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A imagem corporal e a constituição do eu

A imagem corporal e a constituição do eu


Sônia Cury da Silva Campos

Resumo
Através de três autores psicanalistas – Freud, Lacan e Winnicott, a autora aborda o tema da
constituição do eu, a partir da imagem corporal. Trata-se de um lugar sobretudo imaginário, em
que se interpõem a imagem da mãe, a própria imagem no espelho e a imagem do outro, em suas
diferenças, coincidências e oposições.

Palavras-Chave
Imagem corporal – Eu – Espelho – Outro – Duplo – Estranho – Familiar

Introdução próprio corpo; as sensações internas e ex-


ternas se confundem. Progressivamente,
No começo estava o corpo, bem ele vai definindo a superfície de seu cor-
como no fim ele estará. Nascemos como po, seu interior, o que é parte dele e o que
corpo biológico e assim morreremos. De pertence ao mundo externo, construindo
fato, quando alguém morre, surge a per- assim seu esquema e sua imagem corpo-
gunta: onde está o corpo?(e não onde está ral. Nesta construção progressiva, seu eu
Fulano?). Entre estes dois extremos – o vai ser constituído, sempre num processo
nascimento e a morte – há um longo tra- que, por ser dialético, implica dois opos-
jeto que todo ser humano deve percor- tos: ele próprio e o outro.
rer, a fim de, além de ser corpo, consti- O eu corporal, por sua vez, é cons-
tuir um eu. Nesta constituição existe um tituído por aquela parte que se diferen-
“processo de desenvolvimento que, se não ciou do isso: pulsões parciais dirigidas
pode ser demonstrado, pode ser construído.”1 inicialmente para o próprio corpo (auto-
“O eu”, no entanto, afirma Freud, “é, pri- eróticas), antecedendo o eu propriamen-
meiro e acima de tudo, um eu corporal; não te dito, que depois se tornam narcísicas
é simplesmente uma entidade de superfície, (dirigidas para o próprio eu). Freud afir-
mas é ele próprio a projeção de uma superfí- ma que o eu é a parte do isso que foi
cie.”2 modificada pela influência externa, e
Como é sabido, de início, o recém- que a percepção desempenha para o eu,
nascido não distingue os limites de seu o mesmo papel que a pulsão desempe-
nha para o isso. Os dois não estão, to-
davia, nitidamente separados; subjaz no
1. FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930), v.21, p.84. eu uma parte “desconhecida e inconscien-
2. FREUD, S. O ego e o id (1923), v.19, p.40. te”, de algum modo “preservada e que
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pode ser trazida de novo à luz”, ou seja, O reconhecimento de si no rosto da mãe


que pode retornar.3
Já o corpo, e acima de tudo sua super- Segundo Winnicott, “no desenvolvi-
fície, constitui um lugar de onde se origi- mento emocional individual, o precursor do
nam as sensações externas e internas: tato, espelho é o rosto da mãe.”5
sons, sensações intero e proprioceptivas, O inacabado ser humano quando vem
sensações de dor, que vão informar sobre ao mundo se confunde com este. Ainda
os órgãos internos. Contudo, cabe à visão não tem definido o que é o seu corpo, o
um papel especial. É sobretudo o olhar que que ele é, o que é o outro, o que é o mun-
torna possível conhecer o outro e se co- do que o cerca. A mãe (ou a pessoa que
nhecer, definir o contorno das várias par- cuida dele), os objetos, faz parte dele mes-
tes do corpo, e só através do olhar no es- mo. Ainda não tem noção de seu próprio
pelho é que se pode conhecer o próprio corpo – por ex: a mão ou o pé são desco-
rosto. É efetivamente através do olhar que bertos como exteriores a ele, por isso é
se cria a imagem de si; imagem especular, comum morder seu pé e chorar de dor.
criada a partir do ato de olhar a si próprio Ao sugar o seio, mais do que olhar
no espelho, de olhar para o outro, do olhar para este, o bebê olha para o rosto de quem
do outro. Toda imagem é por si mesma o está amamentando. E, como afirma
enganosa, fugaz, fugidia, ilusória. Além Winnicott, quando olha para o rosto da
disso, tanto nossa visão de nós mesmos – mãe, “o que o bebê vê é ele mesmo.”6 Pro-
nossa imagem – como nossa visão do mun- gressivamente, o bebê percebe que, quan-
do refletem nosso ponto de vista, nosso do olha, o que vê é o rosto da mãe. A mãe
estar no mundo. devolve a ele seu próprio eu, e ele vai-se
Convém lembrar também que, na tornando “menos dependente de obter de
constituição do eu, ao lado da diferencia- volta o eu dos rostos da mãe e do pai.”7
ção do isso, é de suma importância o pa- A relação da mãe com seu próprio
pel das identificações. Estas, na fase oral corpo, e sobretudo com seu corpo duran-
primitiva, não se distinguem dos investi- te a gravidez, será fundamental para a
mentos objetais, além de serem as mais constituição do eu e da subjetividade. O
gerais e duradouras. Um objeto perdido vínculo entre mãe e filho se estabelece
instala-se novamente no eu, sendo o in- desde o instante da concepção, e a futura
vestimento substituído pela identificação mãe atribui a seu filho um corpo imagina-
(p.ex. na melancolia). Assim, o eu é tam- do, diferente do que é o feto no plano fisio-
bém um “precipitado de investimentos obje- lógico da realidade. Tal corpo imaginado
tais abandonados e contém a história dessas do filho, de acordo com Waelhens, vai ofe-
escolhas de objeto.”4 recer ao desejo da mãe um correlato, um
Este texto procura elaborar o papel do suporte, um objeto; serve de proteção con-
corpo na constituição do eu, tomando tra o parto vivido como um luto (perda
como referência três momentos na histó- de parte de seu próprio corpo e ameaça
ria individual e na história da psicanálise: contra sua vida). Além disso, estabelece-
1. O reconhecimento de si no rosto se nesse corpo imaginado um investimen-
da mãe to afetivo e libidinal, com risco de apare-
2. A criança em frente do espelho
3. Freud diante do espelho
5. WINNICOTT, D.W. O papel de espelho da mãe e da
família no desenvolvimento infantil, in O brincar e a
realidade (1971), p.153.
3. FREUD, S. Idem, p.37. 6. Idem, p.154.
4. FREUD, S. Idem, p.43-44. 7. Idem, p.161.

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cer o recalcado mais arcaico. Uma vez ança começa a demarcar a totalidade do
nascido esse corpo imaginado, a partir do seu corpo. Este é um longo processo (sex-
qual a criança será constantemente inter- to ao 18° mês), que se caracteriza sobre-
pelada em seu “ser-com-a mãe”, ele vai tudo pela imagem no espelho.
oferecer ao sujeito aquele ponto de refe- Wallon, neurologista francês, um dos
rência fora de si mesmo e que lhe permiti- fundadores da Psicomotricidade, foi o pri-
rá ver-se como outro desta sinestesia vivi- meiro autor a falar em estágio do espelho
da. (1934). Lacan (1949) desenvolveu sua
Waelhens, a partir de Piera Aulagni- idéia, acrescentando-lhe uma visão psica-
er, considera ainda que, antes de a sepa- nalítica. Aos dois estudiosos, impressiona-
ração mãe-filho ocorrer, a criança existe va-lhes o fato de, antes do desenvolvimen-
como um outro, abrindo caminho primei- to psicomotor, ou seja, ainda imatura e
ro do lado da mãe, em seguida desta e do dependente (não anda nem fala), a crian-
filho, ao possível jogo de identificações e ça começar a formar uma imagem con-
reconhecimentos. Entre a necessidade junta de seu corpo. Antes mesmo de no-
(sede, fome) e a demanda (tentativa de mear seu corpo ou nomear-se, a criança
restabelecer a fusão original, de eliminar já se reconhece no espelho. Até então, o
a incompletude), ou entre o instinto e a bebê percebia seus pés, mãos, braços, per-
pulsão, vão-se estabelecendo os traços nas, até mesmo seu tronco, mas só quan-
primários do eu e do futuro sujeito dese- do se olha no espelho pode ver seu rosto.
jante. Não se trata mais do rosto da mãe, mas de
O começo de vida é, portanto, alie- seu próprio rosto.
nante: alienado no desejo dos pais, prin- Ao olhar-se no espelho, o que (ou
cipalmente da mãe, presa da unidade-dual quem) a criança vê num primeiro momen-
(mãe-filho), presa de suas próprias limita- to é um outro; em um segundo tempo per-
ções (inacabamento fisiológico), e inseri- cebe que é ela mesma que está ali. Ou seja,
do em uma cadeia significante que pré- vê primeiro o outro, depois o outro que é
existe a seu nascimento. Por conseguinte, ela mesma, criando assim um jogo de al-
é necessário da parte da mãe “um investi- ternância eu-outro.
mento libidinal do corpo do filho, enquanto Retomemos o mito de Narciso. Nar-
corpo de outro ser distinto do corpo mater- ciso, ao se olhar na superfície das águas,
no”8, uma vez que não bastam as sensa- vê uma imagem pela qual se apaixona. Em
ções corporais, tais como tato, visão, ór- um primeiro momento, não sabe que é ele
gãos internos, dor, sinestesia etc., para que próprio que está ali; sua imagem é-lhe es-
se constitua um eu, que de início é corpo- tranha, pois não se conhece. Portanto, se
ral. conhece como outro, e por esse outro se
Freud já percebera a importância da apaixona. Só em um segundo momento
mãe (ou substituto) ao escrever que “o eu percebe que esse outro é ele mesmo.
é a parte do isso modificado pela influência Freud, em “Mais Além do Princípio
direta do mundo externo.”9 do Prazer” (1920), relata o jogo do fazer
aparecer-desaparecer a mãe (brincadeira
A criança em frente do espelho do carretel conhecido como “fort-da”),
acrescentando numa nota de rodapé uma
O primeiro esboço do eu será consti- outra brincadeira feita pelo mesmo neto.
tuído a partir do sexto mês, quando a cri- Trata-se de “fazer desaparecer a si próprio.
A criança descobriu um espelho que não che-
8. WAELHENS, Alphonse de. La psicosis (1972), p.52. gava até o chão, apesar de ser um espelho de
9. FREUD, S. O eu e o id (1923), v. 19, p.39. corpo inteiro. Agachava-se e podia fazer sua
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imagem ir embora.”10 Observamos, assim, Este período da descoberta do corpo


uma simultaneidade entre o fazer desapa- próprio frente o espelho mostra uma evo-
recer-retornar a mãe e fazer desaparecer- lução marcante na constituição do eu (e
retornar a si próprio. do sujeito). É um momento de tensão en-
A chamada “angústia do oitavo mês”, tre a identificação e a projeção: “ser um
quando o bebê chora ou mostra descon- mesmo sendo o outro e ser o outro não sendo
tentamento ao ver um rosto que não é o um mesmo”, nas palavras de Sami-Ali14. À
rosto familiar de sua mãe, está inserida identificação imaginária, constitutiva do
nesta fase da constituição simultânea do eu, sucede o nascimento do simbólico.
eu-outro. Sami-Ali explica assim esta Esta fase culmina com o uso do pronome
angústia: “perceber o rosto da mãe na sua eu, do possessivo meu-minha, isto é, do
diferença em relação aos outros rostos signifi- estabelecimento da linguagem e toda a
ca pressentir a possibilidade de ter um rosto carga que a inserção na cultura traz con-
diferente do rosto da mãe”. “A angústia reve- sigo. A criança deixa de se nomear como
la então a dupla constituição do outro como outro (Fulano quer...) para se nomear (eu
outro, e de um mesmo como outro, em rela- quero).
ção a esse outro.”11
Deste modo, à unidade dual mãe-fi- Freud diante do espelho
lho sucede a alteridade mãe-filho e a al-
teridade eu-outro. Waelhens fala no par No texto “O Estranho” (Das Unhei-
narcisista, pois o interesse pelo outro (mi- mlich)15 Freud relata o episódio em que,
nha imagem) é mantido pelo interesse que viajando de trem, no compartimento car-
aquele “que vê, se vê.” “O que vê encontra ro-leito, um solavanco fez a porta do toa-
sua identidade na imagem, mas esta identi- lete abrir-se e “um senhor de idade, de rou-
dade de si mesmo é, de algum modo, seu ou- pão e boné de viagem, entrou.” Levantou-se
tro.”12 para mostrar o equívoco deste homem e,
Lacan, no Seminário Os Quatro Con- então, compreendeu, espantado, que o
ceitos Fundamentais da Psicanálise (1964), intruso era seu reflexo no espelho da por-
acrescenta a importância do Outro que ta aberta. Tomado de forte emoção, con-
carrega ou segura a criança na frente do fessa que antipatizou com sua aparência,
espelho. Quando se olha no espelho, a ficou assustado com seu “duplo” que
criança vira-se e busca o olhar daquele que achou “estranho”.
está com ela. Esse Outro geralmente é a Neste relato, Freud não especifica a
mãe, primeiro espelho e primeira referên- data e o local do ocorrido, ao contrário do
cia, no qual a criança se vê. Lacan obser- que sempre faz. O texto foi elaborado e
va que a criança “vê aparecer, não seu ideal publicado em 1919, à mesma época do
do eu, mas seu eu-ideal, esse ponto em que “Mais Além do Princípio do Prazer”. Por-
ela deseja comprazer-se em si-mesma.”13 Tra- tanto, o fato deve ter ocorrido quando
ta-se do ideal narcisista, do ponto onde contava cerca de sessenta anos (1856-
este ser quer ser amado e reconhecido. 1919).
Este texto é de difícil leitura, pois re-
mete a vários sentidos e é todo permeado
por angústia. Freud o introduz falando de
10. FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920), v.18,
p.27.
11. SAMI-ALI, M. Cuerpo real, cuerpo imaginario (1977),
p.116.
12. WAELHENS, Alphonse de. Idem, p.61. 14. SAMI-ALI, M. Cuerpo real, cuerpo imaginario (1977),
13. LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos p.116.
fundamentais da psicanálise, p.242. 15. FREUD, S. O estranho (1919), v. 17.

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estética e observando que esta não é tão- de tudo fonte de prazer e júbilo, enquan-
somente “a teoria da beleza, mas a teoria to que a imagem da velhice converte-se
das qualidades do sentir” (p.175). É a res- num objeto de terror, desamparo e reme-
peito deste sentir, ou sentir-se estranho, te a algo fatídico e inexorável – a morte.
que vai remeter ao “assustador”, ao que Não se trata de nada novo, pelo contrá-
provoca “medo e horror.” Ou seja, aquele rio, trata-se da “repetição de algo já estabe-
aspecto da estética que estuda não o que lecido no psiquismo há muito, mas que se ali-
é “belo, atraente e sublime”, mas aquilo enou através do recalque. Este duplo, este
“que provoca sentimentos de repulsa e estranho é algo que deveria ter permanecido
aflição.” Dedica-se a elaborar em que cir- oculto, mas veio à luz.”
cunstâncias o que é “conhecido, velho e O prefixo un, nota Freud, é o sinal do
familiar” torna-se “estranho e assustador.” recalque (misterioso, sobrenatural, que
No português não conseguimos juntar provoca horrível terror). O que era fami-
numa única palavra este estranho-famili- liar se tornou irreconhecível pelo recal-
ar – Unheimlich – palavra alemã que traz que que, contudo, fracassou, ou permitiu
em si a ambigüidade. um retorno imprevisto e repentino do re-
Referindo-se ao episódio do trem, calcado, trazendo “uma modificação profun-
Freud relata que, num primeiro momen- da do objeto, o qual, de familiar se transfor-
to, em vez de ficar assustado com seu du- ma em estranho, e de estranho em algo que
plo (sua imagem refletida no espelho), inquieta por sua proximidade absoluta”
negou-se a reconhecê-lo como tal. A ques- (Sami-Ali)16. Mais uma vez, Freud asso-
tão do duplo aponta para o fato de que cia a morte ao complexo de castração e à
um sujeito se identifica de tal modo com fantasia de retorno ao útero (vide pulsão
outra pessoa, a ponto de ficar em dúvida de felicidade, O tema dos três cofrinhos),
sobre quem é o seu eu ou substituir seu eu “antigo heim (lar) de todos os seres huma-
por um estranho. É como se alguém se nos, lugar onde cada um de nós viveu certa
interrogasse: este sou eu? Eu sou este ou- vez, no princípio” (p.305).
tro? Este outro sou eu?
Rank, citado por Freud, abordou as Considerações finais
ligações do duplo com reflexos nos espe-
lhos, sombras e espíritos chegando à alma “Uma teoria genética do eu pode ser con-
e à morte. Da busca de segurança e prote- siderada psicanalítica na medida em que tra-
ção contra a destruição do eu – a morte, o ta da relação do sujeito com seu próprio cor-
homem caminhou para a construção da po nos termos de uma identificação a uma
alma imortal, primeiro duplo do corpo. imago, vínculo psíquico por excelência.”17
Essa criação do “duplicar como defesa con- O eu, instância sobretudo imaginária,
tra a extinção” aparece nas imagens da sofre modificações ao longo do tempo de
castração, representada pela duplicação ou existência de cada sujeito. Também a ima-
multiplicação de um símbolo genital (p.ex. gem corporal muda, como também muda
a Medusa). Estas tentativas de pereniza- o olhar para o mundo, para os outros e,
ção nascem do narcisismo primário, toda- acima de tudo, para si mesmo. Estes tex-
via, pelo próprio desenvolvimento do su-
jeito, a garantia de imortalidade transfor-
ma-se em “estranho anunciador da mor-
te.” 16. SAMI-ALI, M. Cuerpo real, cuerpo imaginario (1977),
p.32.
O duplo nesta fase de vida (maturi- 17. LACAN, J. Algumas reflexões sobre o eu (1951). In
dade ou mesmo velhice) contrasta com o Psicanálise: Algumas reflexões sobre o espelho. Trad.
duplo do estágio do espelho. Este é acima Oscar Cesarotto.

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tos aqui apresentados mostram como a algo de mim, contrapõe-se à falta de de-
imagem corporal e o eu são formados de sejo do outro por meu corpo, por mim.
modo simultâneo. E neste desenvolvimen- A imagem do corpo – principalmente
to, a imagem especular e a imagem do do rosto – envelhecido remete à castra-
outro são fundamentais. ção, à proximidade do fim, para a morte
Da unidade-dual mãe-filho(a), em iminente. A imagem do corpo envelheci-
que o rosto da mãe é o primeiro rosto a do não é aquela que se gostaria de ver.
ser conhecido e reconhecido, a criança Aquilo que se vê nesta imagem é a pre-
começa a se descobrir como unidade-se- sença da falta, da castração. E neste tem-
parada, de início ainda não diferenciada po não é mais possível uma troca, não se
do outro. Nesse período em que se conhe- tem mais o recurso de se tornar algo dife-
ce e se distingue da mãe, a criança desco- rente, não existe o porvir. Contudo, neste
bre também um terceiro que desvia o olhar real há sempre uma possibilidade imagi-
da mãe – figura paterna, o outro como nária, que permite ver-se como se gosta-
diferente e que introduz a lei simbólica. A ria, que permite aí identificar-se e amar-
criança nesta fase faz uso da linguagem, se. “O mais importante e bonito, do mundo é
nomeia-se e nomeia os outros e, sobretu- isto: que as pessoas não estão sempre iguais,
do, adquire uma representação simbólica ainda não foram terminadas – mas que elas
que lhe permite suportar a ausência da vão sempre mudando. Afinam ou desafinam”
mãe. O desenvolvimento passa por outras (Guimarães Rosa). ϕ
fases que acarretam mudanças, tais como
puberdade e adolescência, a idade adulta THE BODY IMAGE AND
e o envelhecimento, trazendo modifica- THE CONSTITUTION OF EGO
ções corporais, perdas e ganhos.
O corpo registra e assimila vivência, Abstract
bem como sofre as marcas do tempo. Mui- Based on three psychoanalysts – Freud, La-
tas vezes a representação interna de nos- can and Winnicott, the author approaches the
so corpo, nossa imagem corporal, e a ima- theme of ego constitution, in its relations to
gem fornecida pelo espelho não coinci- the body image. She refers to an imaginary
dem, bem como a imagem nossa falada place where the mother image, the youngster’s
pelo outro. O corpo pode ser objeto de own image in the mirror and the image of other
prazer, prazer de ver (schaulust), mas tam- people intersect in their differences, coinciden-
bém de sofrimento, de angústia, de satis- ces and oppositions.
fação auto-erótica, ou de vergonha. O
desejo em relação ao corpo está sempre Keywords
presente: desejo de se ver (pulsão escópi- Body image – Ego – Mirror – Other one –
ca), de ser visto, de ser reconhecido, de Double – Strange – Familiar
despertar o interesse do outro. O insupor-
tável é o não ser olhado. Ou ser olhado e
não ser visto.
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Standard Brasileira das Obras Psicológicas Comple- E-mail: soniacury@terra.com.br
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RECEBIDO EM 15/06/2007
APROVADO EM 27/06/2007

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