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SEIS PEQUENOS MONÓLOGOS
PARA MULHERES
1.
A Seleção Natural
(Em um jardim florido).
perguntas todas. É como se vocês achassem que eu sou
alguém que eu não sou. E eu sou tão simples, tão eu
mesma, tão minha, tão pequena, tão fresca e delicada
como uma gota de orvalho numa pétala. Sinto que posso
até evaporar de tão insignificante. E é por isso que eu não
entendo essa desconfiança toda de vocês. Vocês acham o
quê? Que eu poluiria o meu jardim com sementes do ódio?
Nunca, não devemos ter ódio. O ressentimento é uma coisa
bastante ruim. Eu sempre penso, e sei que é assim, não
devemos sofrer. Devemos cortar o mal pela raiz.
Entenderam? Cortar o mal pela raiz. De um golpe só, como
quem arranca um fruto, ou dois frutos. O mundo é cheio de
excessos, e eu sou simples como néctar, deixo o mundo se
alimentar de mim para que em algum lugar, no futuro haja
mel. Não é bonito isso? Eu não entendo essa desconfiança.
Se meu marido foi embora, o que é que eu posso fazer?
Tudo bem. Meus maridos, meus dois lindos maridos. Mas
vocês sabem, as coisas não dão sempre certo. O mundo
desaba em nossa cara quando ficamos velhos, é inevitável.
Eu sei que sou jovem ainda, mas eles achavam que eu não
era jovem o suficiente. Eu acho que foi isso, pelo menos.
Não tenho culpa se eles desapareceram sem deixar
vestígios. As pétalas somem ao vento, o odor das pétalas
desaparece na primeira brisa, por que meus maridos não
poderiam ter o mesmo fim, e desaparecer como se jamais
tivessem existido? É tão lindo, tão poético desaparecer. Eu
também iria querer desaparecer como um perfume que se
perde no ar. Sem marcas de espinhos, sem a folha seca de
meu corpo apodrecendo no solo úmido de meu jardim. Eu
amo esse jardim. E o que vocês querem nunca irá
acontecer. Vocês sabem com qual adubo eu deixo belas as
minhas flores? É com o meu suor. O suor dos meus dedos,
que se enfiam nos buracos mais negros de minha terra
úmida. E vocês, nunca, nunca vão fazer o que pretendem.
Não há razão no mundo que permita a atrocidade que
vocês pretendem. Esse jardim não é apenas o meu refúgio,
meu trabalho, a minha paixão, consolo, paz e alegria, é a
minha vida. Conheço cada pétala, cada espinho, cada
odor... Não! Nunca permitirei. Eu sempre amei meus
maridos, sempre fui doce, gentil. Sempre cedi a todas as
suas vontades. Aqui, nessa terra úmida, eu me entreguei
tantas e tantas vezes. Espetávamos nos espinhos das rosas,
e eu não soltava um pio quando em volúpia quebrávamos
uma folha, um galho, um vaso. Eu era exemplar, o modelo
da humildade, da resignação, da submissão até. Eu aceitava
tudo com amor, desde que minhas flores continuassem
sempre aos meus cuidados. Desse jeito eu conseguia os
amar do jeito que eram. Amava inclusive a brutalidade, a
inconsciência, o cheiro de carne de homem, suada e áspera
como um toco de madeira recoberto de musgo. Eu
acariciava esse musgo espesso de suas coxas, mordia a
madeira nodosa de seus braços. E gemia doce como uma
virgem. Gemia como se fosse uma flor com voz, onde
abelhas ávidas de néctar me penetravam com suas patas,
seu ferrão. Mas nem todo mundo gosta de tanta doçura
todos os dias. E eu, não por querer, não tenho como evitar,
eu sou assim, um doce. Gentil, gentil, gentil até o
desespero, até o horror do amor excessivo, subserviente,
espesso e colorido como o mel, ou a lama. E agora, depois
de tudo isso, vocês vêm me dizer que... Vocês chegam aqui
e me acusam de... Não posso nem pronunciar tal
barbaridade. É um insulto a presença de vocês nesse
santuário que é o meu jardim. Limpem os pés para pisar
nessa terra santa. Vocês têm noção do quão milagroso é o
brotar de uma flor? Do quanto eu sofro para que cada
espinho defenda sua rosa? E vocês vêm me dizer que...
Vocês não entendem nada. Não sabem de nada do meu
jardim. Eu jamais iria poluir essa terra abençoada com o
pecado daqueles corpos. Nunca! Seria imoral... E quando eu
digo corpos quero dizer sobre a possibilidade daqueles
corpos nos sulcos de minhas sementes. Eles como adubo
não dariam mais que ervas daninhas. Sim, eu os amava.
Mas quantas pessoas amam plantas carnívoras, cactos,
flores venenosas, serpentes e insetos, e ainda assim são
boas pessoas? Eu era assim, os amava como insetos. Como
insetos polinizadores. Mas nem disso eles eram capazes.
Onde está o pólen em minha barriga vazia de brotos?
Vamos, me digam? Eu sou jovem, mas vocês sabem, até as
flores tem seu tempo. E meu tempo zunia como um
zangão pronto para ser morto pela rainha. Cadê o meu
pólen? Eu gritava para eles. E eles só faziam me inundar de
seus visgos inférteis. O que fazer? Eu precisava de mais
pólen para os sulcos de minhas pétalas. Eu queria uma
semente que nenhum deles conseguiu me dar. O que vocês
queriam que eu fizesse? Que não deixasse o broto de
minha existência para o jardim do mundo? E eu ainda
preciso disso. Eles foram embora, desapareceram como
exemplar inapto para a evolução da espécie. Posso dizer
que foi sim, obra da seleção natural. São as leis da
natureza. Sem deixar vestígios, como se nunca tivessem
existido, meus homens inférteis evaporaram como o
orvalho no primeiro sol da manhã. É bonito pensar assim.
Que seu desaparecimento foi em prol de um futuro repleto
de indivíduos mais capazes. Eu não tive nada com isso, não
sou responsável. Foi uma ação da natureza, pelo
desenvolvimento da espécie. Nós também somos como um
jardim. Um jardim muito mal cuidado, mas mesmo assim
um belo jardim. O mundo deveria me agradecer pelo meu
talento em deixar florescer apenas as melhores sementes.
Podar, cortar os ramos secos para uma florada melhor, esse
é meu talento. Vocês deveriam me agradecer por eu tornar
esse imenso jardim um lugar mais propício para beleza,
para perfeição, para flores e sementes cada vez melhores.
E não me ameaçar com suas desconfianças, como se eu
fosse capaz de contaminar minhas flores com aqueles
músculos incapazes de gerar uma semente. Vocês nunca,
mas nunca vão tocar no meu jardim com essas, essas, essas
ferramentas monstruosas. Mas o quê? Parem! Larguem
essas pás! Não, ninguém irá tocar em minhas flores. Vocês
vão ter que cavar antes em mim. Cavem em mim! Larguem
isso! Saiam do meu jardim! Me soltem! Tirem essas mãos
de galhos secos de mim! Parem! Não! Não! Minhas flores,
não! Minhas flores... Minhas flores...
2.
Suíte nº 2
(Em uma cadeira, quase imóvel.
Suíte nº 2 para violoncelo solo de J. S. Bach,
1º movimento inteiro, quase ensurdecedoramente).
Suíte nº 2 para violoncelo solo. Ré menor, Johann Sebastian
Bach. No início parece triste, mas é muito mais que isso. O
primeiro movimento é de uma melancolia tão, tão
avassaladora que chega a ser funesto, tétrico, fúnebre. Mas
ainda assim é tão bonito que me dá vontade de chorar.
Parece como uma tempestade que se aproxima, com
relâmpagos e vento zunindo na copa das árvores. Se eu
pudesse escolher ser uma coisa seria essa música. Mas não
tem jeito, eu sou só eu mesma. Simples assim, quase um
silêncio. Mas às vezes, quando ouço esses acordes, parece
que por um momento eu deixo de ser eu, e fico igual a esse
som que me atravessa, invisível e denso, sem corpo, mas
capaz de me soterrar como uma avalanche, de me
incendiar a partir da alma sem sequer vibrar em minha
pele. Eu sinto que sou como essa suíte, lenta e densa,
escura. Não me acho estranha por dizer isso. Todo mundo é
denso às vezes. Não triste, a tristeza é outra coisa. É denso
mesmo, movendo‐se lentamente como seiva fluindo de
uma árvore, viva e cheia de odores como o caldo viscoso
que escorre pela casca até se solidificar completamente, ou
morrer como uma gota amarelecida e sólida no solo repleto
de suas próprias raízes. Você nunca se sentiu assim?
Quase estagnada, movendo‐se lentamente rumo ao solo?
Eu me sinto sempre assim. Todos os dias. Quase imóvel,
descendo, descendo, descendo até que o solo me consuma
como uma árvore que sangra, que escorre até ficar vazia.
Isso não é mal, sou assim apenas, vou me esvaindo com os
dias. Eu gostaria de ser mais alegre às vezes, de dizer coisas
mais felizes, mas é que a gente esquece tão rápido a alegria
que parece que nem vale a pena falar nada. É como se a
vida se esvaísse sem ser percebida, com nossa cara se
desmanchando leve como fumaça que se espalha pelo ar.
Como eu gostaria de voltar a fumar. Sugar o fogo com
tanta força até ouvir a combustão do papel queimar alto
em minhas têmporas. Mas já nem isso eu posso. Nenhum
alívio funciona mais. Só o sono, só dormir sem sonhos,
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como um pedaço de pau. Isso ajuda, mas só enquanto
durmo. Mas demora tanto pra pegar no sono. Quero
dormir o maior tempo possível, o mais rápido possível, sem
me ver adormecer, sem o pesadelo de um sol pela manhã
me roubando da inconsciência e do silêncio que me aliviam.
Quero dormir rápido, entendeu? Rápida e
inconscientemente como um piscar de olhos. Mas o tempo
demora tanto a passar. Estou bem, não é nada, não é nada.
Em outros tempos eu tiraria de letra. Bola frente, e ia
tocando a vida. Tinha meu violoncelo, meu marido. Bola
pra frente. (pausa, longo silêncio) Para frente para aonde?
Você pode tocar de novo para mim? Claro, é melhor não.
Não é ocasião para música essa em que nos encontramos. E
eu amava música. Meu Deus como eu amava. A música era
tudo pra mim, minha vida, meu prazer, meu trabalho. O
meu marido, você sabe, não é? Casei porque ele também
amava a música. Talvez tenha sido isso. Não nos amávamos
de verdade, mas amávamos algo em comum, o que já é
mais do que muitos tem. Foi suficiente, por um tempo.
Talvez tenha sido isso mesmo. Talvez se eu não tivesse
parado ele ainda estivesse comigo, e estaria aqui,
segurando a minha mão. Mas não deu. Eu não conseguia
mais. Não deu, você consegue entender? Não deu! O
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mundo começou a doer. A doer muito, como dói agora. Eu
queria sentir meia dor. Como meu corpo, meio corpo. Mas
não é assim. É como quando eu tocava meu violoncelo, é
no corpo todo. Eram meus dedos apenas que sentiam as
cordas, mas a partir deles o corpo inteiro acordava de uma
letargia profunda, e vibrava como a pele de um tambor
soando firme, ecoando em todos os meus ossos, minha
carne, e eu era inteira música. Hoje vibro não mais como
um tambor, mas como chicote em minhas próprias costas,
vergastando com alarido minha pele em frangalhos. (pausa)
Meu marido tocava piano. Eu tocava violoncelo e ele
piano. Fizemos duos na vida e na música. As sonatas de
Beethoven para piano e violoncelo, os quintetos de
Brahms, a linda Arpeggione de Schubert, todos, todos
mesmo. E hoje, que eu já não consigo mais nem respirar
direito, a lembrança dessas músicas, desses sons, parecem
desaparecer como se eu jamais os tivesse ouvido. Só o que
eu consigo lembrar é dessa maldita música, essa suíte
maldita que me rouba as forças e me devolve à lama. Eu
daria tudo para poder tocá‐la novamente, para me livrar da
maldição de só poder ouvi‐la. Eu lembro, quando comecei a
ficar doente, e soube o que estava por vir. Peguei meu
violoncelo, respirei fundo como quem mergulha, fiz um
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silêncio avassalador, mais do que meditativo, um silêncio
de canhão carregado, um silêncio de patíbulo, de asfixia.
Fechei os olhos e... (3º movimento da suíte. Interrompido
bruscamente) Toquei destruidoramente. Todo terror e toda
esperança pareciam explodir em cada nota, era como se eu
chorasse, mas minha alma e meus olhos estavam secos. A
mão de meu marido tocou meu ombro. Suavemente, como
quem acaricia, mas com a força de quem segura pelo braço
alguém que vai cair de um precipício, ou atravessar uma
rua quando vem um carro. E parei de tocar imediatamente.
Eu estava muito amedrontada para pensar no que quer que
fosse. Mas com aquelas mãos em meus ombros eu me senti
menos desamparada. E já naquela época ele pensava em
me abandonar. Ele já planejava uma nova família, e eu,
condenada e prestes a me tornar uma incapaz, já não mais
fazia parte do seu futuro. Eu nunca desconfiei, nunca pude
imaginar que enquanto eu fazia aqueles milhares de
exames, sozinha, ele que deveria estar sempre ao meu
lado, cada vez menos estaria comigo. Sua nova mulher teve
um filho poucos meses depois que nos separamos
definitivamente. E eu, eu que ia progressivamente
perdendo o movimento de minhas pernas, de meus braços,
que comecei a tremer incontrolavelmente, que já não
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conseguia sequer controlar minha bexiga, nunca na vida
quis tanto ter um filho. (pausa) Ele contratou você para
ficar comigo, para me ajudar nas coisas do dia‐a‐dia, para
me limpar. Talvez por remorso. Não sei por que te conto
novamente essas coisas. Já falei tanto disso. Mas é como
uma música que a gente estuda, e repete, repete até que
esteja tudo claro em nossa mente, em nosso corpo, e
possamos sem pensar fazê‐la viver para os outros. Põe a
música de novo pra mim? Por favor? Eu sei, eu sei. Já
conversamos sobre isso. Sem música será mais digno. E
você só faria se fosse sem nenhum som, num silêncio cruel
e insuportável pra mim. Eu não entendo isso. Por que
agora, quando eu mais preciso, me privar da única coisa
que esse corpo quase inútil ainda é capaz de fazer? O que
mais eu posso senão ouvir, ouvir, ouvir até o desespero, o
excesso, o horror? Me privar disso é antecipar o meu
silêncio, é acabar com o único vestígio de humanidade que
ainda possuo. Sem isso eu sou um bicho, incapaz de coisa
alguma além da própria sobrevivência. Eu não entendo isso
de você, que é quem eu mais confio nesse mundo de ruínas
que me sobrou. Morrer em silêncio é pior do que morrer. É
a catástrofe, é pagar caro demais essa dívida que contraí ao
ter nascido com essa coisa. Vamos, acabe logo com isso sua
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enfermeira maldita! Aplique logo essas injeções e torne
minha imobilidade tão verdadeira que meus ouvidos não
mais consigam mentir que ainda estou viva. Uma para me
anestesiar, como se ainda fosse preciso. E outra pra acabar
de vez com esse abandono que me deixou ainda mais
encarcerada nesse corpo que mal se mexe. Vamos com isso
sua empregada inútil, eu quero rápido essas duas injeções
de uma única vez. (longa pausa) Será que você pode ser
mais ágil? Esse silêncio é pior que a dor. Por favor, por
favor... Você não pode mesmo colocar a música pra mim? É
minha última vontade. Coloque a música para eu ouvir de
novo, eu imploro. (pausa) Eu não vou conseguir sem isso.
Eu tenho medo de morrer em silêncio, eu tenho medo de
viver em silêncio. (longa pausa) Você venceu. Você venceu
mais uma vez. Eu desisto de novo, mas pelo amor de Deus
coloque logo essa música maldita! (5º movimento da suíte,
aproximadamente depois do primeiro terço, no início do
minueto II).
Escuridão.
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3.
A Entrevista
Eu odeio pessoas simpáticas. Bom dia, me dizem com um
esgar de boca que mais se parece com um trapo se
rasgando na cara. Eu nunca respondo. Pra esse tipo de
inutilidade o silêncio é o que há. A pessoa fica me olhando
com aquela cara estúpida, como se tivesse sido roubada. O
que esperam, que eu retribua seu bom dia como um robô
incapaz de pensar? Se a pessoa espera que eu tenha
realmente um bom dia, que ótimo. Tá valendo. Legal
mesmo. Valeu. Nada mais, é isso, morre ali o assunto. Se
for assim, um desejo sincero de que eu tenha um bom dia,
obviamente isso não precisará de retribuição. Era só o que
me faltava: “bom dia”, “ah, obrigado, aqui tem um real”; ou
“tenha um bom dia você também”. Não, né? Nem te
conheço, quero mais é que se exploda. Eu tenho mais é
nojo desse mundo repleto de sorrisos. Como é que não
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pegam uma infecção nos dentes de tanto deixá‐los a
mostra nessa poluição? Ficar com a boca aberta tanto
tempo deve dar alguma doença. Talvez seja por isso que
chamam de boca aberta os estúpidos. Cala boca e vive,
porra! Pra que essas risadinhas? Talvez se as pessoas
fossem menos simpáticas houvesse menos guerras. O
presidente visita outro, chega lá rindo como um
abestalhado, dá tapinhas nas costas, serve um jantar grão
fino, e quando volta pra casa mete um embargo, ou
aumenta as taxas de importação, ou nega a extradição de
um criminoso. O presidente anfitrião vai obviamente se
sentir traído. “Mas pensei que éramos amigos, que iríamos
estreitar as relações comerciais”, vai pensar o coitado, e
quando menos se espera vai lançar um míssil em algum
avião estrangeiro desavisado. Se logo de início ambos
tivessem mostrado realmente o desconforto que é receber
um hóspede, nada disso aconteceria. Ele iriam logo pensar
reciprocamente que não se poderia esperar outra coisa
daquele filha‐da‐puta. E pronto, não seriam amigos, mas
por respeito manteriam a distância necessária para não
vomitar de desgosto um na cara do outro por serem
forçados a ser cordiais. Eu também odiaria receber visitas.
Ainda mais visitas por interesse. Pensei nisso quando fui
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escolher uma profissão. Com o meu perfil de atendimento
ao público eu já pensei em seguir várias carreiras
promissoras, embora ainda não tenha encontrado algo que
realmente eu goste de fazer. Uma dos ramos em que tive
interesse foi a enfermagem. Até tentei um estágio, mas aí
aquela coisa, lá vem o doente moribundo, quase morrendo,
levantando aquela mãozinha esquelética, amarela e usando
todas as forças, todas as últimas forças para
miseravelmente, quase num gemido, dizer o quê? Bom dia.
Aí não dá, né? Eu nunca respondo, mas nessas situações há
que se fazer uma exceção. Bom dia por quê? O que é que
tem de bom, que amanhã teu quarto vai estar vago?
Vamos, diz aí, bom dia por quê? Tem mais alguém aqui
além nós? Cadê tua família pra te assistir morrer? Bom dia
o caralho! O que é que tem de bom em morrer sozinho,
sem forças pra comer, tendo de ser limpo por uma
estranha como eu, que com nojo precisa trocar as tuas
fraldas? O quê, o dia não será melhor só porque é o último.
É apenas um dia comum, em que um homem comum e
sozinho vai desaparecer sem ser percebido, ser notado,
sem que ninguém sinta sua falta. Se for assim tão
importante, então tá, tenha aí o seu bom dia. (pausa) De
fato, eu tinha razão. O quarto vagou no dia seguinte. Mas
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não sem antes o desgraçado fazer o relato do meu sincero
cumprimento à enfermeira chefe. Tudo, tudo porque eu
por compaixão decidi mudar meu hábito e responder o
maldito bom dia. Enquanto eu entrava e saia em respeitoso
silêncio não tive nenhuma reclamação. Obviamente eu
poderia argumentar que o paciente teve alucinações ou
delírios. Mas para quê? Mais cedo ou mais tarde eu teria
que cumprimentar as pessoas. Do meu jeito, mas teria de
fazer. Incrível como as pessoas ficam simpáticas na
desgraça. Falam com todos, falam baixo até. Pelo menos
até saírem do hospital, para então voltarem à habitual
gritaria selvagem, descomedida, insuportável, e com seu
bom dia a escarnecer aos berros de um mundo que já não
consegue mais acreditar em frases feitas. (pausa) Antes que
eu tivesse que me render a isso, ou que me mandassem
embora, fiz a mim mesma o favor de sair de lá. Ainda era
tempo de novas descobertas, e eu começara a me
interessar por uma nova área. Eu sempre achei que sabia
entender as pessoas de uma maneira mais profunda, mais
verdadeira até. Sem querer superestimar minhas
qualidades, eu sempre soube muito bem ler uma pessoa.
Foi por isso que eu achei que talvez pudesse ser útil no
ramo da psicologia. Não que eu fosse fazer uma faculdade
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ou curso, essas coisas. Não preciso disso, acredito no meu
feeling, embora ainda precisasse testar minha
compreensão da humanidade de maneira mais
sistematizada, e com voluntários. Não queria correr o risco
de ser injusta com meus futuros pacientes usando
tratamentos diferenciados apenas pelo grau de simpatia
que elas me despertassem. Precisava, a partir do meu
conhecimento sobre a emoção das pessoas criar algo que
servisse pra todas elas igualmente, quase como um
antídoto universal para os males do espírito. Quase como
um genérico para a alma. Criei então um roteiro de
respostas prontas para todas as perguntas, que no meu
entender, poderia provocar reflexões úteis para as pessoas.
Fiz alguns testes para verificar a eficácia de minha
estratégia e cheguei ao seguinte esquema, que obviamente
deve ser feito após as devidas apresentações,
cumprimentos e mais importante, pagamento adiantado.
Pergunta: O que você é de melhor? Tempo para o cliente
falar. Movimentos afirmativos com a cabeça. Resposta:
Grande merda o que você é de melhor. Isso não significa
nada. Você acha que por esse mínimo que você é as
pessoas vão te levar em consideração? É muita ingenuidade
acreditar que só por isso você é alguma coisa de
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importante. Vamos, tire essa empáfia da cara! Só porque
esse teu sucessozinho te enche de ar, é apenas ar, como
um balão. Como se essa sua especialidadezinha fizesse
alguma diferença no mundo como se apresenta hoje. Ah,
você ganha algum dinheiro com isso? Grande merda essa
sua carteira cheia. Enfie o seu dinheiro, enfie. Pergunta:
Como é sua relação com a família? Tempo mais curto.
Interrompa bruscamente o cliente. Resposta: eles não
precisam de você. Você se importa tanto, se preocupa
tanto, mas sejamos francos, você acha que eles iriam
morrer se você morresse? É óbvio que não. Outro cônjuge,
padrastos e madrastas para seus filhos, passatempos e
distrações pueris para seus parentes esquecerem o mais
rápido e confortavelmente de você. Se dê o devido valor,
esqueça essa gente. Pergunta: você ama alguém em
especial? Deixe o cliente falar pelo tempo que quiser.
Resposta: o amor é o mal. (pausa) Devido a algumas
reações exageradas dos meus primeiros clientes
experimentais, tive de encerrar minha carreira na psicologia
muito antes de verificar o quão transformadores seriam os
resultados de minha técnica. Foi um tanto quanto
desestimulante a princípio, mas não posso dizer que não
aprendi coisas úteis, muito úteis por sinal. E a primeira
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delas é que toda opinião alheia é dispensável. De que é que
me serve alguém que não me conhece e que entende tão
pouco de psicologia quanto eu me dizer que eu não posso
ser psicóloga? Nada! Não me serve de nada. Estou bonita
hoje? Não importa a resposta. Se sim, vou me arrumar; se
não, vou me arrumar do mesmo jeito. Ou não, não é? Cada
dia é um dia. E não é por uma opinião qualquer que eu vou
mudar sequer a cor da minha roupa. Não mudo um cílio,
um pêlo de dentro do nariz! Não vou arrancar um único
maldito pêlo da minha virilha. Que se foda o mundo, não
preciso dessa merda! Eu não preciso de ninguém! (longa
pausa, outro tom) Eu espero que seja esse tipo de
autoconfiança que vocês estejam procurando. Acredito que
pelo meu breve relato vocês tenham tido uma boa
perspectiva do meu poder de empreendedorismo e
iniciativa. É tudo de que vocês precisam para o cargo que
eu vou ocupar, não é? Sim, porque alguém com o meu
perfil, com a minha capacidade de decisão e coragem para
expor argumentos, em minha opinião, é tudo o quê vocês
precisam. Não por falsa modéstia, mas eu sou a melhor
pessoa pra função. Aliás, para qualquer função. Se vocês
forem contabilizar todas as minhas qualidades vão ver
várias que são amplamente valorizadas nesse mercado: sou
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criativa, tenho iniciativa, sou dedicada, com personalidade
e liderança. O que mais é necessário para se ser um
sucesso? Experiência? Como tudo o mais na vida,
experiência se adquire. Boa educação? Sou a pessoa
melhor educada que conheço. Sou sincera, espontânea,
honesta, decidida. São qualidades que são sinônimos de
boa educação. Não sou como esses borra‐botas que não
sabem sequer apertar a mão de um cliente, e ficam com
aquela mão mole, pegajosa. Eu não, eu pego mesmo, e
aperto mesmo. Também não sou como esses indecisos que
ficam de reme‐reme e lero‐lero. Digo as coisas na lata, sem
enrolação. Isso é ser bem educada, isso é ser honesta, o
que é bem raro hoje em dia, vocês hão de concordar. Se eu
terei um bom relacionamento com a equipe? Mas é óbvio
que sim. Relacionamentos às claras, olho no olho, são os
que têm vida mais longa. Não vou usar de meias palavras
com ninguém. Todos vão saber exatamente o que estou
pensando, e vão me conhecer e respeitar sem que eu
precise, vejam vocês, ser simpática. A simpatia é um
engodo, algo que disfarça a incompetência, o medo e a
corrupção. Alguém como eu é incorruptível. Lembro de
uma vez em que quase não levei uma multa. Eu havia
estacionado em local proibido pra rapidamente fazer não
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sei o quê. Quando voltei o guarda estava lá. Perguntou se
eu já iria sair e eu disse que sim. Tudo bem, pode ir então.
Você não ficou nem cinco minutos, sei como é, me disse
ele. O sangue me subiu. Seu guarda, comecei muito
irritada, o senhor me pegou em flagrante delito. Não tem o
menor cabimento o senhor deixar de dar a punição
merecida. Ele perguntou se eu estava brincando, e eu disse
que quem estava brincando era ele, em não fazer a lei ser
cumprida. Ele é que era um criminoso fardado, incapaz de
aplicar a lei, usando de cordialidades para conseguir não sei
qual simpatia de minha parte. Comecei a gritar furiosa.
Você quer me comer, é isso? Acha que não me dar essa
merda dessa multa vai me fazer ficar caidinha pelo
simpático e másculo soldado fardado? O que é que é, vai
me subornar agora, é, com a tua benevolência? Fala aí o
pé‐de‐porco! Ele me prendeu por desacato, o desgraçado. E
óbvio, me multou. Mas eu estava certa, a lei é para todos.
Ele é que era o criminoso, não eu, que fui pra cadeia. Mas
se a sociedade acha que eu devo pagar a minha dívida por
dizer a verdade e fazer a lei ser cumprida, tudo bem. É
assim que tem que ser. Ninguém disse que o mundo
precisava ser justo. Mas não venham me obrigar a dar essa
merda de bom dia pra qualquer bosta que me venha a
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cumprimentar. Acho que ainda tenho o direito de não ser
simpática com ninguém, embora, como vocês podem
perceber, isso é mais um mérito do que um demérito. Digo
isso porque até agora eu não fui simpática com nenhum de
vocês, e vocês, graças aos meus méritos, às minhas
qualidades, ao meu vigor, continuam me ouvindo. (pausa)
Ah, é por pura simpatia. Vocês só estão sendo simpáticos?
(longa pausa) Pois então, meus caros, quero que vocês
enfiem essa maldita simpatia. Enfiem, estão me
entendendo? Vão comer merda com a porra desse bom dia
do caralho! Vão se foder com a porra simpática desse
sorriso escroto! O que é que é? Vão engrossar agora seus
cornos do inferno? (a luz vai diminuindo aos poucos
enquanto ela xinga rápida e furiosamente) Vão pra puta‐
que‐pariu seus filhos da puta do caralho! Tô cagando pra
esse serviço de merda, pra essa entrevista de merda, pra
merda que são vocês seus merda! Vão tomar no olho roxo
do cu escancarado de vocês! Vão chupar a hemorróida
sangrenta um do outro! Hein, hein? Chupando esse buraco
preto sujo de merda e sangue, hein, chupando para caralho
essa porra de merda seus filhos‐da‐puta do caralho
fedorento do pai filha‐da‐puta de vocês, seus cornos do
inferno maldito do caralho!
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4.
Muito menos que um frango
Eu corto o pescoço de galinhas. É isso que eu faço. Todo dia
corto dois mil pescoços. Seguro pela cabeça e passo a faca,
tomando o cuidado para não decepar totalmente. Eu ganho
a vida assim. Meu uniforme é esse, sangue por todo o lado.
Meu escritório é esse, com uma esteira de galinhas
passando ininterruptamente enquanto eu as degolo.
(pausa) E eu nem gosto de carne de galinha. Quando um
namorado me pergunta o que eu faço pra viver eu sou
obrigada a dizer, trabalho no setor de galinhas. De frangos,
ele pergunta. Não de galinhas. Parecem menores quando as
chamo assim, menos importantes. Tirar a vida de um frango
é muito mais grave do que a de uma galinha. Uma galinha a
gente não tem muita dó, mas um frango tem algo de
nobreza que eu não consigo dizer o que é. Trabalho no
setor de galinhas. E o que você faz exatamente, ele
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pergunta. Trabalho numa das primeiras etapas de
embalagem. Ele quase fica satisfeito. Sim, porque as
galinhas precisam estar mortas para serem embaladas, não
é? Mas eu nunca entendo o porquê de os homens serem
assim tão curiosos. Ele pergunta de novo: Não, mas o quê
você faz mesmo, você empacota, você limpa, você varre o
chão, você administra a produção? Meu amor, respondo,
eu mato galinhas. Eu as degolo e faço todo sangue escorrer
pelo pescoço fissurado, quebrado pela minha lâmina. Eu
dou fim naquela vidinha curta de merda, corto em menos
de meio segundo e tento evitar que o sangue jorre no meu
olho. Sim, meu amor, eu mato galinhas. Eu as dilacero com
minha faca, seguro suas cabeças e num gesto mais
mecânico do que impulsivo, corto os seus pescoços. Você
está feliz agora, com minha resposta conclusiva e objetiva
sobre a minha profissão, meu amor? (pausa) Vai ser difícil
achar um homem desse jeito. Sei lá, talvez algum
açougueiro se apaixone por mim. E então, vai me
perguntar, você conhece todo métier do preparo da carne?
Não, eu só mato galinhas. Frangos? Não, galinhas mesmo,
do tipo mais desprezível. (pausa) Vou confessar que não
tinha imaginado isso pra minha vida quando eu era criança.
Mamãe, mamãe, quando eu crescer quero ser matadora de
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galinhas. Não , né? Não era isso que eu imaginava pra mim.
Queria algo maior quando eu ainda tinha sonhos.
(brincando) Matar porcos. Não, né? Não nesse sentido.
Bem na verdade eu não tinha lá muitos sonhos de
profissão, não. Eu nunca quis ser médica por exemplo. E na
época eu dizia que era porque eu tinha pavor de sangue.
Advogada? Ainda prefiro tirar o sangue só de galinhas. Não,
não tinha muitas pretensões pra mim. O que eu queria
mesmo, mas mesmo, mesmo era casar. Nada demais, sem
muitas pompas ou luxos. Churrascos, bebidas, convidados...
Não, nada disso. Eu só queria um homem pra mim, um
casal de filhos e cuidar da casa. Não era pedir demais, era?
Era assim tão pouquinho, tão singelo... E hoje o que eu
faço? Mato galinhas. Que homem vai querer uma mulher
que mata galinhas? Querido, compra pra mim um creme
bem cheiroso pra tirar o cheiro de sangue das minhas
mãos? Não é nada romântico, não é? Mas eu não perco as
esperanças. Nunca se sabe, não é? Tem louco pra tudo. Um
homem que fosse incapaz de fazer pouco de mim pela
minha profissão. Jamais toleraria piadinhas como “já matou
nosso jantar hoje, querida?” ou, “querida, você podia
emprestar seu uniforme pra uma festa a fantasia? Vou me
fantasiar de serial killer”. Posso confessar, eu mataria
28
alguém só por ouvir uma coisa dessas. Por que não vão
gozar da cara dos professores? Poderiam dizer, de que
adianta tanto estudo se a matadora de galinhas ganha o
dobro com a metade da carga horária e apenas uma faca?
Não, não deveriam fazer isso. Toda profissão tem sua
dignidade, os garis, os professores, os maquiadores de
defuntos, os mergulhadores de esgoto, as prostitutas, os
degustadores de cerveja, os reconstrutores de hímen,
todos. E até eu, que mato galinhas. (pausa) Certa vez ouvi
que as pessoas que trabalham com esse tipo de profissão,
tipo matança em escala industrial, esquartejamentos e
evisceração de animais acabam ficando doentes. Acabam
tendo problemas na cabeça. Tem uns que começam a
testar suas técnicas de descarnamento e desossagem em
pessoas. Que perdem a noção do que é um bicho e do que
é alguém. Eu sou alguém. Uma galinha não é ninguém. Os
animais não são pessoas, não tem o mesmo valor e por isso
precisam ser mortos para matar a nossa fome, das pessoas
que são alguém. Não tenho remorso do que faço. Sei que
cada vez que mato uma galinha alguém vai comer bem. Isso
é bom, não é? Sustentar os matadouros com nossa fome é
uma boa forma de se gerar empregos. Empregos como o
meu, que às vezes, quando não tem nenhum homem na
29
parada, eu até me orgulho. Você não está com pressa, não
é? Matar galinhas.... Mas onde é que eu fui parar? Você
entende, não é? Não foi minha culpa. De alguma maneira
as coisas foram se organizando pra isso. Fui meio que
seguindo o fluxo, de vento em popa, a favor da corrente...
Mas a vida não precisa ser sempre assim. Posso escolher
outras coisas agora. Posso escolher o meu rumo. Eu mato
galinhas, é verdade. Mas não preciso fazer isso pra sempre.
Posso começar a matar porcos. Brincadeirinha. Chega de
sangue na minha vida. Quase tenho vontade de nunca mais
comer carne. Quase. Eu penso às vezes... Às vezes não, eu
penso quase sempre em voltar aos meus sonhos de
infância. Eu ainda quero ter um marido. Filhos. Não é pedir
muito, é? Sei que tem muitas mulheres que acham isso
horrível, uma coisa antiga e tal. Mas as coitadas acabam
sempre casando, veja só. E se não casam, tem pelo menos
um filho. Acho, sei lá, que talvez faça parte da vida, um tipo
de instinto, como o instinto de um bicho, como uma galinha
que se debate furiosamente como se fosse escapar da
morte depois que eu lhe corto o pescoço. Eu sei que talvez
essa história de matar galinhas tenha me feito algum mal.
Que talvez demore pra eu esquecer de tanto sangue em
minhas botas, embaixo das minhas unhas, nos meus poros.
30
Mas isso não é nada que não possa ser contornado pelo
tempo. Tudo pode ser curado pelo tempo, não é? Quase
tudo. Você não precisa ir embora agora. Acho que com
tempo poderíamos nos entender melhor. Sei lá, nos
entender mesmo, sabe? Eu trabalho sozinha sabe? Fico
sozinha em minha sala enquanto as galinhas passam de
cabeça pra baixo em uma esteira para que eu faça o meu
serviço. Eu moro sozinha também. Fico no meu quarto
vendo o dia passar quando não estou trabalhando. E eu
assisto comédias pra passar o tempo. Eu não gosto de
filmes de violência, eu sou assim, sensível. Tão sensível
quanto qualquer pessoa. E não é sempre que eu procuro
alguém. Eu não procuro alguém faz muito tempo. Talvez
seja por isso que estou me abrindo contigo agora. Falando
pelos cotovelos, dizendo coisas que sei lá, nem me dava
conta de que pensava... Mas penso, tanto é que estou
falando, não é? Calma, não vá ainda. Eu ainda não terminei.
As pessoas acham que porque eu mato centenas de
milhares de animais por ano eu não tenho sentimentos. Eu
tenho. Eu tenho sim, como qualquer pessoa. Eu sofro
também, não sou uma máquina. No meu trabalho obrigam
a gente a se tratar com psicólogos como você todos os
meses. Eu conto tudo. Não escondo nada. Também pra não
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fiquem pensando que a gente enlouquece ao ver tanto
sangue. Eles têm medo que a gente perca a sensibilidade.
Mas não eu. Eu separo muito bem as coisas. Eu sou
sozinha, é verdade, mas isso não quer dizer que eu não seja
capaz de amar. É como se eles achassem que a qualquer
momento eu vou pegar a faca e cortar a garganta de
alguém. Eu já falei, eu só mato galinhas. Elas não
representam nada. Matar uma pessoa, um homem, como
você, seria como matar um frango. Eu não conseguiria,
entende? Eu jamais mataria um frango, e nem um homem
como você. Os frangos têm algo de nobre que me dá pena,
já te falei isso, não é? (pausa) Mas espere mais um pouco.
Não, não vá embora tão cedo. Eu estou tão sozinha, por
favor, não me deixe. Eu contei minha vida toda pra você,
por favor, fique comigo. (pausa) Você é muito menos que
um frango!
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5.
Romualdo Ângelo
Sim, eu fiz. Tatuei o nome do meu marido na bunda. Não
bem na bunda, um pouco acima, no cóccix. Ali, todo mundo
sabe onde é. Não, não sei bem ao certo por que. Na época
achei que era uma demonstração de amor bem legal.
Achava que ele ao me pegar por trás sempre ia pensar que
eu era mesmo a mulher dele. Romualdo Ângelo. Achei que
não ficaria bem colocar sobrenomes. Iria parecer um cinto,
sei lá, com todos aqueles silva e souza. Melhor só os dois
prenomes mesmo. Romualdo Ângelo. Em letras grandes,
como uma manchete de jornal. Depois, quando já não
estávamos mais juntos, mas eu ainda tinha esperança de
voltar pra ele, achava que todo homem que me pegava por
trás, ao ver aqueles dois nomes cheios de “as” tônicos,
Romualdo Ângelo, iria saber imediatamente: essa mulher
tem dono. Se fosse assim, né? Se bastasse a gente escrever
33
o nome de quem a gente gosta na pele para que o amor
nunca acabasse... Deveria ser assim. Que o amor durasse
enquanto durassem as tatuagens. Mas não é. E agora cada
vez que me olho no espelho, de costas, eu vejo o quanto eu
amei Romualdo Ângelo. Louco, não é? A gente faz cada
idiotice quando ama. E a pior delas é demonstrar nosso
amor. Deveria vir no manual de instruções do amor, caso
ele tivesse algum, que para maior durabilidade do produto
todas as demonstrações de amor deveriam ser com
moderação, aliás, com absoluta moderação. É o que eu
acho, pelo menos. E cada vez que me olho de costas tenho
mais certeza disso. Não é apenas porque a grana dos
presentes não volta, o tempo de espera não volta, e as
tatuagens são para sempre, ou quase. É porque de fato,
sejamos francos, não damos valor ao que achamos que não
vamos perder. Quando a gente fica ouvindo todo dia eu te
amo, duas coisas podem acontecer: ou enchemos o saco
dessa merda, ou encaramos isso como uma coisa tão usual
como um bom dia, como vai? É sério. Qual a graça em ser
amado incondicionalmente? Isso só funciona com pais e
filhos, e ainda assim às vezes dá merda. Quando a gente
ouve ‘eu te amo’ todo dia a gente pensa que pode fazer
qualquer coisa e ser perdoada, porque na verdade a pessoa
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nos ama tanto que não pode mais viver sem a gente. Nem
sempre é verdade, nem todas as pessoas pensam como eu,
mas falando por mim, é bem isso mesmo. Eu penso no
Romualdo. Todo dia me comendo e vendo seu nome na
minha bunda. Me segurando pelas nádegas, lendo e
relendo, Romualdo Ângelo, Romualdo Ângelo, Romualdo
Ângelo, isso enquanto resfolegava em minhas costas,
enquanto gozava em mim, murmurando o próprio nome
repetidas e repetidas vezes, Romualdo Ângelo, Romualdo
Ângelo, Romualdo Ângelo... Essa mulher é minha, é o que
ele deveria pensar. E eu era mesmo. Me considerava dele.
Queria ser dele a todo custo. Mas e ele? A merda é que eu
nunca soube se ele me queria pra si de verdade. A gente
enjoa de nossos brinquedos. Podemos sonhar a vida inteira
com a boneca cara da vitrine e esquecer completamente
das que temos em nossas prateleiras. O Romualdo por
exemplo. Acho que ele nunca me disse, assim com todas as
letras, na cara, olho no olho, que me amava. E eu implorava
por isso às vezes. Diz que ama! Diz que me ama, por favor.
Pelo amor de Deus, diz que me ama seu desgraçado! E ele
nada. Se limitava a sorrir. Desviava o assunto e dizia que
eram claros os seus sentimentos. Os seus sentimentos! Era
tão difícil assim dizer eu te amo, seu filho da puta! E eu me
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esfalfava tentando fazer aquele desgraçado manifestar
qualquer tipo de afeto. Não precisava muito. E como ele
não dava nada, ou quase nada, esse quase nada valia
muito. Às vezes bastava um sorriso de satisfação depois de
trepar comigo para me encher de alegria. Ele me ama, eu
pensava depois que ele gozava. E até hoje eu não sei se ele
amava mesmo ou se era coisa da minha cabeça. E é por isso
que até hoje eu não paro de pensar nesse filho da puta.
Com o tempo eu já não era mais tão louca por ele, mas a
fixação em fazer com que ele me amasse fazia com que
cada vez mais eu implorasse por seu amor. Me pergunto se
ao invés de parecer frio como uma rocha quando se tratava
de alimentar o meu amor, ele me dissesse todos os dias
que me amava, se eu continuaria o amando tanto assim
quando estávamos juntos? Não consigo imaginar uma
resposta. Como vou saber sobre o que poderia ser? Não
tenho perspectiva para saber qual seria minha reação.
Talvez eu o tivesse deixado. Talvez eu pensasse que depois
de tanto esforço, de tanta labuta para conseguir o mínimo
de retribuição a tudo o que eu fazia para demonstrar o meu
afeto, quando ele até que enfim dissesse: eu te amo; aí
talvez eu achasse que nada daquilo tudo tivesse valido à
pena, que tinha desperdiçado meu tempo, e que de fato,
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era tudo um horrível engano da minha parte, e que na
verdade eu o odiava profundamente. Podia ser, não é? Mas
como vou saber. Estou aprisionada pela dúvida. É por isso
que eu digo: toda demonstração de amor é uma merda!
Quer ser amada? Nunca diga que ama. Amantes perfeitos:
duas almas encarceradas no silêncio e na dúvida. É o único
remédio para o amor saudável, não demonstrar. Se o amor
fosse um bicho, e estivesse numa jaula, deveria ter bem
grande numa placa: “Cuidado, morre ao ser alimentado”.
Essa é minha experiência. É disso que sei. Depois do
Romualdo eu tive outros. Vários outros que cada vez que
me pegavam de jeito liam e reliam incansavelmente a
infame frase, Romualdo Ângelo, Romualdo Ângelo... E
todos eles uns amores, diziam que eu era gostosa, uns que
gostavam de mim, e um ou outro que me amava. Ninguém
nunca me deixou tão na dúvida quanto Romualdo. E talvez
seja por isso que eu sequer me recordo de seus nomes.
Quanto ao Romualdo, que eu nunca esqueci, casou o filho
da puta. Casou com uma megera, que engordou como uma
vaca depois do segundo filho. E eu sei, porque toda mulher
que se preza sempre sabe da vida dos homens que as
abandonam, ele apanha da mulher. O Romualdo, que eu
amava por ser um homem de verdade, macho e misterioso,
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que nunca se deixava dominar, apanha da mulher. E
engordou como um boi também. Um boi pronto para o
abate. (pausa) Meu deus, como está gordo aquele homem.
Era tão altivo, tão orgulhoso, e hoje parece um ruminante,
de cabeça baixa, pastando à sombra da mulher. Eu garanto
que ele diz todo dia pra ela: eu te amo, eu te amo... E ela,
eu poderia apostar nisso, deve sempre dizer que ele não
presta, que é um gordo nojento, que trepa mal, se é que
eles trepam, e que a pior coisa que fez na vida foi casar com
ele. Ele engordou, ficou feio, velho antes do tempo,
cansado, infeliz. Não, não fico feliz com isso. Um pouquinho
só, vá lá, também não sou santa. Mas é uma coisa triste. Eu
ainda penso às vezes em salvá‐lo desse inferno. Gostaria
que ainda uma última vez ele pudesse ler em minhas costas
o seu nome escrito. Uma tatuagem assim como ele,
desbotada, desgastada pelo tempo, ferida, apagada. Gosto
de pensar que foi o envelhecer da tatuagem que o deixou
assim. De que se ele tivesse ficado comigo, e eu tivesse
alimentado o nosso amor retocando a tinta daquelas
palavras em minha pele, ele ainda seria jovem e bonito,
misterioso e sem amor para demonstrar. Mas isso não vai
acontecer. Hoje estou aqui para resolver isso. Uma enorme
mancha negra, como uma nuvem de tempestade. É isso
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que eu quero no lugar dessas palavras horríveis que me
fizeram sofrer tanto, e que você há tanto tempo tatuou em
mim. E eu tanto que quis ser amada, ou enganada de que
era amada. Então, depois de relembrar e te contar assim
como quem se confessa o horror e o fracasso de minhas
demonstrações de amor, eu quero que essas duas palavras,
essas duas horríveis palavras que tanto marcaram minha
vida e meu corpo, por tempo demais e inutilmente, eu as
quero encobertas por uma nuvem de esquecimento, um
nuvem negra, com raios e alguma chuva, para que se
apague para sempre esse homem de minha vida, e esse
nome, que a tinta e sangue, eu nunca consegui esquecer,
Romualdo Ângelo. (ruído de caneta tatuadora).
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6.
Cuidado para não se apaixonar
Duas cadeiras, uma para a atriz e outra para a espectadora.
Cuidado para não se apaixonar por mim, você me disse.
Que diabo de frase é essa? Não entendo o que quer dizer?
Que você não presta? Que é perigoso gostar de você? Pra
quê isso? Devo agora ter medo de me aproximar porque
você vai me fazer mal, decepcionar, trair, o quê? Não
entendo. Do que é que devo ter medo? Não precisa vir com
essas desculpas. Basta dizer, não gosto de você! Ou, até te
acho legal, mas não pra mim. É mais honesto dizer isso. E
menos dolorido também. Eu até tento entender. Nós já
tivemos tantos amores desfeitos, tanta gente já nos usou
como um capacho, como algo descartável, como um
produto com preço, que temos medo, eu sei. O que fazer?
Viver só enquanto o medo de sofrer nos dilacera
continuamente até uma velhice solitária? Basta dizer eu
não te quero. É o suficiente. Agora, recusar o meu amor
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com a desculpa de me proteger é muita falta de afeto, é
como tentar me proteger do seu desprezo. Não há
proteção pra isso. “Cuidado para não se apaixonar por
mim!” Não entendo. O que você quer dizer? É mais fácil
pensar que o que você quer que eu tenha é coragem para
me apaixonar por você, e por isso devo tomar cuidado. Mas
acho que nem eu nem você precisamos desses avisos. Que
o amor é perigoso nós já temos experiência de sobra. Que é
preciso coragem para amar já é um lugar comum. Será que
não sabemos disso o suficiente ainda? Sim, eu tenho medo
também. Tenho medo de te perder ao dar um passo
adiante. Aí sim, talvez possamos justificar o seu “cuidado
para não se apaixonar”. Sim, eu tenho medo de te perder.
Tenho medo de forçar a barra, de ser inconveniente, de ser
chata... Mas tenho mais medo de que você se apaixone por
outra pessoa antes que eu possa te dizer que eu tenho
coragem de me apaixonar por ti. Eu tenho mais medo disso.
Li há pouco, não sei onde, que não devemos esperar nada
do amor. Que a esperança do amor só nos faz sofrer, que é
a expectativa que nos destrói. Começo a achar que é a mais
pura verdade, mas eu não consigo não ter expectativas. Eu
não consigo não esperar te beijar cada vez que nos
encontramos. Eu não consigo. Eu sei que seria mais fácil
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deixar o barco correr e ir vivendo como se o fluxo de nosso
rio fosse desaguar num mar tranqüilo. Mas cada vez que te
vejo é como se as águas desse rio se transformassem em
uma corredeira perigosíssima, destruindo nas pedras e
cachoeiras de meu peito esse pequeno barco que nos leva.
Sim, eu agradeço teu aviso, mas ele é inútil. É como dizer
cuidado com o ar! Não há alternativa, entende? Não tenho
como evitar o risco. Outro dia você me disse que somos
apenas amigas. E ainda me fez confirmar dizendo, não é
verdade que ainda somos amigas? É claro que somos. Ou
você acha que não há amizade no amor? Que amantes não
são amigos, que um casal não pode ser amigo? Sim, somos
amigas, se é o que você quer saber. Somos amigas tanto
quanto éramos quando caminhávamos de mãos dadas, sem
ressalvas pelo o que os outros iam pensar, ou pelo que nós
mesmas iríamos pensar. Onde foi parar aquela época em
que éramos amigas de caminhar de mãos dadas? E hoje,
que você me cumprimenta a distância, quase com um
aceno, como se fôssemos estranhas, onde está nossa
amizade? Escondida atrás do medo de se apaixonar? Sim,
somos amigas. Somos amigas de um tipo de amizade cuja
ressalva em se apaixonar poderia por tudo a perder, caso
não fôssemos tão fiéis uma a outra. (pausa) Falando nisso,
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você nunca mais me beijou. Para não confundirmos as
coisas, você me disse. Pois não funcionou. Agora é que tudo
se tornou confuso. Eu não sei o que pensar. Eu não sei o
que fazer. Era para esse perigo que você me alertava? Não
funcionou. Eu estava tranqüila como um lago silencioso. E
agora, com essa amizade distante e misteriosa, repleta de
ressalvas e indefinições, de perigosas possibilidades e
palavras que não devem ser ditas, me sinto em meio a uma
tempestade no mar, me afogando em mim mesma. Como
lidar com isso? Como lidar com o afogamento iminente de
nossa relação? Eu gostaria tanto de nadar até a margem
contigo, e nos salvarmos, e nos deitarmos na praia,
exaustas, mas vivas, e nos beijaríamos pela alegria de
termos sobrevivido, de ainda estarmos juntas após uma
tempestade que poderia ter nos matado. Mas para isso é
preciso ter coragem de se jogar no mar. De mergulhar até
quase perder o fôlego, e confiar que caso a superfície não
esteja tão perto, não estamos sozinhas no fundo do
oceano. Você seria capaz? Não apenas de mergulhar, mas
de olhar para o lado e confiar em mim? De confiar em nós?
Não sei se você tem coragem. Você seria capaz? O mundo é
tão cheio de reviravoltas, de acasos, de coisas sobre as
quais não se pode ter o mínimo de certeza... Viver é um
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risco grande demais para escolher. Deve ser por isso que
não temos escolha. Podemos até escolher não continuar a
viver, mas não a viver sem riscos. Tudo pode acontecer, e
isso dá medo. Agora resta escolher se continuaremos tendo
medo dos riscos imaginários ou do perigo real e iminente
que nos encontra de frente todos os dias. É desse perigo de
todos os dias que tenho medo. Não adianta fugir, é
inevitável. Somos obrigadas a escolher, e ter medo de
nossas escolhas é como temer o que ainda não aconteceu,
e não temos sequer idéia do que vai ser. O futuro
certamente nos oferecerá sua alegria ou horror não
importa o medo que tenhamos, a fuga que planejemos, a
escolha que fizermos. Nunca iremos saber, e isso é
apavorante, não é? Tão apavorante quanto inevitável. Não
posso dizer se seremos felizes, nem se ficaremos juntas por
toda vida. (pausa) Ficar juntas por toda vida. Isso me soa
tão fantasioso como um conto de fadas, mas como eu
gostaria de acreditar. Você entende? Não há garantias,
nunca haverá garantias, seja comigo ou com qualquer
pessoa. É mais uma expectativa infundada, que pode ou
não se concretizar. E nunca saberemos a não ser se
tivermos coragem de correr o risco. Você acha o quê? Que
eu tenho medo de me apaixonar por você? É óbvio que eu
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teria, caso já não estivesse apaixonada. É óbvio que teria,
tanto quanto teria medo de mergulhar em águas
profundas. Mas se não tivéssemos esperança de voltar à
superfície em segurança, jamais afundaríamos a cabeça
sequer no raso daquelas praias onde tantas vezes
mergulhamos. Não posso permitir que você tente me
proteger de minhas próprias decisões, de meus próprios
sentimentos. Você não tem nem esse direito e nem esse
poder. Também não posso te proteger de meus erros. Não
sou perfeita, e nem conseguiria ser. Eu poderia até tentar
ser perfeita para você, mas sem meus defeitos será que eu
seria eu mesma? Não sei o que poderia acontecer. Não sei
o que acontecerá a partir de agora, mas quero que saiba
que apesar de assustada e com medo, eu sou capaz de ir
adiante. Eu sou capaz de ir além de teus avisos, de tuas
preocupações, de tuas inquietações, que são minhas
também. Eu sou capaz até de ter cuidado, mas não de fugir
ao perigo. Sei que já enfrentamos coisas terríveis, já
choramos cada uma o seu amor perdido. Mas não podemos
nos resignar às lágrimas que já derramamos. E é por isso
que eu ainda não entendo o seu alerta, “cuidado para não
se apaixonar por mim”. É como se você não soubesse
quem somos. Como se fingisse não perceber que há muito
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mais em nossa amizade do que caberia em nossa singela
alegria de amigas. É como se você não soubesse de que eu
sou capaz de tudo por você, de que tenho tanta coragem
quanto um explorador submarino, e que não terei medo de
ir até o fundo de nossas expectativas. É como se você não
soubesse que te quero com todo meu fôlego, com toda
minha coragem. É como se você nunca tivesse desconfiado
dessa verdade evidente e escancarada que é o meu amor. E
eu te amo, sua grande idiota.
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