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O rabugento Graciliano Ramos

Agamenon Magalhães Júnior Ensaísta, gramático e educador

Há muitos anos, perguntei a meu irmão Fábio Lopes Magalhães sua opinião sobre um
ensaio meu. Ele disse que o texto estava ótimo, só uma palavra o incomodava: o pronome
“cujo”. “O ensaio está tão bom que não precisaria desse termo”, disse ele, expressando sua
antipatia pelo tal vocábulo. Desde então, devo confessar, eu me policio no momento em que
vou utilizá-lo. Sempre que o emprego numa oração – gosto dele – lembro-me do comentário
desse meu leitor.
Certa vez, escrevendo sobre a Aids para uma coluna de jornal, usei a palavra “aidético”
sete vezes por todo o texto. O editor daquele jornal a substituiu por outra:
“Soropositivo causa menos impacto”, justificou.

Assim como alguns têm suas palavras preferidas


(saudade, amor, Deus, paz e amizade estão entre as mais citadas), quase todo mundo tem
uma de que não gosta (cujo, deveras, decerto e alhures se destacam entre as mais esquisitas).
Por princípio, alguns escritores nunca se valem de palavrões (nem quando escrevem ficção),
Guimarães Rosa não gostava do lugar-comum no vocabulário (tanto que tinha seu próprio
linguajar); eu, em particular, não tenho antipatia por nenhum vocábulo, se bem que acho os
mais eruditos, para a prosa, inúteis.
O folclore literário nos conta que Graciliano Ramos chegou a expressar, com fervor,
seu ódio pelo advérbio “outrossim”. Tão certa quanto a importância de Graciliano para a
literatura foi sua rabugice, principalmente com quem maltratava o idioma. Quando ele
trabalhava como revisor do jornal Correio da Manhã, ficou enfurecido com o repórter que
lhe entregara um texto com o intragável “outrossim”. O malcriado revisor resmungou alguns
palavrões e, por fim, rugiu: “Outrossim é a puta que o pariu!”
Essa história é narrada, com algumas variações no modo como isso se passou, por
biógrafos de Graciliano e por pessoas de seu círculo de amizade. O saudoso poeta Lêdo Ivo
contou o dia em que Graciliano pôs os olhos sobre um texto no qual certo autor, em tom de
bajulação ao governo Vargas, assim escreveu: “Mas, no entanto, contudo, todavia, o Estado
Nacional...” O birrento Graciliano não custou a filho-da-puteá-lo por causa da sucessão de
conjunções desnecessárias, ele “fez uma alusão bastante desprimorosa à genitora daquele
cientista político”, relatou o discreto Lêdo Ivo.
Era comum ouvir todo tipo de xingamento do autor de Vidas Secas ao se deparar com
palavras ou expressões pomposas no meio do texto. Logo urrava com quem se atrevesse a lhe
mostrar pobreza na gramática: “Cavalo!”
Exigente com o bom uso da Língua Portuguesa, não menos irritadiço com o
desrespeito às questões vernáculas, o Velho Graça se comportava como um cão raivoso da
literatura, sempre pronto para usar toda a sua fúria em prol desse ideal. “Mestre do idioma,
não era como certos escritores que derrapam no português porque aprenderam a escrever de
orelhada. Ele sabia teoria da língua, como um gramaticólogo”, confidenciou-nos o escritor
Antonio Callado sobre o mais antipático (e mais genial) escritor alagoano.

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