vez, a
relevância dos estágios iniciais do desenvolvimento para o estabelecimento da capacidade
criativa. Em outra afirmação, diz “ou a mãe possui um seio que é, de maneira que o bebê
também pode ser (...) ou então a mãe é incapaz de efetuar essa contribuição, caso em que o
bebê tem de se desenvolver sem a capacidade de ser, ou com uma capacidade mutilada de ser”
(1971g, p. 116).
Ao desenvolver sua teoria dos elementos femininos e masculinos, chega à seguinte
conclusão: “o estudo do elemento feminino, puro, destilado e não-contaminado, nos conduz
ao SER, e constitui a única base para a autodescoberta e o sentimento de existir” (p. 117).
Winnicott está interessado, portanto, no ponto de partida do indivíduo, no sentimento de ser e
no valor da ilusão, o que auxilia na declaração de que esse texto se inclui no aspecto
ontológico para a compreensão do fenômeno da criatividade.
No texto “Estabelecimento da relação com a realidade externa”68 Winnicott retoma
elementos importantes de sua teoria – além dos principais aspectos do que denominou
“primeira mamada teórica” – de maneira didática e explicativa. Descreve os estados
tranquilos e excitados do bebê69, e destaca este último como o momento em que o bebê faz um
movimento para alcançar algo, momento em que se abre a possibilidade de ser criativo, caso
haja, através da identificação materna, a satisfação de suas necessidades. Segundo ele, quando
o bebê vai em busca de algo, num impulso que envolve a sua tensão instintiva e a sua
vitalidade, “está pronto para ser criativo” (1988, p. 122).
Antes de o bebê ser capacitado para tolerar a desilusão, primeiramente deve haver a
ilusão de que o mundo foi criado por ele. Da mesma forma, antes que o relacionamento com a
realidade externa se dê, um relacionamento entre mãe e bebê deve ser estabelecido.
Isso significa que o relacionamento se forma gradualmente, com a mãe adaptada às
necessidades e dedicada aos cuidados com bebê – processo que não ocorre sem falhas. Nesse
ponto, Winnicott elabora uma ressalva aos médicos e profissionais da saúde que auxiliam as
mães e seus bebês.
68
Este texto compõe o compilado das ideias da teoria winnicottiana, o livro “Natureza Humana” (1988),
publicado após o falecimento de Winnicott.
69
Para aprofundamento em relação aos estados tranquilos e excitados, cf. Dias (2003, pp. 174-196).
69
A primeira maneira de se relacionar está ligada ao self verdadeiro, que constitui a base
da capacidade de criar, e a segunda diz respeito a um padrão de adaptação que se caracteriza
pela submissão, descrito como falso self. “No grau extremo de cisão, a criança não tem
qualquer razão para viver. Nos níveis menos elevados existe um certo sentimento de
futilidade relativo à vida falsa” (p. 128).
Winnicott se pergunta se há uma “criatividade primária”, e parece buscar uma relação
entre os fenômenos que são primitivamente vivenciados pelo bebê, que foram descritos até
agora, e aquilo que se encaminha para uma espécie de produto da criatividade originária.
imaginar que foi ele quem criou o mundo. Quando essa capacidade for estabelecida, o bebê
terá recursos para seguir sem necessitar da mãe inteiramente adaptada e, assim, reconhecer a
existência da solidão essencial70.
Nesse sentido, Winnicott declara que é como se o bebê pudesse dizer, ao crescer: “eu
sei que não há nenhum contato direto entre a realidade externa e eu mesmo, há apenas uma
ilusão de contato, um fenômeno intermediário que funciona muito bem para mim quando não
estou muito cansado” (1988, p. 135). Da mesma maneira, os efeitos de um padrão de falhas
adaptativas por parte da mãe podem ser um sentimento de irrealidade e futilidade – causado
pela incapacidade de dotar o mundo de sentido pessoal –, e, nos casos extremos, uma doença
esquizoide.
Aqui, encontra-se uma explicação detalhada dos processos que envolvem os estágios
de dependências do bebê e, junto a isso, uma descrição da criatividade primária como um dos
resultados da vivência saudável desses processos. Vê-se que o fenômeno da criatividade faz
parte do estatuto ontológico do ser, e está amalgamado a diversos outros fenômenos da teoria
winnicottiana.
Com a leitura dos textos, pode-se observar que Winnicott traz, por vezes, a criatividade na
etapa da dependência absoluta, na dependência relativa, na transicionalidade, na etapa do uso
do objeto, na adolescência, na idade adulta, etc. Portanto, constata-se que o fenômeno da
criatividade pode se manifestar em diversos momentos do desenvolvimento do indivíduo.
Nesse tópico, estão localizados os textos, em ordem cronológica, que trazem o fenômeno
da criatividade em relação às diferentes etapas do desenvolvimento emocional do indivíduo
da teoria de Winnicott.
Em 1951, Winnicott escreve sua primeira hipótese acerca dos objetos transicionais,
que viria a ser publicada em 1953 como “Objetos transicionais e fenômenos transicionais”,
primeiro capítulo de seu livro “O brincar e a realidade”. Nessa, ele sugere que há uma ligação
entre dois grupos de fenômenos que acontecem após o nascimento e após alguns meses de
vida do bebê.
Esses fenômenos, que segundo Caldwell (2007) “Winnicott atribui, de maneira
imprecisa, aos 4-12 meses” (p. 10), são descritos como o uso do punho, dedos ou polegar e,
70
A solidão essencial é procurada por todo ser humano como um estado de completude; situação passível de ser
experienciada na relação com o outro ou na realização de atividades nas quais o indivíduo está amalgamado (tal
como o bebê com a mãe); diz respeito à criação, seja esta de natureza artística ou não (FULGENCIO, 2016, pp.
48-49).
71
posteriormente, o objeto que é adotado pelo bebê, como um paninho, uma boneca, etc., que o
acompanha durante grande parte do tempo, especialmente quando o bebê encontra-se longe da
mãe. Winnicott intitulou “transicionais” esses objetos e fenômenos que caracterizam a área
intermediária, entre o bebê e a mãe.
Trata-se de uma área que não é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em
seu nome, exceto que ela exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado
na perpétua tarefa humana de manter as realidades interna e externa separadas, ainda
que inter-relacionadas (1953c, p. 15).
A mãe sabe qual o primeiro objeto que o bebê ama – uma ponta do cobertor ou
brinquedo macio – pois para ele isso constitui quase uma parcela do seu eu e, se for
retirado ou lavado, as consequências serão desastrosas. Quando o bebê principia a
ser capaz de arredar essas e outras coisas (esperando que elas sejam apanhadas e
devolvidas, claro), a mãe já sabe que chegou o momento em que poderá começar a
afastar-se e a voltar com a anuência do filho (1949m, p. 81).
71
Winnicott sugere que os fenômenos transicionais se instauram por volta dos quatro a seis aos oito a doze
meses de idade.
72
Winnicott apresenta uma explicação acerca da experiência de ilusão, que forma a base
para os fenômenos transicionais, e o faz em duas figuras, apresentadas abaixo.
Phillips irá dizer que nesse artigo, bem como em outros dois72, Winnicott aborda as
seguintes questões: “Como é que o bebê faz a transição entre estar amalgamado com a mãe e
estar dela separado?”, “(...) que sintomatologia a criança vai usar para restaurar a continuidade
de sua vida se o ambiente lhe falta?” (2006, p. 151). Ele se questiona de que modo o bebê dá
continuidade ao desenvolvimento, isto é, sai da área de ilusão para incluir objetos que sejam
não-eu (ou “não-bebê”, melhor dizendo).
Nesse caso, pode-se dizer que o bebê inclui objetos em sua vida a partir da experiência
de desilusão, também amparado pela adaptação e desadaptação gradual materna para realizar
esse contato com o mundo externo e o retorno ao mundo interno.
Portanto, nota-se a presença de um caráter descritivo nesse texto, no que se refere às
experiências iniciais do bebê, em que a criatividade deve ser mantida, tanto na fase em que a
dependência é absoluta, quanto no momento em que é relativa, por meio dos cuidados
maternos.
No texto “W.R.D Fairbairn”, de 1953, Winnicott realiza, juntamente com Masud
Khan, uma resenha do livro “Psychoanalytic Studies of the Personality”, de Fairbairn. Dentre
as críticas que realiza em torno da teoria de Fairbairn, Winnicott difere do autor em relação à
ideia da dependência infantil, do que seria a experiência de onipotência em uma fase
específica da vida do indivíduo.
Enquanto Fairbairn sugere que a identificação primária se trata de um “investimento
de um objeto que ainda não foi diferenciado”, Winnicott defende que se o objeto ainda é
indiferenciado, então não tem a função de um objeto, de tal modo que o que leva o bebê ao
objeto é uma “tensão instintual a procurar um retorno a um estado de repouso ou ausência de
excitação” (1953i, p. 320), juntamente à adaptação da mãe, que apresenta o objeto no
momento da necessidade do bebê.
72
Winnicott (1958n; 1958c).
74
Portanto, Winnicott irá dizer que na teoria de Fairbairn não há espaço para a
“criatividade psíquica”. Nota-se, pela primeira vez, o uso e a definição do termo “criatividade
psíquica primária”.
73
Citadas na página 36.
75
A criança que furta um objeto não está desejando o objeto roubado, mas a mãe,
sobre quem ela tem direitos. Esses direitos derivam do fato de que (do ponto de vista
da criança) a mãe foi criada pela criança. A mãe satisfaz a criatividade primária da
criança e, assim, converteu-se no objeto que a criança estava disposta a encontrar
(1958c, p. 141).
Não há menção explicativa acerca da criatividade, mas à relação entre o artista criativo
e o sentimento de culpa. Winnicott retoma, mais uma vez, a capacidade de adaptação da mãe,
que favorece ao bebê uma experiência instintiva satisfatória. Ressalta que a capacidade de
sentir culpa não deve ser encontrada nos estágios iniciais, pois nesse período, além da
dependência absoluta do bebê em relação ao ambiente, o ego ainda não é forte o bastante para
“aceitar as responsabilidades pelos impulsos do id” (1958o, p. 28). Desse modo, a categoria
na qual se encontra esse texto é a descritiva.
No texto “O primeiro ano de vida. Concepções modernas do desenvolvimento
emocional”, publicado em 1958, Winnicott nos apresenta diversas proposições acerca do
desenvolvimento de uma criança no primeiro ano de vida. Ele quer discutir quanto do
potencial herdado pode se realizar até a criança completar essa idade. Para isso, considera
uma criança fisicamente saudável e “potencialmente sadia na mente” (1958j, p.4).
74
Newman (2003) também cita outro texto com a mesma característica: “Ausência de sentimento de culpa"
(WINNICOTT, 1984b).
76
Além disso, Winnicott quer discutir quais bases para a saúde mental no indivíduo
adulto se constituem em seu primeiro ano de vida. Portanto, o texto se insere na categoria
descritiva, uma vez que se refere a uma etapa específica do desenvolvimento emocional.
O autor explicita o conceito de espontaneidade, e o denomina da mesma maneira como
o faz com a criatividade (Winnicott, 1986h), quando diz que esse sentimento é o que “faz a
vida valer a pena” (1958j, p. 16). A espontaneidade só pode se expressar quando a criança não
é levada à complacência, isto é, quando a mãe não é demasiadamente severa, fazendo com
que a criança se prenda a um extremo autocontrole; ou, quando no estabelecimento do
superego, a criança não sofre com o medo da retaliação.
Observa-se, pela primeira vez, o uso do termo “impulso criativo” para se referir ao
tema da criatividade, com a afirmação de que esse é o impulso que “dá à criança a prova de
que está viva” (1958j, p. 16). Apesar disso, esse impulso não pode ser dado como realizado
até que seja constantemente correspondido pela realidade externa.
Desse modo, o autor enfatiza a importância de o mundo ser apresentado à criança nos
momentos de “atividade criativa” desta, como cita no seguinte exemplo: “A criança procura
algo e encontra o seio, e criou-se o seio” (1958j, p. 16). É importante que a criança encontre
aquilo que procura exatamente no momento em que o faz, pois apenas dessa maneira é
possível o estabelecimento da ilusão.
Ele nos fala de uma “criatividade contínua”, que é altamente dependente da
capacidade da mãe de se identificar com seu bebê e, justamente por isso, “apresentar o
fragmento de realidade no momento mais ou menos exato” (1958j, p. 17). Winnicott deixa
claro ao leitor que cada conquista do desenvolvimento já realizada pode ser perdida, caso
ocorram rupturas dos requisitos de um ambiente adequado, ou, ainda, “pela ação de certas
ansiedades inerentes ao amadurecimento emocional” (1958j, p. 20).
No texto de 1959, “O destino do objeto transicional”, a criatividade está relacionada
ao período denominado por Winnicott de transicionalidade. O autor quer retomar algumas
ideias que dizem respeito ao objeto transicional antes de abordar o tema do artigo. O objeto
transicional tem relação com a criatividade, uma vez que, segundo ele, “a princípio, qualquer
objeto que conquiste um relacionamento com o bebê é criado por este, ou pelo menos, esta é
uma teoria sobre o assunto que tem a minha adesão. Assemelha-se a uma alucinação” (1989i,
p. 44).
Como foi visto, a alucinação tem a ver com a experiência de ilusão de onipotência, na
qual o bebê “fica com a ilusão de que o mundo pode ser criado e de que o que é criado é o
mundo” (1989i, p. 44). Por conseguinte, se há uma adaptação suficiente da mãe e se, portanto,
77
Nesse sentido, ele descreve a Arte, a Música, a Pintura e a Poesia como meios para
descansar ao longo deste caminho que vai da realidade interna para o mundo compartilhado.
Os indivíduos se identificam com palavras, canções, quadros, filmes ou discursos religiosos
de outras pessoas quando algo toca diretamente suas realidades internas. De uma maneira ou
de outra essas coisas os colocam em contato com o self primitivo, ou revelam uma parcela
daquilo que achavam que apenas eles mantivessem em segredo.
A contribuição winnicottiana está justamente na área que chamou de “intermediária”.
A conquista dessa etapa (a transicionalidade) capacita o indivíduo a se relacionar de maneira
78
saudável com a realidade externa, uma vez que não se trata de enxergar o mundo de acordo
apenas com a realidade interna e, ao mesmo tempo, enxergar sentido na realidade externa,
sendo que esse sentido é criado de acordo com o modo pelo qual o indivíduo foi apresentado
ao mundo.
Winnicott, ao final do texto, afirma algo surpreendente: “sinto que os fenômenos
transicionais não passam, pelo menos não na saúde” (p. 48). Isso quer dizer que estes
fenômenos se estendem em direção à cultura, à sociedade e/ou às tarefas cotidianas, ou seja,
se tornam parte do que é o indivíduo.
No texto “Da dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo”, de
1963, encontra-se uma classificação de Winnicott dos estágios de dependências (absoluta e
relativa) e de independência relativa do bebê75. Tem-se, aqui, uma classificação descritiva das
conquistas e dos requisitos (do ambiente) para cada uma dessas etapas.
Conforme a criança se integra e passa da dependência absoluta para a relativa, ela
“começa a permitir que os acontecimentos ocorram fora de seu controle, e por ser capaz de se
identificar com a mãe ou com os pais o lactente pode pôr de lado parte da grande raiva que é
sentida, com o que desafia a onipotência dele” (1965r, p. 86). Isso implica na conquista de
uma unidade, ou seja, pressupõe que a criança seja uma pessoa inteira, que diferencia eu e
não-eu.
Isso significa que, na saúde, é possível ao indivíduo transitar entre as realidades
internas e externas, sentindo não apenas que criou o mundo, mas que pode adorná-lo com suas
próprias características internas e de acordo com a sua capacidade ilusória. Essa se constitui
como uma das maneiras através da qual a criança (e o adulto) pode começar a se identificar
com o mundo externo, sem perder demasiadamente suas qualidades essenciais e pessoais.
Percebe-se, portanto, a descrição da capacidade criativa na etapa da dependência relativa,
ainda que não tenha sido nomeada dessa forma pelo autor.
Em 1965, no texto “Uma nova luz sobre o pensar infantil”, Winnicott quer, a partir de
sua visão como psiquiatra infantil, analisar o “pensar como função”. Deliberadamente, ele
afirma que não irá se deter no tema de maneira a retomar os pesquisadores que tornaram essa
área uma especialidade, estando preocupado com o que denomina de “teoria geral do
desenvolvimento da personalidade humana” (1989s, p. 119). Verifica diversos tipos de pensar
e os relaciona às diferentes idades de uma criança, em sua maioria após a etapa de
dependência absoluta.
75
Páginas 35-39 deste trabalho.
79
76
Penso, logo, existo em meu controle.
77
O que equivale dizer que “o objeto ainda é um aspecto do bebê” (WINNICOTT, 1970b, p. 197).
80
Porém, diz o autor, “A partir daí pode-se prosseguir até ver que uma mãe pode
explorar as funções intelectuais do bebê a fim de se libertar do vínculo proveniente da
dependência do bebê” (1984h, p. 45). Quando isso acontece, o intelecto se torna cindido do
restante da personalidade, e a psique não se apropria das experiências do próprio viver e da
existência psicossomática.
Winnicott desenvolve sua ideia expandindo a questão da cisão para as crianças com
dificuldades em realizar operações matemáticas como a divisão, e afirma que “Na verdade,
não há dificuldades nessa área, exceto em termos de computadores e programação. Isso não é
vida, isso é cisão de vida” (1984h, p. 47), e encerra com uma sugestão provocadora: “Não
vejo por que, em Aritmética, há tanta ênfase na resposta exata. Que acham do prazer de
adivinhar? Que acham de brincar com métodos engenhosos?” (p. 48). E continua:
Para o bebê, a primeira unidade que surge inclui a mãe. Se tudo corre bem, o bebê
chega a perceber a mãe e todos os outros objetos e os vê como não-eu, de tal modo
que agora há o eu e o não-eu. Esse estágio dos primórdios do EU SOU só se instala
realmente no self do bebê na medida em que o comportamento da figura materna é
suficientemente bom – no que diz respeito à adaptação e à desadaptação (1984h, p.
49).
esperar, ainda, pela evolução natural da transferência que surge da confiança crescente do
paciente na técnica e no cenário psicanalítico, e evitar romper esse processo natural” (1969i,
p. 121).
Ou seja, o psicanalista faz um alerta sobre o trabalho analítico no sentido de produzir
interpretações argutas, sendo mais conveniente esperar que o próprio paciente alcance as
próprias conclusões, de modo criativo. Ao permitir que o paciente acesse as próprias
conclusões, o analista – tal qual a mãe suficientemente boa – oportuniza que o paciente
encontre o objeto sem a necessidade de saber que o objeto já estava lá antes mesmo de sua
criação, como ocorre de modo análogo na ilusão de onipotência.
Winnicott realiza uma descrição sucinta: “(1) O sujeito relaciona-se com o objeto. (2)
O objeto está em processo de ser encontrado, ao invés de ter sido colocado pelo sujeito no
mundo. (3) O sujeito destrói o objeto. (4) O objeto sobrevive à destruição. (5) O sujeito pode
usar o objeto” (1969i, p. 131).
A criatividade, nesse texto, é considerada como previamente conhecida pelo leitor.
Para Phillips, neste texto Winnicott afirma que “o objeto só se torna real sendo odiado; o bebê
só pode achar o mundo à sua volta substancial por meio de suas tentativas fundamentalmente
infrutíferas de destruí-lo” (2006, p. 41).
O uso do objeto implica na sua destruição, que, por sua vez, faz parte da capacidade de
sentir culpa. Porém, para adquirir a capacidade de usar objetos é necessário que a criatividade
tenha sido vivenciada. Nesse sentido, tem-se a criatividade trazida em seu aspecto descritivo,
ligada à etapa do uso do objeto que, para ser alcançada, necessita de conquistas anteriores.
Para Spelman (2015), esse texto “pode ser lido como o último desejo e como o
testamento de Winnicott” (p. 14), pois “ele está generosamente oferecendo seu pensamento
para ser brutalmente usado da mesma maneira que ele usou o pensamento de outros”.
Winnicott propõe que seu pensamento seja utilizado como um “ambiente facilitador” para
outros autores. Phillips (2006) irá dizer que esse texto, junto a outros dois artigos do autor78,
diz respeito a uma das últimas contribuições de Winnicott à sua Teoria do Desenvolvimento.
Em 1970, Winnicott elabora uma palestra e reúne dois rascunhos que se transformam
no texto “Vivendo de modo criativo”. Pela primeira vez tem-se enunciada uma definição de
criatividade. Da mesma forma como o faz em outro texto (Winnicott, 1958j), ao expor sobre o
conceito de espontaneidade, menciona que o ser criativo deve estar conectado à ideia de que
“a vida vale a pena” (1986h, p. 23).
78
“O papel do espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil” (1967c) e “A distorção do ego em
termos de falso e verdadeiro self” (1965m).
83
A criatividade pressupõe uma “posição básica a partir da qual operar” (p. 23), ou seja,
significa que antes do fazer há o ser, que indica um impulso verdadeiro e espontâneo do
indivíduo. Para demonstrar essa contraposição entre ser e fazer, Winnicott dá o exemplo de
uma pessoa que apenas reage aos estímulos, sem ter um sentimento de que está agindo
conforme seus impulsos, o que caracterizaria uma vida sem criatividade.
Nesse caso, a ausência do sentimento de ser deve encontrar explicações por meio de
um estudo dos padrões estabelecidos nas épocas iniciais da vida, isto é, de dependência.
Acerca desse último aspecto, Winnicott enfatiza a importância do cuidado materno para que a
criatividade se torne um fato na vida da criança. Ele diz:
Winnicott parece estar em busca de uma definição para o viver criativo, e busca
exemplos em outras temáticas da vida do indivíduo para tanto, como a Arte e o casamento,
por exemplo. Segundo ele, o que a experiência de onipotência proporciona é, para além de
reagir aos estímulos, poder enxergar o mundo de maneira que este faça sentido, isto é, dar um
sentido pessoal para as experiências.
Por viver criativamente não estou querendo dizer que alguém tenha que ficar sendo
aniquilado ou morto o tempo todo, seja por submissão, seja por reagir àquilo que o
mundo impinge. Estou me referindo ao fato de alguém ver tudo como se fosse a
primeira vez (1986h, p. 25).
De acordo com Newman, essa última afirmação de Winnicott (ver tudo como se fosse
a primeira vez) “nada tem a ver com quantas viagens fazemos pelo mundo, e sim com
olharmos a mesma rua com novos olhos a cada vez. É uma questão de profundidade” (2003,
p. 113). Essa capacidade de criar o mundo pertence à criança, e é determinada pelas bases da
experiência infantil com relação aos cuidados recebidos.
Para Winnicott, nesse ponto estaria a origem da criatividade, na “tendência
geneticamente determinada do indivíduo para estar e permanecer vivo e para se relacionar
com os objetos que lhe surgem no caminho durante os momentos de obter algo” (1986h, p.
26), contanto que tenha sido tratado de modo a ter, disponível para o encontro, objetos
objetivamente percebidos, e que possa tê-los alcançado como se os tivesse criado. “O bebê
normal (...) precisa crescer em complexidade e tornar-se um “existente” estabelecido, para
84
que possa experimentar a procura e o encontro de um objeto como um ato criativo” (1986h, p.
26).
Winnicott diferencia o viver criativo da arte criativa, pois compreende que o tema
criatividade é bastante amplo e pode ser facilmente confundido com o termo no senso comum.
Ao fazer essa diferenciação, Winnicott diz que as criações artísticas, quaisquer que sejam,
necessitam de “algum talento especial” (1986h, p. 28), e uma vida criativa, no sentido do
termo que ele propõe, “trata-se de uma necessidade universal (...) e mesmo os esquizofrênicos
retraídos e aprisionados ao leito podem estar vivendo criativamente uma atividade mental
secreta, e, portanto, em certo sentido, feliz” (1986h, p. 28).
Winnicott explora, ainda, o fenômeno da criatividade em relação ao casamento,
separando dois polos: os casais que podem manter a criatividade e os que sentem sua
criatividade dissipada pela relação.
Para Winnicott, Jung sofreu uma “distorção das tendências integrativas” devido à
depressão da mãe, o que fica evidente em suas descrições sempre positivas de sua infância,
passando a impressão de um mundo “bonito”. Tal distorção foi ocasionada por uma cisão de
sua personalidade, como uma resposta à sua dependência da união dos pais (que haviam se
separado quando ele tinha três anos) e ao humor deprimido da mãe.
Winnicott também irá afirmar que, no caso de Jung, ocorreu uma cura através da
autocura, que “não é o mesmo que a resolução pela análise” (1964h, p. 368), isto é, sua Teoria
da Personalidade pode ter sido uma grande tentativa de entender sua própria psicose.
A personalidade de Jung pode ser definida como “sem lugar para esconder coisa
alguma” (1964h, p. 368), pois devido à cisão sua vida psíquica passou a ficar “exposta”.
Desse modo, Jung passa a vida tentando encontrar um lugar para colocar sua realidade
psíquica, e sua teoria é um exemplo disso.
No caso de Jung, não havia condições para destruir a mãe, devido à depressão desta, o
que o incapacitou de conhecer aspectos criativos da destruição e da criação do objeto. Para
Newman, “Winnicott prefere também pensar que é ao vivermos criativamente que nos
tornamos também capazes de nos preocuparmos com nossa destrutividade e de fazer algo a
esse respeito” (2003, p. 112).
A criatividade é trazida juntamente ao conceito de destrutividade, e novamente é
apenas mencionada por Winnicott, sem descrições amplas a respeito do conceito. Apesar
disso, a análise da personalidade de Jung através de sua autobiografia caracteriza tal texto
como clínico, uma vez que aponta para a manifestação, na patologia, de parte do fracasso
ambiental.
Em 1966, no texto “Autismo”, Winnicott se pergunta o que pode conduzir, em termos
de relacionamento inicial entre mãe e bebê, ao distúrbio autístico. Nesse texto, Winnicott
especifica que não compreende o autismo como uma doença, mas como “uma perturbação do
desenvolvimento emocional e uma perturbação que avança tanto no passado que, em certos
aspectos pelo menos, a criança é intelectualmente deficiente” (1996c, p. 181). Ou seja, a
doença decorre do fracasso adaptativo do ambiente e do não cumprimento às necessidades do
indivíduo. Através de um exemplo clínico, esse texto é capaz de ilustrar um dos resultados do
fracasso ambiental quando na etapa de dependência absoluta do bebê.
Há um fragmento do que a mãe de uma criança autista, atendida por um colega de
Winnicott, diz. Ela ressalta que ficou mais atenta às próprias ansiedades do que às do bebê, e,
desse modo, não lidou com o bebê de uma maneira humana. Isto é, a criança não vivenciou
“os rudimentos do contato humano” (1996c, p. 192).
87
Como o fracasso ambiental ocorreu em uma época precoce da vida do bebê, “resultou
numa situação em que podemos dizer que os pais tinham de pensar o tempo todo no que fazer,
em vez de sentir isso intuitivamente” (1996c, p. 183). Dessa forma, Winnicott sugere, para o
tratamento desses casos, que provisões ambientais relativas ao “toque concreto” são mais
eficazes do que interpretações verbais.
Winnicott confere à questão do ser, antes do fazer79, uma grande importância. Em
outras palavras, o que o autor está nos dizendo é que nesse paradoxo se constitui a
criatividade: a capacidade para a criação da área em que ocorrerão as experiências e o contato
com a realidade externa só é possível a partir do estabelecimento de uma realidade interna
pautada na experiência de ilusão.
Nesse sentido, ao oferecer a presença “sem fazer nada”, os pais permitem ao bebê que
se integre e alcance uma ‘coexistência psicossomática’, e assim, uma sequência de etapas do
desenvolvimento são alcançadas, até a “capacidade de adotar objetos simbólicos e a existência
de uma área entre o bebê e as pessoas, na qual o brincar é significativo” (p. 192).
Em outras palavras, a capacidade para a criação da área em que ocorrerão as
experiências e o contato com a realidade externa, a partir do estabelecimento de uma realidade
interna pautada na ilusão, é o que inclui a capacidade de criar e ser criativo, o que se encontra
prejudicado no distúrbio autístico.
Em 1967, Winnicott publica o artigo “O papel do espelho da mãe e da família no
desenvolvimento infantil”. Aqui, como em grande parte dos escritos winnicottianos, o autor
nos apresenta uma retomada dos processos intrínsecos ao desenvolvimento individual, quando
este ocorre de maneira saudável.
Nas etapas iniciais do desenvolvimento é importante que a mãe apresente os objetos
ao bebê sem que sua experiência de onipotência seja rompida. Isso significa esperar que o
bebê faça o movimento em direção ao objeto, e apresentá-lo no momento em que a
necessidade do bebê também se apresente. Desse modo, o pequeno indivíduo pode sentir que
foi ele quem criou o objeto apresentado.
Conforme o desenvolvimento prossegue, o bebê passa a olhar não apenas para os
objetos, mas também o rosto da mãe, e esse é o ponto central nesse texto. O autor afirma que
existem consequências para a “capacidade criativa” do bebê quando este não pode ser visto
pela mãe, seja pela preocupação desta com seus próprios conteúdos, por uma depressão ou
79
Cf. Winnicott (1971g).
88
Quando olha para a mãe, o bebê não pode vê-la. Ele precisa ver o olhar da mãe
olhando para ele. Assim, ele se vê. A ilusão de onipotência está nesse sentido que é criado
justamente pela experiência de possibilidade para criar o mundo à sua própria maneira. O
analista, por sua vez, faz o papel da mãe suficientemente boa, que olha para o seu bebê e,
identificada com este, reconhece as suas necessidades.
89
entre a realidade externa e a realidade pessoal. Isso se dá a partir do “uso de símbolos pela
criança, no brincar criativo e, (...) na capacidade gradativa da criança de utilizar o potencial
cultural” (1968g, p. 178). Agora, a criança é capaz de se utilizar dos mecanismos de
introjeção e projeção81.
Do ponto de vista clínico, o analista deve se atentar, portanto, à capacidade de
utilização de símbolos pelo paciente para fornecer suas interpretações, o que está diretamente
ligado à vivência satisfatória da experiência de ilusão e, consequentemente, ao
estabelecimento da criatividade.
Também em 1968, no texto “Ilustração clínica de O uso de um objeto”, Winnicott
chega a conclusões a respeito do que pode causar um viver não-criativo. Descreve um
paciente do sexo masculino, de 50 anos, que por ter tido um pai fraco e uma mãe forte não
podia contar com o pai para que sua agressividade fosse contida, e tampouco podia utilizar a
mãe como refúgio, uma vez que esta tinha de suprir o controle da agressão que não vinha do
pai.
Dessa forma, ao ter “de adotar o autocontrole dos impulsos em uma etapa muito
inicial, antes de estar preparado para fazê-lo com base em uma figura paterna introjetada”
(1989vt, p. 184), tornou-se inibido e, consequentemente, baniu qualquer impulso e
espontaneidade, uma vez que sua inibição bloqueou qualquer impulso, inclusive o agressivo e
o criativo.
Como foi visto na resenha elaborada por Winnicott da autobiografia de Jung82, a
destrutividade é entrelaçada ao fenômeno da criatividade, pois este também se configura
como a capacidade para usar e destruir os objetos para, em seguida, o indivíduo ser capaz de
criá-los.
Em 1971, no texto “O brincar: a atividade criativa e a busca do eu (self)”, a
criatividade é trazida como resultado do brincar, pois, conforme afirma o autor, “O brincar é
essencial porque nele o paciente manifesta sua criatividade” (1971r, p. 80). Winnicott se volta
para a questão da busca do eu (self), e vincula isso às condições relativas à criatividade.
O produto de uma obra de arte, qualquer que seja, não precede o ato criativo, e para o
autor, não necessita estar vinculado a este, mas o ato criativo e a criatividade estão na base
para um viver dotado de sentido. Por vezes, o viver criativo pode se expressar por meio de
produções artísticas, mas essas não são condições para afirmar a existência de uma vida
criativa.
81
Este tema foi explorado por Dias (2007) em “Incorporação e introjeção em Winnicott”.
82
Páginas 85-86.
91
O eu (self) realmente não pode ser encontrado no que é construído com produtos do
corpo ou da mente, por valiosas que essas construções possam ser em termos de
beleza, perícia e impacto. Se o artista através de qualquer forma de expressão está
buscando o eu (self), então pode-se dizer que, com toda probabilidade, já existe um
certo fracasso para esse artista no campo do viver geral criativo. A criação acabada
nunca remedia a falta subjacente do sentimento do eu (self) (1971r, p. 81).
CONCLUSÕES
Como já foi frisado, a criatividade é um tema amplo e não seria possível, pelo tempo
disponível para tal pesquisa, realizar um trabalho abarcando uma retrospectiva do tema que
incluísse todos os autores da Psicanálise. Por isso, foi realizado um recorte específico, que
considerou os autores tidos como os maiores interlocutores de Winnicott – Freud e Klein –
para realizar um paralelo em relação às suas teorias da criatividade.
O principal objetivo consistiu em explorar o fenômeno ao longo da obra de Winnicott,
para saber como o autor o desenvolveu e, para tanto, foram sugeridas três categorias de
análise: ontológica, descritiva e clínica.
Tendo em vista que seus primeiros textos que fazem referência à criatividade datam
da década de 40, e que o último foi escrito, provavelmente, em 1970 (pois o autor faleceu no
início de 1971), essa pesquisa se propôs a um resgate teórico de mais ou menos 30 anos, em
que foi possível acompanhar e compreender de que maneiras Winnicott abordou o fenômeno,
como é visto no resumo a seguir.
Em 1945, seu empenho se dirige à questão de como um bebê pode experimentar algo
que tem relação com a sua realidade interna e, aos poucos, instaurar seu contato com a
realidade externa. Ou seja, Winnicott (1945d) parece interessado em saber como ocorre essa
transição, ainda que não ocorra de forma completa, da realidade subjetiva para a realidade
objetiva do bebê. Já nessa época (Winnicott estava com 49 anos de idade e praticamente na
metade do desenvolvimento de sua teoria) ele voltava sua atenção para a experiência de
ilusão, ainda que não tenha mencionado o fenômeno da criatividade.
Três anos depois, em 1948, Winnicott (1996k) escreve sobre as necessidades
ambientais do bebê recém-nascido, e ressalta a relevância da ilusão de onipotência para o
estabelecimento da saúde mental deste. Sua ideia complementa a apresentada em 1945, pois
aqui retorna seu interesse para o início do contato com a realidade externa, através da
experiência de ilusão.
Três anos mais tarde, Winnicott (1951d), através de uma resenha de um livro de
Marion Milner, escreve acerca da qualidade da experiência de ilusão e sua relação com o
contato do indivíduo com a realidade externa e a experiência criativa, em última instância.
Pode-se observar que nesses três primeiros textos o autor não apresenta, ainda, uma definição
da criatividade em si, mas da experiência de ilusão enquanto fundamento ontológico do ser
humano, ou seja, aquilo que irá pautar o sentimento de ser e que está na base da experiência
criativa.
93
83
Exemplo citado por Winnicott no texto “O destino do objeto transicional”, na página 76 desse trabalho.
84
“Uma nova luz sobre o pensar infantil”.
85
“A ausência de um sentimento de culpa”.
95
Nessa descrição há uma retomada descritiva das conquistas que precisam ser
realizadas, ao longo do desenvolvimento emocional, para que a criatividade seja um fato na
vida do indivíduo. Dias (2003) afirma que a criatividade está presente desde o início, porém,
sendo “finita”, é necessário que seja efetivada, através da identificação e adaptação maternas.
Rodman considera que a teoria dos objetos transicionais, bem como a extensão destes para a
cultura, levou Winnicott a evitar a “criação de categorias rígidas destituídas do sabor da
experiência vivida” (1987, p. 30).
Dito isso, há a possibilidade de afirmar que, apesar de discutirem a importância do
fenômeno para a obra winnicottiana, os comentadores aqui utilizados não o retomam
cronologicamente, perpassando os textos do autor sobre o tema para compreender como se
86
No capítulo 3.2.
99
deu sua construção. Ademais, ao compreender a criatividade como uma herdeira da vivência
satisfatória da ilusão de onipotência, Winnicott introduz uma novidade para o campo da
Psicanálise, que não havia sido apresentada anteriormente por Freud e Melanie Klein.
100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A tarefa de viver e se manter vivo constitui-se em uma batalha que vai do início ao fim
da vida de todo indivíduo, uma vez que este enfrenta dificuldades que são intrínsecas ao
processo de desenvolvimento emocional e à própria condição de estar vivo. Frente a isso,
pode existir um modo singular de lidar com a vida, que depende das condições nas quais
foram construídas as primeiras relações objetais do indivíduo. A criatividade originária pode
ser definida como uma das maneiras de enxergar o mundo.
Na saúde, a mãe atende às necessidades do bebê por sua capacidade de identificar-se
com ele, o que, do ponto de vista do bebê, confere a sensação de que o mundo foi criado por
ele. Ao sentir que criou o mundo, o bebê dá a ele sua “marca” pessoal, por assim dizer. Desse
modo, a experiência de onipotência vivenciada pelo bebê fornece ao mundo um caráter de
familiaridade, uma vez que este possui algo de pessoal.
O bebê descobre o mundo e isso significa a criatividade: ao fazer movimentos em
direção aos objetos, etc., o bebê está, conforme afirmou Winnicott “pronto para ser criativo”,
e caso possa contar com um ambiente que facilite o encontro entre bebê e objeto – de modo a
não interromper a experiência do bebê, mas apenas facilitá-la –, então a criatividade se
manifestará no bebê, que sente que cria o que encontra. É neste sentido, filosófico e também
material, que a criatividade se relaciona à fundação do estatuto ontológico do ser.
Em um paralelo que parece ir ao encontro das descrições winnicottianas do viver
criativo, pode-se recorrer ao poeta brasileiro Manoel de Barros (1916-2014), quando afirma
que “tudo o que não invento é falso”87. O “falso” pode indicar que não está ligado à vivência
através do verdadeiro self, ou seja, que não partiu do gesto espontâneo do indivíduo, que não
foi apresentado aos objetos de modo a iludir-se com a sua capacidade de criar aquilo que
necessita.
“Inventar” o mundo pode dizer respeito a um modo de enxergá-lo, modo este que é
conferido ao bebê quando ainda encontra-se em contato direto e contínuo com a mãe. Assim,
o que “formata” o mundo é a criatividade originária. Tudo é de dentro pra fora, e o mundo só
faz sentido para o indivíduo se houver um sentido de ser, dado anteriormente à descoberta do
mundo, de modo que possa se lançar ao mundo sem ter que perder sua originalidade pessoal.
Tal compreensão pode auxiliar psicoterapeutas no atendimento clínico, principalmente
a pacientes graves, que necessitam regredir à dependência88. Ao entender a importância de
87
Trecho do poema “O livro sobre nada” (2016).
88
Para compreender essa questão recomendam-se as seguintes leituras: Galván (2012), Fulgencio (2011, 2016) e
Loparic (2015).
102
deixar o paciente chegar a suas conclusões por si mesmo, o analista pode rever sua postura
interpretativa.
Além disso, o entendimento do fenômeno pode contribuir para o trabalho de
educadores e professores, pois revela a importância do cuidado nas fases iniciais do
desenvolvimento emocional do indivíduo, e a necessidade de adaptação ambiental para a
realização da tendência inata à integração.
Compreender de que forma ocorrem as primeiras relações objetais do indivíduo, quais
as consequências de uma adaptação ambiental insuficiente e o que faz o mundo ter um sentido
pode auxiliar aqueles que estão em contato com pacientes que sentem que o mundo não faz
sentido, para que estes possam experienciar, ao menos em um curto período de tempo, ser
quem são, ainda que não faça sentido. Afinal, assim como a desilusão só é possível com a
vivência da ilusão, é do não-sentido que pode emergir o sentido em si.
103
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