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Eva Schuster/www.sxc.hu Eva Schuster/www.sxc.hu
rês homens mudaram a história da ciência, ganha- Darwin era um sujeito atormentado pela culpa. Aos 30
ram a pecha de iconoclastas e reinventaram o lu- anos de idade, formulou o modelo da seleção natural, mas
DARWIN gar da humanidade no universo.
Nicolau Copérnico desmentiu Aristóteles, tirou
a Terra do centro do mundo e nos colocou girando em torno
T não se cobriu de vaidades. Ao contrário. O ex-aluno de
Teologia em Cambridge guardou sua tese como um segre-
do pecaminoso por duas décadas.
de um sol. Charles Darwin desatou o nó que amarrava a Só comentou o assunto com amigos muito próximos e
diversidade dos seres vivos à generosidade divina e mos- silenciou sobre o espinhoso tema da evolução humana.
trou que animais descendem de outros animais. Sigmund “Seria como confessar um crime”, desabafou o naturalis-
Freud olhou para as fragilidades humanas, mostrou que ta, nascido numa aristocrática família britânica. Casado
dominamos apenas parte de nossos pensamentos e que a com uma devota da Bíblia, Darwin viveu em uma época
razão não alcança zonas sombrias da mente. turbulenta na sociedade europeia, mas não se envolveu
Em comum, as três teorias libertaram a ciência de ve- em política.
lhas crenças e abriram um labirinto de possibilidades para Quando o pai do comunismo, Karl Marx, ofereceu de-
a pesquisa científica. Para homenagear os 200 anos de dicar-lhe O Capital, Charles Darwin declinou. Não era, no
Charles Darwin, a Revista DARCY publica um dossiê com entanto, um cientista alienado. Durante a viagem de quatro
26 páginas sobre esse inglês inquieto que passou a infân- anos e nove meses ao redor do mundo, citada por Darwin
cia colecionando insetos e que na juventude se aventurou como decisiva para a formulação de sua teoria, o natura-
por terras brasileiras. lista se horrorizou com a barbárie da escravidão no Rio de
Repórteres e articulistas da DARCY apresentam bem Janeiro, e escreveu:
mais do que uma revisão da vida e obra de Darwin. Em – Ali todo o trabalho é feito por negros. Eles carregam
matérias e artigos, eles mostram a herança darwinista em tudo e cambaleiam sob pesados fardos. Nunca mais irei
laboratórios e salas de aula da Universidade de Brasília e visitar um país escravocrata.
refletem sobre as encruzilhadas das teses evolucionistas. Nas páginas seguintes, uma visita ao mundo darwinista.
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DOSSIÊ
uando o navio HMS Beagle zarpou da cidade de Criado em uma família próspera e religiosa, Darwin ti- bolo da teoria da evolução.
Plymouth, na Inglaterra, em dezembro de 1831, a nha muito interesse por plantas e animais. Aos 15 anos, Do Brasil, Charles Darwin conservou imagens fascinan-
história que o mundo conhecia era a de que Deus ao encontrar três besouros raros na casca de uma árvore, tes de paisagens, mas sentiu-se agredido com as cenas de
havia inventado os animais. Cada espécie com colocou um deles na boca. O bicho soltou um líquido que escravidão que presenciou. Sobre esse assunto, teve uma
Q
um número limitado. E que, para ser justo, o Criador as queimou a língua de Darwin. acalorada discussão com FitzRoy, o capitão do Beagle.
distribuiu pelos continentes. O canguru foi mandado para Depois de conversar com negros diante de seus senhores,
a Oceania. A girafa e a zebra, para a África. A ema, a pre- AS PRIMEIRAS PERGUNTAS o capitão começou a dizer que eles gostavam de ser escra-
guiça e o macaco, para a América do Sul. Até mesmo os O Beagle saiu da Inglaterra com o objetivo de mapear o vizados. Darwin questionou: “Você acha que eles respon-
cientistas acreditavam nessa versão. Mas Charles Darwin, litoral da América do Sul. Planejada para durar dois anos, deriam outra coisa em frente ao dono?”
um estudante de Teologia de 22 anos, iria duvidar dela. a viagem se estendeu por quase cinco. A expedição pas- Na expedição, o ímpeto colecionador de Darwin veio à
Darwin não havia feito nada de muito importante até sou também por outros dois continentes, Austrália e África. tona. Ele retornou com uma bagagem de 1.500 carcaças
aceitar o convite de Robert FitzRoy, o capitão do HMS Muitos terrenos nunca haviam sido visitados. de animais, insetos e amostras de plantas preservadas em
Beagle, para viajar à América do Sul. Àquela época, era Em setembro de 1832, o navio ancorou na Baía Blanca, vinho. Outras 3.500 estavam descritas em suas caderne-
costume levar um intelectual como companhia em viagens na Argentina, a 650 quilômetros de Buenos Aires. O Beagle tas. “Sua maneira analítica de pensar, combinada com a
longas, assim o comandante tinha com quem conversar ficaria ali cerca de 30 dias, tempo suficiente para que organização de suas anotações e uma memória excepcio-
durante o jantar. A expedição científica do Beagle seria Charles Darwin começasse a juntar as primeiras informa- nal para detalhes foram elementos importantes para seu
uma vivência única para um rapaz ainda indeciso quanto ções que, anos depois, o ajudariam a formular a teoria da sucesso”, afirma Richard Keynes, bisneto de Darwin e au-
a sua carreira. evolução. Ele passava o dia observando o comportamento tor de um dos livros sobre a viagem do Beagle.
Antes de estudar Teologia, Darwin iniciou Medicina, na dos animais ou escavando a procura de fósseis. À noite, Darwin desceu do Beagle em 2 de outubro de 1836, no
Universidade de Edimburgo, e Direito, em Cambridge. Não registrava detalhes no seu diário. porto da cidade de Falmouth. De volta à terra firme, colo-
concluiu nenhum dos cursos, mas aproveitou a eferves- Nos pampas argentinos, encontrou ossadas de mamí- cou espécimes e anotações à disposição dos mais impor-
cência cultural de dois dos maiores centros de saber da feros gigantes, extintos há mais de 11 mil anos. Entre eles, tantes cientistas de seu tempo. Ele tinha agora duas certe-
Europa. No intervalo das aulas, frequentava clubes de ci- o de uma preguiça do tamanho de um elefante. Também zas: não seria mais pastor e dedicaria sua vida à ciência. E
ência e assistia a conferências sobre história natural. Pelo achou ossos de um bicho muito parecido com um tatu, mas uma forte intuição: tudo que está sobre a Terra de alguma
resto da vida, manteria as amizades que fez no período. bem maior. As semelhanças entre aqueles esqueletos e os maneira está relacionado.
Charles Darwin nasceu na cidade de Shrewsbury, no in- animais que conheceria pelo caminho chamaram a aten-
terior da Inglaterra, em 12 de fevereiro de 1809. Era o quinto ção de Darwin. TRAGÉDIAS NA VIDA FAMILIAR
filho de um médico e de uma dona de casa. Desde menino, As evidências de parentesco entre os animais se torna- Somente aos 30 anos, depois que o pai lhe garantiu uma
gostava de fazer listas e organizar coisas. Aos oito anos, ram mais fortes a cada parada da viagem. Quando chegou pensão para manter seus estudos, ele resolveu se casar.
tinha coleções de conchas, pedras, selos postais, lacres às ilhas Galápagos, em 1835, perto da costa do Equador, A escolhida foi Emma Wedgwood, uma prima que, aos 31
carimbados e moedas. “A paixão por colecionar coisas, que espantou-se com a diversidade de pássaros e levou vá- anos, estava prestes a alcançar o título de solteirona. Logo
leva o homem a ser um sistemático naturalista, ou antiquá- rios exemplares para casa. Já na Inglaterra, com a ajuda depois do casamento, em carta enviada ao marido, ela afir-
rio, ou apenas um avarento, era em mim muito forte e com do amigo e ornitólogo John Gould, Darwin perceberia que, mou que o interesse dele pela ciência estava afastando-o
certeza inata”, escreveu Darwin em uma das edições de A apesar de diferentes, eles pertenciam à mesma espécie. de Deus. O hábito dos cientistas de não acreditar em nada
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FRONTEIRAS DA CIÊNCIA
Pedro Simão/www.sxc.hu
ENTRE A NARRATIVA
E A EXPLICAÇÃO CIENTÍFICA
Ao pisar em terra
LUIZ GONZAGA MOTTA *
firme, Darwin tinha
duas certezas: não
arte da aceitação da teoria de Charles O antropólogo Roger Lewin, editor por dez anos
seria mais pastor e Darwin decorre de sua natureza narrativa. da revista Science, sistematizou as teorias narrati-
dedicaria sua vida Contar histórias seduz e convence. A teoria vas da evolução humana citando biólogos e pale-
demonstra cientificamente que os seres vi- ontólogos. Ele menciona quatro grandes momentos
à ciência. Também A força e a
Pvos produzem uma história e que essa história pode que marcam inflexões da evolução humana: das ár-
tinha uma forte ser contada. Afirmação simpática para leigos, mas vores para o homem bípede, daí à encefalização, e
elegância não para cientistas. Eles desconfiam das subjetivi- por último, a civilização (não necessariamente nessa
intuição: tudo que científicas dades que a narrativa pode introduzir no raciocínio ordem). Algumas dessas etapas duram milhões de
está sobre Terra objetivo da ciência. anos. Essas teorias têm em comum uma ordenação
da teoria Argumento que a força e a elegância científicas de eventos numa sucessão temporal.
de alguma maneira darwiniana da teoria darwiniana decorrem dos encadeamentos A evolução humana não é um “programa” de me-
está relacionado e seqüências temporais que ela sugere. O conceito lhoramento, nem a teoria da evolução tem compro-
decorrem do de seleção natural tem extraordinário poder para ex- missos com a idéia de progresso. Menos ainda, com
Viagem exploratória: a expedição passou pelo encadeamento plicar mudanças adaptativas: as adaptações ocor- rumos teleológicos. Mas a palavra evolução denota
Brasil, Argentina, Chile, Austrália e África. rem numa progressão, rumo a um porvir. Seu relato um ciclo que vai de um estado a outro, diferente do
Também esteve nas Ilhas Galápagos que ela sugere. compõe o enredo de uma história, essência da nar- anterior. Sugere uma idéia antropocêntrica de de-
As adaptações rativa. Mas, atenção: não é a seleção das espécies, senvolvimento: o ser humano estaria hoje em um es-
mas a narrativa sobre ela que tem uma direção. tado mais avançado que há milhares de anos. Lewin
ocorrem em A explicação narrativa não é atraente só porque observa que mesmos cientistas rigorosos não con-
produção, organiza uma síntese compreensiva. O filósofo fran- seguem evitar certo entusiasmo ao explicar a evo-
cês Paul Ricouer observa que a narrativa se estrutu- lução humana.
rumo a um ra a partir de um pólo magnético (o final da história), Do ponto de vista da explicação científica, a te-
O casal teve dez filhos. Ele gostava de sua rança e a cautela e, desta maneira, atrasava Ao contrário do que se podia imaginar, o ar- destino. Isso é que orienta o enredo. A evolução das espécies não oria da evolução humana tornou-se mais comedi-
vida familiar na cidade de Downe, povoado ru- a divulgação da obra que mudaria completa- tigo causou pouco alvoroço. Somente um ano tem fim, mas a narrativa sobre ela parte de um final da e conservadora. Arrefeceu o tom triunfalista do
ral próximo a Londres. “Quando todos estão mente os rumos da Biologia. depois, quando o livro A Origem das Espécies
a essência da imaginário da história. Prosseguimos rumo a algum inevitável progresso humano. Convenceu-se que
em casa, nenhum grupo pode ser mais agradá- foi publicado, a evolução dos animais come- narrativa ponto finito abstrato. Independente do caráter real ou as transformações do Homo sapiens não necessa-
vel”, afirmou em sua autobiografia. Contudo, O ENVELOPE DE WALLACE çou a ser aceita na sociedade. Àquela altura, fictício da narrativa, esse destino (não da evolução riamente apontam para o avanço civilizatório. Mas,
tragédias familiares contribuíram para que ele Talvez Darwin jamais publicasse suas con- o próprio Wallace passou a se referir à teoria das espécies, mas da narrativa sobre ela) nos impul- ao mesmo tempo, não consegue evitar certo orgulho
se afastasse ainda mais da Igreja Anglicana. clusões não fosse um inesperado pacote que como “darwinismo”. siona a prosseguir. A explicação está na costura da pelas conquistas da humanidade, espécie única, sin-
Mary, sua terceira filha, morreu ainda bebê, e chegou a sua casa pelo correio no verão de Como o livro de Darwin era extremamente trama e reforça a atenção do ouvinte ou leitor. gular. A narrativa evolutiva, diz Lewin, continua uma
Charles, o mais novo, com dois anos. 1858. Era uma carta de um jovem naturalista detalhado e rico em exemplos, Wallace ficou Ernest Mayr, conceituado biólogo evolucionis- hipótese sedutora para a pesquisa sobre a evolução,
Mas foi a morte de Annie, a segunda filha, chamado Alfred Russel Wallace, que morava em segundo plano. A obra foi bem recebida ta falecido em 2005, afirma que Darwin fundou um principalmente a humana.
que mais o abalou. Ela faleceu em 1851, aos do outro lado do mundo, na Malásia, sudeste nos círculos científicos. Mas nem por isso o novo ramo da biologia, a biologia evolutiva. O adje- Seria injusto cobrar neutralidade absoluta aos bi-
dez anos, após sofrer durante meses de uma asiático. Ele pedia a opinião de Darwin sobre autor foi poupado por seus contemporâneos. tivo qualifica a teoria e remete a uma seqüência de ólogos e paleontólogos evolucionistas. Eles contam
doença no estômago. Em desabafo a amigos um artigo que escrevera falando da variação Na época, Darwin foi alvo de charges e piadas eventos, cerne da teoria narrativa. Há narrativa sem- uma história na qual eles próprios se encontram, e
filósofos, disse que abandonou a religião na- das espécies e de uma teoria muito parecida que o comparavam a um macaco. Depois de A pre que houver um devir cronológico, passagem de a relatam a partir de um ponto de vista humano. Ri-
quele momento. com a seleção natural. Origem das Espécies, ele publicou outras nove um estado a outro, como na evolução. Mayr observa coeur chama isso de “radical condição histórica dos
Ao deixar a Igreja, Darwin começou a criar “Se Wallace tivesse em mãos meu manus- obras em que explicava suas ideias. que a biologia evolutiva é uma ciência histórica, uma seres humanos”. Cientistas pertencem, como todos
coragem para divulgar sua teoria. O naturalis- crito de 1842, não poderia ter feito um resumo Darwin morreu de insuficiência cardíaca na Nesta coluna, narrativa convalidada por evidências empíricas. nós, a esta espécie que produz cada vez mais co-
ta havia mantido suas descobertas em segre- melhor”, afirmou Darwin, que mantinha seus tarde de 19 de abril de 1882, rodeado pela mu- Gonzaga Motta vai É narrativa, mas continua ciência. Afirmar isso não nhecimento e domínio sobre a natureza. Simultane-
do por mais de 20 anos. “Ele sabia que teria estudos guardados na gaveta. A espantosa lher e por três filhos, em Downehouse. O na- discutir a ética e a é pejorativo, não desmerece o caráter científico. Ao amente, contam cada vez mais peripécias e histórias
uma oposição muito grande do mundo em que coincidência deixou Darwin em uma saia justa. turalista sucumbiu à doença misteriosa que o interdisciplinaridade contrário, historiadores respeitados como Paul Veyne sobre o drama de nossa existência. Que assim pros-
vivia, suas ideias chocariam seus contempo- Se publicasse às pressas seu estudo não esta- acompanhava desde jovem. Uma das hipóte- do saber científico argumentam que a narrativa é explicativa por si mes- sigam. É a nossa história. Como seres humanos, nos
râneos”, afirma Paulo Abrantes, professor do ria sendo honesto com o colega. Contudo, se o ses é que, durante a viagem à América do Sul, a cada edição da ma, por sua capacidade de ordenar a realidade física contamos continuamente histórias reais ou fictícias,
Departamento de Filosofia da UnB. deixasse publicar o artigo, perderia o prestígio ele tenha sido picado pelo mosquito transmis- Revista DARCY. em sínteses compreensíveis. Daí sua força cognitiva. porque a vida humana vale a pena ser contada.
Darwin sabia que, sem uma base empírica de ser o primeiro a apresentar os mecanismos sor da doença de Chagas. A aventura do Bea-
sólida, não conseguiria a aceitação do meio da evolução animal. A solução foi eles assina- gle, que determinou sua vida, estaria presente
científico. O cientista oscilava entre a insegu- rem o artigo juntos. no momento final do grande naturalista. *Jornalista, professor da Universidade de Brasília e editor da Revista Darcy
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O MUNDO NO TEMPO DE... Nº1 ANO I Darwin chegou ao mundo em 19 de feverei-
ro de 1809. Àquela altura o Rio de Janeiro se
A cada edição, DARCY desdobrava para passar de uma mera cidade
fará um passeio pela colonial com 40 mil habitantes à sede do im-
história na coluna O pério português.
mundo no tempo de... O Rio que acolheu a corte tinha apenas 46
ruas de terra e uma montanha de problemas
fundados na ignorância imposta pelos próprios
colonizadores. A Coroa não permitia a cons-
trução de universidades nem de fábricas. Tam-
bém não aceitava o funcionamento de bancos,
de correios e muito menos da imprensa.
A transferência do centro do poder para o
Brasil impôs mudanças modernizadoras como
a criação do Banco do Brasil e do Jardim Botâ-
nico. Também permitiu o funcionamento do pri-
meiro jornal impresso no país, A Gazeta do Rio
de Janeiro. Funcionamento em termos: sofria
censura de notícias contrárias ao governo. A Revolução Industrial começava a mostrar sua face perversa. O lucro das fábricas estava apoiado em
Charles Darwin foi concebido no mesmo ano em que a família real O ápice das transformações ocorreu em condições desumanas de trabalho. Nas cidades, os proletários começaram a exigir direitos
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DOSSIÊ
O QUEBRA-CABEÇA DA
Enfim uma luz brilhou e estou quase convencido – contrariando por completo
minha opinião inicial – de que as espécies não são imutáveis
EVOLUÇÃO C. DARWIN
CAMILA RABELO
Repórter - Revista DARCY
O fóssil Ida:
fêmea primata é mais linhagem mais antiga de formigas Os 1.250 exemplares do livro descreveram a Doutor na área de Filosofia da Biologia, seu criado por Deus, seres com alma”, destaca
um capítulo da história
da vida na Terra foi encontrada na Amazônia bra- variabilidade e a luta dos animais pela sobre- interesse pelas questões que cercam a origem Maria Luiza Gastal, professora do Núcleo
sileira, em setembro de 2008. Elas vivência em um momento em que a sociedade da vida começou ainda na graduação, durante de Educação Científica da Universidade de
sobrevivem a 28km de Manaus e inglesa estava mais propícia a aceitar a ideia a iniciação científica. Brasília. Desde que ingressou na UnB, em
apresentam características completamente de competição na natureza. O liberalismo eco- Darwin ousou com a publicação do livro, 2002, ela pesquisa a história da teoria evo-
diferentes das outras formigas registradas. nômico, que começou a ser difundido meio sé- mas manteve cautela. Ciente do impacto de lutiva, com particular interesse na influência
São insetos cegos, subterrâneos e dotados culo antes da publicação da obra, apoiava-se sua teoria, reservou o assunto mais polêmico que Darwin exerceu no médico fundador da
de uma grande mandíbula. Cientistas calcu- na competição de mercado, apresentando as a outras obras. Em A Origem das Espécies, ele psicanálise, Sigmund Freud.
lam que pelo menos 120 milhões de anos os bases do capitalismo. Darwin lançou os fun- não faz referência à evolução do homem ao Grande parte dos argumentos descritos nos
distanciam das demais espécies existentes. damentos da Biologia moderna amparado por longo de 13 capítulos. No 14º, o último, no en- 14 capítulos surgiu de observações realizadas
O parentesco que une as formigas primitivas uma nova conjuntura. tanto, deixa evidências de que o ser humano durante uma viagem que o naturalista fez ao
descobertas na floresta com aquelas que es- Pelo menos 20 estudiosos anteriores e con- é um animal como qualquer outro na árvore redor do mundo. Em 1831, aos 22 anos, Dar-
tão em qualquer jardim começou a ser desven- temporâneos a ele questionaram a ideia cria- da vida: “Luz será lançada sobre a origem do win embarcou no navio HMS Beagle. Retornou
dado em meados do século XIX num livro que cionista de que as espécies eram imutáveis. homem e sua história”, escreveu. à Inglaterra depois de cinco anos com 1.500
esgotou em apenas 24 horas. Charles Darwin, porém, foi o primeiro a reunir “Nessas linhas, ele indica que o homem carcaças de diferentes animais – muitos ainda
A primeira edição de A Origem das Espécies* um grande número de evidências e a apresen- também passou por transformações. Até desconhecidos – e um diário com anotações
foi publicada na Inglaterra, no dia 24 de no- tar um mecanismo que explicava a transfor- então, os estudiosos que falavam de evolu- sobre a fauna da América do Sul e Central, da
vembro de 1859. O país vivenciava o boom in- mação dos animais ao longo de milhares de ção colocavam o ser humano como divino, África, da Austrália e das Ilhas Coco, na Ásia.
dustrial – período de prosperidade econômica anos. A teoria da seleção natural esclarecia
aliado a um extenso crescimento urbano e às os passos para a evolução. Ao abordar o as-
primeiras conquistas trabalhistas – quando a sunto em linguagem simples e didática, o livro
obra chegou às livrarias do país. Ao defender cravou na ciência a certeza de um novo olhar Muitos estudiosos questionaram a ideia
que todos os animais descendiam de um an- sobre a vida no universo.
cestral comum, em meio a mudanças na es- “Deixamos de discutir se as espécies evo-
criacionista de que as espécies eram imutavéis.
trutura social e financeira, o naturalista britâ- luíam para abordar como elas evoluíam”, des- Darwin foi o primeiro a reunir um grande número
nico e autor do livro, Charles Darwin, negava taca Charbel Niño El-Hani, biólogo e profes-
o mais importante papel de Deus no mundo, o sor da disciplina Evolução do Pensamento
de evidências e a explicar a transformação dos
de criador do universo. Científico na Universidade Federal da Bahia. animais ao longo dos anos
* O título original do livro conhecido hoje como A Origem das Espécies é bem mais extenso: Sobre a Origem das Espécies
Através da Seleção Natural ou a Preservação de Raças Favorecidas na Luta pela Vida. Somente na sexta edição, em 1872, é
que o título da obra foi abreviado.
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AS BASES TEÓRICAS
Seleção natural
As variações nos animais afetam a sobrevivência. As
cores das asas das borboletas as ajudam a se esconder Animais carregam história
de predadores. Essas características são passadas para
as próximas gerações e, ao longo de milhares de anos, as Registros fósseis revelam animais que habitaram
populações se transformam. a Terra há milhões de anos. Um pterossauro
que viveu há 200 milhões de anos pertenceu ao
primeiro grupo de vertebrados que usou o voo
como meio de locomoção. Ele é o pai das aves.
Úmero Rádio
Ulna Metacarpos
Muito antes da publicação do livro, nenhum DARWIN NOS TEMPOS MODERNOS pulação e ela será passada às gerações se- Mais uma peça do quebra-cabeça da evolu- çaram a apresentar outras evidências sobre a se a pesquisas em Biologia Evolutiva há pelo
outro estudioso documentou tamanho reper- Foram necessários mais de 50 anos para a guintes. A variabilidade deixa de depender ção, que permanece incompleto. mudança climática. menos 16 anos. Para aprimorar seus conheci-
tório de espécies para sustentar a existência ciência compreender o que levava as espécies tanto da adaptação ao meio ambiente, como Sem evidências de que as transforma- Apesar dos avanços, pouco se sabe sobre mento na área, morou por um ano em Boston,
da evolução. Muitas lacunas, no entanto, fo- a se modificarem ao longo da história. Apenas acreditava Darwin. ções são sempre graduais, a Biologia entende a trajetória dos dinossauros e de tantos outros Estados Unidos, onde cursou o pós-doutorado
ram deixadas por Darwin. Em meados do sé- no início do século XX é que as leis desven- O gradualismo defendido pelo naturalis- que, por vezes, a evolução animal dá saltos animais extintos. Contudo, os cientistas não no Museu de História Natural da Universidade
culo XIX, pouco se sabia sobre os mecanismos dadas por Mendel causaram uma verdadeira ta também foi questionado. Para o autor de e as mudanças acontecem mais velozmente. duvidam da evolução. A descoberta do DNA, de Harvard, em 2003.
de hereditariedade e origem da variação. “Na revolução entre os cientistas. O grande marco A Origem das Espécies, as transformações Alterações significativas no meio ambiente, material genético praticamente universal, Na reconstituição da história das espécies,
verdade, esse foi um dos grandes méritos dele. foi em 1947, quando pesquisadores de diferen- ocorriam lentamente ao longo das gerações. catástrofes naturais ou mesmo mutações nos atesta a favor do grau de parentesco que une muitas perguntas ainda estão sem respostas.
Falar em evolução sem conhecer a genética”, tes partes do mundo sistematizaram os avan- Contudo, restava responder onde estavam as gametas – as células reprodutivas – podem todos os animais, como imaginava Darwin. Um dos grandes desafios atuais é qualificar
defende Maria Luiza. ços em genética em um argumento chamado inúmeras formas intermediárias que uniam os determinar o fim de espécies ou mudanças Mas o caminho exato das espécies ainda está o papel da adaptação ao meio ambiente na
Darwin morreu sem conhecer as desco- de Teoria Sintética. Era o início do movimento fósseis encontrados às espécies atuais. Os radicais em suas características. por ser traçado. transformação dos animais. Ainda não se sabe
bertas que complementaram a sua teoria. O conhecido como Neodarwinismo. elos perdidos estiveram no centro das indaga- Os estudos dos sistemas celulares abrem se o mecanismo colabora mais que as muta-
monge austríaco Gregor Mendel, considerado Com o domínio dos processos de herança ções científicas por muito tempo. Muitos deles ENIGMAS DA PRÉ-HISTÓRIA perspectivas para uma maior compreensão ções. Como relacionar esses dois processos?
o pai da Genética, deduziu a Matemática da genética, a seleção natural permanece como foram desvendados, mas não todos. Teorias modernas explicam o fim da era dos passos evolutivos. “A biologia molecular Como a seleção natural atua geneticamente?
hereditariedade ao analisar o cruzamento de um importante mecanismo da evolução. Mas Recentemente, pesquisadores divulgaram dos dinossauros 65 milhões de anos atrás por permitiu que vários genomas fossem sequen- Qual o papel do acaso na evolução? A teoria
ervilhas por volta de 1860. Contemporâneo de não o principal. Os cientistas descobriram o resultado de estudos sobre o fóssil Ida, uma uma mudança no clima. Um esfriamento de ciados. Eles integram uma base de dados que, proposta por Charles Darwin 150 anos atrás,
Darwin, Mendel conhecia a teoria do naturalis- que as mudanças nos animais resultavam jovem fêmea primata que viveu há 47 milhões 25°C para 15°C no planeta fez populações in- no futuro, ajudará a detalhar como foi a ár- que ainda hoje instiga cientistas e estimula
ta e tentou visitá-lo para apresentar seu estu- também de mutações e alterações no desen- de anos. Descoberta em 1983, na cidade de teiras serem extintas. Inicialmente, cientistas vore da vida”, reforça Rosana Tidon, coorde- pesquisas, esclareceu as perguntas funda-
do. Há relatos de que o trabalho do austríaco volvimento. Um desequilíbrio ou malformação Messel, na Alemanha, ela inaugura uma nova imaginavam que a queda de um asteróide ti- nadora do Laboratório de Biologia Evolutiva mentais da Biologia. Mas talvez sejam neces-
foi encontrado no escritório de Darwin, em um durante o crescimento embrionário pode in- espécie designada Darwinius massillae, em vesse causado o fim desses animais na Terra. da UnB. Curiosa sobre os caminhos da vida sários outros 150 anos para a ciência obter
envelope fechado. troduzir uma nova característica em uma po- homenagem ao bicentenário do naturalista. Estudos de vinte anos atrás, entretanto, come- ainda quando criança, a professora dedica- mais respostas.
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DOSSIÊ
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ARTIGO
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Guarino Colli
DOSSIÊ
Muitos outros fatos, ao que me
parece, podem ser explicados pela
nossa teoria
C. DARWIN
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