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Resumo
Através de três autores psicanalistas Freud, Lacan e Winnicott, a autora aborda o tema da
constituição do eu, a partir da imagem corporal. Trata-se de um lugar sobretudo imaginário, em
que se interpõem a imagem da mãe, a própria imagem no espelho e a imagem do outro, em suas
diferenças, coincidências e oposições.
Palavras-Chave
Imagem corporal Eu Espelho Outro Duplo Estranho Familiar
cer o recalcado mais arcaico. Uma vez ança começa a demarcar a totalidade do
nascido esse corpo imaginado, a partir do seu corpo. Este é um longo processo (sex-
qual a criança será constantemente inter- to ao 18° mês), que se caracteriza sobre-
pelada em seu ser-com-a mãe, ele vai tudo pela imagem no espelho.
oferecer ao sujeito aquele ponto de refe- Wallon, neurologista francês, um dos
rência fora de si mesmo e que lhe permiti- fundadores da Psicomotricidade, foi o pri-
rá ver-se como outro desta sinestesia vivi- meiro autor a falar em estágio do espelho
da. (1934). Lacan (1949) desenvolveu sua
Waelhens, a partir de Piera Aulagni- idéia, acrescentando-lhe uma visão psica-
er, considera ainda que, antes de a sepa- nalítica. Aos dois estudiosos, impressiona-
ração mãe-filho ocorrer, a criança existe va-lhes o fato de, antes do desenvolvimen-
como um outro, abrindo caminho primei- to psicomotor, ou seja, ainda imatura e
ro do lado da mãe, em seguida desta e do dependente (não anda nem fala), a crian-
filho, ao possível jogo de identificações e ça começar a formar uma imagem con-
reconhecimentos. Entre a necessidade junta de seu corpo. Antes mesmo de no-
(sede, fome) e a demanda (tentativa de mear seu corpo ou nomear-se, a criança
restabelecer a fusão original, de eliminar já se reconhece no espelho. Até então, o
a incompletude), ou entre o instinto e a bebê percebia seus pés, mãos, braços, per-
pulsão, vão-se estabelecendo os traços nas, até mesmo seu tronco, mas só quan-
primários do eu e do futuro sujeito dese- do se olha no espelho pode ver seu rosto.
jante. Não se trata mais do rosto da mãe, mas de
O começo de vida é, portanto, alie- seu próprio rosto.
nante: alienado no desejo dos pais, prin- Ao olhar-se no espelho, o que (ou
cipalmente da mãe, presa da unidade-dual quem) a criança vê num primeiro momen-
(mãe-filho), presa de suas próprias limita- to é um outro; em um segundo tempo per-
ções (inacabamento fisiológico), e inseri- cebe que é ela mesma que está ali. Ou seja,
do em uma cadeia significante que pré- vê primeiro o outro, depois o outro que é
existe a seu nascimento. Por conseguinte, ela mesma, criando assim um jogo de al-
é necessário da parte da mãe um investi- ternância eu-outro.
mento libidinal do corpo do filho, enquanto Retomemos o mito de Narciso. Nar-
corpo de outro ser distinto do corpo mater- ciso, ao se olhar na superfície das águas,
no8, uma vez que não bastam as sensa- vê uma imagem pela qual se apaixona. Em
ções corporais, tais como tato, visão, ór- um primeiro momento, não sabe que é ele
gãos internos, dor, sinestesia etc., para que próprio que está ali; sua imagem é-lhe es-
se constitua um eu, que de início é corpo- tranha, pois não se conhece. Portanto, se
ral. conhece como outro, e por esse outro se
Freud já percebera a importância da apaixona. Só em um segundo momento
mãe (ou substituto) ao escrever que o eu percebe que esse outro é ele mesmo.
é a parte do isso modificado pela influência Freud, em Mais Além do Princípio
direta do mundo externo.9 do Prazer (1920), relata o jogo do fazer
aparecer-desaparecer a mãe (brincadeira
A criança em frente do espelho do carretel conhecido como fort-da),
acrescentando numa nota de rodapé uma
O primeiro esboço do eu será consti- outra brincadeira feita pelo mesmo neto.
tuído a partir do sexto mês, quando a cri- Trata-se de fazer desaparecer a si próprio.
A criança descobriu um espelho que não che-
8. WAELHENS, Alphonse de. La psicosis (1972), p.52. gava até o chão, apesar de ser um espelho de
9. FREUD, S. O eu e o id (1923), v. 19, p.39. corpo inteiro. Agachava-se e podia fazer sua
Reverso Belo Horizonte ano 29 n. 54 p. 63 - 70 Set. 2007 65
Sônia Cury da Silva Campos
estética e observando que esta não é tão- de tudo fonte de prazer e júbilo, enquan-
somente a teoria da beleza, mas a teoria to que a imagem da velhice converte-se
das qualidades do sentir (p.175). É a res- num objeto de terror, desamparo e reme-
peito deste sentir, ou sentir-se estranho, te a algo fatídico e inexorável a morte.
que vai remeter ao assustador, ao que Não se trata de nada novo, pelo contrá-
provoca medo e horror. Ou seja, aquele rio, trata-se da repetição de algo já estabe-
aspecto da estética que estuda não o que lecido no psiquismo há muito, mas que se ali-
é belo, atraente e sublime, mas aquilo enou através do recalque. Este duplo, este
que provoca sentimentos de repulsa e estranho é algo que deveria ter permanecido
aflição. Dedica-se a elaborar em que cir- oculto, mas veio à luz.
cunstâncias o que é conhecido, velho e O prefixo un, nota Freud, é o sinal do
familiar torna-se estranho e assustador. recalque (misterioso, sobrenatural, que
No português não conseguimos juntar provoca horrível terror). O que era fami-
numa única palavra este estranho-famili- liar se tornou irreconhecível pelo recal-
ar Unheimlich palavra alemã que traz que que, contudo, fracassou, ou permitiu
em si a ambigüidade. um retorno imprevisto e repentino do re-
Referindo-se ao episódio do trem, calcado, trazendo uma modificação profun-
Freud relata que, num primeiro momen- da do objeto, o qual, de familiar se transfor-
to, em vez de ficar assustado com seu du- ma em estranho, e de estranho em algo que
plo (sua imagem refletida no espelho), inquieta por sua proximidade absoluta
negou-se a reconhecê-lo como tal. A ques- (Sami-Ali)16. Mais uma vez, Freud asso-
tão do duplo aponta para o fato de que cia a morte ao complexo de castração e à
um sujeito se identifica de tal modo com fantasia de retorno ao útero (vide pulsão
outra pessoa, a ponto de ficar em dúvida de felicidade, O tema dos três cofrinhos),
sobre quem é o seu eu ou substituir seu eu antigo heim (lar) de todos os seres huma-
por um estranho. É como se alguém se nos, lugar onde cada um de nós viveu certa
interrogasse: este sou eu? Eu sou este ou- vez, no princípio (p.305).
tro? Este outro sou eu?
Rank, citado por Freud, abordou as Considerações finais
ligações do duplo com reflexos nos espe-
lhos, sombras e espíritos chegando à alma Uma teoria genética do eu pode ser con-
e à morte. Da busca de segurança e prote- siderada psicanalítica na medida em que tra-
ção contra a destruição do eu a morte, o ta da relação do sujeito com seu próprio cor-
homem caminhou para a construção da po nos termos de uma identificação a uma
alma imortal, primeiro duplo do corpo. imago, vínculo psíquico por excelência.17
Essa criação do duplicar como defesa con- O eu, instância sobretudo imaginária,
tra a extinção aparece nas imagens da sofre modificações ao longo do tempo de
castração, representada pela duplicação ou existência de cada sujeito. Também a ima-
multiplicação de um símbolo genital (p.ex. gem corporal muda, como também muda
a Medusa). Estas tentativas de pereniza- o olhar para o mundo, para os outros e,
ção nascem do narcisismo primário, toda- acima de tudo, para si mesmo. Estes tex-
via, pelo próprio desenvolvimento do su-
jeito, a garantia de imortalidade transfor-
ma-se em estranho anunciador da mor-
te. 16. SAMI-ALI, M. Cuerpo real, cuerpo imaginario (1977),
p.32.
O duplo nesta fase de vida (maturi- 17. LACAN, J. Algumas reflexões sobre o eu (1951). In
dade ou mesmo velhice) contrasta com o Psicanálise: Algumas reflexões sobre o espelho. Trad.
duplo do estágio do espelho. Este é acima Oscar Cesarotto.
tos aqui apresentados mostram como a algo de mim, contrapõe-se à falta de de-
imagem corporal e o eu são formados de sejo do outro por meu corpo, por mim.
modo simultâneo. E neste desenvolvimen- A imagem do corpo principalmente
to, a imagem especular e a imagem do do rosto envelhecido remete à castra-
outro são fundamentais. ção, à proximidade do fim, para a morte
Da unidade-dual mãe-filho(a), em iminente. A imagem do corpo envelheci-
que o rosto da mãe é o primeiro rosto a do não é aquela que se gostaria de ver.
ser conhecido e reconhecido, a criança Aquilo que se vê nesta imagem é a pre-
começa a se descobrir como unidade-se- sença da falta, da castração. E neste tem-
parada, de início ainda não diferenciada po não é mais possível uma troca, não se
do outro. Nesse período em que se conhe- tem mais o recurso de se tornar algo dife-
ce e se distingue da mãe, a criança desco- rente, não existe o porvir. Contudo, neste
bre também um terceiro que desvia o olhar real há sempre uma possibilidade imagi-
da mãe figura paterna, o outro como nária, que permite ver-se como se gosta-
diferente e que introduz a lei simbólica. A ria, que permite aí identificar-se e amar-
criança nesta fase faz uso da linguagem, se. O mais importante e bonito, do mundo é
nomeia-se e nomeia os outros e, sobretu- isto: que as pessoas não estão sempre iguais,
do, adquire uma representação simbólica ainda não foram terminadas mas que elas
que lhe permite suportar a ausência da vão sempre mudando. Afinam ou desafinam
mãe. O desenvolvimento passa por outras (Guimarães Rosa). ϕ
fases que acarretam mudanças, tais como
puberdade e adolescência, a idade adulta THE BODY IMAGE AND
e o envelhecimento, trazendo modifica- THE CONSTITUTION OF EGO
ções corporais, perdas e ganhos.
O corpo registra e assimila vivência, Abstract
bem como sofre as marcas do tempo. Mui- Based on three psychoanalysts Freud, La-
tas vezes a representação interna de nos- can and Winnicott, the author approaches the
so corpo, nossa imagem corporal, e a ima- theme of ego constitution, in its relations to
gem fornecida pelo espelho não coinci- the body image. She refers to an imaginary
dem, bem como a imagem nossa falada place where the mother image, the youngsters
pelo outro. O corpo pode ser objeto de own image in the mirror and the image of other
prazer, prazer de ver (schaulust), mas tam- people intersect in their differences, coinciden-
bém de sofrimento, de angústia, de satis- ces and oppositions.
fação auto-erótica, ou de vergonha. O
desejo em relação ao corpo está sempre Keywords
presente: desejo de se ver (pulsão escópi- Body image Ego Mirror Other one
ca), de ser visto, de ser reconhecido, de Double Strange Familiar
despertar o interesse do outro. O insupor-
tável é o não ser olhado. Ou ser olhado e
não ser visto.
Bibliografia
O corpo para se tornar um eu e de-
ASSOUN, Paul-Laurent. O olhar e a voz. Rio de
pois sujeito precisa ser desejado: primeiro Janeiro: Companhia de Freud. 1999.
pela mãe depois por si mesmo e pelo ou-
FERNANDES, M. Helena. Corpo, São Paulo: Casa
tro. Mas sempre objeto de desejo de si do Psicólogo, 2003.
mesmo narcísico porém marcado pelo
Outro inconsciente. Através de meu cor- FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo: uma intro-
dução (1914). Edição Standard Brasileira das Obras
po desejo ser desejado. O olhar do outro Psicológicas Completas, v.14. Rio de Janeiro: Ima-
que me invade, me desnuda, mas deseja go, 1976.
RECEBIDO EM 15/06/2007
APROVADO EM 27/06/2007