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4 IMAGEM E AUTO-IMAGEM DO SEGUNDO REINADO Ana Maria Mauad 182 + Hisr A DA DA FRIVADA NO BRASIL 2 Cara Tereza Estimo que tenhas passado bem assim como as pequenas, que gracas a Deus, sei que gozam de satide, e a quem dards dois beijinhos de minha parte. Ontem a noite houve aqui um grande baile, que duro até as duas horas da manha reunindo-se quarenta senho- ras bem trajadas e muitos homens — dancei dez contra- dangas e seis valsas. Esta tarde vou passear pela vila, como ontem jé o fiz,e ver 0 que houver digno de ser examinado, ¢ amanha as quatro horas depois de ouvir a missa, parto para a fazenda do Marqués de Sao Joao Marcos, onde me pretendo demo- rar até o dia 25, partindo neste para Iguacu onde passarei este dia os de 26 ¢ 27 e talvez 28. Adeus, um abrago bem apertado de Seu afeicoado esposo Pedro Respeito de todos e recomendagoes a todos! Pedro 11 escrevia a imperatriz, de Vassouras, uma das paradas na viagem que realizou pela provincia fluminense no verao de 1848. Saindo de Petrépolis, percorrera a regiao do café, sendo recebido em grandes fazendas ¢ vilas, cujo cotidiano ficava revirado pela chegada do monarca. 1. Vassouras, pujan: nos anos 1840. (A Vila de Vassouras, ro, 1843) e centro ca} Ostensor Brasil A visita teve cobertura do maior jornal do pais, o Jornal do Commércio, que descreveu as festas ¢ os atos do imperador nos diferentes lugares, reforgando as conexdes culturais entre a provincia e a corte. Quatro meses depois, em correspondéncia ao visconde de Macaé, presidente do Conselho de Ministros, 0 presidente da provincia relaciona “os nomes das pesoas que serviram e ob- sequiaram ao Augusto Senhor na sw illtima viagem por al- guns municipios ao sul desta provincia? O documento cita os fazendeiros ¢ seus amigos que receberam o imperador, as suas respectivas comendas, honrarias e brasées, bem como indica- oes sobre o novo titulo que gostariam de obter. No documen- to acompanha-se a distribuicao de titulos seguindo a proximi- dade e intimidade entre 0 monarca e a aristocracia rural. Nele aparecem também as anotayées do imperador, que escrevia, 8 margem dos informes, a graca e os titulos que conferiria aos seus anfitrides. Ao lado do nome de um fazen- deiro, d. Pedro havia primeiro escrito: “Habito de Cristo”; depois, como se tivesse lembrado algam mal-entendido, ris- cou a promessa de comenda. Nos pelidos de titulo julgados excessivos, 0 comentario imperial é mais enfitico: “devagar que 0 mundo nao vai se acabar”? Apesar de ter visitado muitas localidades ¢ de ter sido homenageado por poderosos senhores de escravos, o impera- dor s6 fez um marquesado e dois baronatos, agraciando de- zenove outros fazendeiros com comendas do Habito de Cris- 184 + PRIVADA Ni to, e 33 com 0 Habito da Rosa. Mas a viagem dele contribuira para ajudar a classe senhorial a construir sua auto-imagem a semelhanga da imagem do Império. E qual era essa imagem? A imagem do préprio imperador? Mas qual delas? A da carta a imperatriz, em que d. Pedro lembra-se paternalmente das filhas? Ou a auto-imagem que o imperador esboga em 1861, aos 36 anos de idade, reproduzida a seguir? [...] Sou dotado de algum talento; mas o que sei devo-o sobretudo a minha aplicagao, sendo o estudo, a leitura ea educagao de minhas filhas, que amo extremosamente, meus principais divertimentos. Louvam minha liberalida- de, mas nao sei por qué, com pouco me contento, e tenho oitocentos contos por ano. Nasci para consagrar-me as letras e as ciéncias e, a ocupar posicao politica, preferia a de presidente da Republica ou ministro a de imperador. Se ao menos meu pai imperasse ainda estaria eu hé onze anos com assento no Senado e teria viajado pelo mundo, Jurei a Constituigéo; mas ainda que nao jurasse seria ela para mim a segunda religido [...] Confesso que em 21 anos muito mais poderia ter feito; mas sempre tive 0 pra~ zer de ver os efeitos benéficos de onze anos de paz interna devidos a boa indole dos brasileiros [...] respeito e estimo sinceramente minha mulher, cujas qualidades constituti- vas de cardter individual sao excelentes Ou ainda a do proprio retrato de 1855, cuja autoria lhe é imputada, no qual posa de forma completamente diversa de todos os seus outros retratos, pomposamente oficiais, com uma das maos escondida dentro do palet6, 0 corpo recostado nas grades da varanda do Paco de Sao Crist6vao? Qual dessas trés faces do imperador se imporia a imagem do Império? Ou seria mais adequado inverter 0 questionamento e indagar se a face do imperador nao espelhava © Segundo Reinado? Imperador e Império tiveram a sua imagem desenhada pela pena agucada e perspicaz dos viajantes e de seus “risca~ dores” (desenhistas), pelos pintores e retratistas e fotégrafos que por aqui transitaram. Independentemente da modalida~ de do registro, foi o olhar do estrangeiro que nos enquadrou, a0 mesmo tempo que educava o nosso olhar, para que nds mesmos pudéssemos nos mirar nos espelhos da cultura im- portada de seus paises de origem. Uma constante dessas imagens sera a escolha da cidade do Rio de Janeiro como a sintese da representacao do Impé- rio. Como observava o jornalista alemao Von Koseritz, radi- cado desde 1851 no Rio Grande do Sul, quando passou pela corte em 1883: “Sentimos aqui pulsar a vida do Império — aqui encontramos 0 ponto central ¢ mais importante dele [...] vé-se diariamente na rua do Ouvidor os homens que governam o pais e conduzem a opiniao publica [...] 0 Rio de Janeiro e 0 Brasil e a rua do Ouvidor e o Rio de Janeiro”® Enquanto a imagem da corte era uma imagem nao so- mente publica, mas publicada nos jornais ¢ nas exposigdes universais, a imagem do Império ainda tinha como modelo a familia imperial. © OLHAR DOS VIAJANTES ESTRANGEIROS Para o viajante, a impressao causada pelo olhar € a que fica, fornecendo 0 estatuto de verdade ao relato. O fato de ele ter estado presente, de ter sido a testemunha ocular de um evento, ou de um habito cotidiano qualquer, garante a sua narrativa o teor incontestavel. DO SEGUNDO FENADO + 185 2. Vista de morro da Gléria eda baia de juanabara, quando 4 cidade se estendia para fora dio centro, ao longo do litoral 186 + Histon DA 3. O francés Victor Froud registrou 4a sua prépria imagem quando fotografava o Colégio dos Jesuita na Bahia, (Victor Frond, 1861) Na segunda metade do século xix, dois viajantes produ- ziram relatos distintos mas igualmente significativos sobre 0 Brasil: Charles Ribeyrolles e Carl von Koseritz. Ribeyrolles, republicano convicto, chegou ao Brasil a convite do fotdgrafo Victor Frond para participar do projeto de um livro contan- do as riquezas e as belezas do pais. Tal projeto resultou no livro Brazil pittoresco, em que as litogravuras de Sourier, ba- seadas nas fotografias de Frond, apresentam uma composi- a0 equilibrada do Império. Paisagens em grandes panora- mas, os principais prédios do governo, as fazendas, os lugares pitorescos, a vegetagdo exuberante, a arquitetura bem-aca- bada, esta tudo ld, definindo 0 Segundo Reinado. O texto de Ribeyrolles acompanha a direcao dada pelas imagens.’ Um Ribeyrolles muito mais preocupado em explicar o coti- diano do que os diamantes da coroa. O capitao Von Koseritz escreve na década de 1880, com © regime ja estremecido. Chega a corte em 1883, em meio a um surto de febre amarela. Visita 0s lugares importantes, tece comentirios sobre os hotéis e restaurantes, participa do cir- cuito de saldes e das festas da comunidade estrangeira. Na condigao de repérter da Gazeta, do Rio Grande do Sul, escre- ve 0 seu didrio de viagem em forma epistolar: as “cartas da corte”, publicadas regularmente pelo jornal O que os viajantes tém em comum? Num primeiro mo- mento, seu olhar de observadores externos enquadra com IMAGEM E AUTO-IIAAGEM DO SEGUNDO REINADC clareza quase classificatéria tipos, costumes, normas de com- portamento, Passado algum tempo, a vivéncia cotidiana leva- os a se misturar ao ambiente visitado, se tornar intimos de gente da terra, se familiarizar com as rotinas e os problemas da cidade. Reclamam do calor, dos mosquitos, das chuvas torrenciais, da sujeira das ruas, do descaso das autoridades, dos cocheiros e dos caminhos para os diferentes sitios, da situagao politica. Nesse movimento “nao s6 figuram um Bra- sil, como ensinam a figuré-lo, a descrevé-lo”* Em seu brilhante livro sobre a influéncia da narrativa dos viajantes e do traco dos desenhistas, acompanhantes dos naturalistas, na composicao da literatura romantica nas déca- das de 1830 ¢ 1840, Flora Siissekind demonstra como essas obras criarem uma imagem do pais que se decalca na figura- a0 do Império. Corroborada pelas fotografias de paisagens em chapas de grande formato e pela participacao do Brasil nas exposicOes universais, essa imagem teve como marca aquilo que a autora denominou de “a sensagao de nao estar no todo”, iluminar uma parte escurecendo as demais.’ A problematica da verdade na criacao de uma imagem de Brasil enfatiza 0 papel dos relatos de viajantes, principal- mente o dos estudiosos naturalistas. A escrita em transito forneceria o tom de testemunha ocular aos relatos, escritos no estilo simples da verdade. O mesmo tom estaria presente nas aquarelas ¢ desenhos dos pintores que acompanhavam as expedicdes. Ender, Rugendas, Taunay, Hércules Florence, eram elogiientes na sua necessidade de tudo registrar. Tal elogiiéncia fica ainda mais patente se pensarmos que foi esse mesmo Hércules Florence o descobridor, no Brasil, seis anos antes de a noticia chegar da Franca, da possibilidade de fixar desenhos com a luz: a fotografia.” O empenho do desenhista Florence em encontrar alguma técnica que copiasse a nature- za com toda a fidelidade, é exemplar para se caracterizar 0 papel assumido pela fotografia na construgao da imagem de um Brasil muito mais ligado com o futuro imperial do que com o seu passado de colén No que se refere tanto a figuracao da realidade como a logica industrial, 0 daguerredtipo, apresentado na Academia de Ciéncias da Franca em 1839, é um sucesso."' Em primeiro lugar, por proporcionar uma representacao precisa da reali- dade, fornecendo a imagem um estatuto técnico que lhe sub- + 187 188 + RIA DA aD 4, O primeiro daguerreétipo tirad no Brasil e na América do Sul por Luis Compte, em 1840+ 0 Pago Imperial com a tropa formada nna sua frente, Ao fundo, a direita, 0 Hotel de France, Aqui se situava 0 coragao do Império. trai, por completo, os vestigios de subjetividade. Em segundo lugar, a rapidez e procedimentos simples e codificados am- pliam seu uso, retirando o carter de unicidade da produgao visual do século xix. Como se sabe, 0 daguerreétipo ficou conhecido no Brasil em 1840, Sua chegada foi registrada pe- los jornais da corte: Finalmente passou o daguerrestipo para cé os mares ¢ a fotografia, que até agora s6 era conhecida no Rio de Ja- neito por teoria [...] Hoje de manha teve lugar na hospe- daria Pharoux um ensaio fotogrifico tanto mais interes- sante, quanto é a primeira vez que a nova maravilha se apresenta aos olhos dos brasileiros. Foi o abade Compte que fez a experiéncia: é um dos viajantes que se acha a bordo da corveta francesa LOrientale, 0 qual trouxe con- sigo © engenhoso instrumento de Daguerre, por causa da facilidade com que por meio dele se obtém a repre- sentagao dos objetos de que se deseja conservar a ima- gem |...] E preciso ver a cousa com seus préprios olhos para se fazer idéia da rapidez e do resultado da operacao. Em menos de nove minutos o chafariz do Largo do Paco, a praca do Peixe, 0 mosteiro de Sao Bento, e todos os outros objetos circunstantes se acharam reproduzidos com tal fidelidade, preciso e minuciosidade, que bem se via que a cousa tinha sido feita pela propria mao da natureza, e quase sem a intervencao do artista." A necessidade da experiencia visual, ressaltada na crdnica, uma constante no século xxx. Numa sociedade em que a gran- de maioria da populagao era analfabeta, tal experiéncia pos- sibilita um novo tipo de conhecimento, mais imediato, mais generalizado, ao mesmo tempo que habilita os grupos sociais a formas de auto-representagao até entdo reservadas 4 pequena parte da elite que encomendava @ pintura de seu retrato. A demanda social por imagens incentivou pesquisas no sentido de melhorar a qualidade técnica das representacées, facilitar seu processo de producao e retirar-lhe o cardter de reliquia, ainda presente no daguerredtipo. De fato, apesar de sua pos- sivel reprodutibilidade, 0 daguerredtipo aparecia como uma OIMAGEN, 90 SEGUNDO FE 5. O Hotel Pharoux, importante centro de reunioes no Segundo Reinado. Foi ali que, em 1840, 2 abade Compte apresentou «a9 imperador o primeiro daguerreétipo. (Foto de Klumib + 189 190 + HistOzA DA 6, 2. Fotos da Exposigao Antropoldgica de 1882, Desaparecendo das matas por causa dos massacres perpetrados pelos bugreiros, das doengas e do movimento da fronteira agricola no Centtro-Sul, os indios comegam a entrar como estétuas nos museus imperiais. peca tinica, acondicionada em estojo de luxo as vezes conside- rado como uma jéia. Portanto, o desenvolvimento técnico e a conquista de novos mercados e de paisagens exéticas foram ingredien- tes importantes para os novos usos ¢ fungdes da imagem, notadamente a fotografica. Atuando nessa diregao, os foté- grafos-paisagistas contribuiram para corroborar a imagem delineada pelos paisagistas e desenhistas que acompanha- vam as expedicoes naturalists. No século xix, a fotografia de paisagem prendia-se aos canones da pintura romantica € do paisagismo dos grandes panoramas. Dai as chapas de grande formato aparecerem como as mais adequadas a esse tipo de fotografia: produziam um resultado proximo a0 das vistas e dos panoramas pintados. Marc Ferrez, foté- grafo brasileiro que atuou na corte a partir da década de 1870, especializou-se em vistas, chegando a aperfeigoar 0 aparelho inventado por M. Brandon, préprio para vistas panoramicas. Entretanto, é importante perceber que a fotografia de vistas, mesmo com apoio nos canones da pintura, desenvolve uma linguagem propria, em que a nitidez ¢ a distribuigao clara dos planos é a marca fundamental — uma estética cuja fungao primordial € transmitir mensagens que engendrem um sentido, distinto daquele produzido pelas pinturas, aqua- IMAGEN E AUTOIMAGEM DO SEGUNDO REINADO + 191 relas ¢ desenhos. Como bem avalia Solange Ferraz de Lima, a fotografia abstrai o tempo e reordena elementos do real na sintese da imagem. Ao escolher temas variados e isolados en- tre si para compor as vistas, tais imagens eliminam as rela- Ges sociais, justapondo-se numa colagem do real em que © Progresso se equivale pelo que aparenta e nao por sua reali- dade."* Guardando tal perspectiva, a fotografia brasileira no século xix teve as exposicdes universais como espaco de exce- Iéncia para a sua divulgacao. Maria Inez Turazzi, em interessante ensaio sobre a foto- grafia e as exposigdes internacionais, demonstra como se conjugavam o “progresso material” e a “fantasia hidica” na construgao do ideal de um mundo novo. A mise-en-scene do espetaculo futurista tinha na fotografia seu melhor adereco, concebida como fruto da criatividade a servico da criagao humana. Por meio dela poderiam ser expostos, sem maiores esfor¢os, os recursos naturais ¢ os frutos do trabalho mecani- zado, teméticas fundamentais as “vitrines do progresso”.® A partir de 1862 a fotografia ¢ os fotgrafos do Império participam das exposigdes universais e recebem varios pré- mios. Tais premiagdes figuravam no verso dos retratos dos fotdgrafos da corte, como marca de distincao e qualidade de seus servicgos. Era o retrato 0 que mais ztraia a clientela ja consolidada na corte na década de 1860. Alids, 0 século xix, afora o fascinio causado pelas vistas estereosc6picas, foi do- minado pela preeminéncia do retrato.'* A pose é 0 ponto alto da mise-en-scéue fotogréfica oito- centista, pois nela combinam-se a competéncia do fotégrafo em controlar a tecnologia fotografica, a idéia de performan- ce, ligada ao fato de o cliente assumir uma mascara social, ea possibilidade de uma forma de expressio adequada aos tem- pos do telégrafo e do trem a vapor. © COTIDIANO DAS IMAGENS Seu consolo nesse abandono de galé, nessa espécie de viuvez d’alma, era 0 retrato de Aleixo,uma fotografia de baixo preco tirada na rua do Hospicio, quando ele ¢ 0 Pequeno moravam juntos na corveta. Representava 0 gru- mete em uniforme azul, perfilado, teso, com um sorriso pulha descerrando-Ihe os labios, a mio direita pousada &. Mare Ferrez fotografou em 1875, no sul da Bakia, 05 titimos remanescentes dos botocudos que dominaram a regio durante sécies. 192 + HISTORIA DA VIDA PRI 9, Indios aculrurads se as fogem do atelié do fotdgrafo. ‘A Semana Hlustrada, 18¢ frouxamente no espaldar de uma larga cadeira de bragos, todo meigo... Bom-Crioulo guardava esta miniatura reli- giosamente com cautelas de namorado, e & noite quan- do ia se deitar, despedia-se dela com um beijo imido e voluptuoso. Sob o olhar do apaixonado o retrato permite a corporificagao do ente amado, a fotografia enleva e consola. Adolfo Cami- nha escreve Bom-Crioulo na década de 1890. Nessa época, 0 Rio, tornado capital federal, tinha mais de trinta fotdgrafos com enderego fixo, ¢ um trabalhador jé podia tirar uma foto a baixo custo no centro da cidade. A situagdo evoluiu ao longo do século.” Nos primeiros anos de fotografia no Império, os fotégra- fos, ou daguerreotipistas, como eram chamados, nao tinham endereco fixo, Em geral instalavam-se num hotel, onde rece- biam a clientela. Para avisar da sua chegada e de seus servi- 0s, anunciavam no Jornal do Commércio. Normalmente, as oficinas funcionavam de acordo com a luminosidade do dia. No Brasil, sobretudo no verao, a claridade era fator favoravel a uma boa imagem. O mesmo nio se podia dizer do calor, jé que as chapas deveriam ser sensibilizadas no ato fotogrsfico. Ressalvas também eram especificadas nos antincios: “N. B.: tiram-se retratos todos os dias, das nove horas da manha as trés horas da tarde (se forem criangas de dois a seis anos, s6 até ao meio-dia)”."* Para uma crianca irrequieta, o tempo de exposigao deveria ser 0 menor possivel e, portanto, situar-se no hordrio matinal, de maior luminosidade. No daguerredtipo ja se evidenciava 0 cuidado de criar uma representacao que fornecesse ao cliente a ilusao da rea- lidade embelezada, como mostra 0 antncio de Guilherme Telfer: “Daguerrestipo — Guilherme Telfer participa ao respeitavel piiblico desta corte que, fiado do mais perfeito conhecimento de sua profissao, ele pode produzir umas som- bras na pintura de modo mais delicado possivel, ao mesmo tempo dando uma expressdo tao natural aos olhos, que ne- nhum artista tem podido até hoje realizar’. Somente na década de 1850 0 setor fotografico comega a crescer. A partir de 1854 aparece, no Almanak Laemmert, a rubrica de officinas photographicas e, em 1866, a de photogra~ phos. Fotégrafos que inventam de tudo para driblar a concor- réncia que crescia dia a dia, pois muitos dos profissionais, além de tirar retratos em varios processos e fotografias de vistas, e vender instrumentos para tal atividade, também ensinavam a fotografar. Paralelamente, o tempo da pose ia diminuindo. De cinco minutos, caira para um minuto em 1846. No entanto, a mise-en-scene do retrato adquiria novos atributos ligados ao fundo e aos aderecos de acompanhamento. Nessa encenagao evidenciava-se 0 papel do cliente como ator na performance, ¢ 0 do fotégrafo como aquele que diri- ge a acao: “J. F. A. Carneiro, de volta de sua viagem a Europa, onde adquiriu novos conhecimentos, acha-se de novo & testa de seu estabelecimento e espera que o publico continuara a dispensar-lhe coadjuvacao”.” Qual o tipo de conhecimento maGEM DO SEGUNDO REINADO + 193 194 * HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 detido pelo fotdgrafo que podia ser aprendido a custa de iniciagao e de atualizagao constante? Os antincios respondem a essa pergunta apontando um duplo caminho que marca os usos e fungées da fotografia no século x1x: ora como arte ora como ciéncia. A fotografia é arte quando produz a beleza e controla as técnicas proprias da pintura, apresentando um resultado hibri- do: a fotopintura, amplamente criticada pela estética da época mas que no Brasil teve um grande publico. Na realidade, a fotopintura fornecia um ar aristocratico 4 fotografia, aproxi- mando-a dos quadros pintados a 6leo, principalmente porque oferecia variedade de tamanho; inclusive retratos em tamanho natural, e coloridos, atributo interditado a fotografia do perio- do que, apesar de algumas tentativas esparsas na Inglaterra ¢ na Franca, ainda era exclusivamente preto-e-branco, Outros fotégrafos, mesmo exercendo a fotopintura, como é 0 caso de Joaquim Insley Pacheco, “fotografista da Augusta Casa Imperial’, preferem ressaltar o carater cientifico da técnica fotografica, enfatizando, mediante a descrigao dos procedimentos adotados, 0 acesso a um conhecimento espe- cial e moderno: A boa determinagio do claro-escuro, e 0 aperfeigoamen- to da vista pelo estudo do desenho e perspectiva, puse- ram o diretor do primeiro estabelecimento de ambroti- po do Rio de Janeiro em estado de atrair atengao publica STAHL & WAHNSCHAFFE RIO_DE JANEIRO IMAGEM = AUTOIMAGEM DO SEGUNDO REINAIO * 195, para suas ricas galerias de quedros [...] todas as pessoas que o obsequiarem, indo ali fazer retratar a si ou a seus mais caros objetos de afeigao, ao verem a perfeicao, a beleza e a fidelidade com que suas formas sio impressas sobre vidro sobre puros raios de luz, indicarao as suas amizades a procurarem esta casa! Idéias interessantes estéo contidas nesse antincio. A cién- cia produz a beleza, por meio da captagao precisa da realida- de, uma hiper-realidade que conta, para sua criagdo, com a mao do fotégrafo, controlando a natureza responsdvel pelos puros raios de luz que sensibilizam a chapa. O fotdgrafo é 0 alquimista moderno que manipula humores de composiga0 certa, combinando fisica e quimica na criagio de uma beleza renovada pela técnica. Um novo tipo de artista para um tem- po em que a técnica influenciava as representagdes sociais. Como ja foi dito, muitos fotégrafos vendiam em suas oficinas material fotografico. Entretanto, com a ampliagao do campo profissional do fot6grafo, esse material passou a ser retirado das oficinas e alocado em lojas especializadas na sua importacdo. Tal movimento denota a industrializagio de produtos quimicos e da ética, relacionados achamada segun- da Revolugao Industrial. Na década de 1870, a concorréncia se acirra e 0s pregos das fotografias baixam. Normalmente o preco variava de 3$000 a 5S000 a dtizia de retratos em porcelana, a ultima fe Geese en ease cane ease Man i@°Ferpez) i Jes 9 ne JANE (60 Bua de Gongves has ‘tain, ad IODC SANEIRO uc 58 Rua da knperatniz 5.PACLO ASA EM PARIS Rua de Rivoli 19 10, 11, 12, 13, 14, 15. Varios logotipos de forsgrafos do Segundo Reinado, alguns dos quais scios de casas fotogrificas da Europe. Fremiade na Exposigao i Silo: PACHECS ReNO ER CASA inp, ray ional ée 1861 aR RIO DE JANEIRO. ada Ouoidoer, N PRIVADA NO BRASIL 2 297 © BESOURO noe puzenane vu 1878 FAGUNDICES PERASES FENSAMENT05 FAGUDICOS © Fegandes colle em posi, civ @ dis: « Taiyo on i ! 1 “eae MAGEM E AUTOIAGEM 30 SEGUNDO REINADC + 197, novidade em reliquias e memérias. No interior, em razdo da distancia das lojas onde se vendia 0 material fotografico, os precos aumentavam de maneira consideravel. Comparativamente, uma duizia dos afamados retratos em porcelana custava o mesmo que uma lata de conserva de aba- caxi, e mais do que um sapato simples.”® Assim, pode-se calcu- lar que os gastos com fotografia nao pesavam no orcamento de uma familia urbana de renda média no século xx, principal mente porque as idas ao fot6grafo nao cram tao assiduas, tal- vez uma ou duas vezes por ano, ou em ocasiGes especiais. Nenhuma outra familia gastou tanto com fotografia quanto a imperial. D. Pedro 11 é sempre lembrado nos livros de historia da fotografia como um dos grandes incentivado- res dessa atividade. Segundo Gilberto Ferrez, o imperador, com catorze anos em 1840, epoca em que o daguerreétipo chegou ao Brasil, ficou tao entusiasmado com a invengao que adquiriu um aparelho, tomando-se, provavelmente, 0 pri- meiro brasileiro a fazer daguerredtipos.”* As fotografias pertencentes a femilia imperial incluem uma gama variada de temas: desde os retratos posados mais formais, passando pelas imagens do cotidiano, até os panora- mas ¢ os registros das solenidades do Império em diferentes provincias. Em algumas imagens, como aquelas em que 0 imperador ou a imperatriz permitem que suas figuras sejam duplicadas e postas frente a frente numa mesma fotografia, fica patente 0 bom humor e a aceitagao em desmascarar, mesmo que de brincadeira, a encenagao fotogrifica.”* Ja em outras, mais sérias ¢ posadas, fixa-se 0 inesperado, prejudi- cando a pose ideal mas enriquecendo 0 registro casual.® Na foto de Klumb, a imperatriz Teresa Cristina, num vestido negro, com chapéu, casaco e um semblante concentrado, po- sa solenemente, sem se dar conta de que o fotégrafo também registrou a curiosidade das criangas, que espiavam por detras da coluna.* Existiam ainda as fotografias que eram enviadas as exposicées universais, onde a imagem do Brasil adequava- se aos padrées da cultura ocidental. Numa dessas fotos, o imperador é retratado acompanhado por livros, pelo globo e por canetas-tinteiros, todos signos condizentes com um Brasil moderno e culto. O imperador é a imagem do Impé- rio nas exposicées universais, e a fotografia possibilita essa identificagio.” 16, Bordalo Pinheiro ironiza as siruagoes esquistas vividas por “Fagundes” no atelié do forbgrafo. (Revista © Besouro, 1878) 17, A moga se espania com a novidade, (A Semana Ilustrada, 1863) A quantidade e a variedade de fotos ainda existentes de- notam a importancia que a familia imperial dava ao registro fotogréfico. A propria princesa Isabel recebeu aulas particula- res de fotografia de Klumb. Segundo 0s livros da Casa Impe- rial, no periodo de 1848 a 1867, gastou-se em fotografias e Albuns de fotos uma soma correspondente a 14% da verba “Professo- oficial alocada todo ano na rubrica orgamentéri res, etc. para a Familia Imperial”, Além da familia imperial, a clientela dos estuidios era formada pela clesse senhorial agraria e pela populacao urba- na, enriquecida pelo comércio servicos prestados buro- cracia imperial. Os servigos mais comuns de fotografia, prestados pelos estudios, eram os retratos carte-de-visite (6 x 9 cm), utilizados me para se enviar como lembranga e compor dlbuns a serem ex- postos nas mesas das salas de estar. Raramente surgiam servi- 0s como 0 encomendado pelos bardes de Nova Friburgo, que contrataram 0 fotdgrafo italiano Manoel Bachieri para do- cumentar a construgao de seu palacio. Pelo servico de fotografia 0 barao pagou a quantia bastante significativa de 80 mil-réis.”* Por causa dos limites de tempo e luminosidade para a fixacao das chapas, poucas sao as fotografias tiradas no in- terior das casas. Estas s6 aparecem na década de 1880, ¢ deixam entrever o cotidiano e o bem-estar das familias abas- tadas oitocentistas. Mare Ferrez é responsavel por belas fotos da familia imperial, as quais, mesmo posadas, deno- tam descontracao e o habito de se fazer fotografar. Em ima- gens nitidas, com sombras e boa definigao, emerge do pas- sado o gabinete particular de d. Pedro 1, com seus livros, armarios e acess6rios diversos; a cena serena da princesa Isabel tocando piano em companhia da baronesa de Muri- tiba, no Palacio de Laranjeiras; o passeio de charrete, puxa- da por um carneiro, dos filhos da princesa Isabel e do conde dEu; e a intimidade da condessa de Barral abragando os filhos da princesa Isabel.” Em geral, a profissio de fotégrafo nao garantia uma ren- da regular, e muitos tinham ocupacées paralelas: eram pinto- es, relojoeiros, dentistas, negociantes ¢ até mesmo magicos. Ramos, um fotégrafo que viajou pelo Vale do Paraiba foto- grafando os fazendeiros e suas familias, anunciava-se no Al- manak Laemmert nao como fotdgrafo, mas como dentista, sua ocupagao regular. No ano de 1870 atuavam na corte, com enderego fixo e antincio no Almanak Laemmert, 38 fotégrafos. Nesses antin- cios ofereciam servicos diversos e indicavam © enderego, © qual, dependendo da rua, jd era garantia de distingao. Con- centravam-se basicamente no centro da cidade. Da janela do segundo andar do sobrado, na Ouvidor, onde se situava 0 esttidio de Insley Pacheco, o cliente mirava para dentro, esco- Ihendo a melhor cena e pose para compor a ambientacao de sua imagem, e para fora, avaliando qual 0 caminho a seguir. Freqiientar o atelié fotografico faz parte de um conjunto de cédigos de comportamento que pretendem igualar 0 habi- tante do Rio ao morador de Paris, e a rua do Ouvidor ao boule- vard des Italiens, integrando a cidade na civilizagao ocidental.” UTOAMAGEM © SEGUNDO ADO + 199 18, 19. A imperatriz Teresa Cristina e sua filha, a prince em 1885. Isabel, A OFENSIVA DA PUBLICIDADE Uma cronica de época reflete sobre o papel da publicida- de na sociedade oitocentista. Em virtude do tom premonité- rio do texto, vale a citagao: O anuncio! tu és a luz dos historiadores futuros, diz um e or moderno. Qual vendo um antncio do fluido transmutativo nao ficara percebendo que houve neste século pessoas vaidosas que tentavam mudar a cor dos 202 = HistORA 2A na revista de Angelo io de fotégrafo publicado gost de 1° de janeiro cabelos quando eles Ihe embranqueciam? Qual contem- plando os nomes simbédlicos de cold cream, de branco de baleia, nao concluira dai que a tez das damas se prepara- va para os estragos da atmosfera... e do tempo? Quem nio ficaré iniciado na clinica vulgar de cada época, lendo onome de patés, das farinhas, dos [...] dos elixires, das pilulas, das capsulas, que os estomagos digerem em nome da satide? O aniincio é hoje em dia o rei das opi- nides. Um amincio faz uma reputagao. Um homem que nio materializou o seu nome num antncio nao é digno de figurar na lista de eleitores, nem de ter voto para membro de qualquer associagio [...] O antincio [...] esse agente do industrialismo, esse representante vivo do make money, triunfa até mesmo nas limpides esferas onde outrora reinava soberana a inspiracao.” A destacada presenga da publicidade na corte aponta para um mercado consumidor bastante movimentado ja na décade de 1850. Trinta anos depois os antincios, que ja ultra- pasiavam 2s folhas dos jornais didrios, invadiam os muros e espicos vazios da cidade. A cultura visual dos jornais, revistas e das ruas abre uma janela para o cotidiano oitocentista do Rio de Janeiro, permitindo avaliar os significados atribuidos as nogdes de conforto e bem viver. A maior parte da publicidade era ilus- trada com desenhos ou acompanhada de uma minuciosa aul descricao que permitia uma visualizagao clara do produto a ser consumido. Os produtos importados eram valorizados pela suaqua- lidade, e o estabelecimento comercial que os vendia garantia sempre contato direto com a matriz internacional. Em tais antncios a narrativa é objetiva e valoriza-se a variedade das mercadorias postas a disposigao do consumidor, Em un ou- tro tipo de publicidade, busca-se atrair a atengio do ciente por meio de um recurso cémico, como o seguinte reclanede colchdes, em que a intimidade dos casais ¢ exposta deuma forma bem tropical: Ora Bolas... Camas, Colchdes! Pinico (A espiga deouro na ponta)!! O amor tem fogo é o diabo. Atica. Quam vé a minha espiga, logo a... cobica. Se as mogas soubesen € as velhas pudessem.... Quem nao arrisca nao peisa... Ataca Filipi!!! Bota-fogo na canjical!! Quem nio cra nao mama. Ol raits. Ganha-se pouco mas o pag certo, Aqui nunca se diz tinha-tinha, mas acabouse. Tem sempre fazenda de pronto para mocinhas casdoi- ras. Boas e sdlidas camas... ditas com medalhao noan- tro (50$ e 60$), ditas marquesas fortes para casadnhos de fresco (22$ e 21$) e para solteiras (19$ e 20S)... ol- 21, Documento rare: forografado na Cod F um fordgrafo Pedro I, fo de Kiuamb, 204 + VIDA NO aRasi 2 chées com linho forte para casados (168, 18$ e 20$), duram até acabarem, desde que em cima deles... por conta brincarem... lengdis de cretone francés, é Paris de Franga — 1$200 [...] Deixai-vos de luxo, olhem berim- bau nao € gaita e temps moné (tempo é dinheiro). De- pois queixarem-se a quem? Au bispo, sim au bispo, hao de ganhar muito dinheiro com isto. Ora bolas... (e de cabega para baixo) Se as mogas soubessem ¢ as velhas pudessem. Quem nao arrisca nao petisca!!!!!"” Alguns fotografos produziram imagens de escravos den- tro e fora de seus ateliés.” Christiano Jr. anunciava no Alma- nak Laemmert de 1866: “variada colecao de costumes e tipos de pretos, cousa muito propria para quem se retira para a Europa”, Produziu uma colecao de cartes de visite, em que os escravos apareciam em atividades cotidianas, encenadas no IMAGIME AUTOINAGEM DO SEGJNDO FEINADC + 205 RIO DE JANEIRO 22, 23, 24, 25. Alguns exemplos de fotos de formato de cartes de visite cont eseravos feitas por Cinristiano jr. em seu atelié. Havia na Europa oitocentista wma curiosidade meio perversa sobre os escravas da Africa e da América Christiano explorou esse mercado € exportou fotos des escravas brasileiro. (c. 1860) esttidio do fotégrafo; em outras, posavam em trajes bem cui- dados, as mulheres com turbantes e os homens de terno, mas todos sempre descalcos, A escravidao era delineada, nesse caso, pela estética do exdtico. ‘A casa Leuzinger foi responsavel por preciosas imagens em que 0 cotidiano tanto era recriado no estudio quanto captado no detalhe dos amplos panoramas. O primeiro caso € exemplificado por uma série de seis cartes de visite que registram 0 trabalho dos ambulantes, na sua maioria negras vendedoras de frutas, doces e fazendas.** Ja no segundo caso, o registro é casual; na fotografia do casario da Lapa, surgem 08 lengdis estendidos no gramado ou pendurados nos varais, indicando a atividade das lavadeiras.* Victor Frond litografou fotografias em que o trabalho escravo na rotina das fazendas tornou-se tema conhecido in- ternacionalmente. Marc Ferrez também registrou 0 trabalho escravo nas fazendas de café. Numa das fotos, em imagem 206 + 26. Entre as leves modas da Europa 08 duros modos do Impéria, este casal de cidadéo: negros livres ou Iibertos busca o seu caminhs dez anos antes da Aboiigao. (Foto de Militao, Sao Paulo, 1879) 5 definida e detalhada, 0 grupo de negros vindos do campo posa, ao ar livre, para o fotdgrafo, encarando-o, como se qui sessem fazer a imagem falar. Em outra, 0 quadro € mais com- plexo, pois, ao retratar o trabalho de secagem do café, registra a convivéncia cotidiana das criangas brancas e negras nas brincadeiras e 0 habito de ter as criangas por perto mesmo durante o trabalho.” Nas fotografias tiradas no Recife,a ama-de-leite aparece com a crianca refestelada nos bragos; a ama, sentada, os bra- ¢08 apoiados, vestida com elegancia e trazendo uma medalha no pescogo, é fotografada com o menino a seu lado, de pé, recostado no ombro dela, ternamente lhe envolvendo o bra- 03 0 negro idoso, de fraque, colete, gravata-borboleta, ben- gala e cartola, posa sentado e cansado por nio ter sido dono da propria vida.” Depois da Abolicao, era comum o retrato de familia com © pai, a mae, as irmas, os irmaos, as criancas e bebés e as negras da casa, geralmente nas extremidades da foto. Jé no século xx, aparecem os registros da presenca do negro ao lado do imigrante branco nas fazendas de café. No que se refere ao décor da cidade, é preciso lembrar que o Rio de Janeiro da segunda metade do século xxx estava longe de ser uma cidade ordenada de acordo com 0 modelo civilizat6rio europeu." O recurso ao close-up permite a am- pliagdo de pequenos detalhes, escondidos entre as imagens; deles surgem a sujeira da cidade, 0 movimento do mercado, © pregao dos ambulantes, o transito dos bondes, as ruas es- treitas e sinuosas, e as moradias precérias, que jé ocupavam ‘0s morros, temas das cronicas de Bilac e alvo das picaretas demolidoras do prefeito Pereira Passos no inicio do século xx. A capital imperial, que nada tinha de metrépole européia, 22. Presenga, rara em ADO otogr + 207 da época, le duas mucamas na foto de fanaa flr do sécula. (c. 1890) nse do final 208 + -1sTORIA DA VIDA PRADA NO sit 2 aparece em imagens ambiguas de cidade colonial. A imagem dos lengdis estendidos por todos os lados do morro do Caste- lo, da chegada do peixe ao mercado, das negras vendendo frutas, das carrogas ¢ dos bondes puxados a burro, dao a medida da diversidade do meio urbano. Enfim, as classes populares sé figuravam nas fotografias na condicao de “tipos humanos’, objetos de atengao das casas fotogréficas para pro- duzir o lado pitoresco da sociedade imperial. ACORTE EM MOVIMENTO As cronicas dos jornais ¢ das revistas faziam revises se- manais ou quinzenais de bailes ¢ episSdios recém-aconteci dos, davam conselhos sobre o dia-a-dia, e tinham nas mulhe- res 0 seu ptiblico-alvo.” O inverno, mesmo o tropical inverno da corte, levava 0 clima da cidade a aproximar-se do de Paris. Quando a meteorologia tornava-se imprecisa, os cronis tas resolviam 0 problema por conta propria: “fixemos nés as estagoes do ano conforme elas devem ser: 0 inverno seja aplaudido no movimento, na alegria radiante dos sales, nos divertimentos, no delirio da danga, das corridas... Mas 0 ve- rio, seco e ardente, nos leva ao campo, vida doce e tranqtii- la, ao remanso suave de uma existéncia que se vigoriza e se reabilita para de novo estrear vicosa e animada nos saloes’” Portanto, na estagao calmosa as mesmas senhoritas trocam os “saldes, onde se retine 0 povo do mundo elegante, pelas amenas alamedas de aossos pitorescos arrabaldes”* Nesse sentido, é bom lembrar o papel de Petrépolis, ele- vada ao estatuto de cidade mais européia do Império. Como escreve 0 cronista de um jornal de modas em 1853: “Petrépo- lis € muito chique... muitas familias, héspedes de todas as classes para li foram passar a festa, ao abrigo da estagao cal- ‘mosa; 0s hotéis esto cheios; muito prazer e muita vida em tudo” Petrépolis se manteve como op¢do de bem viver até 0s anos de 1950, concorrendo nessa época com Copacabana, em termos de lugar de exceléncia para a representacao social da burguesia urbana em ascensao.” De Petrépolis sao as fotos tiradas por Otto e Pedro Hees, nas quais a cidade surge crescendo por entre as montanhas, ou ainda o “flagrante” de Marc Ferrez captando o burburinho das ruas e 0 movimento de carruagens na estacdo de trens da utenti ll E AUTO: cidade, provavelmente tirada no verao, quandoa corte se mu- dava para la, No Rio, do grande movimento so:ial menciona- do pelas crénicas, nada ficou registrado em imyens fotografi- cas, com certeza pelo limite técnico dos prineiros anos da fotografia, e mais tarde pela inexisténcia do hibito da reporta- gem fotografica, que se disseminaria com a intodugao da fo- tografia nas revistas ilustradas, a partir de 1900,com a publica- 0 de fotos na Revista da Semana. Tais publicagdes, ao mesmo tempo que informavam, con- formavam certos tipos de comportamentos, os quais, criados na corte com base em referéncias estrangeiras,eam propaga- dos pelas provincias como modelos a ser segtidos ou como normas de conduta. O contato entre a corte e1 provincia fi- cou registrado na crénica publicada no jor’ O Gosto por ocasido do casamento do imperador d. Pedro: Os tiltimos navios tém trazido novas € modernas fazen- das de gosto para as principais lojas, que « vao subdivi- dindo, a rua da Quitanda se enfeita e ado Ouvidor se remexe. Antes deste dia tudo sdo incerteas [...] depois nao havera dividas, o figurino sera dado pela Impera- triz. O que se nota nas senhoras, nota-senas homens e a profusao e confusio de modas da corte sex tal, que fard UNDO RENADO + 209 28. Petrépolis, etago de ¢ refigio das pestléncias do verio carioca. (Fotografia de Augusto Stahi,c. 1870) perfeito contraste com a confusao e profusdo de modas que hio de vir do campo ostentar entre nés as galas de seu brilhantismo nas festas noturnas... Damos parabéns aos senhores da cidade, que tem muitas relagdes com as pessoas do campo. Oh! nao lhes hao de faltar numerosas companhias.“* Cidades do Vale do Paraiba, no auge da produgao cafei- cultora, concorriam coma propria corte como mercado con- sumidor e produtos importados, contratador de servigos fotograficos ¢ de eventos culturais. Além dos fotdgrafos itine- rantes, companhias de espetaculos freqiientaram a regiao, in- dicando que também na provincia 0 cotidiano se movimen- tava com base no consumo de bens simbélicos, ligados ¢ um habitus de classe que se formulava.*S CARE, DISTINCAO E FOTOGRAFIA NO COTIDIANO DAS FAMILIAS DO VALE DO PARAIBA. Voltemos a viagem de d. Pedro 11 pelo Vale. O imperador sai de Petropolis, no inicio de fevereiro de 1848, as trés horas da manha, acompanhado de uma comitiva formada pelo “Exmo. Presidente da provincia, camarista, guarda-roupa, es- tribeiro menor, seu ajudante de campo, éo guia e dos criados da casa com archotes”.* Ao longo de seu caminho essa comi- tiva foi serdo aumentada pelos oficiais da Guarda Nacional da regio. O imperador chegou a Sumidouro, depois a Vila Paraiba, Valenga, Vassouras, Vila Iguacu e dai seguiu por terra para a corte” Em cada lugar era recebido por um importan- te fazendeiro local com muitos festejos. Depois da recepcao na chegada, as visitas seguiam o mesmo ritual de beija-mio, conversas com os familiares do anfitriao, jantar, apresentacao de piano ou baile, ceia, descan- so. Nas diferentes localidades, 0 imperador liberou verbas para obras publicas e distribuiu esmolas.** Anos depois, em 1874, seguindo o mesmo ritual de festejos, 0 conde d’Eu visi- taria a regido. No seu trajeto, o imperador e depois o conde, acompanhados de archotes e girandolas, estabelecem a conti- gilidade espacial da corte e da provincia. A ligagao com a corte nao se limiteva as visitas dos dig- nitarios do Império. Para os negécios do café, tratamento A DO SEGUNDO REINADO * 211 29. Farmacia e Drogaria Granado & Cia, fundada em 1870, ¢ até hoje na rua Primeiro de Margo, no Rio de Janeiro. No andar de cima a {fotografia gigante do casal imperial ‘a9 lado do conde d’Eu, 0 qual faturava prestigio para 0 projetado Terceiro Reinado de sua esposa, 4 princesa Isabel. (Foto de Mare Ferrez, 1888) 212» HISTORIA 2A VIDA FRIVADA Ni de saiide, compras na rua do Ouvidor, idas ao teatro ¢ aos. sal6es, a corte sempre era a referéncia do espaco de excelén- cia dos fazendeiros. A prosperidade econdmica da regiao, além de estieitar os lagos com a corte, garantia aos bardes: do café umarepresentacao social apropriada a classe senho- rial. Entre ‘ais formas de representagao destacavam-se 0 consimo deprodutos e os modismos da corte e do exterior. Lougas, méwis, roupas de cama e vestidos eram adquiridos muites vezes por meio de catdlogos das grandes lojas da corte ou atémesmo da Franca, especialmente a Galeria La- fayette, como ficou notificado nos livros de conta corrente do barao de Vassouras.” Além dos eventos relativos aos momentos especiais do cotidiano — casamentos, batizados, aniversirios e velé- rios —, as familias abastadas do Vale do Paraiba também organizavam saraus e bailes. Em 1865, Joaquim Teixeira Leite escrevia ao conselheiro Belisdrio: “Diga 4 Chiquinha que nao &s6 no Botalogo que se diverte a gente; as mogas se tém aqui regalzdo de saraus, semanzs houve de dois e a cousa parece continuar”®” Jogos de cartas, dados, bilhar etc. ocupavam as noites em Vassouras, a ponto de as memérias sobre a cidade indicarem ser a casa do barao de Vassouras um “verdadeiro cassino”. No inventario dos bens do comendador Francisco Lacerda Werneck, 0 barao do Paty do Alferes, “nos méveis de todas as fazendas e casa do Paty do Alferes vém descritos utensilios de jogos, mesas de bilhar, voltaretes, etc.””" Os in- ventirios de grandes fazendeiros sao ricos em referéncias a méveis, prataria, jéias e roupas finas e importados, denotan- do um consumo osteatatério. Na décaéa de 1870, Joaquim Gomes Pimentel, rico fa- rendeiro da regio de Valenga, agraciado em 1864 com 0 titule de visconde de Pimentel, organiza um “Album de re- cortes de jomal e impressées de viajantes da fazenda Vista Alegre”= Nese album o visconde recolheu as noticias pu- dlicadas nos jornais da regiio e da corte sobre ele, seus feitos e sua fezende, construinde uma auto-imagem que o dava como um fazendeiro prdspero e empreendedor. Entre asprincipais noticias guardadas pelo visconde de Pimentel constam: a visita do conde d’Eu A sua fazenda, € toda a pompa da recepgdo, com direito & apresentagao da banda de misica formada por 27 escravos, ricamente traja- INDO +213 a descrigao de sua fazenda por Zaluar, viajante que percorreu a regiao do Vale e deixou suas impressoes regi tradas em artigos publicados no Jornal do Commércio, em que exaltava a modernidade das instalagdes, entre as qua destacava-se um gasometro que iluminava a fazenda inteira, além de todo 0 maquindrio movido a vapor; a liberdade concedida a filhos de escravos nascidos antes da Lei do Ven- tre Livre." A inauguracao da escola de ingénuos merece ser transcrita: Inaugurou-se no dia 2 do corrente, na fazenda denomi- nada Vista Alegre, municipio de Valenca, uma escola destinada aos filhos livres das escravas da mesma fazen- 30, 31. Apesar do calor carioca, 4 imitagao das modas levava as damas brasileiras a vestir pesada de veludo, como este vestido de uma gri-fina io Segundo Reinado. (¢. 1880) Usada como adereco de passeio nos primeiros veraneios oitocentistas europeus, a sombrinha foi adotada sob 0 sol tropical, Gilberto Freyre acreditava que os ch tiveram o mesm sfemininos nao sucesso porque foraim introducidos por prostitutas de iuxo europeias. Esta sombrinha fim e seda pertenceu & imperatriz Teresa Cristina. ( Imperial, século XIX) Museu Francisco Peixoto La (barao do Paty do Alf 32, 33, 34, Retrato do coronel rida Werneck Pintura de sua esposa, d. Maria Isabel de Assumpeao Lacerda Werneck, haronesa do Paty do quando jovem, e sua fotografia an mais tarde, (Quadros andnima) Alfere 1840 e foto da. A festa de inauguragao esteve a altura da generosa iniciativa de seus fundadores os ilmos. Srs. viscondes de entel. A toda a festa assistiram os escravos, com a fronte radiante de alegria, tocando uma banda de miisi- ca, organizada com os mesmos escravos. O Sr. visconde de Pimentel, depois de pronunciar um discurso expondo seu pensamento [...] convidou o Sr. Artur Fernandes de Castro Bravo, professor da escola, a fazer a chamada. Responderam 42 alunos, 27 do sexo masculino e quinze do sexo feminino, 34 dos quais nascidos depois da lei de 28 de setembro. Achavam-se presentes os representantes da imprensa ¢ grande nimero de convidado: Um ano depois 03 mesmos jornais noticiavam o aniver- sirio da fundagao da escola, com direito 4 premiagao dos alunos que obtiveram maior destaque, todos ex-escravos. Outro documento privado, 0 diario da viscondessa do Arcozello, da uma visio mais intimista da vida na regiao.* A viscondessa do Arcozello, Maria Isabel de Lacerda Werneck, era casada com Joaquim Teixeira e Castro, médico portugués radicado no Brasil e agraciado pelo rei de Portugal com 0 titulo de visconde do Arcozello. Em 1867 0 casal her- dou do barao do Paty do Alferes, pai de Maria Isabel, a Fa- zenda Monte Alegre. Em seguida, 0 visconde comprou dos cunhados a Fazenda Piedade e de terceiros a Fazenda Fregue- sia, todas na zona de Paty do Alferes. No diério, a viscondessa deixou suas impressées durante 0 ano de 1883. Desvenda-se + 215 36, Joaquim Jos rico de Vassouras ert mea do século passado e sua esposa, Ana Esméria Teixeira Leite. um lado do cotidiano da elite cafeeira do Vale que permite penetrar nos habitos e na intimidade doméstica. Todos os ncia da casa eram anotados detalhadamente: os gastos com a compra de tecidos, com produtos para consumo da casa, com produtos para serem vendidos; as reses que se matavam a cada dois dias e quanto pesavam; as despesas com o essencial ¢ com “miudezas”; os alqueires de café colhidos; os estragos causados pelas chuvas mento de mercadorias aos escravos; as ens ligados a ge na agricultura; 0 pa gorjetas pagas aos empregados; as roupas distribuidas aos escravos ¢ aos libertos; os batizados; 0 pagamento de dividas e servicos; 0 pagamento de ordenados; a compra de roupas ¢ utensilios doméstic« Paralelamente, aparecem as anotacées ligadas a intimi- dade do lar. A educagao dos filhos menores foi mencionada, por exemplo, no dia 14 de maio quando o marido decide dispensar a preceptora: “O Castro falou hoje com D. Sara que nao queria continuar com os meninos estudando em casa, que iam para o colégio. Ela disse que neste caso retirava-se para o Rio” Cita também a despedida de d. Sara, que jé devia fazer parte da familia: “partiu D. Sara muita pena dela”. Outro registro de preocupacao foi de ju- Iho, quando os filhos menores adoeceram em conseqiténcia de uma epidemia de sarampo: “mandei chamar 0 compadre para ver o Raul que tem estado bem caido desconfio ser sa rampo pois tanto aqui como em Monte Alegre apareceu 0 S inco e meia, tive BIA DA VIDA FRIVADA NO BRASIL 2 sarampo”, Uma semana depois a epidemia é certa e 0 outro filho pequeno aparece doente: “O Mario esté muito abatido com os sarampos, tem uma grande camada’’ Os maiores, jé casados, vao para a corte, tém filhos € recorrem a mae para resolver problemas variados: “Recebi carta de Francisquinho pedindo uma ama para a pequeni- na que é muito gulosa”; jd no dia seguinte, toma providén- cias para resolver 0 problema: “fui ver uma ama para it criar minha netinha escolhi Agostinha e parece-me que ela ha de servir”. Em relagao a si propria, 6 anota as poucas mazelas que a incomodam, principalmente as dores: “Eu tenho passado muito mal do meu estémago nao sei como hei de viver sem poder comer nada’. Em relacao ao marido, limita-se ao relato das suas idas e vindas nas fazendas e nas freguesias proximas, silenciando sobre carinho e intimidade. Por fim, outro tema recorrente sao as diversoes, tanto as domésticas, como 0 jogo de vispora, o canto de romances ¢ os passeios em familia a cavalo e de “troll’, ou trole, como as puiblicas: procissdes, fogos e cavalinhos. Os acontecimentos ¢ as despesas das férias na corte e em Caxambu sao registrados também diariamente, algumas vezes com a melancolia de quem sente falta de casa: “Esteve um dia muito triste, 0 almoco e o jantar muito ruim por falta de peixe” A viscondessa registrou em seu didrio uma vida simples em que o trabalho nao se limitava aos escravos, mas era divi- dido entre todos. Um cotidiano marcado pela atividade con- tinua, no qual toda a familia era responsavel pela preservagao da riqueza. Da viscondessa, a tinica imagem que nos restou foi a de um pequeno cartao com seu retrato, revelando um rosto cansado, envelhecido, envolto em nuvens, pelo efeito flou da fotografia; embaixo, dizeres em francés notificam a sua morte. A anilise da colecao de fotos de familias importantes do Vale, os Werneck, os Avellar, nos permite revelar os quadros de representacao da auto-imagem imperial.” A colegio estu- dada ¢ formada por dois albuns, organizados com base em fotos avulsas herdadas e coletadas, somando um total de mais de duzentas fotos, Nessas séries estao retratados os membros da familia e toda a rede social que a troca de fotografias teceu, apontando para o fato de que o objetivo da fotografia = AUTOIMAGEN. DO SEGUNDO RENADO + 217 era também a circulagao entre os pares de uma imagem con- siderada ideal, consubstanciando-se nesse circuito 0 compor- tamento recessdrio a sedimentagio da classe senhorial en- quanto fragao social dominante.* Como essas fotografias sobreviveram ao tempo e seus agentes de destruicao: baratas, tragas, cupins, enchentes e rai- vas, as raivas familiares de efeito retardado que levam, por vezes, a destruicao de fotografias num ritual de morte simbé- lica? Dora Werneck de Almeida Menezes as guardou eas dei- xoU para seu neto, como legado de toda uma vida que con centra muitas outras.” Dora é bisneta do barao do Paty do Alferes, sobrinha- neta da viscondessa do Arcozello ¢ sobrinha-bisneta do vis- conde de Pimentel, neta de Francisco de Assis e Almeida e de Mariana Isabel, filha do barao. Ao acompanhar a trajetéria de algumas dessas personagens, entramnos pelas frestas do passa- do em seu cotidiano. Francisco de Assis e Almeida, advogado liberal, tendo vindo foragido de Minas por causa das desavengas entre libe- rais e o poder central, fixa residéncia em Vassouras, acompa- nhando os irmaos que ja haviam se mudado para l4. O mais velho, dr. José Caetano Furquim de Almeida, também advo- gado, casa-se com Francisca Gabriela Teixeira Leite, sobri- nha-neta do barao de Vassouras. O caminho estava aberto para a ascensao dos demais integrantes da familia. Dr. Assis comega a advogar na cidade, assumindo impor- tantes clientes, entre os quais duas figures de familias proe- minent barao do Paty do Alferes, um Werneck, e 0 barao de Capivary, um Avellar. Embora nao nutrissem muita sim- patia um pelo outro, como ¢ costume entre os poderosos de uma mesma regio, ndo se pode dizer que fossem inimigos. © comendador Francisco de Peixoto de Lacerda Wer- neck tornou-se barao do Paty do Alferes em 1852, tomando © titulo tao almejado por Joaquim Ribeiro de Avellar desde 1843, quando o pedira ao imperador. A recusa do imperador a Avellar reforga sua preferéncia pelo comendador Werneck, um tipico homem do Império, coronel da Guarda Nacional ¢ poderoso fazendeiro, que escreveu 0 opiisculo Memérias so- bre uma fazenda de café, em 1840, para orientar o filho, Luis Peixoto de Lacerda Werneck, entio estudante de direito em Paris, sobre como deveria administrar sua futura heranca. MAGEM E AU"O-MAGEM DO SEGUNDO RENADO * 219 Pacmeco % Fie f Rus do Ouvider 102." Ri0 DE JANEIRO. 39, 40, 41. Cinco geragoes de uma familia de mulheres flurninenses ert fotos feitas rum lapse de trinia anos. D. Rosa Maria Joaguina (mae), &. 1870; d. Rosa Joaquina Garcia (filha), c. 1880; Joagiina Amélia Garcia (neta) e seu marido, Saturnino Rodrigues Alves Barbosa, €. 1870; Eugenia Amélia Alves Barbosa (bisneta), c. 189; Werneck ce Almeida (trineta),c. 1890, VIDA PRIVADA BASIL 2 Joaquim Ribeiro de Avellar, o barao de Capivary, era tio da baronesa do Paty do Alferes. Depois da morte de sua mae, o barao de Capivary toma posse da Fazenda Pau-Grande, tendo como sécias as irmas: Mariana Luisa Avellar, Anténia Angélica Avellar e Maria Angélica Avellar. A vida na Fazenda Pau-Grande nao foi marcada por ale- grias. Brigas entre parentes por limites de terras eram entre- meadas de contlitos cotidianos com os escravos. barao de Capivary nao era um modelo de retidao. se casou, mas teve um filho, reconhecido em escritura publi ca em que consta que a mae do menino era “tetida e manteti- da” pelo bardo. Esse filho herdaria o patriménio de Pau- Grande, inclusive a parte das tias, incorporada pelo barao de Capivary. Batizado com 0 nome do pai, 0 filho do barao foi estudar na Europa. 14, andou aprontando, “fazia carreiras de pandegaria e passeios”. Para disciplind-lo, seu pai arranja-lhe um casamento com a filha de uma rica ¢ influente familia da corte. Mariana Velho e Silva, que depois do casamento passa a assinar Mariana Velho de Avellar, era filha do mordomo do Paco Imperial, o conselheiro José Maria Velho. Gragas a0 seu prestigio junto 4 Coroa, o conselheiro realiza 0 casamento dos jovens na Quinta da Boa Vista. Joaquim e Mariana sao agraciados com os titulos de visconde e viscondessa de Uba. A viscondessa de Ubé introduziu na Fazenda Pau-Gran- de 05 preceitos de requinte e conforto domésticos. Nessa épo- ca foram também construidas as latrinas dentro de casa. Por serem latrinas de opalina branca filetada a ouro, cresceu a Ienda de que eram feitas de ouro. Da mesma forma que 0 filho do barao de Capivary, 0 médico Manuel Peixoto de Lacerda Werneck, filho do barao do Paty, casa-se com uma moga da corte, Ftelvina Teixeira de Macedo, filha de um embaixador. Por ter vivido com a fami- lia em varias cidades do mundo, Etelvina era bem informada ¢ falava inglés correntemente. A educacao da menina e sua experiéncia cosmopolita provocou certa inseguranga no dr. Manuel, que foi se aconselhar com sua mie, a baronesa do Paty do Alferes. Esta prontamente tirou do dedo um anel de brilhantes, heranga de familia, e deu-o ao filho para que pre- senteasse a noiva com ele. No dia do noivado, Manuel chega casa dos Teixeira de Macedo, no Catete, com um ramo de flores em meio ao qual pusera o anel de brilhantes. O presen- stn rma 2 tts +221 222 = HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 45. Mariana Isabel de Lacerda Werneck de Aimeida e seus fillos Rosa e Antonio Furguim Werneck de Almeida, (c. 1860) te causou forte impressdo na corte. Etelvina adaptou-se bem ao interior. Suas escravas aprenderam as cancdes em inglés que costumava cantar.“! Ao contrério da vida em Pau-Grande, as fazendas do barao do Paty do Alferes foram cenarios de muitos casamen- tos e nascimentos; entre eles, 0 casamento de Francisco de Assis e Mariana, avés de Dora. Mariana tinha s6 catorze anos quando Assis pediu sua mao. Mas 0 casamento era o destino imediato de muitas das mocinhas dessa época, mesmo das filhas do barao, homem: preocupado com a formacio intelectual dos herdeiros. Assis assegura-Ihe a formagao de Mariana e, em vista de tal pro- messa, 0 casamento fica acertado. No dia 23 de junho de 1845, a Fazenda Piedade estava em festa, pois casavam-se to- das as filhas do barao do Paty do Alfer Na tinica carte de visiie, colada em papel-cartao negro, estd a serena imagem de um menino no colo da mie. Por detrés, vislumbra-se a mao masculina que apéia a cabeca da crianga. O menino é Arthur, morto ainda crianga, filho do dr. Francisco Furquim Werneck, casado com sua prima Horten- sg; no verso da foto, havia um icone da morte. Nascimentos ¢ mortes aconteciam no mesmo espago, as criangas nasciam em casa ¢ 0s mortos eram enterrados nas capelas das fazendas. No entanto, estas nao figuram nas foto- grafias dos dlbuns, nao eram tema para retrato; conhecé-las, no seu interior, era possivel somente pela descrigao dos via- jantes ou pelas fotografias das atuais sedes, que foram manti- das como patriménio histérico.' Uma das mogas da familia de Assis, Rosa, casa-se com Joao Carlos Mayrink, médico, em ceriménia na paréquia de Vassouras.® Com esse casamento garantiu-se a ligagao com a corte, pois o dr. Jodo Carlos descendia de familia de dignita- ios do Paco Imperial. Ros, como 0 barao de Joatinga, per- sonagem de uma outra colecdo, também vai para Paris. L4, talvez ainda em lua-de-mel, deixa-se fotografar, posando com uma das maos apoiadanuma cadeira adornada ea outra segurando um leque de plumas que faz par com o detalhe do vestido, complementado por joias. ‘Anos mais tarde, agora em Nice, a fotografia revela 0 aumento da familia: dois filhos e uma filha, juntamente com marido, compéem um quadro bastante sugestivo. Posando 1. Dois ramos de calé e tabaco circundam o escudo de armas na bandeira do Império. Um canto portugués fazia troga da Independéncia, ligando-a ao café. Cabra gente brasileira Do gentio de Guiné Que deixou as Cinco Chagas Pelos ramos do café. (Museu Histbrico Nacimal) 2. No inicio do século XIX, Debret pinta as mulheres de uma fazenda brasileira como a um harém oriental. Uean Baptiste Debret, Visita a.uma fazenda) 3. A morte de d. Leopoldina, em 1826, dea lugar a boats de envenenamento. Consegiiércia do sgredo da politica mondrquica, a morte dos reis costamava er atribuida a complts ¢ a causasextranatuais. (Jean Baptiste Debret, Convento da Ajuda eexguias de ‘Sua Majestade imperatriz Leopoldina,Rio de jnciro, 834) 4. O ritual da corte aparecia como algo estranho @ maioria da populagao. Um panfleto da Revolujaio Praieira (1848-9) classificaya d. Pedro IT de “monana (Victor Frond, Palacio Imperial no Rio de Janeiro, 1861) 5. A cadéncia do passo dos carregadores de café prefigura a marcha-rancho do Carnaval carioca. (Paul Harro-Harring, 1840) 6. A capital do Império era, nesta época, 0 principal centro urbano da América do Sul. (Victor Frond, Panorama do Rio de Janeiro, 1861) 7. Petropolis representou durante algum tempo 4 utopia do pais quase europeu que o Brasil poderia vir a ser conforme 0 desejo da elite imperial. (Victor Frond, Palicio Imperial de Petr6polis, 1861) 8.D, Pedro Il, por volta de seus 35 anos, quando jd exercia a plenitude do Poder Moderador. (Victor Frond, 1861) 9. D. Teresa Cristina, irma do rei das Duas Sicilias. Seu casamento com d. Pedro Il, em 1843, traz cantores italianos que desenvolvem o gosto pela 6pera no Rio de Janeiro (Charles Ribeyroles Victor Frond, 1861) 10. Durante a Guerra do Paraguai, constatou-se que 0 Império nao dispunha de mapas sobre suas fronteiras. O jurista e gedgrafo Candido Mendes elaborou o Atlas do Império (1868). Partes do Norte, o Acre ¢ dreas do Centro-Oeste posteriormente incorporadas 40 territério nacional nao constam deste mapa. TPT. =D Se 10 eye By Bi so tei o0RD- buy Secprtnd de Ver 11. Titulos do Tesouro Imperial. Num pais escravista, Pere ee Sea ec limitada. Tratos apalavrados, moedas, trocas de mercadorias ¢ ordens de pagamento endossadas por casas comerciais garantiam tay eee Cree ea) 12. Difundida pelos portugueses na Africa, a mandioca, como outra planta sul-americana, © milho, incorporou-se a dicta africana, criando costumes alimentares similares nas duas margens do sistema escravista luso-brasileiro no Atlntico Sul. O preparo da farinha demandava um trabalho de equipe, integrando escravos jovens e velhos na mesma roda de labuta, cantos e conversas. (Modesto Broccos, Engenho de mandioca, 1892, Museu Imperial) 13. Grupos de cozinheiras cativas seguiam junto com os escravos para a roca. (Victor Frond, Almogo na roca, 1861) 14. A vida na fazenda podia ter algum conforto, mas impunha 0 convivio com a violencia da disciplina escravista. (Victor Frond, 1861) 15. Victor Frond tenta fixar 0 momento de aproximagao afetiva que ligava as cativas apos a labuta didria. (Victor Frond, Negras depois do trabalho, 1861) no estiidio, escolhem uma paisagem maritima para montar a mise-en-scene, todos os simulacros da paisagem real estao presentes na fotografia, desde a vela do barco, a rede ¢ os remos, até as gaivotas pintadas no fundo com rochedos: tudo preparado para deixar registradas as lembrangas de férias. A foto é da década de 1880, e com certeza poderia ter sido tirada ao ar livre, na propria paisagem. Por que optar pelo simulacro? Tal escolha denota que ato fotogrifico, corres- pondendo as lembrancas cotidianas e a construgao da me- moria familiar, tais como férias no exterior ou lua-de-mel em Paris, estava ligado ao esttidio, a pose ¢ a auto-representagao daquela sociedade. Depois da morte do marido, Mariana ficava sentada em seu quarto de dormir, defronte 4 parede recoberta, “desde o rodapé até quase 0 teto, com os retratos de todos os parentes falecidos. Suas personagens, Rosa, Joao Carlos, Francisco, Assis, Caetano, Joaquim, Marianas entre outros, sio nomes que identificam imagens fotograficas. Como chegar aquilo que nao foi imediatamente revelado pelo olhar fotografico? No album de recortes de jornais do visconde de Pimen- tel, o tempo surge como marca das transformagées sociais. O recorte com o amtincio da Lei do Ventre Livre (1871) abre a sua coletanea. Com esse antincio inaugura-se um novo tem- po para as relaces sociais, como também o tempo da nar- 46. Visconde de Mayrink e familia. Como na Europa, no Império tornara-se chique tirar retratos dentro de canoas, (1880) EGUNDO REINADO + 223 224 + HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO 51 47, Apesar da intensa imigragao portuguesa, a 200 urbana da corte ‘ainda contava com muitos escravos no censo de 1872, (LED-Cebrap) (Ver Apéndice, tabela 8) [Expoctnsaios Foss rativa do visconde, na qual ele relata as transformagGes ocor- ridas por sua propria iniciativa. No diario da viscondessa do Arcozello, 0 tempo é plural. O tempo climatico, do frio e da chuva; 0 tempo de vida, dos filhos que crescem e dos netos que nascem; 0 tempo da co- Iheita do café e da garantia da riqueza; o tempo dos escravos e de suas tarefas didrias: miltiplos tempos que se seguem na construgao dos dias. Nas fotografias de Dora, 0 tempo tam- bém passa, nas imagens que vao da crianga ao ancido, na sucessao de geracdes, dos guardides da riqueza ou da mem6- ria desta. Em todos esses registros, e em tantos outros, uma outra categoria opera na constru¢ao da narrativa das mem6- rias: 0 espago. O espaco doméstico, das tarefas didrias e das criangas, 0 espaco da producao onde a riqueza € gerada, 0 espaco do poder e do governo da casa. Na colegdo de duzentas fotos estudadas, muito poucas registraram a data em que foram tiradas. Assim, foi a mu- danga da prépria representacao espacial que nos permitiu delimitar a cronologia da colecdo. As mudangas nas alternati- vas técnicas € estéticas, a indumentéria, o envelhecimento das IMAAGEM = AUTC:MAAGEM DO pessoas da familia, a escolha dos fotdgrafos, indicam-nos um periodo que vai de 1860 até 1890. A influéncia do retrato a 6leo na composicao dos retra- tos fotograficos é indubitivel. Antes de ter sido fotografada, a elite cafeeira do Vale foi pintada por Barrandier, artista fran- cés que viajou pela regido por volta de 1840. Seus retratos figuravam nas paredes das fazendas, sendo mais tarde foto- grafados pelos proprios fotdgrafos itinerantes, como uma forma de adequar a pintura 4 nova fungao da imagem, que nao era s6 de ostentagao no ambito doméstico, mas de circu- lagao numa esfera mais ampliada. A presenga de tais retratos a dleo nas paredes das fazen- das foi registrada por Taunay: “como decoracao dos sales viam-se custosissimas guarnicées de cortinas dos mais finos panos de vivas cores, dignos dos lustres ¢ dos candelabros, mas antagonismo absoluto com a simplicidade dos méveis. Retratos a dleo eram quase sempre os tinicos quadros de tais salas. E que retratos geralmente! Que horrores! Que obras de pinta-monos!”. Na colegdo analisada a natureza do enfoque variou: fotos pequenas para facilitar a circulacao, em cartas e recordacées; eminentemente verticais para dar sentido de imponéncia 2 pose; com equilibrio entre a direcdo esquerda e a direita, harmonizando a representagdo entre os extremos; énfase na figuracao masculina, pois é ela que garante a reproducao do sistema; concentracao na parte inferior para nao perder deta- Ihes; escolha denotando cuidado em mostrar a indumentaria e demais atributos da cena arranjada. retrato nao era composto somente pela imagem; as anotagdes dos diferentes guardides das fotos, as dedicatorias e © verso das imagens indicam os caminhos que a imagem per- correu na construcao de uma auto-imagem de classe. As ins- crigoes identificam personagens, desmentem identificagaes an- teriores, montam genealogias. Nao deixam, enfim, 0 tempo velar a meméria do passado. As dedicatérias podem desvendar sentimentos mais discretos: “Teu pai chamava o meu de amigo, mas eu te chamo de muito mais...” escreve uma moga no verso de uma foto com que presenteava o namorado. Do conjunto das fotografias analisadas, 95% foram pro- duzidas em esttidios e 5% nas préprias fazendas por fotogra- fos itinerantes. Do conjunto de fotos, a distribuigao geografi- + 225 = 226 * HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL 2 43. Comendador Joaquim Teixeira dda Nobrega (barbado, a esquerda), {fotografado junto & familia e escravos nna capela da Fazenda Agua Limpa, de sua propriedade, no municipio de Barra do Pirai, no Rio de Janeiro. (c. 1870) ca mostrou que 10% haviam sido feitas no exterior (Paris, Nice, Cannes, Roma, Praga, Berlim), 55% em estidios da corte, 2% em esttidios no Vale do Paraiba e 33% nas proprias fazendas da regiao. Para a elite cafeicultora, a marca de um dos fotdgrafos famosos no verso da foto atuava como emblema de distingao | social. O must da fotografia oitocentista esta representado nessa colecio de duzentas fotos, desde Insley Pacheco, que possuia filial em Paris, até o proprio Nadar, que deixa a sua marca rouge na frente e no verso da imagem. Nao faltaram os fotégrafos itinerantes, que iam de fa- zenda em fazenda oferecendo seus servicos, ou aqueles que montavam ateliés provis6rios. Um desses itinerantes, Ma- nuel de Paula Ramos, foi responsdvel por um conjunto de retratos bastante significativos da regiao. Uma das imagens por ele registrada foi a cena de uma missa rezada na capela da Fazenda Agua Limpa, situada na regido de Pirai. Na ima- gem, ordenados e voltados para o altar, encontram-se 0s escravos da fazenda; separados por uma grade decorada, estao os convidados do dono da fazenda, Teixeira da Nobre- ga, sua esposa e 0 padre préximos ao altar. Numa das pou- cas fotografias do interior das fazendas, aparece a organiza- 40 espacial: o crucifixo no centro da imagem; os escravos de joelhos, organizados em semicirculo e de costas para 0 fotégrafo; os brancos, separados dos negros, de pé e olhan- do para a objetiva fotografica. $40 também do fotdgrafo Ramos as fotos da banda de escravos e das festividades da fazenda do visconde de Pimentel. Apesar de a maioria das fotos concentrar-se na figuragao isolada, os objetos interiores ajudavam na composicao da cena, Livros para marcar a cultura e a ilustra¢ao; os barcos, bancos de jardim ou fundos pintados com motivos campes- tres assinalam um momento de descontracao, ligado ao lazer ou as férias; adornos em metal, colunas, vasos, franjas, cestas, biombos, carrinhos de bebé, mesas de varios tamanhos e es- tilos etc.: objetos que caracterizam um conforto artificial na montagem fotografica mas indicativo de uma forma de re- presentar vivéncias cotidianas. Para o homem, 0 retrato centralizado no busto — repre- sentando 24% do total das fotos — enfatiza a representacao de poder propria as esttuas de grandes homens nas pragas 228 + 4 IA DA VIDA PRIVADA NO publicas. De fato, a estatuamania é uma moda da segunda metade do século xix, e suas formas de expressio cruzaram- se com as do retrato. Outros atributos de masculinidade sao dados pela variacao de barba, bigodes, costeletas, cavanha- ques, penteados com brilhantina etc. Ja para as mulheres e criangas, 0 espaco do todo é 0 que importa. As mulheres, 0 corpo inteiro serve para valorizar o vestuario. Em nenhum momento a mulher est associada aos atributos domésticos, como registrava a viscondessa em seu diario. As roupas € a pose escolhidas para a composigao de sua imagem relacio- nam-na ao usufruto da riqueza gerada e gerenciada pelo marido. Quanto as criangas, 0 corpo inteiro é usado para figurar o tamanho dos meninos e imputar-lhes atributos proprios ao mundo infantil, como 0 carro de bebé, ou mos- trar-lhes vestidos de adultos. Em todos 0s casos, 0 que ficou patente foi a escolha da representago singular em detrimento da plural, explicada pelo tipo de circulacao da carte de visite, eminentemente feita para lembrangas. Como excegao, vale ressaltar a foto em que aparece a mae com o filho ja sem vida nos bracos, na qual se percebe a mao de um homem apoiando a cabega do menino por tras. F uma foto de busto, com iluminagao sombreada, fundo negro e efeito flou — todos os atributos visuais de con- trigdo e retiro —, uma imagem sensivel que revela uma sensi- bilidade que foge as poses e trejeitos do retrato oitocentista. No século xtx a marca ser a simplicidade, em contrapo- sicdo aos babados e brocados do Antigo Regime. Enquanto a indumentaria masculina vai perdendo aos poucos todos os elementos de sedugdo para enquadrar-se na sobriedade de um burgués abastado, a roupa feminina, passada a voga da simplicidade, se lancou novamente numa complicagao de rendas, bordados e fitas. Nos retratos analisados, 0 padrao da roupa masculina acompanha as tendéncias gerais do século xix e caracteriza-se pelo signo da simplicidade: terno escuro, acompanhado de gravata-borboleta fina, colete preto, camisa branca e a cor- rente do relégio de bolso. Para a mulher, a sociedade brasilei- ra ndo acompanhou os ditames franceses e hd poucos adere- ¢os ou enfeites. Para as meninas, a variedade era maior: lagos de fita, meias trés-quartos, botinhas, vestidos mais claros € joias simples. IMAGE E AUTO: Por fim, o ritual do retrato era marcado pela pose. Tal padrao acompanha o adotado nas fotos de estiidio de carater mais comercial, proprio a clientela do Vale do Paraiba, ¢ con- diz com a discricao da indumentaria e do estilo de vida que se queria representar. Afinal de contas, quem estava sendo retratado ali eram os gerenciadores da riqueza e dos negécios do Império. © ULTIMO BAILE E A ULTIMA FOTO DA FAMILIA IMPERIAL © Baile da Ilha Fiscal assinala o fim do Império. Organi- zada pelo governo para recepcionar um ministro e oficiais da marinha chilena, a festa mudou 0 cotidiano da cidade. Cabe- leireiros, barbeiros, modistas e alfaiates nao paravam de tra- balhar. Aglomerado no cais Pharoux, o povo tentava assistir ao embarque das celebridades. Calcula-se que cerca de 3 mil pessoas compareceram a festa. Os convidados eram recebidos com banda de mitisica e tagas de champanhe. A festa durou até as cinco horas da manha, fechando em grande estilo as portas do Império. O interessante é que o baile se realizou no dia 9 de no- vembro, mas ainda no dia 16, com a Republica ja instalada, as noticias sobre a festa continuavam a ser publicadas como se nada tivesse mudado. A procura por comentarios sobre 0 baile foi tamanha que o jornal O Paiz aumentou sua tiragem para 35 mil exemplares, ¢ a edigio do dia 10 de novembro esgotou-se completamente.“ Complementando 0 fausto ¢ a exuberancia do derradei- ro baile, coloca-se a tiltima fotografia da familia Imperial. Essa foto, tirada na varanda do palacio de Petropolis, apre- senta a imperatriz, d. Antonio, a princesa Isabel, d. Pedro 11, d. Pedro Augusto, d. Luis, o conde d’Eu e d. Pedro — 0 princi- pe do Grao-Para. D. Antnio esta sentado a frente do grupo; a imperatriz, sentada ao lado, esboga um leve sorriso; a des- contraida princesa Isabel abraca 0 pai, que mantém a pose de imperador, com uma das maos dentro do casaco, a la Napo- leao; os demais, de pé, deixam-se fotografar em pose solta. Em 1907, jd no declinio do café do Vale do Paraiba, o visconde de Sao Laurindo, dono de terras em Bananal, passa a limpo sua vida. Na Cronologia da familia Almeida, ele faz uso dos eventos para tecer seu passado: os Natais passados MAGEM DO SEGI NDO REINADO * 229 MAGEM € AUTOIMAGE em familia, os casamentos, falecimentos, condecoragdes rece- bidas e dividas. Somente alguns comentarios permitem en- trever a melancolia de quem ja viveu dias melhores: “1891 Falece o imperador do Brasil — D. Pedro 11. Falece em Pari banido pelos usurpadores republicanos; pelos ingratos trai- Nao hi fotografias sobre esse periodo, o album de retra- tos do visconde de Sao Laurindo, tal como o da familia Wer- neck, s6 vai até os anos 1890. A partir de entao, todo esse mundo seria tema de outras representa¢es. DO SEGUNDO REINADO + 231 49, Otto Hees tirou a lima foro da familia imperial as vésperas da proclamagao da Republica e do exilio. Da esquerda para a direita: a imperatriz, d. Antonio, 4 princesa Isabel, 0 imperador, dd. Pedro Augusto (fitho da irma da princesa Isabel, d. Leopoldina, duquesa de Saxe), d. Luis, 0 conde D’Eu, d. Pedro de Alcdntara, principe do Grao-Paré. Num comentario caloroso, Alexandre Euldlio considera que esta foto representa o fim do “ciclo do patriarcalismo caboclo”

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