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Acórdãos TRP Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Processo: 903/17.3T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: ALD
PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
INVERSÃO DO CONTENCIOSO
Nº do Documento: RP20190107903/17.3T8VNG.P1
Data do Acordão: 07-01-2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º687, FLS.169-175)
Área Temática: .
Sumário: I - Celebrado contrato de ALD é facultado à locatária o recurso ao procedimento
cautelar comum, com vista a acautelar o seu direito de propriedade sobre o veículo
locado.
II - O periculum in mora encontrará o seu fundamento, no caso, no risco que a demora
na decisão a proferir na ação condenatória a intentar importa para a requerente do
ponto de vista da concretização do seu direito em fruir e gozar da viatura enquanto a
mesma tiver vida útil.
III - Fruição e gozo a que tem direito enquanto proprietária desde a resolução
contratual e que a não entrega tempestiva está a impedir.
IV - Na medida em que a peticionada e ordenada restituição em sede cautelar é
adequada à composição definitiva do litígio – no que concerne precisamente à
salvaguarda do direito de propriedade da requerente por via da restituição do bem –
justifica-se a inversão do contencioso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 903/17.3T8VNG.P1
3ª Secção Cível
Relatora: Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
1ª Adjunta: Juíza Desembargadora Fernanda Almeida
2º Adjunto: Juiz Desembargador António Eleutério
Tribunal de Origem do Recurso: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Jz.
Local Cível de Vila Nova de Gaia
Apelante/”B…, LDA.”
Apelada/ “C…, LDA.”
Sumário (artigo 663º n.º 7 do CPC):
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I- Relatório
“B…, Lda.” instaurou procedimento cautelar comum contra “C…, Lda.”,
peticionando pela sua procedência, com dispensa de audiência prévia da requerida:
“-A apreensão pela autoridade policial competente do veículo automóvel marca B1…,
modelo …. de matrícula .. – QD - .., e respetivos documentos;
- A sua entrega à requerente.
Mais se requer a V. Exa que, decretada a providência cautelar, se digne nos termos do
nº 1 do Art.º 369º do C.P.C, a dispensar o requerente do ónus de propositura da ação
principal.”
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II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e
em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e
aplicação das regras de direito nem limitado ao conhecimento das questões de que
cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e
639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pela apelante serem as seguintes as
questões a apreciar:
- erro na subsunção dos factos ao direito.
***
III- Fundamentação.
O tribunal a quo, após produzida a prova oferecida pela requerente, deu como
indiciariamente provada a seguinte factualidade (que a recorrente não questionou):
«A) No exercício da sua atividade comercial, a requerente celebrou com o requerido o
contrato de Aluguer B2… com o número ……., composto de "Condições Gerais", e de
"Condições Particulares".
B) O referido contrato foi celebrado em 09/07/2015, e a viatura foi entregue ao
requerido, nos termos do “Auto de receção do equipamento”.
C) Nos termos deste contrato a requerente veio a adquirir uma viatura automóvel,
marca B1…, modelo …, de matrícula .. – QD - ...
D) Tendo facultado a sua utilização ao requerido que estava obrigado, no quadro deste
contrato, ao pagamento de 60 (sessenta) rendas mensais, no valor de €632,63,
acrescidas de IVA à taxa legal.
E) O requerido incumpriu a obrigação de pagamento das rendas, não tendo pago as
rendas vencidas a 28/07/2016, 28/08/2016, 28/09/2016, 28/10/2016, IUC 28/07/2016,
notificações de identificação de 28/07/2016, 28/08/2016, e 28/10/2016.
F) O requerente, por carta registada com aviso de receção datada de 08 de Novembro
de 2016, interpelou o requerido para no prazo de 8 dias proceder ao pagamento das
rendas em atraso, acrescidas dos juros de mora e despesas contratualmente
convencionadas, sob pena, de decorrido o prazo sem o pagamento efetuado, a mora
converter-se em incumprimento definitivo, e o contrato em causa se considerar
automaticamente resolvido sem necessidade de qualquer outra comunicação.
G) Tal carta foi enviada para a morada indicada pelo requerido no contrato, e, veio
devolvida com a informação dos CTT “ não reclamada”.
H) O requerido não comunicou ao requerente outra alteração da sua morada.
I) O requerido não procedeu ao pagamento das rendas em atraso, no prazo de 08 dias,
tendo operado a resolução do contrato.
J) Com a resolução do contrato o requerido, ficou obrigado ao pagamento das rendas
vencidas e não pagas, juros de mora convencional, ao pagamento da indeminização
contratual, e à imediata devolução da viatura locada.
K) O veículo automóvel descrito é propriedade da requerente, não lhe tendo sido
devolvido pelo requerido.
L) A requerente procurou obter a restituição do veículo, através de outras diligências,
nomeadamente contacto telefónico e pessoal na morada do requerido, as quais
resultaram infrutíferas.
M) O requerido não se encontrava na morada
N) O referido veículo tem uma vida económica limitada, estando a requerente
impossibilitada de dispor do veículo e dele tirar qualquer rendimento no âmbito do seu
comércio, estando o veículo automóvel a desvalorizar-se e a depreciar-se, correndo o
risco de desaparecer.
Não se provaram quaisquer outros factos.
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Conhecendo.
O tribunal a quo enquadrou o contrato entre as partes celebrado como um “contrato de
aluguer de veículos sem condutor de longa duração, contrato em que, como o seu
nome indica, o núcleo essencial e caracterizador de deveres se reconduz à concessão
ao locatário, pelo locador, mediante retribuição, do gozo e fruição de um veículo
automóvel, durante o período de termo acordado.
É um contrato que está subordinado às regras gerais da locação (arts. 1022º e
seguintes, do Código Civil).
Sendo certo que, em tudo o que não revista natureza imperativa, podem as partes
livremente compor o conteúdo do contrato, de acordo com a sua vontade.
Assim, a requerente - caso entenda ser detentora de uma situação que postule tutela
urgente, para recuperar provisoriamente o veículo – lançou mão do procedimento
cautelar comum.”
Enquadramento legal que a recorrente não questiona.
Após definir o tribunal a quo os requisitos de que a procedência da providência
depende “probabilidade séria da existência do direito invocado; fundado receio de que
outrem, antes da ação ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e
dificilmente reparável a tal direito; adequação da providência à situação de lesão
iminente; não ser o prejuízo resultante da providência superior ao dano que com ela se
pretende evitar; e não existência de providência específica que acautele aquele
direito.”, concluiu não estar verificado o “articulado periculum in mora. Sendo que a
alegação do requerimento inicial, quanto ao periculum in mora não invoca os factos
que, passíveis de prova, pudessem conduzir a ação ao desiderato pretendido pela
requerente.
De facto não se mostra alegada, nem provada, factualidade suficiente para permitir
concluir pela provável existência de lesão grave e dificilmente reparável no direito da
requerente.”
(…) A normal depreciação do veículo, por força do uso que lhe é dado é obviamente
suscetível de causar dano à requerente. Mas são danos que esta facilmente
compensará pela via indemnizatória. E o mesmo se diga quanto ao prejuízo resultante
da impossibilidade de afetar o automóvel a outros negócios.
Assim, restaria à requerente a prova de factos de onde resultasse a impossibilidade ou
a grande dificuldade em conseguir o pagamento de tais quantias por parte da
requerida, que a requerente, em concreto, sequer alegou.
(…)
No entanto, não prova, nem alega a requerente, que a requerida não tenha património
suficiente para solver a sua dívida. E não pode a mesma deduzir-se sem mais do facto
de ter o requerido deixado de cumprir as suas obrigações para com ela (tanto mais que
pode ter património imobiliário, por exemplo, e que nenhum facto é alegado no sentido
de que esteja a dissipar essa sua garantia geral de pagamento aos seus credores).
Crê-se, assim pelas razões que supra se deixaram expostas não estar provada a
existência de periculum in mora em termos que justifiquem o decretamento da
providência.”
É contra este entendimento que a recorrente se insurge e que é motivo do presente
recurso.
E, desde já adiantamos, entendemos assistir-lhe razão.
Conforme resulta do requerimento inicial a requerente alegou a sua qualidade de
proprietária do veículo locado (3º req. inicial); alegou a resolução contratual com base
na mora convertida em incumprimento definitivo e a consequente obrigação de
devolução da viatura locada nos termos contratuais estabelecidos (7º e 12º req. inicial);
atenta a não voluntária entrega apesar dos seus esforços (14º do req. inicial) declarou
a requerente pretender propor ação de condenação para restituição do veículo (16º
req. inicial). O mesmo é dizer que o direito que a requerente declarou em tal ação visar
salvaguardar será o de proprietária desta viatura, para que à mesma possa nessa
qualidade dar o destino que entender.
Alegou em seguida a requerente que a não entrega do veículo – atenta a continuação
da sua utilização diária e vida económica limitada do mesmo – a impossibilita de dar ao
veículo o destino que entender, estando o mesmo a desvalorizar-se e depreciar-se por
cada dia que passa.
A lesão do direito invocado [entende-se o direito de propriedade – vide 20º req. inicial]
entende-se implícita na natureza do bem em causa e da sua natural degradação,
decorrente do mero uso e decurso do tempo. Correndo o risco de a viatura
desaparecer ou perecer até à sentença a proferir na ação declarativa (28º req. inicial).
O mesmo é dizer que a requerente alegou através deste procedimento pretender
salvaguardar o seu direito de propriedade que pelos motivos que expôs declarou estar
a ser lesado. Lesão que se agrava com o decorrer do tempo, decurso este tanto mais
relevante quanto é limitada a vida económica do mesmo.
Mais, alegou a requerente ainda permanecer em dívida os valores das rendas vencidas
e não pagas por falta de saldo bancário na conta da requerida, indiciador de
dificuldades económicas (23º req. inicial); desconhecer património da requerida, bem
como desconhecer se a viatura está segura, podendo ser responsabilizada por atos
ilícitos ou danos do uso da viatura, o que lhe causará prejuízo patrimonial (vide 22º a
26º do req. inicial).
Sendo a recuperação da viatura provavelmente a única forma de ser ressarcida do seu
crédito (31º req. inicial).
Ou seja, do alegado resulta que a requerente pretende salvaguardar o direito de
propriedade sobre a viatura mencionada por forma a permitir que da mesma rua como
entender já que a restituição deveria ter sido imediata com a resolução contratual; por
outro lado alega ainda que a recuperação da viatura será a única forma de se ver
ressarcida do crédito.
Note-se a este propósito que sendo a requerente a proprietária da viatura, a restituição
desta por parte da requerida apenas poderá evitar o agravamento de danos, nunca
ressarcir a requerente de danos causados porquanto a devedora não se poderá eximir
à eventual obrigação de indemnização com base em bem que não é seu.
O mesmo é dizer que o direito de crédito constituído e alegado não será, portanto,
liquidado com bem que pertence à própria credora.
O direito que este procedimento cautelar comum visa salvaguardar em primeira linha
é, conforme já dito, o direito de propriedade que incide sobre a viatura em causa
enquanto o bem tem valor económico e é suscetível de ser fruído. Estando a
requerente impossibilitada de o fruir e dele dispor como bem entender, apesar de estar
a requerida contratualmente obrigada à restituição pretendida por via da regular
resolução contratual.
O periculum in mora encontrará o seu fundamento, no caso, no risco que a demora na
decisão a proferir na ação condenatória a intentar importa para a requerente do ponto
de vista da concretização do seu direito em fruir e gozar da viatura enquanto a mesma
tiver vida útil. Fruição e gozo a que tem direito na qualidade invocada desde a
resolução contratual e que a não entrega tempestiva está a impedir.
Esta não fruição e gozo não são suscetíveis de restauração natural, em especial
quando a vida económica útil que é inerente à natureza do bem é temporalmente
limitada.
Da factualidade apurada resulta com relevo que “J) Com a resolução do contrato o
requerido, ficou obrigado ao pagamento das rendas vencidas e não pagas, juros de
mora convencional, ao pagamento da indeminização contratual, e à imediata
devolução da viatura locada.
K) O veículo automóvel descrito é propriedade da requerente, não lhe tendo sido
devolvido pelo requerido.
L) A requerente procurou obter a restituição do veículo, através de outras diligências,
nomeadamente contacto telefónico e pessoal na morada do requerido, as quais
resultaram infrutíferas.
M) O requerido não se encontrava na morada.
N) O referido veículo tem uma vida económica limitada, estando a requerente
impossibilitada de dispor do veículo e dele tirar qualquer rendimento no âmbito do seu
comércio, estando o veículo automóvel a desvalorizar-se e a depreciar-se, correndo o
risco de desaparecer.”
Realça-se a vida económica limitada do veículo propriedade da requerente e a
impossibilidade de fruição e gozo ou disposição do mesmo (K e N) bem como a
obrigação de entrega da viatura que está a ser violada pela requerida (J).
É quanto baste para que se entenda verificado o periculum in mora por referência ao
direito de propriedade que é o direito em risco de lesão[1].
E se este requisito está verificado e demonstrado em face da factualidade apurada,
igualmente o está a adequação da providência à situação de lesão iminente, bem
como a não superioridade do prejuízo resultante da providência ao dano que com ela
se pretende evitar.
Inexistindo ainda providência específica que acautele o direito convocado pela
requerente.
Em conclusão, a providência em concreto requerida de apreensão e entrega da viatura
deverá ser deferida.
Resta apreciar a questão da também requerida inversão do contencioso – questão não
apreciada pelo tribunal a quo, por prejudicada em função do por aquele decidido, mas
cujo conhecimento ora se impõe [vide artigo 665º nº 2 do CPC].
Nos termos do artigo 369º do CPC “1 - Mediante requerimento, o juiz, na decisão que
decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da ação
principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura
acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for
adequada a realizar a composição definitiva do litígio.
2 - A dispensa prevista no número anterior pode ser requerida até ao encerramento da
audiência final; tratando-se de procedimento sem contraditório prévio, pode o
requerido opor-se à inversão do contencioso conjuntamente com a impugnação da
providência decretada.
(…)”.
O direito que a requerente visou acautelar por esta via foi o direito de propriedade
sobre o veículo locado, com as inerentes utilidades ao mesmo.
Veículo que findo o contrato, à sua disponibilidade deveria de imediato regressar, nos
termos contratuais.
Da factualidade apurada resulta demonstrada a qualidade de proprietária da
requerente, bem como o direito à restituição da viatura para que à mesma possa dar o
destino que entender, atenta a regular resolução contratual.
O mesmo é dizer que o direito que a requerente pretende salvaguardar está com a
necessária segurança demonstrado nos autos.
Por outro lado, a peticionada e ordenada restituição em sede cautelar é adequada à
composição definitiva do litígio – no que concerne precisamente à salvaguarda do
direito de propriedade da requerente por via da restituição do bem.
Inexistem razões portanto para que se imponha à requerente a obrigação de instaurar
a ação principal a fim de conceder definitividade ao nesta sede determinado.
Tanto é quanto baste para que seja deferida a inversão do contencioso,
consequentemente ficando a requerente dispensada do ónus de propor a ação
principal.
Em conclusão procede o recurso em análise, na sua totalidade.
III. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente
procedente o recurso interposto e revogando a decisão recorrida;
- Decreta-se a providência requerida de apreensão da viatura pela autoridade policial
competente do veículo automóvel marca B1…, modelo … de matrícula .. – QD - .., e
respetivos documentos. E sua subsequente entrega à requerente.
- Mais e pela inversão do contencioso, dispensa-se a requerente do ónus de
propositura da ação principal.
Custas pela requerente (tanto do procedimento como do recurso) nos termos do
artigo 539º nº 1 do CPC, sem prejuízo do disposto no nº 2 do mesmo artigo.

Porto, 2019-01-07.
Fátima Andrade
Fernanda Almeida
António Eleutério
______________
[1] Vide neste sentido Ac. TRP 20/04/2017, Relator Aristides Almeida, bem como voto
de vencido in Ac. TRP de 26/01/2016, Relator Rodrigues Pires; ainda Ac. TRL de
26/02/2015, Relator António Martins, todos in www.dgsi.pt/jtrp.

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