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Ideas y Valores

ISSN: 0120-0062
revideva_fchbog@unal.edu.co
Universidad Nacional de Colombia
Colombia

Py Murta de Almeida, Fábio


Agamben, G. Pilatos e Jesus . São Paulo: Boitempo, 2014.
Ideas y Valores, vol. LXV, núm. 161, agosto, 2016, pp. 379-382
Universidad Nacional de Colombia
Bogotá, Colombia

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=80946586019

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http://dx.doi.org/10.15446/ideasyvalores. impressão de que “os Evangelhos tentam


v65n161.57460 construir um personagem com psicologia
e com idiomatismos” (23). E é isto que
Agamben, G. Pilatos e Jesus. São leva Agamben a tomar de Nietzsche a
Paulo: Boitempo, 2014. afirmação de que Pilatos “talvez seja o
único ‘personagem’ dos Evangelhos” (23).
Giorgio Agamben é um autor que Outro texto que apresenta detalhes
passou pelas universidades, e hoje se sobre o processo de Jesus é o do evan-
dedica à atividade da escrita e da re- gelho de Nicodemos (texto apócrifo do
dação de periódicos. Entre os conceitos Novo Testamento). Agamben reconstrói
que acrescentou ao léxico acadêmico o ambiente do processo de forma mais
se encontram: biopolítica, homo sacer dramática, com foco na acareação entre
(Agamben 2004) e o aprofundamento os hebreus (acusadores) e Pilatos que, fora
das críticas na história das religiões de de si, (quase) abertamente se posiciona
Capitalismo como Religião (Agamben ao lado de Jesus. Assim, Agamben afirma
2006), de Walter Benjamin. O livro Pilatos que a lenda de Pilatos tem duas linhas de
e Jesus surpreendeu até o prefaciador da argumentação. A primeira, linha branca,
obra (ao deparar-se com a confissão do encontrada nos textos pseudo-epígrafos,
autor –Agamben) quando admite ter quando percebe a divindade de Jesus,
sido impelido a escrever, obrigando-se sendo forçado a crucificá-lo –caminho
a deixar (temporariamente) a redação reforçado pela tradição de Tertuliano.
de outros textos para deter-se na figura Nela, Pilatos é cristianizado sendo salvo
do prefeito da Judeia, entre 26-36 ec. A por uma voz e decapitado posteriormen-
produção se concentra no processo (krisis) te. O fruto dessa linha tem a forma de
de Jesus a Pilatos, persuadida pela tese de que Pilatos acaba “por ser santificado
que, naquele, há cruzamento do humano/ pela Igreja etíope e sua mulher festeja
divino e do histórico/não-histórico, os- (em 26 de outubro) na Igreja grega” (28).
cilando entre o humano e o juiz divino. A segunda lenda (a negra), contrasta
Por isso, o autor observa o cristia- com a branca pela fundamentação extra-
nismo como uma religião da história, bíblica, desenvolvendo-se pela tradição
quando enfeita os fatos históricos com de Filón (ou Filo) de Alexandria, citando
os mistérios. Nessa via, compreende a Pilatos como homem “inflexível, obstina-
krisis de Jesus como “um dos momentos do e cruel” (29). Ele procura Jesus como
chaves da humanidade” (22), defendida “um médico conhecido que cura todas
pelo cristianismo como o momento em as doenças somente com suas palavras”
que a eternidade atravessa a história. (29), levando-o a ser entregue ao prefei-
Além da krisis (isto é, o juízo processual), to pelos hebreus para morte por motivo
chama à atenção que o personagem de de inveja. Nesse conto, até se constrói a
Pilatos, nos evangelhos, aparece hesi- ideia de que Pilatos, por ter sido tão cruel,
tando, tergiversando, voltando atrás, teria tido uma forma endemoninhada.
repetindo palavras e enigmas. Por isso, a Portanto, lendas (tão) destoantes foram

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produzidas com o fim de compreender o “poder do alto” para lhe julgar, con-
comportamento enigmático de Pilatos. vencendo o prefeito de sua inocência.
Voltando ao julgamento: o termo grego Contudo, os hebreus insistiram pela não
krisis, além de significar “julgamento”, soltura. Dessa forma, entregou Jesus à
também apresenta relação medicinal, po- crucificação, agindo mais “como inter-
dendo ser percebido como o momento em mediário, árbitro, e não como juiz” (43).
que o médico avalia se seu paciente viverá Nesse ponto, a questão do reino deve ter
ou morrerá. A narração do julgamento sido pertinente, visto que Pilatos manda
no evangelho de João ganha caracterís- que se coloque sobre a cabeça de Jesus
ticas dramáticas, estilhaçando-o em sete na cruz o dito “Jesus nazareno, rei dos
cenas, cada qual com um lugar vivencial judeus”, referindo-se ao crime então co-
distinto. Na primeira cena, os sacerdotes metido (44). Por outro lado, uma surpresa
levam Jesus ao pretório, não querendo encontrada no livro de Agamben é a
que entre “para não contaminar-se an- utilização do conceito teológico de Karl
tes da refeição pascal” (35). Desenrola-se Barth, teólogo reformado suíço, de pare-
o julgamento quando Pilatos pergun- doken (“entrega”). O teólogo desenvolve
ta sobre a acusação à multidão (prática esta ideia a partir dos textos paulinos,
comum em um processo romano), e os assimilando que, na tradição cristã, a
hebreus respondem que seria um crime entrega cristológica aos hebreus: “aparece
de lesa-majestade, o qual tinha como pe- como uma execução da entrega divina”
nas previstas: ou a crucificação, ou exílio (46). Apesar de a terminologia “entrega”
ou a entrega às feras. No entremeio, após no NT carregar um sentido de ensino
interpelação inesperada de Pilatos, os com aparência de negativo, “há somente
evangelistas apontam que Jesus assumia uma autêntica tradição cristã: a da en-
que seu “reino não era desse mundo” (37), trega –por parte primeiramente do Pai,
ou seja, ele detinha uma condição régia. depois de Judas e dos hebreus– de Jesus
Para além disso, diante de Pilatos, Jesus à cruz, que aboliu e realizou todas as
teria argumentado, valendo-se da verdade, tradições” (48).
possibilitando a indagação do prefeito: “O Agamben entende que o papel do
que é a verdade?” (38). Isto representaria, prefeito da Judeia não estaria ligado à
para Agamben, uma pergunta entranhada “economia da salvação”. Antes, Pilatos
de ceticismo e ironia, uma demonstração é apresentado como personagem real
do embate de ambos, pois é quando se mediante um drama histórico. Se para
tem “duas verdades diferentes ou duas a concepção cristã a história torna-se
concepções diferentes de verdade” (38). execução da economia da salvação, nos
O dado mais intrigante seria o de que textos sagrados, Pilatos é “convencido
Pilatos, durante todo o processo, não de que um rei dos judeus é, de qualquer
profere uma sentença -apenas entrega o forma, politicamente problemático” (49).
acusado. Chega a levá-lo à flagelação (pas- Neste recorte, pode-se dizer que o jul-
so inicial da crucificação), castigando-o gamento de Jesus não foi somente um
a fim de colocá-lo em liberdade. processo jurídico, mas também um mis-
Para Agamben, o comportamento de tério repleto de ambiguidades peculiares:
Jesus foi o de indicar que Pilatos teria ocorrido sem formalidades oficiais, sem

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inscrição, sem acareação, sem o debulhar testemunho, “do agora, da verdade do


dos fatos e, principalmente, sem a conde- reino que não está aqui, significa aceitar
nação do réu –além de não poder ser um que o que queremos salvar nos julgue. É
julgamento romano, pois Jesus nem era isso por que o mundo, na sua caducida-
romano, tampouco sendo a práxis escu- de, não quer salvação, mas justiça” (63).
tar a vox populi (52). Com isso, Agamben Sobre isso, ainda escreve, no final do livro:
sinaliza que o que está em jogo é se o “E a quer (a justiça) porque justamente
texto bíblico seria um texto histórico não pede para ser salvo. Enquanto não
ou de natureza teológica apenas. Sobre salváveis, as criaturas julgam o eterno:
isso, Porfírio enumera que “os evange- esse é o paradoxo que, no fim, diante de
listas são inventores (epheurotas) e não Pilatos, tira a palavra de Jesus. Aqui está
historiadores (historas, “testemunhas”) a cruz, aqui está a história” (63).
dos eventos que concernem a Jesus” (53). No fim (chamado de “glosas”), o autor
Ainda no entendimento do autor, desenvolve o conceito de que Jesus acei-
Pilatos seria um personagem histórico tou submeter-se ao julgamento enquanto
exercendo uma função teológica, por Pilatos recusou-se a julgá-lo. Assim, o
que na “krisis há dois julgamentos, de julgamento de Jesus não poderia ser um
dois reinos que estão frente a frente sem “julgamento”, porque não houve sentença,
conseguir chegar à conclusão” (55). Outra nem tampouco seria um processo nos
indagação de Agamben se dirigiu ao por autos romanos, mas apenas tinha “aparên-
que de Jesus (“o que não julga”) dever ser cia de um processo” (67). Para o autor, o
submetido ao julgamento de um juiz, e seu importante sobre o processo e Jesus nos
reino eterno ser entregue ao julgamento evangelhos é que “aquele que veio para
terreno. Para responder ao questiona- cumprir a lei, aquele que foi mandado ao
mento, ele submete a resposta de Dante, mundo não para julgá-lo, mas para salvá-
ao assinar que a crucificação não é uma lo, deve submeter-se a um processo sem
pena, mas uma punição legítima, “im- julgamento” (69). Enfim, nas conclusões,
posta por um juiz ordinário que, sendo ele traz uma sinalização que simboliza os
representante de César, tinha jurisdição problemas e desconexões da krisis cristã,
sobre todo gênero humano, e que somente e a figura teológica complexa do prefeito
desse modo podia ser resgatado do pe- e do Christos: “Sem juízo, o divino em
cado” (57). Para Dante, Jesus Cristo foi sua frente condenou a humanidade a
obrigado a se submeter a Pilatos, o que uma krisis incessante –incessante por-
legitima o Império mediante a Igreja. que nunca poderá ser decidida de uma
Outra pergunta de Agamben regis- vez por todas [...]. Em outras palavras,
trada em seu livro examina: “Como se como aconteceu com Pilatos, de repente
pode dar testemunho da presença de se inverte em catástrofe”.
um reino que não é daqui?”. A partir Com o livreto “Pilatos e Jesus”, Giorgio
desta premissa, Agamben trabalha com Agamben detém-se à krisis de Jesus dian-
as ideias de autoridade e testemunho de te de Pilatos, preocupando-se com os
Kierkegaard. Para o filósofo dinamar- fragmentos bíblicos e extrabíblicos que
quês, a “autoridade” não vem das frases, desenham a figura do prefeito roma-
mas do local de sua enunciação (61); e o no da Judeia. Saúda-se o empenho do

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filósofo italiano ao buscar dialogar com Crossan, J. D. O Jesus Histórico: a vida de


a Teologia, construindo pontes necessá- um camponês judeu no Mediterrâneo.
rias com as humanidades dos conteúdos Rio de Janeiro: Imago, 1994.
esboçados entre as semânticas sagra- Theissen, G., e Merz, A. O Jesus histórico.
das, sem cair no simplismo ou tender a São Paulo: Edições Loyola, 2003.
qualquer fundamentalismo. Embora o
texto não tenha pretensões stricto sensu fábio py murta de almeida*
historiográficas e não se preocupe com Pontifícia Universidade Católica do Rio
a exaustão bibliográfica, sente-se nele a de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
ausência de uma mais ampla revisão li- pymurta@gmail.com

terária, com maiores citações de títulos


dos debates do Jesus Seminar (Crossan
1994) ou mesmo de alguma corrente de
exegese bíblica do Novo Testamento como
a Heidelberg, com Klaus Berger e Gerd
Theissen (2003), por exemplo.
Mesmo assim, a não utilização desses
trabalhos não diminui o valor da obra de
Filosofia da Religião Cristã de Giorgio
Agamben que, em texto breve, levantou
questões pertinentes para o pensamen-
to cristão como (i) a historicidade dos
textos sagrados, (ii) a constatação de a
religião cristã ser uma expressão da his-
tória e, por último, (iii) o apontamento,
na história, do lugar da revelação cristã
da krisis como ocasionadora da crucifi-
cação. A esperança é a de que a leitura
de um livro pequeno como este (76 pp.)
ajude na popularização de novas inves-
tidas literárias sobre o cristianismo, que
conduzam a novas discussões sobre o
mesmo, anuviando o pensamento reli-
gioso superficial (do senso comum) tão
carente de críticas.

Referências
Agamben, G. Homo sacer. O poder sobe-
rano e a vida nua I. Belo Horizonte: * Doutor em Teologia puc-rj (ênfase em
História da Igreja), tendo sido bolsista de
UFMG, 2004.
um período sanduíche pelo psde-capes
Agamben, G. Profanações. São Paulo: no Ecole des Hautes Études en Sciences
Boitempo, 2006. Sociales (ehess) em Paris.

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