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andar da carruagem, podem-se converter de novo, eles mesmos, em exploradores dos trabalhadores, E preciso prestar atencio! O que esté em discussao hoje € uma coisa da maior transcendéncia. Nao se trata de mercado, trata-se de outra coisa, Este Governo, como o da Argentina, ex- clu ~ no do mercado porque, no fim das contas, do mercado ‘quase ninguém pode ser excluido: -vocé tem que ‘comprar alguma Spisa para comer ~ mas excluiu do campo de direitos. Aqui no Brasil essa operacio é seguida a risca, detalhadamente, Primer, 0, & Constituicao unificou militares e civis, Depois, eles fizeram uuma Reforma: militar tem uma lei, civil tem outra, Dentro de Gamo dos servidores civis, tem uma discriminacio: as carreiras de Estado e os que nao sio carreras de Estado, Os que sac cn. feiras de Estado tém uma grade salarial, tém Teajustes; os que S20 carreiras de mercado, segundo Bresser Pereira defini, estes patio, ha 5 anos sem receber nenhum reajuste. No campo da Previdéncia Social, todas as discriminagoes ja aparecem. Entao, esse programa est sendo seguido a riscal 90 Da economia dos setores populares a economia do trabalho* José Luis Coraggio. Uma apreciacao da situacao social © tema da Economia dos Setores Populares deve ser iniciado Pelo que foi, aqui, tao bem apresentado pela manha: por uma apreciacao da situagao social, das conseqincias sociais do pro- Cesso de reestruturacao do capital nesta sua nova fase, de velha busca da globalizacao, Falou-se de exclusio e falou-se, talves Pouco, de pobreza. Porque nao hé somente a exclusio do mer, cado de trabalho. Além disso, hé os que hoje estdo conseguindo algum emprego, mas a troco de pagamentos extremamente bai, x0. A receita real da maioria dos trabalhadores da América La. tina esté balxando, como também, eu diria, em todo o mundo. Na convergéncia desta situacdo de necessidade social com © desmantelamento dos sistemas de previdencia social - esta. belecidos, em parte, pelaslutas e, em parte, pela propria losica dos sistemas nacionais de capitalismo industrializante a crise da reproducao continuada se torna mais aguda, e a sobreviven cla para as maiorias populares se torna cada dia mais dificil. A fim de se manter a governabilidade numa sociedade que tende perder a integracdo, a resposta sao as Novas Politicas Sock is, assistencialistas, clientelistas, insuficientes até mesmo pars atingir 0 objetivo que se propds o Banco Mundial em 1990: ali. viar a pobreza. Diante disso, as familias dos trabalhadores empobrecidos, se & que jé nao foram excluidos do trabalho e de suas organi acoes Sindicais, a medida que percebem que desta vez a exclusio pode "“Tradugio: Fandisco Lara ser permanente, pois constatam que vai ficando cada vez mais dificil conseguir um trabalho assalariado suficiente (se é que ain- da se pode conseguir algum), tentam novas iniciativas e reagem para conseguir sobreviver. Assim, por exemplo, mulheres e ado- lescentes abandonam suas tarefas habituais e saem a procura de trabalho, aumentando a taxa de atividade — isto é, a proporcio de pessoas que estao procurando trabalho de forma ativa. Se a taxa de desemprego é tao alta hoje, ndo é s6 por causa da insuficiéncia de criagao de novos empregos. £ também porque ‘© ndmero de pessoas que concorrem no mercado de trabalho maior, j@ que os chefes de familia tém mais dificuldade para en- contrar trabalho do que as mulheres. Como também pelos tipos de empregos disponiveis e pelas politicas de contratacao das empresas, que visam minimizar seus custos salariais. Os jovens , em muitos casos, as criancas saem das escolas para consegui- rem algum emprego. A presenca de criancas e adolescentes em escolas noturnas esta ficando cada vez mais freqiiente, ja que, de fato, a escola formal est vedada para eles. Nao sé a situacao atual é m4, como, pior ainda, as expecta~ tivas de mudanga sio muito poucas. Sendo assim, as pessoas passam a procurar “algum emprego”, um emprego qualquer, para fazer qualquer coisa, mesmo que nao tenha nada que ver com suas capacidades e sua trajetéria como trabalhador, Empre- g0s precarios ou abertamente informais — pela jornada excessi va, pelo baixo salério, pela auséncia de servigos vinculados & previdéncia social - acabam sendo aceitos. A perda de poder relativo da classe e de suas organizacées faz com que os traba- Ihadores tenham pouca capacidade de discutir até mesmo as des do processo de trabalho. Procura-se, entao, algum trabalho qualquer, ou alguma “renda”, mesmo que nao seja atra- vés do salario. E isto que causa o que Gabriel Kraychete mencio- ‘nou antes: oincremento dos trabalhadores por conta prépria, do setor informal, que de acordo com a definicao oficial, diante da lei, estéo quase sempre em situagao de ilegalidade. Por outro lado, um volume consideravel de atividades eco- némicas dos setores populares est sendo empurrado para galidade, uma vez que, com rendas tao escassas, no hd como 92 enfrentar os custos. Isso inclui tanto as atividades produtivas para o mercado, como aquelas que assumem outras formas para gerar recursos e acesso aos direitos humanos elementares: tais como a autoconstrugao em terrenos ocupados ilegalmente, transgredindo as determinacdes do zoneamento urbano, nao ra- ramente em condicGes bastante desfavoraveis & propria satide. As pessoas também podem se utilizar de outros tipos de ‘meios, ilegais: como ocupar um terreno pablico, até mesmo par- ticular, para resolver o problema da moradia; buscar ter acesso a servicos piblicos por caminhos ilegais — 0 que hoje, na Argen- tina, é extremamente dificil, 4 que as companhias de eletricida- de, de agua, de gis, de transportes etc. foram privatizadas e con- tam com sua prépria policia particular, muito eficaz em impedir que as pessoas facam derivacGes ilegais da rede de agua, da rede elétrica, ou que viajem de trem sem a passagem. Além disso, ha também, € claro, outras formas, como 0 rou- bo ou 0 furto por extrema necessidade, que sao a outra maneira de se recuperar uma parte do dinheiro ou dos recursos confisca- dos por um sistema injusto, mas aparentemente legal. Ainda que a pobreza nao gere mecanicamente a delingiiéncia, pois as respostas individuais séo muito diferenciadas, é dbvio que, do ponto de vista estatistico, ambas estdo sim relacionadas: como também a tentativa de escapar através das drogas, a participac3o nos lucros e nas relacoes mafiosas do trafico, a prostituicdo... Ocasionalmente se pode também vender o voto ou, simples- mente, a presenga fisica em atos politicos, por dinheiro ou por um pacote de comida. Este, alids, é apenas um aspecto da mer- cantilizacao da politica. Hé muitos candidatos que vendem sua imagem usando métodos de marketing, tratando os cidadaos como clientes. Estes cidadaos, depois da “compra” efetuada, no tém como reclamar da qualidade do produto realmente ob- tido. Seré que devemos considerar isto como uma “atividade ‘econ6mica legal” pelo simples fato de nao ser perseguida pelos policiais e pelos juizes? Uma outra “estratégia” de sobrevivéncia é 0 reverso da me- dalha das Novas Politicas Sociais. Hoje se tornou uma tarefa 0 93 acesso aos pacotes assistencialistas oferecidos pelos progra~ mas estatais que, com frequéncia, se traduzem diretamente em alimentos, Uma pesquisa realizada pelo Instituto del ConUr- bano, da universidade a que eu pertenco, na periferia da regiao metropolitana de Buenos Aires, mostrou a existéncia de fami- lias cuja Gnica fonte de sobrevivéncia séo os programas sociais. Elas se “especializam” em juntar diversos programas sociais para poderem conseguir alguma coisa parecida com uma cesta basica de sobrevivencia. Hoje, a exclusio do trabalho aparece como o fenémeno que caracteriza a questao social gerada pela reestruturacao capita lista. Mas, ainda que exi: e trabalho, nao ha como negar uma historia evidente de acumulacdo dos mais diversos tipos de ex- clusdo de amplos setores da populacao, tanto rurais como, & cada vez mais, urbanos. Para mencionar apenas a exclusdo com respeito a trés das condigdes essenciais para a vida em socieda- de: a exclusao do acesso a um habitat e aos servicos de satide e de educacao adequados. 1, Mundo da economia popular Unidade de andlise econdmica AA fim de que se possa analisar e reconstruir conceitualmente este mundo da economia popular — essa economia que emerge das rupturas continuas impostas repetidamente ao cotidiano popular pela reconstrucio global do capital, e dos comporta- mentos reativos da populagao trabalhadora em luta por repro- duzir a sua vida ~ € muito importante advertir que a unidade de anilise econdmica que se deve tomar nao deve ser nem a do individuo que trabalha por conta propria, nem, tampouco, a da tmicroempresa. Se a perspectiva dessa economia é a da reprodu- do da vida, a unidade de anilise mais conveniente vem a set aquela que os antropélogos denominam unidade doméstica. Em nossas sociedades, a modalidade de unidade doméstica mais ge- neralizada — mesmo que nao a Gnica ~ é a familia, nuclear ou extensa, e com base em relacées de consangtiinidade ¢ afinida- de. As transformacoes que se vem experimentando fazem inclu- 94 sive com que essa forma de organizacao da reproducao também se modifique. Por exemplo: se a proporcao de familias nucleares completas é cada vez menor, por outro lado, é cada vez maior 0 rnimero de familias com mae solteira. Pelo menos, é 0 que vem acontecendo na regiao metropolitana de Buenos Aires. A unidade doméstica, como microunidade de organizacdo dos sistemas de reproducio, é a célula da economia popular, da mesma forma que as empresas, como microunidades de repro- ducio do capital, sao as células da economia capitalista. Neste sentido, a unidade doméstica, como ja foi dito, pode ser formada tanto por pessoas com vinculo de consanguini jade, como pode ser unipessoal, ou multifamiliar, ou até ser formada por amigos, por comunidades étnicas (como os grupos de Otavalefios, no Equador), de vizinhos, por grupos que se unem livremente para cooperar, ou agregaces solidarias de outro tipo qualquer, compartilhem recursos e articulem estratégias, expli plicitas, para reproduzir sua vida coletiva. Em todos os casos, ‘seus membros juntam seus recursos, no todo ou em parte, a fim de satisfazer coletiva e solidariamente as necessidades de todo ‘oconjunto ~ 0 que torna essas unidades um lar, ou “domicilio”, no mesmo sentido que as pesquisas oficiais dao a esse termo, As regras de distribuicao interna podem ser as mais variadas muito diversificados os graus de consciéncia a respeito daquilo que 0s analistas qualificam como a sua “estratégia”. 0 fundo de trabalho (O que é fundamental para as unidades domésticas que com- pdem a economia dos setores populares, aquilo que € o princi pal, ainda que elas possam contar com outros tipos de recurso, €0 que chamamos de seu fundo de trabalho. Quer dizer, 0 con- junto das capacidades dos membros de cada unidade doméstica, pelo que estes sao capazes seja de obter os produtos que satis- facam as suas necessidades seja de trabalhar para consegui-los, quer diretamente, quer através do intercdmbio com outros tra- balhos ou produtos. Tendo em vista alcancar a reproducao vital de todos que compdem cada unidade doméstica, esse fundo de trabalho pode se tornar efetivo de diversas maneiras. Uma delas 95 é através do proprio trabalho assalariado: quer dizer, da venda da forca de trabalho em troca de um salério ~ individual ou coletivo (como acontece nas economias rurais, na época das colheitas) -, pondo-se a servico de alguma empresa, capita- lista ou nao capitalista (uma empresa “social”), ou de alguma organizacao estatal, ONG, organizacao corporativa etc. Como se pode também trabalhar para outras unidades domésticas,fazen- do 0 servico doméstico. Uma outra alternativa é realiza-lo através de um trabalho que produza bens ou servigas sob a forma de mereadorias que s#0 vendidas por um preco determinado. Aqui ja nao se trata mais da venda da forca de trabalho, mas da venda de produtos ou servicos para um ou mais clientes. Neste caso, a unidade do- méstica pode tomar a forma ad hoc de um microempreendimen- to, que tanto pode ser individual como coletivo. € muito im- portante ter presente que, mesmo que este microempreendi- mento apareca separado do domictlio, inclusive operando em ‘outro local (com freqiiéncia ele se encontra no mesmo local de moradia da unidade doméstica, j4 que esta é uma caracteristica marcante do habitat popular), na realidade, ele nao é nenhu- ma “empresa capitalista pequenininha ou ineficiente”. Ao contrario, ele € uma extensao da unidade doméstica, ¢ 0 seu objetivo nao é aquele de acumular per se, mas de manter € melhorar a qualidade de vida dos membros dessa unidade a0 longo de sua trajetoria vita. O nao reconhecimento de tais fatos tem sido um dos prin- cipais motivos pelos quais os planos de apoio aos microem- preendimentos tém fracassado tanto. Porque eles tratam os tempreendimentos populares como se fossem empresas subde- senvolvidas e querem transforma-las em empresas de verdade: {qucrem capacité-las para que venham a se tornar pequenas em presas capitalistas. Por exemplo, dao cursos de contabilidade para o pessoal desses empreendimentos; ensinam-Ihes a sepa- rar, ou querem Ihes ensinar a separar @ economia da empresa, da economia do lat. Néo podem aceitar que saia do mesmo bolso seja 0 dinheiro que € para comprar os produtos que vao ser re- vendidos, seja 0 dinheiro do qual se vai precisar para resolver as necessidades, ou as catastrofes de uma familia. ‘Quando os empreendimentos dos trabalhadores alcancam, através da cooperacio, um aumento na escala de produgao e um frau superior de organizacao superior, eles jd podem comecar a Separar formalmente a economia de producao da economia de re- producio de seus membros ~ 0 que acontece quando, a fim de possibilitar a sobrevivéncia de uma cooperativa, séo distribufdos fos associados rendimentos insuficientes 4 sua reproducao. Mas. em situagées critcas, a unidade profunda entre producao e repro- dducdo volta a se manifestar abertamente, Esta unidade é que dé sen- tid & economia humana. E é a ela que o mercado capitalista pretende e requer separar no nivel microecondmico, desenvolven do a divisao do trabalho a ponto de gerar crises macroeconémicas = quando, entdo, essa unidade entre producao € reproducio se fratura 20 se desajustarem os fluxos agregados e setoriais de oferta e demanda, gerados pela livre acdo dos agentes. Certa vez, um responsavel por programas de microempreen~ ddimentos me disse que um de seus principais problemas era que ‘nao podia haver nenhura empresa que pudesse resistir quando, por exemplo, diante da morte de algum familiar, o dinheiro que | Uevia ser reservado para o funcionamento didrio do empreendi- mento, era utilizado para pagar 0 enterro. Por isso eles Ihes en- sinam contabilidade, e tratam de fazer com que mudem tais | Comportamentos, considerados ineficientes e irracionais. Para aquele técnico, a racionalidade da reproducao da vida nao deve- tia subordinar a racionalidade do negocio, dos lucros. unidade doméstica, a producio da reproducao, o empresério ou tempresiria de sua familia ou comunidade, muitos recursos ¢ ca- pacidades sav destruidos ¢ se aumentam os rises. como bem Hemonstra a baixa taxa de sobrevivéncia das microempresas que | sio processadas desta forma. Na realidade, nessa luta por tentar separar a empresa da) Voltemos aos usos do fundo de trabalho. Tanto 0 trabalho assalariado como o trabalho do produtor independente de mer- cadorias, ambos se constituem como formas mercantis € pec a7 nidrias j4 que, tanto um como 0 outro, passam pelo mercado ~ pelo mercado de trabalho ou pelo mercado de bens e servicos. Permitem, assim, que, a0 final, se obtenha dinheiro: dinheiro/sa~ Lério ou dinheiro/preco dos bens e servicos. Esse dinheiro/receita dos membros da unidade doméstica é utilizado para comprar os meios de vida ou os meios de producao que sao requeridos na produgio/reproducao da unidade doméstica. Uma outra forma de utilizar este fundo € no trabalho para 0 autoconsumo, direcionado para a producao de bens e servicos que sao consumidos pela mesma unidade. S40 bens e servicos {que nao vao para o mercado mas que sdo produzidos como va- Jores de uso para os produtores e nao passam pela forma dinh to. Fste € 0 caso do trabalho de limpeza, do trabalho da cozinha, do trabalho em que se toma conta das criancas, do trabalho na horta, do conserto e confeccao de roupas, do trabalho de cons- trucio de méveis, de construcao da propria casa etc. Todos estes trabalhos ndo passam pelo mercado nem tomam a forma de di- nheiro, mas contribuem diretamente para a reproducao da ur dade doméstica (o que, na linguagem habitual, seria chamado de “trabalho doméstico”). Por isso, o chamamos de trabalho de re- producdo propriamente dito. Esta categoria inclui também suas formas mais ampliadas: 0 trabalho solidério para produzir bens ou servicos de consumo ¢o- letivo. Como, por exemplo, quando grupos mais abrangentes, formados por distintas unidades domésticas de um bairro ou de tuma regido entram em acordo para resolver alguma de suas ne~ cessidades comuns: fazer uma obra de infra-estrutura, trazer ‘agua para a comunidade, resolver problemas de seguranca ou construir instalacdes para pratica de esporte etc. Finalmente, temos 0 trabalho de se dedicar ao investimento nas proprias capacidades dos trabalhadores, membros da comu= hidade doméstica, potencializando suas habilidades ¢ aptid6es para diagnosticar problemas e compreender situacoes, ‘organizar se organizar, produzir e consumir mais racionalmente ete. Isto. 6, um trabalho que devemos considerar como um investiment tim trabalho de estudo, de capacitacdo, um trabalho de formacao para o desenvolvimento das capacidades individuais ou coletivas. 98 Meio de produgao ou de reproducdio ‘Além do fundo de trabalho, as unidades domésticas contam também com meios de producao ou de reproducio: podem pos- tary algun maquindrio, podem ter instrumentos de trabalho, Como podem dispor também de equipamentos e outros meios so vida duradoutos utilizados, as vezes, também para a produ {ao (como uma geladeira ou uma maquina de costura). © st goto lugar de moradia ~os urbanistas deveriam compreender crop muite bem —nao & apenas um lugar de reproducao mas &, tetbem, de producdo. (Evidencia-se assim, aqui, territorialmen: te, a tendéncia dos setores populares para a ‘manutencao da uni- fide entre estas duas funcoes.) Podem até ter um pequeno terreno para a producéo de hortalicas, aves ou porcos, até mes aeriay areas urbanas. Todos estes sao recursos possuidos pelas i dades domésticas e sua valorizacao, ou valor de uso, depen seitaste do contexto, do habitat do qual fazem parte. Um local ie moratia situado numa drea de facil acesso, bem iluminado € seguro, € um ativo muito importante que pode se valorizar dre: tamente (através de sua venda) ou indiretamente (permite que se instale um comércio rentavel) ou até mesmo ter um outro valor do uso (qualidade de vida que permite o habitat). Produtos do trabalho A lista de bens e servigos que so capazes de gerar as ml- tipla formas de trabalho & muito extensa: inclu desde bens servicos elementares, até outros altamente sof sticados, como aerpens artisticos: desde produtos de pequeno valor, até outros te grande peso econdmico, como a moradia Eevidente que, nos ‘ites duas décadas, o capital vem competindo para ganha 0S mercados, mesmo que de baixa renda mas de alcance massivo. Nlesce sentido, ele ndo apenas vem expulsando mio-de-abra através da automatizacao e da robotizagao, como vem ‘também. {Jestruindo a concorréncia popular nos campos que ela ocupava tradicionalmente: o comércio varejista, os pequenos restaura= anne oficinas de consertos etc. A reducdo da receita real da tnaioria da classe trabalhadora concorre para modificar a estru- Tra fe uso do fundo de trabalho: a simples impossibilidade de 99 comprar por falta de receitas parece fazer emergir outros tipos de intercdmbio (como a troca) e fomentar outras formas de pro- ducao (trabalho para o autoconsumo individual ou coletivo) e circulagao (redes de abastecimento para diminuir o custo de Vida). Mas, agora, o que se trata é de superar os comportamen- tos reativos e potencializar ativamente a capacidade dos traba- thadores, para que eles possam se contrapor de maneita mais eficaz e como classe a essas tendéncias destruidoras da vida. Transferéncias monetérias e ndo monetérias Na economia dos setores populares também sao realizadas transferéncias monetérias e transferéncias nao monetérias — isto é,em espécie ~ com outras unidades domésticas; como ¢ 0 caso das ajudas que sao prestadas no interior de uma mesma grande familia, entre suas diversas unidades domésticas. Por exemplo, @ ajuda que um irmao da a casa de sua irma, por ser ela quem cuida dos pais; ou a que € proporcionada pelo pai das criancas & mulher da qual se separou. Mas, além das redes de transferéncia entre unidades domésticas, ha também transferéncias para com as organizagdes da sociedade civil (sociedades filantrépicas, ONGs etc.) e para com aquelas do setor piiblico, sob a forma de programas sociais, que podem consistir em subsfdios em dinheiro, em servigos gratuitos ou a precos subsidiados (educacio, sade), em cestas de comida, materiais para construcio ou outros tipos de bens e servicos, sem contrapartida monetéria ou de trabalho equi valente. (Ha casos de programas de trabalho comunitério subsi diado em que, de algum modo, recursos sao transferidos para alguns trabalhos que sejam titeis para a comunidade.) Mas, além das relacdes de exploracao do trabalho assalaria- do, as unidades domésticas populares transferem recursos mo- netérios também para o resto do sistema econémico, em par- ticular através do sistema fiscal. © que, no caso particular da Argentina, é dramético, porque o sistema tributdrio argentino & altamente regressivo, Alguém que ganhe um milhao de dolares Por més vai pagar, se tanto, um ou dois por cento de sua renda, Porque tem recursos para evadir a lei do fisco. Jé alguém que ganhe, e que gaste, apenas cem délares por més, paga ao fisco too pelo menos vinte e um por cento do que ganhou; isto é, 0 IVA ou imposto pelo consumo. Como esses cem pesos vao ser todos gastos com 0 consumo, e este € 0 tipo do imposto que esta muito bem controlado, hoje, todos os pobres pagam impostos por seu consumo minimo. Seria interessante que os economis- tas fizéssemos o balanco destas transferéncias para verificar quanto dos programas sociais, destinados a economia popular, tem sido pago pelas proprias economias populares, com suas transferéncias, com seus impostos. Fatores de valorizacdo de capacidades e competéncias do fundo de trabalho A capacidade das unidades domésticas em melhorar suas condigbes de vida e acumular recursos depende de varios fato- res: nao apenas da composicao e da qualidade de suas capacida- des de trabalho objetivas mas, também, da avaliagao que @ sociedade faca destas capacidades. Um dos fenémenos, jé men- cionado aqui, é que uma parte muito importante das capacida- des acumuladas no fundo de trabalho das unidades domésticas foi desvalorizada pela revolucdo tecnolégica. Por este motivo, indo se acha comprador que pague um preco suficiente no mer- cado, ou mesmo pode nao se achar comprador algum. O que faz ‘com que se venda mal aquelas capacidades, pois, do contrario, nao se encontra emprego em absoluto. Sao muitos os que dei- xam de procurar emprego, mas nao porque nao precisem. £ que acabam no “desalento”, como se diz na nova giria dos analistas das pesquisas por domicilio, Outro fator que conta sdo as condicdes subjetivas para a realizacdo dessas capacidades e recursos, atuais e potenciais. Isto inclui um fator importante, que é a autopercepcao que as pessoas e as unidades domésticas tém de suas proprias capaci- dades, e a compreensao da situacdo, de si propria e do contexto, que elas tém ou compartilham. E de quais séo as causas e as Bi sis evolucoes destas situagoeSvE evidente qu ru prof cesso reativo, centrado continuamente no presente, sem uma perspectiva de futuro, podem ser pensadas ages muito diferen- tes das que surgiriam se existisse uma perspectiva de evolucao futura de outro tipo, conhecimento das normas juridicas é também um recurso importante, assim como o das normas morais vigentes, que es- tabelecem que acoes sao legais e/ou corretas, que direitos e obri gacdes tém os cidadaos e quais os mecanismos para sua efetivacio. Talvez, no Brasil, como a historia da luta por direitos, rna Constituinte, é ainda recente, este fato nao esteja tao acen- tuado; mas, no caso da Argentina, a cultura dos direitos est bastante perdida. Muitas pessoas acham que nao tém direitos ‘ou que nao podem torné-los efetivos. Quer dizer, nao se con: deram cidadaos; que tém direitos que o Estado, segundo a Cons- tituicdo, deveria garantir. ‘Além disso, a disposicao para tomar a iniciativa agindo para modificar sua propria situacao, para modificar 0 seu contextoe, ‘em particular, a disposicao para participar de acées comunité- rias, tais como a reordenacao do proprio habitat, por exemplo, ‘ou a mobilizacao para reivindicar direitos, so, todos esses, fa- tores que importam no que diz respeito as possibilidades que as unidades domésticas tém de resolver, de uma forma ou de outra, as suas condicdes de sobrevivéncia. acesso a informacio pertinente é outro fator de importan- cia crescente para se identificar as acoes possiveis e para se ob- ter o conhecimento dos mercados, das tecnologias disponiveis ¢ das regras formais e informais dos sistemas co- munitarios e piblicos que permite acesso aos meios de pro- ducao e de vida. Uma das coisas que encontramos na pesquisa que mencionei é que, assim como havia pessoas que tinham pleno conhecimento de todos os programas sociais, havia outras que os ignoravam totalmente. Esse conhecimento faz diferenca para a economia da unidade doméstica. Outro elemento ¢ a capacidade de se obter e interpretar in- formacées pertinentes para identificar possibilidades e converter as idéias em projetos viéveis, ou mesmo contar com uma rede de conhecidos e contatos e com redes de informacao que permi- tam conseguir emprego, clientes, subsidios ou 0 que mais for necessério. Sofisticando os termos: ter um capital de conheci- ‘mento e um capital social. Como vimos, ha elementos materiais e elementos subje vos, condicionando as possibilidades com que conta uma uni- dade doméstica para resolver suas necessidades nesta crise de reproducao. claro que a participacao nas lutas mais tradicic nais, isto 6, na luta sindical pelo salario, pelas condicdes de tra- balho e pelos pacotes sociais que acompanham o salério, e nos movimentos reivindicativos de base territorial, étnica etc.. de- ‘vem ser considerados como parte das estratégias de sobreviven- cia das unidades domésticas. Isso requer que uma parte das capacidades e competéncias do fundo de trabalho daquelas u dades seja utilizada também para isso. No caso dos setores de rendas mais baixas, uma caracteris- tica que através das pesquisas nds observamos € que, pela com- binagao dos baixos salérios com a incerteza e a extrema neces- sidade, eles séo levados a procurar, ou obrigados a aceitar qual- quer possibilidade de aumento marginal de suas receitas, através de jornadas de trabalho muito longas ou de trabalhos dobrados. Por isso, as estatisticas mostram que, ao mesmo tempo que ha muito desemprego e subemprego, hd também um setor com ex- cesso de trabalho. Um outro ponto que estes estudos mostram € que o ciclo “recebimento de remuneracdo-gasto em bens de consumo” é muito curto; pode ser de horas apenas. Em parte por isso, as opcdes que se tem sao muito limitadas, induzindo 4 compra de produtos de baixa qualidade, ou com financiamen- tos a juros usurérios, provocando uma deterioracio adicional das condigées de vida. Reprodugdo simples ¢ reproduedo ampliada da vida ‘Além das diversas formas de uso do fundo de trabalho que so assumidas para a obtengao de recursos, tais como a forma do assalariamento. da producao de mercadorias, da reproducdo propriamente dita, de formacao e, poderiamos acrescentar, a de gestao ou indicagao coletiva; além de todas essas, as unida- des domésticas usam também parte de suas capacidades e ener- sias para realizar atividades que de per si sdo necessérias 8 vida, ainda que nao produzam valores de uso nem mercadorias des- tacdveis. Aqui se incluem atividades como a pratica de algum 103 esporte, a participacdo em festas etc.; 0 que deve ser levado em conta no registro da economia popular, cujo sentido é a reproducao da vida com qualidade crescente. A qualidade de vida e mesmo a ‘economia nao passam apenas pelo acesso as mercadorias. Por exemplo, se uma empresa privada que comercializa sessoes de inema tem sua atividade registrada como econdmica, por que nao se da o mesmo com respeito as atividades nao pecuniarias que resolvem o problema da diversao e da sociabilidade? Essas unidades econdmicas a que nos referimos sdo de tra- bathadores, quer dizer, de pessoas que dependem da realizacao continua de sua forca de trabalho, de seu fundo de trabalho, para a sua reproducao quer a um nivel simples, quer aquela ampliada. Para este conceito, nao muda em nada o fato de que os resulta- dos do trabalho se prolonguem no tempo; como acontece com as pensoes e aposentadorias organizadas na sociedade moderna através da reserva de parte dos rendimentos a fim de se gerar um fundo de manutencao dos trabalhadores que se aposentam. Isso apenas nos levaré a registrar, nao jornadas ([ragmentos) mas, sim, vidas completas de trabalho. Vamos chamar de reproducao simples ao mantimento da Vida dos membros de uma unidade doméstica a um nivel histo- ricamente varidvel mas que, em cada época e cultura, é 0 moral- mente aceito como 0 minimo para a reproducao destas familias, ou unidades domésticas. O conceito de reproducao ampliada, por outro lado, denota que hd uma melhoria estrutural da qua- lidade de vida. Em outros termos: reproducao ampliada significa que se va melhorando a qualidade de vida de um mesmo grupo doméstico, ou de um Conjunto de grupos domésticos, ao longo 1m base no desenvolvi- mento das capacidades e oportunidades sociais dessas pessoas. A pattir de niveis muito baixos de rendimentos, e para o conjun- to das classes trabalhadoras, isto costuma implicar em aumento de receitas ou num acesso maior a bens quase publicos (educa- cao, sade etc.) por outras vias. Mas a reproducao ampliada nao ;0. a maiores ganhos ‘A qualidade de vida pode melhorar por alguma mudanca, preci- 104 ‘amente, na qualidade do consumo, nos padrées de relacao so- ial, nas condigdes de habitabilidade, no contexto que nutre a vida das unidades domésticas. © que vem acontecendo hoje, e que faz com que diversos analistas se perguntem “como essa gente sobrevive?”, e che- guem até a elogiar a criatividade desse pessoal empobrecido com respeito ao sobreviver, é que se sobrevive degradando a qualida- de de vida. Consegue-se uma sobrevivencia biol6gica, mas nao social. A qualidade de vida pessoal e social se deteriora. Isto pode ser facilmente exemplificado através dos indicadores de morbidade que vém crescendo, ou regrediram para indices de épocas passadas, sem que por isso tenha aumentado a mortali- dade, ou diminuido a expectativa de vida ao nascer. Vem se con- seguindo impactos importantes nos indicadores através da va- cinagdo, mas isso nao significa que a vida dos sobreviventes nao seja miserével. O que nao se aplica apenas aos setores de pobreza extrema, Por exemplo, foi o que aconteceu nesta década, num grau muito elevado, com os setores médios urbanos na Argentina: 14, ha um empobrecimento muito claro de grande parte da classe média que havia sido gerada pelo sistema industrial. 2. Economia dos setores populares Unidades domésticas de trabalhadores Vamos & pergunta que sempre aparece: se estamos falando de setores “populares”, quais sao as unidades domésticas que nds incluimos? Porque, se fossem todas as unidades domésticas, estariamos falando de toda a sociedade. Podemos fazer a per- gunta pelo inverso: que unidades domésticas nds nao ‘incluimos, nisso que estamos chamando de economia dos setores popula- tes? Nao incluimos as unidades domésticas que chamamos de “rentistas”, isto é, aquelas que vivem de renda, ou aquelas que, para a sua reproducao, nao dependem da realizacao continua do seu trabalho nem das pensdes derivadas do trabalho jé realizado no passado. Sao unidades domésticas que vivem de uma parte das receitas provindas de capitais financeiros ou propriedades que lhes permitem receber dividendos ou rendas, urbanas ou 10s turais, ou que sao sécios, acionistas ou donos de empresas ca- pitalistas e participam de seus lucros. Essa caracterizacdo sempre tem éreas cinzentas, como é 0 caso de quem recebe ou complementa o equivalente a uma pen- sio através do aluguel de uma segunda casa que possua; ou através dos juros de uma poupanca que se tem no banco; ou ainda, e agora cada vez mais, através dos rendimentos resultan- tes da participacao em fundos financeiros, com as economias do préprio trabalho. Além disso, hé o caso, que é sempre mencio- nado, do proprietério de uma pequena oficina que contrata ope- rarios mas que ele préprio trabalha junto. Dificuldades, por- tanto, que se apresentam na operacionalizacio de qualquer classificacdo (6 s6 pensar nos microempreendimentos, na pe- quena e média empresa, no setor formal/informal, na classe ope- réria mais tradicional, nos problemas para situar os empregados Pablicos, os trabalhadores dos servicos em geral, os desempre- gados, 0s capatazes etc.; ou, entdo, na discusséo que sempre cexistiu, sobre a categoria de classe média). Outra dificuldade é a localizacao de uma unidade doméstica integralmente em uma ou outra categoria de classificacao, quan- do seus diversos membros podem ter insercdes socioecondmi- cas diversificadas. Mas isso ocorre até com as pessoas que tém dois trabalhos. Tanto no caso da unidade domestica como no dos individuos, existe, além disso, o problema de trajetorias de trabalho que incluem mudangas de categoria ao longo da vida. Este € um fato relevante quando se procura cruzar uma variével socioocupacional com outras, tais como disposicdes, valores etc. De qualquer forma, € de se esperar que cada unidade do- méstica combine, 3 sua maneira, os seus préprios recursos capacidades, e que o faca de diversas formas, inserindo-se de maneiras diversas ao longo do seu ciclo vital. E que tenha uma ttrajetoria e uma qualidade de vida que va mudando como resul- tado de sua insercéo num contexto que também muda © conjunto das unidades domésticas de trabalhadores — tal como 0 estamos definindo ~ abrange um espectro social bem amplo. Nao se restringe apenas 4 economia dos pobres: inclui profissionais, professores, comerciantes, artesios, artistas, que 106 .m ter remuneracdes muito diferentes, seja quanto & forma, .qliéncia ou o nivel, mas que, em todos os casos, nao che- 1m a acumular o suficiente para viver sem trabalhar e, a0 ‘smo tempo, manterem-se em trajet6ria de reproducao am- \da, Alam disso, ha uma enorme diversidade de valores. Um Conjunto como esse nao pode ser visto como um sujeito que corresponderia a uma classe que, nem sequer ao nivel te6rico, pode ser tratada como homogénea. Feonomia dos setores populares como 0 conjunto das unidades domésticas dos trabalhadores Se passarmos, agora, do nivel micro, da unidade doméstica, para 0 conjunto de todo o setor que chamamos de economia popular, ou Economia dos Setores Populares como foi denomina~ do pelos organizadores deste seminério (eu gosto dessa deno- minacao), estaremos entao falando do conjunto das unidades domésticas dos trabalhadores e, portanto, do conjunto dos re- cursos que administram; das capacidades que possuem: da es- trutura de suas atividades; da estrutura e qualidade de sua oferta de forca de trabalho no mercado; de sua estrutura de arrecada- «ao ~ salarios, entradas liquidas, por producio e/ou venda de bens e servigos, pequenas transferéncias monetérias entre u dades domésticas ~; da estrutura e das condigdes de intercdmbio ‘com a economia empresarial capitalista; da estrutura e resultado liquido das transferéncias do setor com a economia estatal (os impostos que paga e as transferéncias e subsidios que recebe); dda estrutura de distribuigao das unidades da economia popular de acordo com as diversas formas e camadas de receitas. Tam- bém se inclui aqui estabelecer o grau de auto-sustentacao desse conjunto enquanto um subsistema da economia; em que medi da, por si proprio, ele gera os bens e servicos que satisfazem as necessidades de seus membros ¢ que permitem abastecer-se dos recursos produtivos para sua propria reprodugao; € em que me~ dida os diversos subsetores ou segmentos desse subsistema ‘econémico fazem isso, em escala simples ou ampliada. A anilise desta economia inclui também as regras de distri- buigdo dos resultados entre os seus membros ~ a0 nivel micro e 107 ao macro —, os seus valores, saberes e conhecimentos, seu sen- tido comum, os projetos que servem para orientar as suas ativi- dades. Achamos que € possivel haver pertinéncia em aplicar aqui ‘© conceito de anomia: a idéia de que, diante da mudanca verti- ginosa gerada pela reestruturacao do capital, nao ha um sistema claro de regras e valores com respeito ao que se deva fazer para sobreviver. Vale o exemplo da incerteza, quanto as conseqién- cias de se conseguir algum nivel de escolaridade, ou as perspec- tivas que um trabalhador pode ter hoje com respeito a protecao social quando passar a inatividade, comparando-se as certezas ‘que se podia ter, nos anos de 1960 ou 1970. A anilise deste conjunto inclui, portanto, os seus agrupa- mentos, suas agregacoes, suas organizacdes, as suas redes, suas relacdes e a natureza destas relacbes. Por exemplo, como foi dito aqui hoje, pode ser que aconteca uma feroz concorréncia entre unidades domésticas na luta pela sobrevivéncia; com violéncia, inclusive. Como, pelo contrario, se pode também estimular a cooperacao ea solidariedade. Podem predominar relacdes de re- ciprocidade ou, entao, relacoes assimétricas de troca. Pode, até mesmo, haver um aumento da exploracao do trabalho alheio sob diversas formas, algumas delas nem tao estranhas as tradicoes da economia popular. Porque dentro das familias pode haver ex- ploragao, nao do trabalho pelo capital, mas a exploracao da mu- Iher pelo homem ou das criancas pelos adultos. Também dentro do conjunto da Economia dos Setores Populares podemos en- contrar relagoes de exploracao interétnicas, ou urbano-rurais, ou, ento, que os sécios de uma cooperativa de producao explo- rem 0 trabalho de um setor assalariado, ou de outras empresas subcontratadas etc. etc. E preciso analisar se existem sistemas de regulacao dentro dos diversos ramos ou segmentos da economia popular. Por ‘exemplo, se os proprios trabalhadores controtam a entrada dos que trazem novas ofertas em determinado mercado, a fim de controlar a concorréncia excessiva, como pode se dar, as vezes, no comércio de rua, ou com os que fazem transporte de passa~ geiros em determinados locais. ido isto pode ser analisado, tudo isso pode ser descrito. ‘setor do trabalho independente é muito heterogéneo e, a juizo, 0 que encontramos nele nao é idealizvel, nem a sta pode ser a de estendé-lo, ou a de incluir nele o niémero ‘cada vez maior de trabalhadores que vao sendo expulsos do mer- cado de trabalho assalariado. Nao se pode dizer que, diferente do mundo das empresas, que é um mundo de exploragao e competi- Gio, 0 mundo da economia popular seja um mundo de valores positivos, o mundo da solidariedade. Nao, ele nao é nem pode ser assim, porque ele faz parte da sociedade capitalista e, portanto, em parte, € resultado da subordinagao cultural no interior do sistema capitalista. O que se trata, pois, € de transformé-lo. Economia do trabalho, economia empresarial capitalista e econo: mia publica £ importante que, como ponto de partida, visualizemos a totalidade na qual este setor esta situado. Essa economia popu- lar, inorganica, anémica, empobrecida, atravessada por contra~ dic6es internas, confronta-se com outros dois sistemas (nao eros conjuntos). De um lado, o sistema da economia empresa- rial capitalista que, mesmo tendo fortes contradicoes em seu interior, € muito mais organico e conta com uma forte estrutu- racao e institucionalizacao nas suas fragoes mais centralizada Do outro lado, o sistema da economia piiblica, altamente insti tucionalizado, ainda que com contradicdes intemas nos niveis inter e intrajurisdicional, e que vem passando atualmente por ‘um processo ainda incompleto de reforma, comandado a partir do programa neoliberal. Se fizermos contrastar as estruturas do sistema ‘empresarial, do sistema piblico e da economia popular, vamos encontrar ferencas enormes: quanto & organizacao, quanto ao nivel de re- cursos por elas controlados, quanto ao poder que atualmente podem exercer sobre o resto da economia. © que vamos propor € que, para limitar as conseqiiéncias destruidoras da vida por parte do capital-dinheiro e do capital-politico, € preciso que esse tonjunto magmético que conforma a economia dos setores po- pulares se transforme e se desenvolva até se conformar num 109 sistema de economia do trabalho que seja capaz de confrontar, em termos outros, a economia do capital e a economia publica. Nao sei se vocés observam que até mesmo a visio de eco- nomia popular que estabelecemos como ponto de partida nao € a que a reduz ao setor informal. Quando se fala de setor informal geralmente se exclui o trabalho assalariado, o traba- Iho formal. Aqui, nds nos referimos ao conjunto da economia dos setores populares, cujas unidades domésticas podem se inserir no sistema da divisao de trabalho mediado pelo mercado quer pela venda de trabalho assalariado e de bens ou servicos, quer pelo trabalho cooperativo para producao de valores de uso, de forma a resolver assim, de maneira direta, as suas ne- cessidades etc. etc. Se estendermos a visio que nos foi exposta pela manha (nas falas de José Luis Fiori e Chico de Oliveira), acerca do que vem acontecendo no contexto atual, e se, mantendo as tendéncias empiricas, as protongarmos no tempo, o que podemos ante- cipar é uma grande catastrofe societaria. Quer dizer, o que se vislumbra é cada vez pior. Nao se enxerga nenhuma possibilida- de de volta a0 modelo anterior, nem de uma superacio natural do atual modelo. Tais interpretagdes catastrofistas nos colocam na situacao terrivel de sé poder contar, como fonte de esperanca, com que estes processos entrem em crise. Na verdade, deverfamos di- zer “que o capital entre em crise”. Porque, quanto aos se- tores populares, ja faz muito tempo que estao em crise de reproducao de suas vidas. Esperar que 0 capital, com os seus balancos macroecondmicos, seus indicadores de bolsa e etc. entrem em crise, significa, ao mesmo tempo, temer que ele entre em crise. Porque, quando essas crises sao administradas a partir da cipula das classes dirigentes, quem paga as conse- giiéncias sao os setores populares. Ao mesmo tempo, se a cri- se nao chega e se os modelos econémicos, como dizem os economistas do establishment, estao funcionando bem, se acredita, entdo, que a situacao social ndo deve ter mudancas e que vai se deteriorar ainda mais. Este pensamento catastrofista tem como conseqiiéncia ser jaralisante. Torna-se dificil pensar outras alternativas societa- as a esta totalidade globalizante, que também nos foi descrita .qui, hoje. A primeira coisa de que precisamos é recuperar a imaginacao, poder imaginar outra realidade, outras possibilida- des que, entretanto, nao existem. Quando no campo popular se propdem alternativas, modificagdes naquilo que € pobre mas aparentemente seguro, sempre se pedem exemplos concretos, ji provados, jé existentes. Ha um grande temor de inovar, de correr fiscos. Por tras disso, esto décadas de terror, de repressio po- litica e econémica acompanhada de impunidade, de perda dos direitos humanos perante o rolo compressor dos conservadores, de perda da eficacia de muitas identidades coletivas que nao puderam se antecipar nem adequar-se as transformacées do sis- tema capitalista. Mas é dificil se contrapor @ forca inovadora do capital sem que se inove, a partir do campo. popular; sem que se refundem valores, projetos e praticas. Quero deixar registrada a enorme modéstia de tudo que vou dizer agora. Porque sdo somente hipéteses que, ao que me pa- rece, servem para se pensar outras alternativas. Nao estou pre~ tendendo que isto seja uma teoria, nao estou pretendendo que isto seja um modelo. Para anunciar um futuro que seja diferent ‘nao podemos nos contentar com as tendéncias de super com o empitico existente. £ preciso, como jé foi dito, conjecturar outros desenvolvimentos possiveis. 3. Hipéteses para se pensar outras alternativas de sociedade 0 subsistema da economia do trabalho A hipétese que queremos discutir € que, a partir deste mun- do magmético da economia dos setores populares, € possivel que surjam estruturas mais eficazes e eficientes para a reprodu- Gio da vida; que isso pode se dar com muito mais rapidez e seguranca se for exercida uma acao coletiva suficientemente for- te e orientada por um paradigma de desenvolvimento humano. Ao dizer isto a esta altura do pensamento propositivo, nao estamos antecipando a possibilidade de nenhum novo sistema totalizador que substitua o capitalista. Mas estamos pensando ‘em chegar a um sistema misto, composto de trés subsistemas, um dos quais € 0 conjunto integrado das miltiplas atividades econdmicas de producao e reproducao comandadas pelos traba- Ihadores. A este, nés vamos chamar de economia do trabalho, porque esta centralizada no trabalho como seu principal recur- so, ainda que nao seja o Unico. Um subsistema cuja logica nao €a de acumulagio nem do capital monetério nem do capital politico, mas do capital humano: a reproducéo ampliada da vida de todos. Nao estamos mais falando de uma unidade doméstica que esteja centrada na reproducdo da vida dos seus membros particulares; nem, tampouco, estamos falando do conjunto agregado de tais células de reproducao. Estamos falando, sim, de lum setor da economia que esteja estruturado, organizado e auto-regulado para obter a reproducéo ampliada de todos os membros da sociedade. Obviamente, nao precisamos nos preo- cupar com a vida dos capitalistas, nem com a dos grandes ren- tistas; pelo contrério, esta economia do trabalho tem a seu encargo, basicamente, os trabalhadores ¢ as suas vidas. Na exposicio inicial que Gabriel Kraychete nos apresentou, cle nos perguntava pelo destino da economia nos setores popu- lates. Para mim, a palavra “destino” tem conotacoes determinis- tas que prefiro evitar; prefiro falar de “possibilidades” cuja efetivacao requer vontade social e politica. Que possibilidades essa economia dos setores populares tem, de um outro tipo de desenvolvimento? Sobretudo, que possibilidades podemos pre- figurar nas quais, nao apenas nés como intelectuais, pesquisa- dores, técnicos ou dirigentes, mas também os sujeitos agentes possam considerar vidveis, que sejam plausiveis e mobilizado- ras? Para isto, os envolvidos devem poder confiar em experimen -las e em vé-las realizadas dentro ainda dos estreitos limites de suas vidas, Nao se trata, portanto, de uma possibilidade sem pprazos, pensdvel apenas no infinito; mas se trata de uma possi- bilidade real, ao nosso alcance. Uma proposta da qual possamos reconhecer as definig6es concretas e tentar estabelecer, em cada ‘e250, se estamos avancando em sua direcdo ou se dela estamos nos distanciando. Em outras palavras, uma proposta que possa lofientar as nossas praticas ao nos mostrar, e permitir que ava- ffemos, os seus resultados. E, também, que nos possibilite aprender a partir da experiéncia reflexiva, a fim de que retifiquemos as regras e 0s rumos particulares a medida que os sujeitos coletivos ‘va se recompondo junto com as novas estruturas. Uma pro- posta que possa se concretizar a partir da andlise concreta de cada situagao concreta Penso em vinte anos. Nao estou pensando para o préximo milnio. Nao estou pensando para o proximo século. Estou pen- sando para os préximos vinte anos. Assim, fica possivel perso~ nalizar como a geragdo que deve tomar a seu encargo essa possibilidade, aqueles que hoje sao jovens, os adolescentes de hoje, que seriam os que assumiriam o papel dos principais agen- tes ativos desta nova economia, desses novos valores. E, logona seqiiéncia, estariam vindo a consolidar estes novos valores esta nova economia as criangas de hoje, cuja preparacao para viver em sociedade jé se encontra em andamento. £ nossa res- ponsabilidade, como adultos, ir envolvendo desde agora os ado- lescentes, promové-los e ajudé-los a queimar etapas para que alcancem essa possibilidade ainda em uma geracao, e ir fazen- ido com que os jovens se comprometam desde j4 como atores € protagonistas dessa mudanca. Esse novo sistema nao pode- 14 evitar que se considerem os equilibrios macroeconémicos setoriais e financeiros mas, sobretudo, devera prestar aten¢ao 405 equilibrios sociais e aos equilibrios psiquicos, encarnando ‘outro conceito de interesse individual, de sentido da vida e, também, outra concepgao de economia, como cultura e base ‘material da vida em sociedade. Nao estamos pensando que um possivel sistema de econo- mmia do trabalho deva eliminar e substituir 0 sistema empresarial ‘eapitalista. Mas, ao contrario, que ele deve se desenvolver em Jiteracdo contraditoriamente complementar com as instituicoes e poderes capitalistas. O que s6 se dard, contudo, sob um outro fontrole politico, econémico e social, que seja capaz de fazer ‘com que o capital limite seu poder e venha a assumir responsa- 13 bilidades sociais outras. Pois, em sua atual etapa, de maxima liberdade, o capital manifesta sua enorme voracidade e fornece velocidade as transformacoes direcionadas para o lucro. Trans formacées essas que produzem a exclusao em massa, a anomia ea catastrofe social que se vem experimentando sob as mais diversas formas e em todos os continentes. (© que antes era marginal, hoje é exclusio estrutural e em massa de um setor muito importante da sociedade, anulando, de fato, aefetividade da cidadania. Isto provoca problemas sérios {quanto legitimagao do sistema capitalista. Pois ele nao tem resposta para a necessidade de reintegrar todo esse vasto setor que est sendo expulso e que, em alguns casos, visto do global, trata-se de continentes inteiros: como é 0 caso da Aftica quase toda, hoje, amanha poderd ser o de amplas regides da América Latina. Justamente pelo fato de que 0 capitalismo nao tem ca- pacidade para reintegrar a sociedade, amplia-se a viabilidade de se realizarem possibilidades alternativas, o que nao pode deixar de ser levado em conta. Estas tendéncias do capital foram caracterizadas como gera- doras de sociedades dualistas. Hoje, a cidade de Buenos Aires, tuma cidade de doze milhdes de habitantes, pode ser vista como duas cidades superpostas. Por um lado, ha uma cidade alta, com bairros fechados na periferia, conectados por vias rapidas com a City e com os aeroportos. Esta é a cidade dos megaem- preendimentos imobilidrios, dos shoppings, dos parques e de outros espacos piblicos, que agora so negécios privados. Esta € a cidade onde se pode caminhar a noite, protegidos pela poli- cia, a cidade das discotecas, com investimentos do Primeiro Mundo e servicos modernos, onde os turistas vém e se maravi- ham com seu “es europeu’ Por outro lado, hé uma cidade baixa, que foi, inclusive, seg~ mentada e impedida de se comunicar pelos eixos e espacos ina- cessiveis da cidade alta. Porque as pessoas dos bairros pobres € médios, para passarem pelas auto-estradas, devem pagar peda- gio para se comunicarem consigo mesmas, Esta € a cidade onde, de novo, tem inicio 0 “crisol das racas”, com a presenca dos 114 imigrantes; a cidade das bailantas™, mal prot cia das méfias e até mesmo da violéncia cotidiana; a de estao os hipermercados, esses destacamentos avancados ‘capital, que fazem negécio do comércio varejista de bens es- senciais destruindo 0 pequeno comércio e gerando uma nova cultura popular do espaco publico e da sociabilidade urbana. Enquanto, na cidade alta, o tempo-espaco se encolhe € os seus novos analistas simbélicos e seus negociantes, que agora nao fazem mais parte de paises mas de empresas, viajam habi tualmente de avido para outras metrépoles do Mercosul, na ci- dade baixa a distancia-tempo se alonga e, cada vez mais, as pessoas s6 podem sair de seus bairros a pé, porque nao tem dinheiro para pagar a passagem, porque o sistema de transpor- tes privatizado as obriga a tomar caminhos longos e caros para se moverem, e suas pequenas receitas as impedem, inclusive até, de procurar trabalho, confirmando que sao habitantes do bairro mas nao do mundo; uma cidade com guetos de pobreza institucionalizada que sio assistidos de maneira focal, a fim de {que agientem: uma cidade com fortalezas governadas por mé- fias, que sdo penetradas somente por ‘exércitos, € por poucas horas apenas; uma cidade em que é dificil desenvolver um co- imércio com tantos assaltos por més; uma cidade cujos endere- os nao padem ser passados, porque o simples mencionar aonde se mora estigmatiza e fecha as portas até para o emprego mais precario, Enquanto uma cidade se comunica pela Internet € se movimenta nos automéveis mais modernos, a outra se comuni- ‘a cara a cara ou, do contrario, nao tem voz e fica a pe. Se tudo segue desse mesmo jeito, vamos acabar chegando a ‘essa cidade dual. Esto nos globalizando de tal forma que a gran- ide sociedade urbana de Buenos Aires tende a dualidade: hé uma segmentacao da sociedade e ha, também, uma segmentagao dos mercados e das culturas. Tudo isso € estimulado através dos Inieios de comunicacéo de massas, especialmente da TV, pela Jiniversalizacao-homogeneizacao da producao simbélica sobre 0 — TT IN, [estas tipicas de povoados na qual se bails, 115 que & 0 bem-viver (viver como os habitantes da cidade alta, em Buenos Aires) gerando frustracdo na maioria da populacao. Essa possivel economia alternativa, economia do trabalho, seria um sistema que se desenvolveria a partir da economia dos setores populares, fortalecendo suas vinculacoes e capa- ‘cidades, potencializando seus recursos, sua produtividade, sua qualidade, assumindo novas tarefas, incorporando ¢ autoge- Tindo os recursos das politicas sociais de modo a fortalecer os lacos sociais entre seus membros, seus segmentos, suas mi- crorregides; uma economia que estruturalmente distribua com mais igualdade, que supere essas tendéncias a exploracao ou 4 violencia, que seja um setor da sociedade mais harménico e in- tegrado, com outros valores de solidariedade, com maiores re~ cursos voltados para a cooperacao. Nao tenho tempo, aqui, para desenvolver isto. Mas, de qual- quer forma, queria afirmar a idéia de que tudo isso & possivel. Com tal predicdo de possibilidade, nao quero dizer que isto va ocorrer necessariamente, pela propria natureza das coisas. Pode nao ocorrer: esta economia do trabalho pode nao se organizar: 15 coisas podem continuar seguindo 0 rumo pelo qual estao indo; ou ainda pior. Como toda predicdo de transformacio social contréria a0 movimento “natural” do capital tem que ir acompa- nihada de um programa de acio sociopolitica, este deve se basear na avaliagao dos recursos, os atuais e os potencias; no estudo dos ‘mecanismos que, hoje, esto reproduzindo @ dualidade e a pobre- ‘za; em se propor com audacia, mas responsavelmente, tudo aquilo {que pode ser feito para transformar a economia dos setores popu- lares num sistema de economia do trabalho. As questoes de escala e sinergia Neste ponto, me acorte fazer a seguinte reflexao: estas pro- postas que estou apresentando aqui nao surgiram da especula- ‘Gao académica; elas s4o produto de experiéncias pessoais reflexivas. ‘Como eu me iniciei nesta problematica da economia popular? Foram duas experigncias que me levaram a levantar as novas perguntas. Uma foi a da Revolucio Sandinista. Uma revolucdo muito especial pela convergencia de trés correntes (a marxista, 116 4 nacional ea crista) que, dela, fizeram uma revolucio altamente democratica e extraordinariamente positiva, como experiéncia, para a América Latina. Lamentavelmente, foi abortada pela enor- me pressao a qual foi submetida pelo governo de Reagan e seus aliados e pela queda do socialismo real. Nessa revolucao, ainda no ano de 1985, ou seis anos depois do triunfo sobre 0 Somo- Zismo, ao que me parece, a esquerda revolucionaria nao havia ainda encontrado a chave para compreender a economia popu- lar. Na realidade, creio que alguns setores da Revolugao Sandi- nista a compreendiam. No entanto, outros setores nao podiam entender este mundo da economia popular ¢ o viam, inclusive, ‘como uma sementeira anti-revolucionaria. Esta foi uma experiéncia que me marcou e que me disse que deveriamos pensar melhor, compreender melhor 0 que fazer a partir dessa realidade tao dificil de classificar, tao rebelde de se brganizar sob um processo de transformacao social centralmen- te dirigido. No caso especifco da Revolucao Sandinista, isto era tio mais significativo quanto as estatisticas mostravam que uma parte muito importante dos que morreram lutando contra So- moza, na insurreigao final de Managua, faziam parte, precisa mente, dos setores chamados informais urbanos. No entanto, posteriormente, por suas praticas de reprodugao, por seu modo de autogerir 0 seu trabalho e de se inserir nos intersticios deixados por uma economia altamente planejada e regulada (em boa parte por se tratar de uma economia de guerra, pela jressio externa), foram caracterizados como resisténcia a0 modelo da nova sociedade. A outra experiéncia sao os miltiplos encontros e experién- ‘as proprias com ONGs na América Latina. S40 ONGs que tem iintervencées qualitativamente maravilhosas —como também era {qualitativamente maravilhosa essa macrointervencao chamada Revolucao Sandinista ~ mas que, neste caso, se trata de micro- Jitervencdes: que trabalham com trinta familias que, talvez, tra- athe com cem familias; que trabalham em redes, com poucos Wlementos, e a partir de relagoes muito especializadas; que sd grande qualidade mas de um altissimo custo per capita, em Jermos de vontade e de ativismo investidos. Uma ONG pode 17 esperar dez anos para sentir que conseguiu resultados de auto- sustentabilidade, trabalhando em um s6 bairro. Mesmo coma davida constante sobre o que poderd vir a acontecer se forem embora do bairro. © contato com muitas dessas historias, e com os seus resultados, obrigou-me a me perguntar como é que, com intervengdes desse tipo, isoladas ¢ isolaveis, quan- do nao em franca competicao entre si, se pode chegar a re- solver, de maneira dinamica, o problema de centenas de milhoes de pessoas excluidas na América Latina. Isto é, os problemas da ipressionou o seguinte: trabalhando com ati- vistas da promocio popular, faz uns dez ou quinze anos atras, estes coincidiam em que, dadas as tendéncias ja em marcha, com respeito ao empobrecimento ¢ a falta de salérios, se fazia nnecessario intervir no fator econémico. Mas, ao mesmo tempo, diziam: “nao entendo nada disso”. Eles trabalhavam com a cons~ cientizacao, com a organizacao, trabalhavam com a promocéo cultural, com a sade, com a moradia, mas nao podiam enxergar que 0 que estavam fazendo ja era econdmico, que a economia ndo se reduz a atividades que passam pelo conceito dinheiro-re- ceitas. Nao sabiam como fazer para que as pessoas pudessem ganhar dinheiro, de sorte que logo apareceram os programas de “trabalho e renda"”? como uma nova linha de trabalho. Na realidade, a economia tem a ver com a resolucao de todas as necessidades, as culturais, as simbélicas, as de sociabilidade, e também com as necessidades materi como © acesso aos servicos de satide, educacao e moradia, ainda que isto nao se dé através do mercado e do dinheiro. Entao, de fato, uma parte muito importante do trabalho destas organizagdes tinha a ver com a economia popular, mas elas nao o percebiam assim. De onde se podia observar que, até mesmo para ativistas muito 2. Até aqui tenho evtado traduzit “ingessos” como “renda" para evitar a const ‘Ge enda como o modo de ganar do rentistarenda da tera, rend do dnheiro. $6 que, ‘ester, resolvemos trade “ingressos" como "renda uma vez que o termo que di home's progamas dese tipo, entre nés, €justamente “trabalho erenda", cntribuindo pata aumentar a confusdoafinal, 2 renda € tao justa como todas as formas de te- fruneragio do trabalho... Tanto que slirio também €renda (n.d). 118 iscientes € criticos do sistema capitalista, 0 fator econémico restringe ao pecuniario, ao que passa pelo dinheiro. Esta é ‘a amostra da dificuldade que se tem para entender e atuar jticamente com respeito a economia, e de por que se acredita que s6 0s economistas é que sabem desse assunto. Queria simplesmente esclarecer porque, do ponto de vista pessoal, eu acho importante que pensemos coletivamente esta possibilidade: de que podemos rearticular o pensamento sobre © micro e 0 macro. Em particular, no sentido de que aqueles que atuam em escala micro possam enquadrar essa sua acao numa aco coletiva mais ampla, voltada para a transformacao das ma- croestruturas. E, também, que possamos pensar nas estruturas ¢ instituigdes de uma economia do trabalho e nos passos que devem ser dados para poder desenvolvé-las. Transformagdo estrutural Obviamente, falta fazer muita coisa ainda, até que se chegue conformacio de um sistema organico de economia do traba- Iho. Entretanto, recursos hd. S6 que, desde esta perspectiva, de- veriam ser usados de modo mais eficiente. Os recursos, materiais e de saberes, e as capacidades humanas de que dispoe a economia popular sdo, por si mesmos, muito importantes, in- clusive enquanto valor monetario — efetivamente realizado ou passivel de ser mensurado —relativo & massa dos bens e servicos que produzem e as necessidades que satisfazem. Mas eles nao sao suficientes. Para que essa economia do trabalho possa ser reorganizada e potencializada se faz necessério injetar recursos novos, com o objetivo especifico de transformacao estrutural. Uma via 6 a de, paulatinamente, redirecionar os recursos puiblicos que estdo dirigidos como subsidios ou doacées para os setores populares e que. hoje. estao focalizados nos seto- res de extrema pobreza, como programas assistenciais admi nistrados de forma clientelista a fim de se controlar votos ou garantir governabilidade. £ preciso redirecionar estes recursos para a promocao de um sistema de economia do trabalho a partir da economia dos setores populares, autonomizando-os dessa dependéncia do asssitencialismo que apaga a criatividade 9 ea iniciativa produtiva, tanto de seus “beneficiarios” como dos préprios agentes que intermediam a distribuicao desses progra- mas. Esses agentes, muitas vezes, sao as préprias ONGs ou re- des de solidariedade. E preciso, além disso, somar outros recursos. Para o que, ha que se disputar parte do excedente econémico que hoje vem sendo acumulado pelos monopélios e por uma minoria de altfs- sima renda, e fazer com que isso se reverta para a economia popular. S6 no fazer com que se cumprissem as leis tributarias ‘em nossos paises, teriamos jé grandes massas de recursos dis- poniveis para promover outras estruturas econémicas. Estrutu- ras que, baseadas na légica da reprodugao ampliada da vida e nao na acumulacao de capital, poderiam ser cada vez mais auto- sustentadas por seus prprios resultados econdmicos. Esta injecdo de recursos é necesséria porque, para se gerar Novas estruturas que possam sustentar-se sinergicamente, éne- cessario conseguir complexidade e interdependéncia suficientes. Eisto € algo que nao dé para se fazer em se cuidando apenas da qualidade humana das relacdes de producao e distribuicao, como conseguem alids, efetivamente, tantas, extraordindrias e exemplares microintervencdes no mundo da economia popular. A transformacao ética ¢ algo fundamental, mas nao é suficiente para se alcancar um objetivo tao ambicioso. Também é necessa- rio alcancar uma escala adequada, é necessério uma revolucao moral, para que toda a sociedade decida investir na economia popular: através de fundos para se desmercantilizar a educacao permanente para todos, de créditos responsaveis, de inve mentos em infra-estrutura produtiva, de potencializacao e reen- contro da producao popular agréria com a urbana, de inves- timentos em equipamentos coletivos essenciais para se obter outra qualidade de vida. de investimento no redirecionamento e desenvolvimento de centros tecnolégicos e plataformas de ser- vigos produtivos para a economia popular. Nao da para pensar que esta é uma alternativa que possa se efetivar com base ape- nas no trabalho humano isolado, sem acumulacao. E necessario que a sociedade invista nesta economia para permitir que o tra- balho desenvolva todo seu potencial. E esses investimentos tém 120 que passar pela prova da eficiéncia. Porém nao no sentido capi- talista, de dar lucros méximos. Mas no sentido de produzir os efeitos estruturais desejados, produtivos, culturais, sociais e po- liticos, com 0 minimo custo para a sociedade, e nao apenas em termos de gasto piblico (como calcula o Banco Mundial, que aumenta a eficiéncia do gasto piblico recorrendo ao trabalho gratuito dos beneficidrios de seus programas). A economia do trabalho deve articular uma diversidade de formas de organizacao, diferentes do modelo da firma capitalis- ta. Toda uma variedade de empreendimentos, ividuais, coo- perativos, de tipo mercantil e de tipo nao mercantil, devem ser promovides. Seria um erro pretender que houvesse apenas uma tinica forma de se reorganizar a economia popular: que a forma de microempreendimento individual, por exemplo, seja a nica, ou, sendo, que a forma de cooperativa de trabalho, ou de coo- perativa de producao seja a Gnica, ou, ainda, que as redes de auto-ajuda solidaria sejam as Gnicas a serem promovidas. Todas essas formas, e muitas outras, devem estar presentes neste de- senvolvimento da economia popular. As redes de troca sao outro ‘exemplo. Ou, para dar um exemplo do que seria a introjecéo de valores do desenvolvimento humano na economia ptiblica, 0 Or- ‘camento Participativo pode ser visto como uma instituicéo pr6- pria de uma economia mista na qual a economia do trabalho tem forca para contrabalancar as prioridades da economia empresa~ rial capitalista no terreno da economia piiblica. Eevidente que se deve impulsionar as redes. Eu nao seria tao negativo com respeito as redes como, me parece, foi levantado aqui. Nao ha divida de que, se elas se reduzem a um espaco unicamente virtual de intercdmbio de experiéncias, como tantas vezes acontece, isso nao é suficiente. E pode ser desgastante para a disposicao de participar. Nao se tem, apenas, que pensar juntos, tem-se também de fazer juntos. Aprender a partir da ‘experiéncia requer, € claro, no apenas uma anélise critica das proprias experiéncias e das alheias. Requer também uma conti- rua superagao prética dessas experiéncias e a sua complexitica~ a0. Nao se trata, tampouco, somente de intercdmbio de infor- macées ou da producao de idéias, por mais que estejamos indo 121 ‘em diregao a um sistema tecnolégico no qual a informacao seja 0 insumo eo produto principal. E preciso que as tedes canalizem intercdmbios substantivos de bens e servicos, desenvolvendo relagdes de complementariedade entre os distintos elementos da economia popular, gerando tensdo para as microestruturas no jogo estimulante de ser necessario para outros e de ter ne- cessidade dos outros, em relacdes dinamicas. Mercados com ‘concorréncia cooperativa ou solidéria: estas podem ser as pala- vras adequadas para descrever essas redes. Para o conjunto das atividades econémicas populares é ne- cessario 0 desenvolvimento de atividades coletivas de reprodu- ao com um componente significativo de solidariedade e de vontade. Mas é preciso também 0 desenvolvimento da interde- pendéncia mercantil, o intercdmbio dos trabalhos particulares através da forma de mercadorias que se vendem e se compram ‘com dinheiro, Mesmo que se use o mesmo dinheiro do mercado capitalista. O mercado € um sistema de relacdes em que se es- tabelecem precos com base em relagGes mecanicas, mas tam- bém com base no poder, em acordos ou poderes de regulacao ou auto-regulacao, e com base em comportamentos de atores que se fundam em saberes, valores e visdes do mundo. Nesse senti do, o mercado capitalista, controlado pelos poderes monopolistas e submetido a uma concorréncia selvagem, e baseado em valores individualistas, nao é o tinico mercado possivel. E possivel haver relacdes de mercado que nao sejam aquelas que se caracterizam pelo intercambio desigual capitalista, nem, tampouco, pelo ca- nibalismo que as vezes é tipico do mercado dos vendedores am- bulantes ou dos que fazem os transportes urbanos”. Entre aqueles que trabalham com a promocéo popular, ha correntes que véem 0 mercado como uma instituicao hostil. Do mesmo jeito que consideram também como instituicao hostil o poder politico e os seus mecanismos. Creio que € preciso rever essas duas posig6es, pois é quase impossivel que se consiga um resultado de porte e sinergia através apenas de microinterven- 30, Referéncia a “peruirs". bes solidérias. Somente em grupos muito reduzidos e em rela- {es cara a cara é que se pode conseguir um controle ético per- Sonalizado dos comportamentos. Por isso, as sociedades desen- volveram sistemas de governo e cbdigos normativos, sistemas de justica e de controle dos comportamentos. Que tais sistemas tenham sido postos a servico de minorias poderosas ou do ca~ pital, nao quer dizer que nao sejam necessérios como sistema, Sio necessérios sim, mas com outro contetido: justiga social e democracia participativa. E necessario contar com sistemas de intercambio, de coope- racao ou de concorréncia cooperativa, de difusao de modal dades de consumo para outra qualidade de vida etc., para que possa ser realmente posto em movimiento um processo de au- ‘todeterminacao da economia das maiorias. £ necessario o de- senvolvimento de sua capacidade sistémica para que possa competir com as empresas capitalistas. Isso implica mecani mos de difusao de informacao e de conhecimento de alto di namismo, com centros pré-ativos de desenvolvimento tecno- \6gico e organizacional, facilitando (ou as vezes limitando) @ difusdo de inovagées e facilitando a cooperacao entre em- preendimentos e redes especificas, regulando os inevitaveis conflitos entre interesses particulares. 1Hé algumas correntes que querem proteger os setores popu- lares da excessiva inovacéo, do consumismo, do modernismo; de alguma maneira, querem conservar o que é tradicional e co- munitario em detrimento do social e inovador. O que nos parece totalmente valido como proposta adotada conscientemente por grupos que querem viver nessas condigoes de solidariedade ple- hae direta. Mas, nem tanto, se queremos avancar no acesso 20 desenvolvimento humano por parte das centenas de milhées dos que hoje estao senda excluidos. ou em proceso de empo- brecimento. A estes. dificilmente se poderd atendé-los em suas necessidades se no se poem em acao outras tecnologias, siste- imas de difusdo mais abertos e ideologicamente menos homogé- feos e se incorporam instituicdes que, como o mercado, podem ser alienantes se ficam condicionadas a mecanica da concorrén- cia global, mas sao indispensaveis para se coordenarem sistemas complexos e altamente dinamicos, Desenvolver um sistema de economia do trabalho requer que as universidades e os centros de pesquisa deixem de traba- lar somente como espaco académico e que comecem a produzi conhecimentos que possam ser colocados ao alcance das unida- des da economia popular, de suas redes, de suas cooperativas, Partindo dos problemas vividos por elas, e mesmo, inclusive, propondo inovagées com certa autonomia. O desenvolvimento de estruturas econémicas para uma ‘maior autodeterminacao das maiorias requer também o desen- volvimento de navas formas de organizacio e de representacao de seus sujeitos-agentes, Estes devem apresentar identidade su- ficiente para fechar acordos com Tespeito a programas e vias de acao coordenadas, conduzir as negociacées referentes ao con- teuido das politicas puiblicas e estabelecer relacoes de intercam- bio com a economia do capital e com a economia piblica. Dou um exemplo. Se o objetivo é conseguir, dentro de uns vinte anos, o desenvolvimento de uma economia do trabalho, estamos diante de um projeto transgeracional. Portanto, é es- sencial transformar qualitativamente um investimento funda- mental para esse fim: a escola. A reivindicacao popular, de que haja escolas publicas gratuitas e de que seja assegurado o acesso de todos a escola, é valida, mas insuficiente. £ funda- mental modificar 0 que se passa dentro da escola; examinar 0 tipo de formagao e informacao que sao dadas as nossas crian- cas e adolescentes; os conhecimentos que so transmitidos; a Pedagogia da qual os professores e mestres se utilizam para forma-los; a vinculacao que essa escola mantém com o mundo fora dela; que sensibilidades e valores. que dispasicdes ao em- Preendimento, que capacidade de defesa dos direitos, que capa- idades de organizacao e de interpretacdo do mundo sao desen- volvidos na escola. Todos os que trabalham em ONGs sabem o quanto é dificil fazer as pessoas participarem. Como dizem os promotores, che- ga um momento em que as pessoas se cansam, e é muito difci 124 fazé-las sentar e tornar a sentar. O pragmatismo conspira contrariamente a que participem se nao virem resultados ime- diatos. Pois todos os dias mantemos as nossas criancas e ado- lescentes sentados por cinco ou seis horas, resistindo passi- ‘vamente a uma educacao cujo sentido eles nado véem, ou, mes- ‘mo, participando ativamente no processo de producao de sign: ficados e de seu desenvolvimento como pessoas, como cida- daos, como trabalhadores. ‘Temos uma oportunidade Ginica para contribuir com um pro- jeto transgeracional de desenvolvimento de uma outra cultura, de outros valores, de outras capacidades, o que, em boa medida, €0 que requer 0 desenvolvimento do “capital” humano, o pri cipal recurso da economia popular. Estamos nos aproveitando disso? Estamos incluindo os professores e mestres como agentes fundamentais do desenvolvimento econdmico popular. ou con- tinuamos a propugnar que nos concentremos nos sistemas infor- mais de educacao de adultos? A mesma coisa vem acontecendo com o sistema de saiide, sujeito hoje as reformas propiciadas pelo neoliberalismo. Os processos de transformacio do sistema de sad- de podem ser pensados do ponto de vista da economia popular, do ponto de vista do desenvolvimento desta economia, das suas relagdes, do que séo 0s processos de satide-doenca, do senso comum sobre 0 que é a relacdo paciente-médico etc.,. condigdes de enorme importncia para a qualidade de vida. Sem davida, é preciso avancar na reorganizacio politica em diregao a um sistema que permita o desenvolvimento de sujeitos politicos coletivos, que sejam capazes de exercer um poder po- litico-administrativo de representacao das maiorias, e com a participacao das maiorias. Conforme esta perspectiva, 0 promo- tor de base que nao queira se contaminar com 0 mundo do poder ou da politica estaré limitando a sua contribuigao para o desen volvimento de um sistema de economia popular. Porque, para que este sistema de economia do trabalho possa resistir ao em- bate do capital, se requer a presenca do Estado, mas de um Es- tado democritico baseado na democracia participativa, e que conte com funcionarios que tenham uma outra concepcao de sua relacao com a cidadania As correntes politicas e sindicais, os movimentos de direitos humanos, os movimentos étnicos, de género, de geracdes, os movimentos de consumidores, sao outras tantas formas de or- ganizacao e de luta que podem contribuir com o desenvolvimen- to de uma economia do trabalho. Nao hd um sujeito tinico, nem hha uma forma Gnica de organizagao ou de aco, tem que haver pluralismo de iniciativas. Pode-se estar recuperando para os tra~ balhadores empresas que seriam desmontadas e privatizadas ou, mesmo, dadas de presente ao capital pelo Estado neoliberal, em seu afi privatizante, Pode-se estar trabalhando a partir da base, com linhas de cooperacao. Pode-se trabalhar com as organiza~ des de bairro. Os mestres, os pastores, os artistas, os médicos € curandeiros podem ser ativistas destas transformacoes. Nao hha um sujeito privilegiado; ou, ao menos, eu nao considero claro que deva haver um tinico tipo de agente promotor, uma Unica identidade que assuma o encargo de dinamizar este processo. uta politica O alcance que teria uma reestruturacao da economia popu- lar deste tipo seria equivalente ao alcance que apresenta hoje a reestruturacio do capital, Seria uma mudanca muito forte, se fosse possivel encaminhar e estruturar um sistema deste tipo! Isso requer aces coordenadas por um perfodo prolongado sem que sejam, no entanto, enquadradas em esquemas ideoldgicos muito fechados, pois isso pode matar a iniciativa. Tem que haver algo parecido com a concorréncia cooperativa ou a emulacao. na busca de se alcancar uma qualidade de vida superior para todos. Deve ser admitido o pluralismo ideolbgico dentro de um espec- tro bastante amplo. O que, até pragmaticamente, é exigido pela heterogeneidade do ponto de partida Exatamente por isso, nao se pode pressupor um «nico sujeito ‘mas, 20 contrario, sujeitos coletivos diversos que irao se cont gurando durante 0 desenvolvimento mesmo das novas estruturas socioeconémicas. De acordo com esse ponto de vista. uma peca-cha- ve da proposta de desenvolvimento da economia popular € a democratizacio. Nao ajuda em nada que, para se dedicar a0 mundo social, se admita cinicamente que a politica é corruptae 126 que nada pode ser feito com respeito ao mundo da politica, en- quanto se deixa a democracia e 0 controle dos recursos piblicos nas maos de representantes politicos que substituem a vontade das maiorias. A luta pela democratizacao caminha junto com a luta por outras condicdes econdmicas. Mas, além disso, 0 ati- vismo na sociedade nao esté isento de relacdes de poder nem da geracio de outras estruturas de poder, pois esta é a condicao de sua eficdcia. Assim, 0 enfrentamento dos monopélios dos servi- cos, comerciais e financeiros, da corrupcao politica e da venali- dade da justica € fundamental. Tem-se que trabalhar por uma comunidade com corrupcao zero, ou com um real controle da corrupgao. A luta para transformar a economia popular implica na luta contra os monopélios ¢ esta s6 se potencializa se hi um poder politico demoeratico. O que implica, claramente, numa transfor- macao da cultura, porque um dos principais obstaculos para a democracia € o senso comum legitimador deste sistema exch dente. No fundo, hd uma questao de poder: nao € que as idéias neoliberais se impuseram ao mundo, como um paradigma, por sua corregao tebrica ou sua validez empirica: elas foram impos- tas por uma correlacio prévia de poder que as entronizou como ideologia dominante. 0s valores do mercado capitalista e a logica estritamente instrumental se introjetaram ndo apenas no discurso e nas a6es piblicas, mas também no discurso e nas acdes das pes- soas. Se fizermos uma pesquisa, nos dias de hoje, muita gente vai dizer: “este politico é corrupto, mas realiza obras”. E ainda vai considerar isso como positivo ou aceitar como imutével. Ou, entao, vai eleger alguém que tenha uma personalidade forte, ou que prometa repressao rigorosa, quem sabe a pena de morte, porque quer ter protecao contra a violencia da rua. Assim, no senso comum, existem valores que tém que ser contraditos. Por isso nao podemos, tampouco, nos dedicar & forganizacao de atividades econdmicas e nos esquecermos da uta por outros valores morais. Luta cultural Ha uma luta simbélica. E creio que esta luta nao divide a sociedade como numa luta de classes. O divisor de aguas cultu- ral nao corresponde a delimitacdo entre classes. Mais ainda: ha setores pobres que, talvez, estejam mais dominados que outros, por esses valores regressivos. Ao mesmo tempo que, entre os setores da classe média, ha forcas importantes para um projeto pensado desde a perspectiva mais ampla das classes trabalhado- ras. Os interesses estratégicos de boa parte das classes médias baixas passam por uma sociedade mais integrada e nao por uma sociedade mais polarizada. Esta luta simbélica exige que busquemos acesso aos meios de comunicacao de massa. Nao é suficiente que se desenvolva esse trabalho com aquela conduta exemplar dos promotores po- pulares, indo de casa em casa, convencendo a cada um. £ neces- sario atacar também através dos meios de comunicacdo de massa que hoje estao globalizados e nas maos de empresas ca- pitalistas. Especialmente porque esses meios produzem uma idéia de boa vida’' contra a qual nés vimos combatendo. Esse senso comum legitimador do sistema contém um ele~ mento critico que abarca hoje a maior parte dos cidadaos: € a crenca de que a economia é uma segunda natureza, a crenca de ‘que nada pode ser feito com relacao & economia, de que so po- demos fazer alguma coisa com respeito ao social, uma vez que © econdmico nao pode ser mudado. Os gurus da economia, aqueles que manejam os modelos econémicos que partilham com 0 Fundo Monetério ou o Banco Mundial, dizem que a eco- nomia ("a economia deles”) tem leis de ferro. E mais, 0 discurso produzido pelos partidos progressistas da América Latina que aspiram ao governo acaba, em boa medida, por reproduzir a mesma politica econémica dos partidos que aqueles pretendem derrubar. E, entao, substitui-se uma equipe econdmica por ou- tra, mas que mantém a mesma ideologia econémica. Ainda que uma nova equipe possa ter outros valores com respeito a justiga, 31. Bem viver (nt). 4 corrupcao ea distribuigao, e estas sao diferencas muito posi tivas e nao meros matizes, especialmente por seus efeitos sobre tum ndmero grande de pessoas, mas, no que se refere “a econo mia", compartilham a crenca de que este € 0 Unico modelo pos- sivel. No caso da Argentina, acredita-se que nao se pode tocar nna conversibilidade porque, sendo, a sociedade vai submergir no caos. © que, no meu ponto de vista, nao. € correto. O que hoje parece ordem, € 0 caos para a mai ioria. O sistema capitalista esta gerando graus de entropia inéditos, enquanto alguns economis- tas o vém como o tao buscado equilibrio. ‘Assim, boa parte da luta por uma outra economia popular esta em disputar 0 monopélio do pensamento Unico sobre a economia. E necessario mudar as politicas econémicas. Nao basta uma mudanca da politica social para que se faca possivel pdr em marcha uma economia popular. Local, global Para terminar, havia algumas perguntas que tinham a ver com a questo do local e do global. Eu considero que o ambito local, Ambito das comunidades e da sociedade local, é um ambi- to muito bom para produzir estas mudancas, para se trabalhar ino corpo a corpo com os vizinhos. Mas, ao mesmo tempo, é muito limitado. Mais ainda, 0 contexto em que o local esta inserido ‘enormemente hostil. Por isso, com 0 pouco que avancemos local~ mente, vamos descobrir que nao podemos consolidar 0 desenvol- Vimento de uma economia do trabalho se no houver mudangas no sistema de justica, se nao acabarmos com a impunidade, se nao se mudar o sistema policial, e se nao forem mudadas a politica fiscal e a politica econémica em geral. O contexto € muito hostil para o desenvolvimento de uma economia do trabalho. Os re- sultados dessa luta poderao ser muito poucos, ainda que quali- tativamente muito importantes, mas sem nenhum ganho de ‘scala nem sinergia, se ndo disputamos as idéias sobre a boa {elacdo entre Estado, sociedade e economia, se nao disputamos 6 poder democratico para mudar essas politicas. Nao podemos aceitar aquele dito, de que se deve atuar lo- calmente e pensar globalmente: € preciso refletir muito a partir 129 da experiéncia local, e atuar globalmente também. Por isso é muito importante a Solidariedade internacional. Por exemplo, as rnovas organizacées sindicais que comecam a acontecer 20 nivel do Mercosul sao um recurso muito importante para a econor popular. Claro que isto requer que o pensamento sindicalista incorpore estas novas visdes da economia popular € nao fique apenas na idéia do confronto entre o proletariado e o capital, dentro da fébrica ‘O nacional deve ser recuperado, me parece. A idéia de pro- jeto nacional, da qual jé se falou antes, néo pode ser perdida, nao se pode dizer que isso ja passou para a historia. O nacional Eo nivel intermedirio entre o local e o global, ¢ € muito impor- tante recuper-lo como horizonte da afirmacao da identidade e de acdo coletiva: nao s6 o nacional, como também o latino-ame- ricano, o nivel de América Latina. Hoje, na América Latina, estamos fragmentados. Sao muito débeis as agregacdes e as relacdes de solidariedade. Até mesmo no futebol se pode ver isto, e em varios outros niveis. Causa-me constrangimento 0 fato de que, se no campeonato mundial © Brasil joga com a Franca, os argentinos torcam para que esta ganhe, e que, por sua vez, os brasileiros torcam pela Inglaterra contra a Argentina. Ao que me parece, este é um simbolo que ‘mostra que estamos muito separados, e que é muito facil de nos dividir, no mesmo ato em que estamos falando de solidariedade, mesmo se em outros sentidos. Bom, para terminar, é fundamental que tenhamos em conta: também o tempo. O capital vem imprimindo uma velocidade tao vvertiginosa as mudancas que quase nao podemios acompanhé-las. 56 conseguimos nos informar sobre elas com atraso, através da literatura, como ja foi muito bem exemplificado aqui, hoje. Por ‘outro lado, gerar estruturas que hoje ainda nao existem é algo que nao acontece de modo instantaneo. Mas pensemos em como, ha mais de cinqiienta anos, quando se falava em indus= trializar a América Latina, isso parecia impossivel: porque era preciso gerar novas estruturas, criar indistrias onde elas 30 existiam, criar uma classe operéria onde nem operdrios havia @ ‘em alguns paises, era preciso até mesmo criar uma burguesia. E 130 4 industrializacio aconteceu, aconteceu essa ctiagdo de novas “lasses, e levou basicamente vinte anos para se implantar 0 pro- ceeso as instituigées da industrializacao. J8 0 Vale do silicio, (que tanto se usa como exemplo, demorou vinte e cinco anos para se constituir. (© tempo desses processos nao pode ser 0 de hoje pro ama- nha, Temos que pensar, pelo menos, em duas décadas. Mas, a0 veemo tempo, € fundamental que cada dia vejamos os avangos. { importante ir vendo que as propostas que fazemos ¢ que Su- sjerimos, como aquela da cooperacéo, se demonstram melhores 3 pratica. Nao basta defendé-las com a argumentacio, € preciso thostrar que so mais efetivas, que a solidariedade é melhor que a competicao selvagem. E preciso aprender com as experiéncias, sejam elas hesitosas ou nao. E muito importante seguir conti- juuamente os processos € aprender com a experiéncia. ‘Tudo isto é dificil e pode ser acusado de voluntarismo. Nao resta a menor divida de que é dificil, Mas se 0 crtério vai ser 2 \iitculdade, pensemos entao na alternativa. A alternativa € 2 antastrofe que ja estamos vivendo, € essa sociedade para a qual ‘estamos caminhando. Nem tanto me preocupa a futura crise do hstema capitalista, do capital, ou do capital financeiro ¢ suas tonseqincias, quanto me preocupa a crise de hoje, que vive- thos todos os dias: a extrema dificuldade das maiorias em ter lima vida digna. Existe hoje uma crise de reproducao na Amé- fica Latina que, como tal, ndo sai nos jornais: esses a mostram ‘como violéncia, a mostram sob formas s6rdidas. Por outro: Ido, os sobe-desce das bolsas de valores aparecem como 2 Jane noticia, enquanto esta crise profunda. degradante, de fda da auto-estima, de perda da identidade, de perda das Hpectativas, j esté aqui e €a que temos que superal- A tarefa € de grande magnitude e, portanto, requer qUe trabalhemos jun- fs, que vejamos se podemos buscar essa famosa sinerzie, te Jlhar na mesma direcfo, ndo nos dispersarmos, néo compel tne nds, 0 contrério, buscar caminhos para trabalharmos esta Mifecio. Muito obrigado.

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