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N.º 230
00230
Junho 2017
Mensal l Portugal
5 601753 002096
€ 3,50 (Continente)
NA PISTA
DO CRIME
Há uma
revolução
na ciência
forense
www.helpmydesk.com
Grupo
Nova vida, mais SUPER! 230 Junho 2017
PSICOLOGIA 56
Diga não à violência!
Tesouros SAÚDE 58
naturais O que é um vampiro?
Raramente
pensamos nisso,
mas a natureza
AMBIENTE 64
tem um valor Quanto vale a biodiversidade?
económico
quantificável. FOTOGRAFIA 72
Dos cogumelos Gotas sem fronteiras
às abelhas,
passando pelo
mato mais rasteiro
SAÚDE 76
ou pelas aranhas E se não houvesse vacinas?
e outros
comedores HISTÓRIA 82
de insetos, A evolução da comida
inúmeras criaturas,
incluindo vegetais,
nos prestam
HISTÓRIA 86
serviços que Roma, o império do suborno
deveríamos
valorizar melhor. HISTÓRIA 92
Pág. 64 Bárbaros: para lá do limes
Edições, Conselho de Gerência Marta Ariño, Rua Policarpo Anjos, 4 Redação: tel.: 21 415 97 12, fax: 21 415 45 01
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e Distribuição, Lda. Editor Executivo João Ferreira
Tesouro vegetal
N
os bancos de sementes, também brotos ou tubérculos. O IBQ ocupa 68 hecta-
chamados “bancos de germo- res e, além do depósito de sementes, inclui um
plasma”, preservam-se as varie- centro de investigação e um completo jardim
dades de culturas que nos servem botânico no qual é possível encontrar diversos
de alimento, como se fossem uma espécie de tipos de árvores e uma impressionante cole-
seguro, caso ocorra uma catástrofe global. ção de fetos e plantas aquáticas. No entanto,
Hoje, existem uns 1500, espalhados por todo é nas sementes que se centram os estudos dos
o mundo. Num deles, instalado no Instituto de cientistas deste instituto e de outros bancos
Botânica de Kunming (IBK), na capital da pro- similares, como a Abóbada Global de Sval-
víncia chinesa de Yunnan, guardam-se 5000 bard, na Noruega. As variedades a guardar
espécies de plantas raras, em risco de extinção, são secas, para reduzir o nível de humidade Na unidade de micropropagação
in vitro, estuda-se a forma de
e que têm interesse para a agricultura em qual- a menos de cinco por cento, e conservadas a melhorar a multiplicação das plantas.
quer das suas formas reprodutivas: sementes, temperaturas abaixo de 18 graus negativos.
4 SUPER
Catostylus tagi
Muito frequente
no continente,
especialmente no Tejo
(de onde lhe vem o nome)
e no Sado. De grandes
dimensões, tem pouco
poder urticante.
Mesmo assim,
não lhe mexa!
Salpas
Têm um fase solitária e outra colonial.
Não são urticantes. Na fase colonial,
formam cadeias que podem atingir vários
metros de comprimento. Esta foi fotografada
quase à superfície, no mar Vermelho.
A secção de pteridófitas
conserva fetos e afins.
Interessante 5
Observatório
Sobreviver à noite
E
m muitos livros de ficção científica, De facto, diversas missões robóticas fra-
as bases que a humanidade cons- cassaram precisamente por terem estado
trói na Lua encontram-se perma- expostas durante dias e dias a estas cir-
nentemente iluminadas pelo Sol. cunstâncias extremas. Para lidar com o pro-
No entanto, isto não acontece em toda blema, a Agência Espacial Europeia (ESA)
a superfície do nosso satélite natural: há propõe aproveitar o regolito (o pó que
zonas que muitas vezes apenas são banhadas cobre a superfície lunar), que acumula calor
pelo ténue reflexo da Terra. Nelas, a tem- solar e o liberta de noite. Falta demonstrar,
peratura pode descer abaixo de 170 graus através de uma simulação realista, que se
negativos. A sobrevivência é complicada... trata de um sistema viável.
Erupções cutâneas
JOHNS HOPKINS UNIVERSITY APPLIED PHYSICS LABORATORY
6 SUPER
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SI 230
O Lado Escuro do Universo
As bolhas do Fermi
O
8 SUPER
ASTROFESTA 2017
ASTROFESTA
Monsaraz 2017
recebe o Universo!
Monsaraz
25, recebe o Universo!
26 e 27 de Agosto
Observatório
25, 26 e 27 dedo Lago Alqueva - OLA
Agosto
Observatório do Lago Alqueva - OLA
Palestras
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Palestras
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Atividades Culturais
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Organização
Organização / /Apoios:
Apoios:
O tombo da
monarquia
A revolução de 5 de outubro de 1910 também
se fez no rio: os navios de guerra ancorados no Tejo
foram tomados por marinheiros simpatizantes
dos republicanos, dando um apoio decisivo à causa,
mas os motins tiveram os seus percalços.
E
ntre os nomes que deram o golpe cabecilhas da revolução, quando se soube que
de misericórdia na monarquia em entre os oficiais do navio, entretanto manieta‑
Portugal, há três que se destacam: dos pelos marinheiros, não havia um único que
Adamastor, São Rafael e…D. Carlos I. apoiasse a causa republicana.
Sim, D. Carlos I, precisamente o nome do rei Uns minutos depois da uma da manhã, sur‑
assassinado em 1908, no Terreiro do Paço, pai giu, camuflado pelo negrume da madrugada
do último monarca português, D. Manuel II. profunda, um pequeno barco a vapor da base
Adiante se explica a finíssima ironia. do Arsenal (enviado pelos partidários do
Nos primeiros dias de outubro de 1910, Lisboa regime), para tentar abordar o Adamastor e Vasco da Gama, que se juntou à sublevação dias
encontrava‑se em estado de ebulição. Sentia‑se reaver o controlo do navio, mas um marinheiro mais tarde) terminaram condenados a 15 e 20
no ar o estertor da monarquia, ao fim de quase de olho perspicaz descortinou o inimigo, e anos de prisão e deportados para as colónias,
oito séculos, o culminar de 20 anos de deca‑ um rápido tiro de aviso enviou o invasor de mas em 1908, dias depois do regicídio, foram
dência contínua para a Casa Real, desde que regresso apressado à margem. Minutos depois, perdoados.
o ultimato britânico humilhara o país e o seu pouco faltava para as duas da manhã, 31 salvas Em coerência com a sua própria história, os
regime. As movimentações finais dos republi‑ disparadas pelo São Rafael ecoaram por toda a homens do gigantesco D. Carlos I voltaram a
canos eram descaradas, ao ponto de, no dia 3 cidade. Estavam dados os tiros de partida para amotinar‑se, já na noite de 4, seguindo os seus
desse mês, as autoridades mandarem o exército um episódio que ficaria na história. camaradas do Adamastor e do São Rafael. Os
da cidade ficar de prevenção. Porém, os cuida‑ oficiais barricaram‑se numa das divisões do
dos não foram suficientes. Talvez o maior erro UM COLOSSO NAVAL navio, e na disciplinada Marinha, sem um oficial,
do governo tenha sido desvalorizar a armada A situação no Tejo ainda não se encontrava ninguém mexe uma palha. Sabendo disso, o
fundeada no Tejo, em vez de a guardar com controlada. Outro barco de guerra flutuava ali tenente Carlos da Maia, tenente do São Rafael,
garras e dentes. ao lado: o cruzador blindado D. Carlos I, assim pegou em alguns companheiros, embarcou
Essa foi a grande vantagem dos conspirado‑ batizado em honra do rei assassinado dois num bote e subiu ao D. Carlos I. Sem hesitações,
res, até porque a Marinha apoiava, na sua maio‑ anos antes por Manuel Buíça e Alfredo da Costa. tomou o cruzador a tiro. Na refrega, os marinhei‑
ria, a ação antimonárquica. Garantido o apoio A embarcação, com estonteantes 117 metros de ros feriram o comandante e outro dos oficiais
de vários regimentos (com destaque para o comprimento e mais de quatro mil toneladas de entrincheirados. Os três navios hastearam a
Corpo de Marinheiros de Alcântara), na madru‑ peso, era tão‑só o maior navio de sempre da bandeira verde e rubra ainda antes de nascer
gada de dia 4, uma coluna de golpistas forte‑ Marinha portuguesa, e o mais artilhado, sendo o Sol de dia 5. Oficialmente, o Tejo proclamava
mente armados começou a dirigir‑se à rotunda considerado uma das mais poderosas naves de a República.
onde se ergue hoje a estátua do marquês de guerra do mundo, naquela altura. Entretanto, largas dezenas de marinheiros
Pombal, para se entrincheirar. Por volta da Sem o D. Carlos I (salvo seja), o golpe contra o desembarcaram para reforçar – decisivamente
mesma hora, as tripulações dos cruzadores Ada- rei corria seriíssimos riscos de falhar. Não menos – as forças revolucionárias. Mantinham‑se a
mastor e São Rafael amotinaram‑se e tomaram notável era o passado do navio, que lhe empres‑ bordo os homens essenciais para manobrar os
conta das embarcações. O tenente Mendes tava um simbolismo ímpar: a 8 abril de 1906, navios e operar a artilharia pesada. Dos três
Cabeçadas colocou‑se na liderança do pri‑ uma sublevação em protesto contra as más cruzadores, saíram igualmente armas e muni‑
meiro, enquanto o outro ficou nas mãos do condições a bordo entrara nas crónicas como ções para apetrechar muitos republicanos
segundo‑tenente Tito de Morais, que teve o primeiro passo para a revolução. Os 41 mari‑ desarmados, incluindo civis que aderiram
de ser enviado de emergência a bordo pelos nheiros envolvidos (incluindo os do couraçado voluntariamente à causa.
10 SUPER
Este artigo é
uma adaptação
de um dos
capítulos do livro
Histórias do Tejo,
de Luís Ribeiro
(A Esfera dos
Livros, 2013)
http://bit.ly/1hrY8Zc
Trio de heróis
O Tejo fabricou um trio de heróis da
causa republicana: os homens que
tomaram conta dos cruzadores ancorados
no rio. Os três uniram‑se pelo mesmo cor‑
dão idealista, mas tiveram vidas (e mortes)
muito diferentes. O comandante sublevado
do Adamastor, José Mendes Cabeçadas,
que não passava de um tenente de 27 anos,
no dia da revolução, ganhou as insígnias de
almirante e tornou‑se mesmo o nono pre‑
sidente da República Portuguesa; exerceu
D. Manuel II no seu escritório o cargo durante 18 dias, em 1926, antes de
do Palácio das Necessidades. ser afastado. Até ao final da sua vida, em
1965, com 81 anos, foi um ativo opositor
da ditadura e por duas vezes tentou avançar
com um golpe sobre o regime. Tito Augusto
Todo o plano foi executado na absoluta assim, a certa altura, um contra‑ataque equili‑ de Morais, o segundo‑tenente que tomou o
convicção de que teria a participação ativa dos brou a ação, até que os três cruzadores volta‑ leme do São Rafael e disparou sobre o Palácio
navios de guerra. Sem eles, de nada valeria o ram a mostrar-se, apontando baterias ao Ros‑ das Necessidades, também atingiu o posto de
corte das linhas férreas que desembocavam sio. Ensanduichado entre dois fogos, o exér‑ almirante; um pouco menos fogoso do que
em Lisboa, para impedir a chegada de reforços cito real percebeu‑se derrotado. O povo saiu Mendes Cabeçadas, refugiou‑se na carreira
da província: a defesa do rei atingiria a cidade para a rua, exultante. O custo em sangue tinha militar durante a ditadura e colecionou as
a partir da margem sul, se o rio não estivesse sido alto: morreram mais de 50 pessoas, de maiores condecorações nacionais, antes de
protegido. ambos os lados da barricada. morrer, pacatamente, em 1963, aos 83 anos.
Todo este momento histórico teve um atento Por fim, o tenente Carlos da Maia (homóni‑
ACÃO DETERMINANTE espetador no Tejo. Fundeado no rio, o couraçado mo da personagem principal de Os Maias por
O papel do Adamastor, do São Rafael e do São Paulo tinha a bordo o presidente brasileiro, simples coincidência, já que nascera dez anos
D. Carlos I, porém, não se ficou pela dissuasão, que se encontrava de visita oficial a Portugal. antes de Eça publicar a sua obra‑prima) ainda
longe disso. Ao final da manhã, quando um grupo Hermes da Fonseca assistiu, estático e boquia‑ chegou a capitão de fragata, a governador de
de militares de Queluz, na posse de uns quantos berto, aos tiros que esburacavam o palácio Macau e a ministro; em 1919, no entanto,
canhões, se instalou no jardim do Palácio das onde, apenas duas noites antes, jantara na paz abandonou a política, agastado com a corrup‑
Necessidades e apontou os canos ao quartel de dos justos ao lado do jovem rei D. Manuel II. ção que corroía o regime em que tanto acre‑
Alcântara, um dos navios aproximou‑se e des‑ O anfitrião, esse, conseguiu fugir para Mafra e ditara; dois anos depois, na Noite Sangrenta
carregou uma saraivada sobre o edifício (onde daí para a Ericeira, onde embarcou no iate real, de 19 de outubro de 1921, o grupo da infame
o rei ainda se escondia). O fogo pesado furou navegando para Gibraltar e, depois, para Ingla‑ “camioneta fantasma” deteve vários heróis
paredes e destruiu a torre do palácio. Foi quanto terra. Viveria exilado nas ilhas britânicas até à do 5 de Outubro, por alegadas ações contrar‑
chegou para desbaratar os já de si pouco moti‑ sua morte prematura, com 42 anos, em 1932. revolucionárias, e Carlos da Maia foi um dos
vados homens. Outro cruzador desmoralizava O cruzador D. Carlos I, obviamente, mudou escolhidos; a imagem da sua mulher, Berta,
o resto das tropas leais ao monarca enchendo de nome após a revolução, da mesma forma a chorar, com o filho de seis meses ao colo,
de tiros os ministérios, no Terreiro do Paço. que a Ponte Salazar se renomeou Ponte 25 não comoveu os militares; minutos depois,
Tomado o Forte de Almada, então, o poder de Abril, 64 anos mais tarde. O novo regime era assassinado a sangue‑frio, com 43 anos, o
bélico do Tejo tornou‑se avassalador. batizou‑o de Almirante Reis, um dos líderes homem que liderara o cruzador D. Carlos I, e
Os revoltosos de terra seca não deixaram de republicanos e da Marinha, e provavelmente que, assim que terminara a revolução, correra
fazer o seu trabalho. As forças instaladas na a mais inglória vítima da revolução: Cândido a abraçar a mãe, anunciando, feliz: “Mãe, po‑
rotunda iam disparando sobre o Rossio, de onde dos Reis suicidou‑se ao alvorecer do dia 5, em de beijar‑me, que não matei ninguém.”
vinham os adversários da revolução. Ainda casa, julgando que o golpe falhara.
Interessante 11
A Nebulosa do Anel (M57).
Caçadores de Estrelas
12 SUPER
Kepler Copérnico
Tycho Brahe
Interessante 13
Fotografia
14 SUPER
Da teoria à prática
A intimidade
da PAISAGEM
O fotógrafo Luís Afonso explica como explorar
em pormenor o mundo que nos rodeia, a qualquer hora
e sem grande-angular. De perto e com muita atenção.
Interessante 15
A beleza
pode estar
nos locais
mais banais
à nossa volta
S
e perguntar a um grupo de fotógrafos
de paisagem natural qual o seu des-
tino fotográfico de excelência, a maior
parte das respostas vai fazê-lo viajar
por cadeias montanhosas bem acima dos 2000
metros, por rios e cascatas de caudal volumoso,
por desertos de dunas e canhões de cortar a
respiração, por lugares onde a magnitude dos
elementos torna qualquer um insignificante
ao pé de tamanhas façanhas da mãe natureza.
Se perguntar aos mesmos fotógrafos qual a
hora do dia em que querem estar nesses locais,
a maior parte das respostas vai mencionar a
famosa hora dourada, no limiar da luz e da
escuridão, deixando a parte central do dia para
descansar enquanto se prepara o equipamento
para mais uma sessão ao nascer ou pôr do Sol.
Finalmente, se pedir a cada um desses fotó-
grafos para lhe mostrar uma fotografia repre-
sentativa desta sua “visão” e as juntar todas
num portfólio conjunto, talvez fique admirado
com a semelhança e a coesão daí resultante…
Neste tipo de abordagem, comum à maioria
dos fotógrafos de paisagem, todos são admi-
radores passivos, observadores da beleza e
do drama que se desenrola perante o olhar de
quem vê e de quem fotografa.
Em oposição a esta corrente, um pioneiro da
cor na fotografia de paisagem natural ousou
ser diferente e decidiu ter uma atitude mais ativa
no momento de retratar a natureza. Passando
ao lado do anonimato do grande cenário,
resolveu mergulhar na intimidade do que está
perto, daquilo que conhecemos e nos é familiar,
do céu por debaixo dos nossos pés. Acima de
tudo, colocou o seu “eu” na forma como via a
paisagem, construindo mundos que mostram
a visão e a resposta emocional e única de um
fotógrafo perante o mundo natural.
16 SUPER
Dragão marinho. A zona costeira da ilha das Flores,
perto da capital, Santa Cruz, esconde verdadeiros tesouros,
entre galerias, grutas e muitas rochas de origem vulcânica.
Interessante 17
É fundamental
estar atento
aos pormenores
da composição
forma decisiva, chegando a afirmar que as suas
fotografias lhe tiravam o fôlego pela sua força e
perfeição. Em meados do século XX, Porter é já
um mestre da cor, sendo um dos primeiros a ser
reconhecido no meio artístico, que olhava
para a novidade com alguma indiferença.
A formação científica nota-se no seu trabalho,
em especial no pormenor que aplica nas suas
fotografias de aves, as primeiras a serem exibi-
das em museus. Em 1962, publica In Wildness Is
the Preservation of the World (“A conservação
do mundo está na vida selvagem”), um livro
estruturado à volta das estações do ano e das
palavras do ambientalista Henry David Thoreau
(1817–1862). Nele, podemos apreciar as princi-
pais características da fotografia de Porter: a
ênfase no pormenor e nas texturas, composi-
ções meticulosas e vanguardistas e uma qua-
lidade impressionista verdadeiramente nova,
em que o movimento permite apontamentos
de verdadeira ilusão ótica.
Ansel Adams considerou Porter “um mestre
da cor na natureza”. Foi ele o responsável pelo
aparecimento do termo “intimidade” na foto-
grafia de natureza. As suas paisagens íntimas
são testemunhos do seu precoce amor pela
vida selvagem e pelos animais.
INTERIORIDADE
O que torna a fotografia de Porter tão espe-
cial para merecer uma exposição no Met nova-
-iorquino? A resposta está no título da expo-
sição: intimidade (pode ver o catálogo em
http://bit.ly/2obbcii).
Se procurar num dicionário a definição de
intimidade, surgem como sinónimos palavras
como “interioridade” e “familiaridade”. Na
fotografia de Porter, a subjetividade da sua
sensibilidade como artista sobrepõe-se à repre-
sentação objetiva da grandiosidade de um
local. A subjetividade não está no objeto foto-
grafado; pelo contrário, os elementos cons-
tantes na fotografia de Porter são familiares,
muitas vezes banais, até. A interioridade da
sua visão e o modo como escolhe as suas meti-
culosas composições é que sobressai na sua
obra. São as pequenas diferenças na luz sobre
as folhas caídas no chão, as linhas que sobres-
saem no caos dos ramos espalhados pela flo-
resta, os padrões e as texturas das pedras que
pode tocar numa praia qualquer. São pequenos
mundos construídos no meio do grande universo
que nos é familiar, mas que tantas vezes se deixa
de lado em favor da grande vista.
A obra de Porter teve e tem grande influência Impressões de outono. Os tons dourados tomam conta dos bosques de lariços existentes
na minha fotografia e exemplo claro disso são nas encostas de Manteigas. Balançados pelo vento, permitem registos verdadeiramente únicos.
18 SUPER
O beijo. No paúl do Boquilobo, o nível
da água está em constante mudança ao longo
do ano. Aqui, as primeiras chuvas enchem um
regato e escondem as raízes de um salgueiro.
Interessante 19
Energia
Novas experiências
O regresso da ideia maldita
SPL
vieram ressuscitar
Fusão fria
uma das ideias mais
contestadas da física: a
hipótese de produzir
a AQUECER
energia através
da fusão de átomos
à temperatura ambiente.
Há motivos para ter
esperança?
20 SUPER
E
m maio de 2016, a Comissão das Forças fusão nuclear à temperatura ambiente e a um segui-lo dissolvendo a substância em água e
Armadas da Câmara dos Representan- custo ínfimo: bastava um recipiente cheio de fazendo passar pelo líquido uma corrente de
tes norte-americana publicou o seu água pesada (formada por dois átomos de deu- quatro volts. Não seria possível algo de seme-
relatório anual para a National Defense tério, isótopo do hidrogénio, e um de oxigé- lhante nas reações nucleares? Será impres-
Authorization Act, lei federal que decide como nio), um fragmento de paládio e uma corrente cindível aquecer o hidrogénio a dezenas de
deve ser gasto o orçamento do Departamento elétrica. O que detetaram na experiência foi um milhões de graus para o transformar em hélio,
da Defesa. Nele, estabelecia que se tinham aumento anómalo da temperatura. com a consequente libertação de energia,
registado avanços suficientes no campo das como ocorre naturalmente no Sol?
reações nucleares de baixa energia (LENR, na SIMPLIFICAR OS MEIOS Centenas de laboratórios de todo o mundo
sigla em inglês) para permitir “produzir energia Fleischmann, que faleceu em 2012, trabalhava tentaram repetir a experiência a olho, pois os
renovável, ultralimpa e a baixo custo”. Não desde os anos 60 na possibilidade de meios químicos norte-americanos não publicaram
parece, à partida, algo excessivamente interes- químicos simples poderem influenciar os pro- um artigo a explicar como tinham procedido.
sante, mas, se substituirmos o termo LENR pelo cessos nucleares. Não era uma ideia dispara- Pouco a pouco, começaram a surgir resul-
que realmente significa, a coisa muda de figura: tada: se quisermos separar sal comum tados: a maior parte dos físicos não tinha
estamos a falar da fusão a frio, o grande bluff nos seus componentes (cloro e tido êxito. Por outro lado, os neutrões
surgido há quase três décadas. sódio), é necessário aquecê-lo que se devem produzir em qualquer
Em 23 de março de 1989, uma notícia científica até aos 40 mil graus Cel- reação nuclear primavam pela ausên-
sensacional apareceu em todos os meios de sius, mas também cia. Um físico chegou a afirmar:
comunicação social: um par de químicos da Uni- se pode con- “A prova mais nítida de que não
versidade do Utah, Martin Fleischmann e Stan- o conseguiram é a presença de
ley Pons, tinham descoberto como conseguir Fleishmann e Pons na confe-
Interessante 21
Os defensores
da fusão fria
não divulgam
os pormenores
rência de imprensa. Se tivessem conseguido
a fusão do hidrogénio, os neutrões emitidos
tê-los-iam morto.” Anos depois, Fleischmann
confessou que cometera dois erros: chamar ao
processo fusão e dar aquela “maldita confe-
rência de imprensa”.
Apesar de ter contra si quase toda a comuni-
dade científica, a ideia continuou a ser testada.
Nos Estados Unidos, cientistas do Space and
Naval Warfare Systems Command (SPAWAR)
exploraram o potencial da fusão fria desde o
início. O Departamento de Energia pediu, em
2004, uma sinopse do que estava a ser feito.
“O efeito não é reproduzível e a sua magnitude
não aumentou após uma década de trabalho”,
resumiram os autores. Não recomendavam
que se iniciasse um programa federal de
investigação, mas apenas financiar, de forma
oficiosa, “estudos em áreas específicas que
contribuam para resolver a controvérsia”.
MUDANÇA DE MENTALIDADE
O relatório parecia pôr ponto final no
assunto, mas só o facto de ter sido publicado
devolveu a fusão fria ao redil da ciência séria.
A mudança de mentalidade ocorreu, em boa
parte, por culpa de um físico chamado Lewis
Larsen. Depois do anúncio do fracasso de
1989, iniciou as suas próprias experiências:
por vezes, também ele registava um excesso
anómalo de calor.
SPL
22 SUPER
Pioneiros
e negacionistas
N a década de 1920, os cientistas
austríacos Friedrich Paneth e
Kurt Peters imaginaram um tipo pecu-
liar de reação nuclear que não produzia
radiação. Efetivamente, pensaram que
tinham conseguido transformar dois
átomos de hidrogénio em hélio, com
recurso a instrumentos próprios de um
laboratório de química. Pouco tempo
depois, foram obrigados a retratar-se:
um colega realizou a mesma experiên-
cia e descobriu que o hélio provinha
dos instrumentos de vidro utilizados.
A ideia de Paneth e Peters inspirava-se
num fenómeno conhecido: a capa-
cidade para absorver hidrogénio do
paládio, um metal dúctil e pouco abun-
dante que é utilizado em joalharia e no
processamento industrial do petróleo.
Em 1927, um físico sueco desconheci-
do, John Tandberg, afirmou que con-
seguira, à semelhança dos austríacos,
a fusão nuclear do hidrogénio numa
célula eletrolítica com paládio. Tentou
obter a patente da descoberta, mas foi-
-lhe negada. Apesar da juventude da fí-
sica nuclear, a patente entrava em con-
flito com factos bem estabelecidos por
outras instituições, nomeadamente o
Laboratório Cavendish, em Inglaterra,
onde reinava Ernest Rutherford, que
afirmaria, em 1932: “Qualquer pessoa
que espere obter uma fonte de energia
Visionário ou aldrabão? Andrea Rossi através da transformação de átomos
mantém que o seu reator E-Cat gera energia está a dizer disparates.”
térmica, pela fusão de hidrogénio e níquel.
tigadores das universidades de Bolonha e O INTERESSE ESTÁ A AUMENTAR conhecida do homem”, chegou a declarar o
de Upsala (Suécia) tiveram acesso ao E-Cat e A corrida à LENR tornou-se interessante. Rossi engenheiro eletroquímico Michael McKubre,
analisaram o misterioso excedente térmico. O encontrou um investidor: a companhia Cyclone responsável por esse tipo de investigação.
estudo relatava o que sucedera depois de per- Power Technologies, especializada em procurar Segundo afirma, a sua equipa conseguiu medir
manecer operacional 32 dias, período decidido fontes de energia limpas e baratas. Outra um excesso de calor 50 vezes superior à energia
para demonstrar que não havia baterias elétricas empresa, a Brillouin Energy Corporation, anun- introduzida nos reatores. Está convencido de
ocultas: “A energia total obtida foi de 1,5 mega- ciou, em dezembro de 2013, ter assinado um que se produz, no interior do paládio, uma reação
watts-hora, o que não se conseguiria com qual- acordo com uma companhia sul-coreana para nuclear a um ritmo lento, sem emissão da peri-
quer fonte química dentro do reduzido volume fabricar unidades de fusão fria. O objetivo era gosa radiação.
do reator.” O relatório também afirmava que a que instalações de LENR pudessem substituir Até instituições do calibre da NASA e da
composição do pó de níquel se alterara. os evaporadores convencionais nas centrais Organização Europeia para a Investigação
Apesar disso, o estudo independente não elétricas. Nuclear (CERN) abriram as suas portas à ante-
convenceu os céticos, que sugeriram prováveis Por sua vez, o diretor executivo da Cherokee, riormente desdenhada fusão fria. Alguns inves-
fontes de erro nas medições. Mais curioso foi que uma companhia de investimentos da Carolina tigadores das duas instituições mostram-se
tivessem insinuado falta de honestidade por do Norte que se dedica a financiar projetos de cautelosamente otimistas: “Há indícios sufi-
parte do inventor, presente durante as expe- painéis fotovoltaicos, reuniu-se, em 2014, com centes para irmos dar uma vista de olhos”, diz
riências. Em linguagem comum, Rossi teria funcionários chineses para avaliar o potencial Joseph Zawodny, físico do Centro de Investi-
aldrabado e feito batota. Contudo, as críticas das reações nucleares de baixa energia. gação Langley da NASA, na Virgínia. “Bom, não
não o desanimaram: em agosto de 2015, conse- Todavia, não é apenas o interesse do setor perdemos nada se for um falso positivo, mas
guiu obter uma patente para o seu reator nos privado que está a aumentar. Por exemplo, o muito se for um falso negativo”, comenta, por
Estados Unidos, na qualidade de “dispositivo Pentágono está também a promover experiên- sua vez, Huw Price, professor da Universidade
para aquecer um fluido”. No documento oficial, cias com LENR. “O seu potencial é ilimitado; de Cambridge (Reino Unido).
não há qualquer alusão à fusão nuclear. podemos estar perante a maior fonte de energia M.A.S.
Interessante 23
Tecnologia
Empreendedores em Gaza
Ciência no
BLOQUEIO
ISABEL PÉREZ
24 SUPER
Numa Gaza asfixiada por Israel e governada
com mão de ferro pelo Hamas, lançar
projetos científicos e tecnológicos é de heróis.
Contudo, há quem se atreva a fazê-lo.
Artesanato
Hassan e Ahmad
fizeram um drone
para ajudar em
tarefas de resgate.
Interessante 25
Muitos
materiais
não entram
em Gaza
P
ara a população da faixa de Gaza,
o território palestiniano controlado
pelo Hamas, o dia a dia é um duro
desafio. Após uma década de blo-
queio israelita marcado por sangrentas e des-
trutivas escaladas bélicas, a falta de bens e de
serviços essenciais deteriorou o quotidiano
dos quase dois milhões de pessoas que vivem
neste território entre Israel, o Egito e as águas
do Mediterrâneo.
Porém, o espírito humano a tudo resiste.
Na faixa de Gaxa, há jovens que fazem uso
de engenho e conhecimentos científicos para
melhorar a existência dos seus compatriotas.
Apesar de o bloqueio impedir o abastecimento
regular de materiais tão básicos como baterias,
hélices, cabos ou certos metais, os empreen-
dedores palestinianos criam produtos úteis.
A sua filosofia: curiosidade, força de vontade,
paixão pela ciência e um desejo de proteger o
ambiente. Eis algumas das suas histórias.
Zero emissões. O veículo
DRONES QUE SALVAM VIDAS elétrico construído por Khamal
Hassan Halaq e Ahmad Abu Hadda são enge- Miqati e Khaled al-Bardawil
nheiros informáticos e têm ambos 23 anos. consome apenas energia solar.
Durante o verão de 2014, enquanto davam os
primeiros passos para desenvolver um projeto
tecnológico e humanitário, Israel desencadeou
a última ofensiva contra a faixa, reduzindo drone. Este pode transportar até seis quilos de queixa das dificuldades com que depararam.
numerosos edifícios a escombros. As ruínas medicamentos e material médico, e integra uma “Em Gaza, os trabalhos de tornearia não são
modificaram a ideia inicial dos dois jovens: câmara que grava em zonas de difícil acesso, exatos, e isso causa fricções. Além disso, só
“A nossa intenção era desenvolver um carro- localizando vítimas fatais ou feridos. “Quere- há células fotoelétricas duras, o que acaba por
-robô de resgate”, explica Ahmad, “mas tínha- mos aumentar a autonomia do veículo, mas afetar a aerodinâmica do carro.”
mos dificuldade em controlá-lo sobre terrenos também não deixam entrar baterias em Gaza. Agora, a sua intenção é fabricar um veículo
irregulares, e pensámos que seria melhor um Havemos de arranjá-las...”, conclui Ahmad. solar para transportar feridos aos hospitais.
veículo aéreo.” “Se tivesse dez mil dólares, faria um carro solar
As peças indispensáveis para fabricar o drone, ENERGIA SEGURA de quatro lugares que alcançasse os 200 qui-
as hélices, chegaram-lhes provenientes do Os habitantes de Gaza sofrem episódios lómetros por hora. A mente humana é capaz
vizinho do sul, o Egito. “Aqui, era impossível recorrentes de falta de combustível, o que causa de tudo, mesmo sob um bloqueio como o que
consegui-las, pelo que pedimos a pessoas que longas filas nas bombas de gasolina e paralisa os estamos a sofrer.”
podiam vir dali que as trouxessem, juntamente transportes públicos e o serviço de recolha de
com outras coisas. Sair ou entrar em Gaza lixo. No entanto, no território, o Sol brilha 300 TIJOLOS DE CINZA
é difícil”, indica Hassan. Para o corpo do drone, dias por ano. Jamal Miqati, de 23 anos, recém- Embora tenham passado mais de dois anos
utilizaram plástico reforçado com fibra de vidro. -licenciado em engenharia mecatrónica pela desde a última guerra com Israel, milhares de
“Procurámos algo que pudesse carregar Universidade Al Azhar, de Gaza, criou um veí- habitantes da faixa de Gaza ainda precisam de
objetos, que suportasse pancadas e choques culo elétrico que funciona com energia solar. reconstruir as suas casas. Contudo, os materiais
e que fosse difícil de quebrar”, diz Hassan. “Tinha 16 anos quando me ocorreu a ideia”, de construção são escassos e caros. O projeto
A entrada de peças eletrónicas na faixa de Gaza recorda Jamal. “Estávamos a passar por um de fim de curso de Majd Al-Masharawi e
é proibida, o que faz disparar o seu preço. crise de falta de combustível e disse à minha Rawan Abdel Latif, duas recém-licenciadas em
“Lá fora, compra-se um Raspberry [computador família que faria um carro que não precissasse engenharia civil, destina-se a produzir tijolos
de uma placa, de baixo custo] por 35 dólares; aqui, de gasolina. Era o meu sonho.” baratos e de boa qualidade.
custa 300. O mesmo se passa com o plástico”, O desejo converteu-se num projeto de fim Em Gaza, os tijolos são produzidos artesa-
explica Ahmad. de curso, desenvolvido com um colega de nalmente com saibro e cimento, materiais que
O aparelho é controlado através de uma faculdade da mesma idade, Khaled al-Bardawil. entram no território a conta-gotas. “Os nossos
aplicação para telemóvel desenvolvida por “No início, pensámos num híbrido que res- não têm saibro e levam menos cimento. Tudo é
eles próprios, a qual comunica por WiFi com o peitasse o ambiente”, explica Jamal, que se daqui, e ecológico”, afirma Majd, com orgulho.
26 SUPER
impressoras. Estamos a tentar criar a prótese
de uma mão para uma menina, algo muito
importante num sítio como este.” Já imprimiu
um pulso ortopédico e vários estetoscópios.
“Um médico canadiano concebeu um fonen-
doscópio para nós que pode ser impresso em
3D, e produzimos vários. A ideia é fazer mais,
para dar a médicos e estudantes em Gaza.”
Interessante 27
Tecnologia
Uma grande
INSPIRAÇÃO
A procura de pulmões para transplantes
ultrapassa a quantidade disponível.
A solução passa por desenvolver
uma versão sintética que substitua
os naturais. Exploramos as últimas
novidades sobre essa apaixonante
corrida científica.
I
magine um artefacto capaz de filtrar,
todos os dias, cerca de 9000 litros de ar
para extrair o oxigénio que nos mantém
vivos. Para fazê-lo, teria de conter no inte-
rior um mínimo de 2000 quilómetros de tubos.
Impossível? De modo algum. Já existe e é tão
pequeno que andamos sempre com dois entre
o peito e as costas. Falamos dos pulmões, um
par de máquinas naturais que se encarregam,
melhor do que qualquer outro aparelho, de
captar oxigénio (O2) do exterior e expulsar o
dióxido de carbono (CO2) produzido pelo orga-
nismo na sua incessante atividade.
Os dados sobre o funcionamento destes
órgãos impressionam. Os pulmões de um adulto
contêm 700 milhões de alvéolos, sacos micros-
cópicos em cujo interior se produz o intercâm-
bio de O2 e CO2. A superfície disponível para a
troca gasosa soma 160 metros quadrados, o
equivalente à área de um campo de voleibol.
Se todos os capilares sanguíneos que revestem
os alvéolos para recolher o oxigénio e desfazer-
-se do dióxido de carbono fossem alinhados,
cobririam uma distância de mil quilómetros.
A velocidade é essencial na respiração. Por isso,
a superfície pulmonar onde se produz o inter-
câmbio de gases é tão fina (cinquenta vezes
menor do que um lenço de papel) que uma
molécula de oxigénio leva apenas 0,0004
segundos a atravessar essa camada de células.
Se considerarmos estes dados, é fácil com-
28 SUPER
Bronquíolo
Laringe
Traqueia
Alvéolos
Brônquio
Com cada
respiração,
renova-se
meio litro de ar
dos pulmões,
que têm
capacidade
para perto
de três litros.
ISTOCK
Como funciona?
A respiração, um processo automático
em que se regista um intercâmbio de
gases, produz-se cerca de 20 mil vezes por
dia. Na inspiração, o organismo incorpora
oxigénio e, na expiração, elimina dióxido de
carbono, o gás que resulta do processo pelo
qual as células obtêm energia. O ar, inspi-
rado pela boca ou pelo nariz, passa através
da laringe e alcança a traqueia, cuja extre-
midade inferior se divide em dois tubos, os
brônquios, que penetram nos pulmões. Os
brônquios dividem-se em ramificações do
tamanho de um fio de cabelo, os bronquío-
los, e terminam em diminutos sacos de ar,
os alvéolos. Os 700 milhões de alvéolos dos
pulmões incham ao inspirar e esvaziam-se
ao expirar. Partilham uma membrana per-
meável com os capilares (vasos sanguíneos
finos) que revestem as suas paredes, o que
permite ao exigénio passar do interior para
a corrente sanguínea, ao mesmo tempo que
o dióxido de carbono faz o itinerário opos-
to: do sangue para o alvéolo, e dali para o
exterior do corpo em cada respiração.
Interessante 29
De aço. Foto de 1960 de um pulmão
Emerson, que proporcionava oxigénio aos
pacientes incapazes de respirar sozinhos.
É preciso garantir que não provoca lhos que poderíamos, efetivamente, classificar
como pulmões artificiais. Em 2011, Joseph
30 SUPER
A salvação de Owen
CATERS NEWS
N o verão de de 2010, Owen Stark
(na foto) tinha dois anos e era um
menino aparentemente saudável. Até ao
dia em que desmaiou e foi transportado
a toda a velocidade para o Hospital In-
fantil de Saint Louis (Missouri). Sofrera
uma paragem cardíaca devido a uma
hipertensão pulmonar, uma compli-
cação que surge quando os vasos san-
guíneos dos pulmões se estreitam, não
conseguem transportar muito sangue e
obrigam o coração a um trabalho suple-
mentar. Os médicos e cirurgiões tiveram
de agir com a máxima rapidez para salvar
a criança.Recorreram a um dispositivo
de oxigenação por membrana extracor-
pórea (ECMO, na sigla em inglês), da
empresa alemã Novalung, um aparelho
que oxigeniza o sangue do paciente e se
desfaz do dióxido de carbono produzido por exemplo, para salvar doentes com insu- aquece. O circuito vai buscar o sangue
pelas funções do organismo. Os médicos ficiência respiratória causada por uma gripe do paciente através de um catéter que
sabiam que o engenho fora aprovado grave. Além de ser usado em casos urgentes, chega até à aurícula direita do coração;
apenas para ser utilizado em adultos, é também utilizado para tornar mais supor- depois, é novamente injetado, uma vez
mas parecia ser a única possibilidade de tável a espera dos doentes que aguardam oxigenado, na aorta. Fornece muito oxi-
Owen sobreviver. Funcionou. A técnica um transplante pulmonar. O dispositivo génio, mas não é um verdadeiro pulmão
que permite a existência dos ECMO foi consiste num circuito de tubos extracorpó- artificial. Em casos de vida ou demorte,
concebida há três décadas e mantém vi- reos no qual se intercalam um oxigenador a sua eficácia é de 50 por cento, e uma
vas pessoas cujos pulmões e coração não de membrana de silicone, uma bomba para utilização prolongada torna-se inviável.
funcionam por qualquer razão. Serve, fazer circular o sangue e um sistema que o Não passa de uma solução temporária.
SPL
lhos poderiam provocar coágulos e reações 800 ml por minuto. Se for intenso, pode alcan- tamanho real para estudar a forma como os
defensivas do sistema imunitário; um trombo çar os três litros por minuto. Se um órgão de aerossóis presentes na atmosfera poluída cir-
bloquearia a circulação no pulmão artificial e laboratório não se adaptar às alterações de culam através dos pulmões humanos, sobre-
o desenlace poderia revelar-se fatal. Os inves- atividade, o cérebro seria o primeiro a sofrer. tudo pela zona dos alvéolos. Esperam, assim,
tigadores sabem que o desafio reside em con- A estes entraves, acresce que, do ponto de determinar os danos produzidos pelas micros-
seguir que as superfícies dos pulmões de labo- vista celular, o pulmão pode ser considerado a cópicas partículas que inalamos, provenientes
ratório tratem as células com o mesmo mimo nossa víscera mais complexa. “As células situa- de emissões industriais ou dos meios de trans-
dos tecidos que revestem os originais, e que das à entrada são muito diferentes daquelas porte, e também averiguar a sua relação com
o percurso seguido pelo sangue através das das zonas mais profundas”, explica Joaquín o cancro do pulmão, entre outras doenças.
fibras ocas desses órgãos artificiais não seja Cortiella, investigador da Universidade do Mais promissor, se possível, é o PuLMo, um
demasiado tortuoso, o que aceleraria a reação Texas e fundador do Instituto Riddle para a pulmão em miniatura criado no Laboratório
coagulatória do sangue. Medicina Regenerativa. Cortiella e os seus cole- Nacional de Los Álamos, no Novo México, o
gas testaram uma possível solução para não qual permite estudar como reagem as nossas
ESCALA MICROMÉTRICA ter de imitar tantos tipos celulares: aproveitar vísceras respiratórias a fármacos, toxinas e
Como conseguir tudo isso? Trabalhando os o tecido dos pulmões substituídos para repo- outras substâncias, sem necessidade de recor-
materiais à escala micrométrica (a milionésima voar os novos órgãos. Utilizaram como chassis rer a voluntários humanos ou a animais. Consta
parte de um metro). Foi o que fez Potkay, o qual o andaime formado pelo colagénio e pela elas- de duas unidades: a bronquiolar e a alveolar,
defende que apenas a tal nível é possível “criar tina pulmonares, as proteínas estruturais que que imitam duas áreas diferentes dos órgãos
redes que imitem o ambiente fisiológico do pul- permanecem quando se eliminam todas as humanos. O PuLMO possui um circuito cheio
mão natural, e configurações que operem com células e os vasos sanguíneos. Em seguida, sub- de microfluidos que desempenham o papel do
as pressões vasculares naturais”. Além disso, mergiram essa armação vazia numa mistura sangue, e o ar desloca-se pelo seu interior como
Potkay parece ter encontrado a solução para de tecido vivo pulmonar e líquido nutritivo. Pas- se respirasse. Poderá ser configurado para
proteger o interior dos capilares pulmonares: sado quatro semanas, já se tinha formado um imitar condições patológicas como a asma ou
cobri-los com polietilenoglicol, uma substância órgão completo, um pouco mais mole e menos a doença pulmonar obstrutiva crónica. Os seus
química que minimiza a formação de coágulos denso do que um pulmão normal, mas capaz criadores anunciaram que será utilizado para
e a resposta do sistema imunitário. de encher-se e esvaziar-se de ar. estudar os efeitos do consumo de tabaco,
Outro obstáculo a ultrapassar é que, num pul- Outros investigadores estão a criar pulmões assim como a consequência de fumar os
mão saudável, o intercâmbio de gases não se artificiais que não se destinam a transplantes, modernos cigarros eletrónicos. Tudo isso com
mantém constante. O exercício suave pode mas a compreender melhor como funcionam um pedaço de plástico que cabe na palma da
aumentar as exigências de oxigénio, passando os naturais. Em 2015, o Technion (Instituto Tec- mão de uma criança.
de 240 mililitros por minuto, em repouso, para nológico de Israel) desenvolveu um órgão em E.S.
Interessante 31
Entrevista
Em modo de espera
Max More junto aos tanques
em que estão conservados
os clientes da Alcor,
em Scottsdale, no Arizona.
32 SUPER
Max More, diretor da Alcor
Guardados
para o FUTURO
O responsável pela empresa pioneira em criopreservação conversa sobre
a possibilidade de congelar pessoas mortas, a fim de fazê-las voltar à vida
quando a ciência o permitir, e sobre a ténue fronteira entre a vida e a morte.
E
FACEBOOK
m outubro do ano a 196 graus negativos) não
passado, J.S., uma estão, na realidade, exata-
doente de cancro com mente mortos. Em todos os
14 anos, falecia num casos, foram submetidos ao
hospital de Londres. Porém, tratamento poucos minutos
antes de morrer, reivindicou por depois de ter sido declarado
via judicial o direito de ser crio- o óbito. O futuro, diz, trará
genizada, com o apoio da mãe. O a tecnologia capaz de des-
juiz deu-lhe razão ainda em vida. pertá-los.
Os avós tinham conseguido reu- Está a remar contra a maré:
nir 37 mil libras (43 600 euros, ao a maior parte das pessoas
câmbio atual) e, por fim, o corpo mostra-se mais pessimista...
da adolescente foi enviado para Embora me considere um
o Instituto Cryonics, nos Estados sonhador, não gosto de falar
Unidos. Trata-se de uma rival da em possibilidades infinitas. Há
Alcor, a empresa mais veterana determinados limites nas leis
e conhecida que se dedica à da física. Por exemplo, não
criopreservação (conservação a creio que poderemos alguma
baixas temperaturas) de seres vez viajar à velocidade
humanos. O seu diretor-exe- da luz, nem que o façamos
cutivo, Max More, nascido em através do tempo.
Bristol (Reino Unido), em 1964, Porque acha que o futuro
entende perfeitamente as moti- será melhor do que o presente?
vações de J.S. “Estou de acordo Como estamos enterrados
com a sentença do juiz, que em más notícias, temos a
não tinha uma opinião formada falsa impressão de que está
sobre como funciona a crio- tudo pior. Porém, se olhar-
genização, mas podia decidir. A cliente mais nova. Matherym Naovaratpong, de dois anos, mos para o passado, perce-
Respeitou a vontade da jovem”, foi congelada em 2015, depois de morrer devido a um tumor cerebral. bemos que vivemos, hoje, o
disse-nos, durante uma conversa A menina tailandesa tornou-se a cliente número 134 da Alcor. melhor dos tempos. Antes,
telefónica. as mulheres não tinham o
O dr. More era pouco mais do que adoles- “Mostraram-me e perguntaram-me o que eu direito de ser proprietárias, havia escravos e
cente quando se deixou fascinar pela ficção achava. Disse-lhes que fazia sentido.” Agora, não tínhamos calmantes ou antisséticos. Claro
científica. Aos 19 anos, a ideia de prolongar a a revista é editada pela Alcor, a sua empresa. que há problemas agora, mas são mais os que
vida pareceu-lhe natural. Nessa altura, come- resolvemos do que os que criámos. A menos
çou a assistir a uma série de conferências pro- REMAR CONTRA A MARÉ que incorramos num erro drástico, o mundo
feridas na Escola Imperial de Londres, com Não é de estranhar que More tenha assinado ao qual regressaremos após a criopreservação
títulos como “Viagens ao espaço” e “Extensão um contrato para ser congelado quando falecer, não seria uma utopia, mas um bom lugar.
da vida humana”. Estranhos temas para quem quer seja o corpo inteiro ou apenas o cérebro, Quando falamos em criogenização, esque-
estudava filosofia, política e economia. O seu a fim de ser integrado, no futuro, num novo cemo-nos da linha que separa a vida da morte.
CONTACTO
interesse aumentou quando lhe foi parar organismo. Como ele diz, os seus clientes (que É algo tão óbvio?
às mãos um exemplar da revista Cryonics. repousam em tanques de aço com azoto líquido Bom, trata-se de uma fronteira muito mais
Interessante 33
O procedimento Até à eternidade
Técnicos da Alcor preparam
o corpo de um cliente recém-falecido
é semelhante para criopreservar o seu cérebro.
ao de alguns
transplantes
ténue do que as pessoas pensam. A maioria tem
uma ideia falsa do que é a morte. Há 50 anos,
considerava-se morto alguém que deixava de
respirar. Hoje, é possível ressuscitá-lo graças
às modernas técnicas de reanimação cardio-
-respiratória.
Nesse caso, o conceito mudou?
Quando um médico declara um óbito, está
a afirmar, na realidade, que, dadas as técnicas
médicas disponíveis, já nada mais se pode fazer
por aquela pessoa. Os clínicos não dispõem de
diretrizes para fazê-la regressar à vida, já que
consideram que é inútil.
O que significa, então, declarar oficialmente a
morte de alguém?
Na realidade, quando é declarada, quase todas
as células do corpo ainda estão intactas. Deste
ponto de vista, a criogenia é uma extensão da
medicina de emergência. A nossa mensagem é:
não abandones nem enterres o corpo, não o
queimes; dá-nos, e nós impediremos que lhe
aconteça algo pior. Iremos armazená-lo a baixas
temperaturas, protegeremos as células da for-
mação de gelo e poderemos mantê-lo estável
até que se possa reverter o colapso do corpo
e, depois, tratá-lo e recuperá-lo. É importante
sublinhar: não congelamos gente morta, mas
pessoas num estado de coma muito profundo.
34 SUPER
Um café por dia
M uitos acreditam que o custo de
criopreservar reserva o proces-
so apenas para os mais ricos, mas Max
More esclarece o mal-entendido.
“É necessário um mínimo de 20 mil
dólares para o congelamento total,
e 80 mil para o cérebro, mas a maior
parte das pessoas paga com o seu
seguro médico. Torna-se exequível
para alguém saudável: por exemplo,
um homem na casa dos 30. Equivale
ao que custa beber um grande café
por dia. Entre os nossos membros, há
gente culta e informada, que entende
os progressos tecnológicos”, explica
o diretor-executivo da Alcor. Os seus
clientes também manifestam um
certo sentido da aventura. “Alguns
poderiam ficar horrorizados com
a ideia de viajar para um futuro em
que as pessoas serão diferentes, mas
não pretendemos apenas ressuscitar
pessoas, também queremos que se
adaptem a essa nova realidade, como
aqueles que se mantêm em coma
durante décadas e depois despertam”,
afirma More.
Interessante 35
Sociedade
Mascotes
GOURMET
Ainda dá ao seu cão ou gato a banal
comida de lata? Está desatualizado!
A comida gourmet chegou ao mundo
das mascotes, que têm à disposição
pratos quase tão elaborados como
os dos mais badalados chefes
de cozinha. Estas fotos de Heidi
e Hans-Jürgen Koch mostram-lhe
o que está a acontecer.
36 SUPER
Petisco canino. Com formas
de animais e cozinhadas no forno,
como as bolachas, estas delícias
da marca alemã Allco são
confecionadas com ingredientes
vegetais. Os bichos gostam!
Interessante 37
Pipocas para roer. Imitando as
maçarocas de m ilho, mas às cores, este
pitéu enriquecido com minerais faz as
delícias de hamsters e outros roedores.
38 SUPER
O negócio da
comida animal
movimenta
17 mil milhões
de euros anuais
Proteger a dentadura
Feitas com leite e bacon, estas
massas da Hunter International
foram concebidas para não
danificar os dentes dos cães.
Interessante 39
Salgadas. Feitas à mão por um
mestre chocolateiro, estas trufas
para cães têm sabores variados:
salmão, pato, cenoura, vitela e maçã.
S
eguindo a corrente em uso nos res- por especialistas em nutrição animal e elabora-
taurantes de luxo, neste situado no dos com ingredientes exclusivos, como cervos
centro de Berlim pede-se o menu de e veados procedentes do Jura, da Suábia e da
degustação, um desfile de pratos Floresta Negra, ou legumes biológicos. Os donos
composto por paté de salmão; bomba vita- aguardam o fim do repasto na cafetaria.
minada de abóbora, batatas novas e bagas A comida para mascotes é um negócio que
silvestres; filet de cordeiro de leite; pato da movimenta anualmente 17 mil milhões de euros
quinta com amaranto e flocos de maçã; tira de e não ficou indiferente à moda foodie. Em lojas
boi com presunto de Parma, tagliatelle e especializadas e diversas páginas na internet,
azeite. Para terminar, espuma de salsichas e podem encontrar-se caviar, todo o tipo de
trufas variadas. Nada que surpreendesse a petiscos e aperitivos, patés variados, pipocas,
audiência de um programa televivo de culinária massas, cupcakes, muffins, trufas, gelados, água
moderna. A diferença é que estamos no Pets engarrafada especial e até vinho sem álcool!
Deli, uma loja de comida gourmet que também Claro que não faltam alimentos para animais
é um restaurante... para cães e gatos! Ali, as obesos, diabéticos, alérgicos ao glúten, intole-
mascotes mais finas da capital alemã, acom- rantes à lactose... Onde estão os limites para
panhadas por monitores que zelam pelo seu contentar os nossos companheiros irracionais?
bem-estar, disfrutam de pratos concebidos L.O.
40 SUPER
Cores estimulantes
O seu gato não come bem?
Estas pastilhas enriquecidas
com vitaminas despertarão
o seu apetite.
Interessante 41
Alimentação
Um manjar pré-histórico
A saga do MEL
Vestígios de cera encontrados em potes de cerâmica permitiram demonstrar
que começámos a consumir mel há 9000 anos. A longa e proveitosa relação
com as abelhas chegou aos nossos dias, mas o seu futuro é incerto.
42 SUPER
ÉRIC TOURNERET
Ouro líquido. Para os agricultores
do Neolítico, o mel deve ter sido uma
importante fonte energética, além
de um alimento delicioso. Na foto,
colmeia num tronco oco, nas
montanhas das Cevenas (França).
Interessante 43
PNAS
Revelador. As escavações
de Border Cave (África do Sul)
proporcionaram a prova indireta
mais antiga do uso do mel:
um torrão com 35 mil anos (ao centro,
na foto, visto de três lados), composto
de cera de abelha e outras substâncias.
o uso de cera de abelha como cola muito potentes, impregnados de uma profunda
transcendência. A sua arte arte rupestre mostra
O
complexas cerimónias simbólicas em que um
s Beatles cantaram sobre o sabor No entanto, o doce é um sabor muito pouco animal mítico de compridas garras curvas se
do beijo: “Um gosto a mel. Sabe frequente na natureza. Uma das poucas fontes encontra rodeado de figuras a dançar e peque-
mais a doce do que o vinho.” Os para o ávido paladar dos povos pré-históricos nas cruzes que representam, provavelmente,
seres humanos adoram o doce, era o mel. Rico em açúcares (frutose e glicose) abelhas.
têm uma preferência inata por esse sabor, a e com muito poucos vestígios de minerais e A ligação metafísica dos bosquímanos ao
qual se manifesta desde a mais tenra infância. vitaminas, o mel deve ter constituído uma fonte mel e às suas produtoras é um forte indício
Os recém-nascidos, ainda longe de terem expe- energética de grande valor. Nesse sentido, é da reverência e do amor que os povos pré-
rimentado o complexo sabor dos alimentos, interessante referir que os bosquímanos da -históricos devem ter sentido pela substância.
preferem sistematicamente beber uma solução África do Sul asseguram não ter qualquer tipo Ao explorar os estratos arqueológicos mais
açucarada do que água fervida da torneira. Esta de bens pessoais, exceto as colmeias do seu ter- antigos, encontramos uma fabulosa prova
predisposição poderia ter uma componente ritório. O ouro dos bosquímanos não é pesado que provém, mais uma vez, da África do Sul.
evolutiva, destinada a assegurar a nossa sobre- nem metálico, mas líquido, puro e delicado, uma Um simples torrão de material orgânico des-
vivência: o desejo de ingerir algo doce afasta- riqueza que provém da laboriosa abelha melí- coberto durante as escavações na jazida de
-nos de substâncias potencialmente nocivas, fera, Apis mellifera. Border Cave proporciona-nos a pista. Trata-se
como venenos ou produtos indigeríveis, e Os bosquímanos atribuem uma importância de um pequeno pedaço amorfo, de aspeto ter-
prepara-nos para o nosso primeiro e saudável quase religiosa ao inseto. De facto, os seus xamãs roso, com múltiplas rachas verticais que não
alimento: o leite materno, rico em lactose. descrevem a sensação de ser picado por uma nos dizem grande coisa. Contudo, a cromato-
44 SUPER
O mel na arte
pré-histórica
A atividade maioritariamente repre-
sentada na arte parietal africana e
levantina é a dos caçadores de mel. Já
foi sugerido que a apicultura nunca se
desenvolveu nessas regiões, pois havia
abundantes colmeias que proporciona-
vam todo o mel de que as comunidades
locais necessitavam. As pinturas rupes-
tres mostram grupos de recoletores que
utilizam, por vezes, escadas ou cordas
para alcançar os favos. Existem muito
mais ilustrações associadas às abelhas
na arte parietal da zona a sul do Sahara
do que na faixa norte de África. Por
exemplo, das 222 jazidas em que foram
encontradas representações pictóri-
cas de abelhas, 96 por cento surgem,
surpreendentemente, no Zimbabwe.
Desconhece-se a razão para esta despro-
porção. Por outro lado, embora Melanie
Roffet-Salque e Richard Evershed,
químicos da Universidade de Bristol
(Reino Unido), não tenham encontra-
do vestígios de cera de abelha nos 130
recipientes que analisaram na península
Ibérica, é evidente que a extração de mel
se produziu, pelo menos, desde o Meso-
lítico, como demonstra a fantástica arte
rupestre proveniente, nomeadamente,
do Levante espanhol. Por exemplo, uma
figura humana da gruta de La Araña
(à direita), em Valência, tem um dos
TURISMO DE VALÊNCIA
braços numa cavidade, que parece ser
uma colmeia. A outra mão segura o que
parece ser um cesto, talvez para recolher
os favos.
NGS
grafia de gases revelou que era constituído por e um desenvolvimento tecnológico baseado
cera de abelha, além de matéria vegetal, resina
tóxica e um aglutinante proteico (talvez ovo).
na cerâmica e na domesticação de animais.
Uma forma de averiguar os regimes alimen- Concebidas
Estes compostos orgânicos seriam utilizados
como uma amálgama para produzir uma espé-
tares do passado é analisar os vestígios quí-
micos acumulados no fundo de antigos potes
sem pecado
cie de cola: a utilidade desta torna-se evidente
se pensarmos na sua utilidade para encabar
pontas de flechas e lâminas de faca. O torrão
encontrados em jazidas neolíticas do Médio
Oriente e da Europa. Exames prévios revelaram
a presença de leite e queijo nas cerâmicas, e isso
A maior parte das abadias e dos
mosteiros europeus da época
medieval promoveu a apicultura, em-
tem a ninharia de 35 mil anos de antiguidade, prova a capacidade desses povos para domesti- bora a principal motivação não fosse
o que o torna o exemplar mais antigo de cera car mamíferos. Um trabalho recente de Melanie o mel, mas a cera dos favos. A abelha
de abelha utilizada como ferramenta e, indire- Roffet-Salque e Richard Evershed, químicos da era vista como um trabalhador inte-
tamente, da ligação humana ao mel. Universidade de Bristol (Reino Unido), indica ressado no bem comum, sendo, além
que alguns dos nossos antepassados neolíticos disso, casta (na altura, pensava-se que
VESTÍGIOS QUÍMICOS também foram ávidos consumidores de mel. a sua reprodução era assexual). Por
Não é fácil saber o que comiam os povos A fim de poder confirmá-lo, os especialistas essa razão, a cera branca, relativamen-
da pré-história. A agricultura surgiu no Médio procuraram a presença de resíduos de cera de te pura e sem cheiro, era considerada
Oriente há cerca de dez mil anos, e vagas de abelha em mais de 6400 potes de cerâmica mais adequada para o fabrico de velas
emigrantes levaram a prática para a Europa. encontrados por toda a Eurásia, com 9000 de igreja do que a de gordura animal.
O episódio marca o aparecimento do período a 4000 anos de antiguidade. A metodologia Claro que a prática apícola tinha o
cultural conhecido por Neolítico, caracterizado utilizada foi muito engenhosa. O mel é um efeito colateral de aumentar ainda
pela presença de jazidas arqueológicas que produto que se deteriora rapidamente por ser mais a produção de mel.
demonstram a sedentarização das populações basicamente composto de açúcares que se dis-
Interessante 45
Estirpes migratórias
A pis mellifera foi o nome que o
naturalista sueco Carlos Lineu
atribuiu, em 1758, à abelha europeia,
também conhecida por “doméstica”
ou “melífera”. Há cerca de trinta sub
espécies. O estudo do seu genoma in-
dica que teve origem na Ásia, há cerca
de 300 mil anos, e que se propagou
rapidamente pela Europa e por África.
Os geneticistas sugeriram a existência
de três ramos ou estirpes migratórias,
provenientes da Ásia, com base na
análise do ADN mitocondrial. A pri-
meira, o ramo M, alcançou a zona oci-
dental do Mediterrâneo, viajando da
Europa Central até países como Fran-
ça. A segunda dispersão, o ramo C,
ocorreu quando a espécie se estendeu
pelo Cáucaso, pela Áustria, por Itália e
pelas regiões do norte mediterrânico.
Uma terceira, o ramo A, invadiu Áfri-
ca. Enquanto as populações europeias
se contraíram nos períodos glaciais, as
africanas expandiram-se. Isso sugere
que as condições ambientais africanas
eram mais favoráveis a estes insetos e
que, historicamente, as alterações cli-
máticas tiveram grande impacto nas
populações de abelhas melíferas.
É provável que
no Neolítico Sem proteção. Os banas,
ÉRIC TOURNERET
do Omo, instalam as suas
colmeias em troncos ocos,
apicultura sobre os ramos das acácias.
solvem na água; por conseguinte, não há uma quatro dos 570 recipientes examinados no ecológico natural da abelha melífera durante
forma direta de analisar a sua presença em reci- noroeste da Anatólia (Turquia) revelaram indí- o Neolítico.
pientes arqueológicos. Um método indireto cios do produto. Contudo, embora escasso, o Segundo a investigadora, a vasta utilização
para determinar se houve consumo é procurar mel era muito conhecido. Dos Balcãs até ao sul de produtos melíferos por grupos do Neolítico
vestígios de cera de abelha. das ilhas britânicas, a cerâmica neolítica con- poderia indicar o início da domesticação da
A natureza hidrofóbica da cera confere-lhe tém cera de abelha. Na Anatólia, foram encon- abelha. Os agricultores começaram a criar
resistência à degradação e mostra-se adequada tradas as amostras mais antigas. Na jazida de ovelhas, cabras, porcos e outros animais por
para os processos de análise. Se não sofreu um Çayönü Tepesi, foram descobertas apenas dois volta desta altura, e é possível que as abelhas
extenso ataque bacteriano ou foi exposta a resíduos em 83 recipientes analisados. O outro produtoras de mel recebessem um tratamento
elevadas temperaturas durante a sua utilização lugar é a jazida de Çatalhöyük, onde foi desco- semelhante. Essa hipótese indicaria a grande
em atividades humanas, as suas características berto um exemplar de cerâmica que continha capacidade dos povos de há 7000 anos para
químicas podem ser usadas para inferir a sua cera de abelha. Ambas as jazidas datam do entender e desenvolver a apicultura.
presença. Ora, se houver cera de abelha, é século VII a.C., aproximadamente.
razoável supor que se recolheu mel. É provável Como se vê, apesar de parco e de ser, prova- SÍMBOLO DE ESTATUTO
que fosse utilizado nas cozinhas neolíticas pelas velmente, considerado um luxo, o mel era con- O mel foi praticamente o único edulcorante
suas qualidades culinárias e por ser o principal sumido no Médio Oriente e pela Europa fora. disponível até à chegada do açúcar, altura em
edulcorante da época. No entanto, não foi detetada cera de abelha que, segundo o antropólogo norte-americano
Com recurso à cromotografia de gases, a em latitudes mais elevadas, como a Escócia e Marvin Harris, “o demónio do doce se introdu-
equipa de Evershed descobriu vestígios de a Fenoscândia (Noruega, Suécia, Finlândia e ziu no seio da família humana”. Foi no século XI,
gordura de cera de abelha em muito poucos parte da Rússia). Melanie Roffet-Salque con- quando os cruzados, a caminho da Terra Santa,
exemplares de cerâmica. Por exemplo, apenas sidera que essa ausência estabelece o limite encontraram a cana-de-açúcar. Por causa do seu
46 SUPER
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SI 230
Medicina enjoativa
O s antigos egípcios, assírios, chineses,
gregos e romanos utilizavam o mel puro,
ou combinado com plantas, para tratar feridas
e problemas digestivos. Alguns especialistas
médicos mantêm-se céticos em relação aos seus
benefícios, pois muitas das qualidades eram
referidas na literatura popular como uma espé-
cie de panaceia. Todavia, Peter C. Molan, um
médico da Nova Zelândia, lançou uma grande
campanha entre os meios ligados à saúde para
reivindicar o poder curativo do mel. É especial-
mente interessante a sua utilização no tratamen-
to de feridas. Em 1962, os estudos do médico
britânico George D. Winter demonstraram que
estas cicatrizam mais depressa se forem manti-
das húmidas, em vez de formarem uma crosta.
A conclusão deu início ao moderno tratamento
deste tipo de lesões, no qual se evita que a zona
ferida seque. As células epiteliais da pele, que se
estendem ao longo da superfície de uma ferida
em processo de cicatrização, necessitam de con-
dições de humidade para crescer e restaurar o
tecido da pele em falta. Segundo Molan, embo-
ra o mel tenha pouco conteúdo aquoso, produz
um efeito osmótico que transfere uma camada
de fluido composta pelo mel diluído a fim de
manter a humidade e a oxigenização natural das
células em regeneração. No início de 1960, foi
estabelecido que o principal fator responsável
pela atividade bacteriana do mel era a produção
de peróxido de hidrogénio (água oxigenada).
O mel contém glândulas faríngeas das abelhas,
ali depositadas durante o processo de elabora-
ção. Essas glândulas segregam glicose oxidase.
Quando este açúcar reage à humidade da ferida, Não gosta de injeções?
forma-se peróxido de hidrogénio, com proprie- Não é só o mel das abelhas
dades antisséticas. Muitos tipos de mel pos- que tem propriedades curativas:
suem suficiente concentração de peróxido para o seu veneno também se usa
com fins terapêuticos.
eliminar micróbios patogénicos.
SPL
No Renascimento, o mel perdeu lham a moderar o seu consumo: uma ingestão
excessiva pode provocar cáries nos dentes,
48 SUPER
Interessante 49
Criminologia
Inspetor ADN
Imagina poder construir o retrato-robô de um assassino com base
em algo tão ínfimo como uma amostra genética obtida no local do crime?
Os novos avanços em matéria de criminologia apontam nesse sentido.
P
rocura-se: assassino perigoso, com do ADN, muito variáveis, conhecidas por micros- duo. Estão, por assim dizer, vazias. Contudo, o
1,72 metros de altura, caucasiano, de satélites (STR, na sigla em inglês), das quais se ADN das amostras manipuladas pelos peritos
49 a 58 anos, cabelo louro encaraco- produzem milhões de cópias em laboratório forenses também possui regiões codificantes,
lado, nariz achatado, barba espessa através de uma técnica denominada “reação a transbordar de informação. É aqui que a
e olhos verdes”, alerta um comunicado da em cadeia da polimerase” (PCR). Utilizar os STR genética forense encontra o seu maior campo
polícia. Não foi uma testemunha ocular a pro- como marcadores permitiu efetuar análises de expansão, no que constitui a mais recente
porcionar tão minuciosa descrição: ela provém com base em amostras ínfimas de ADN. Com a revolução nos laboratórios de criminologia: a
da análise de uma amostra de ADN encontrada vantagem de que, quando se utilizam simulta- fenotipagem forense, uma técnica que, embora
na cena do crime. Por esta altura, a ciência já neamente três destes fragmentos para fins de utilize apenas informação genética proveniente
avançou o suficiente para permitir aos técnicos identificação, como é o caso do sistema CODIS do genotipado, ou leitura do ADN, ameaça
forenses elaborar um retrato-robô muito preciso (base de dados criada pelo FBI), a probabili- revelar pormenorizadamente o aspeto de um
de qualquer pessoa, com base numa amostra dade de duas pessoas escolhidas ao acaso par- desconhecido.
do seu material genético. tilharem a mesma impressão genética é de uma Quando o ADN serve de testemunha, em
Chegar até aqui não foi simples. Desde que o entre dez mil milhões. laboratório, para proporcionar informação
britânico Alec Jeffreys desenvolveu, há trinta Os microssatélites são regiões não codifi- sobre um deliquente, a primeira coisa que
anos, a impressão digital genética, a identifica- cantes; isso significa que, embora funcionem, denuncia diz respeito ao sexo e à cor dos olhos.
ção com recurso ao ADN não cessou de colocar quando estão unidas, como o código de barras O primeiro fator é deduzido com base nos cro-
desafios. Um dos principais seria resolvido gra- de uma pessoa, nada revelam, isoladamente, mossomas sexuais X e Y: a combinação de dois
ças a um conjunto de dez a quinze regiões curtas sobre como é ou como se comporta um indiví- X é própria do género feminino, enquanto o par
50 SUPER
JOSÉ ANTONIO PEÑAS
PARABON NANOLABS
Interessante 51
Já é possível
determinar
a cor dos olhos
e do cabelo
XY pertence ao masculino. Quanto à tonali-
dade da íris, depende de vários genes. Por um
lado, o OCA2, envolvido na produção da mela-
nina, dá origem a olhos castanhos, em condi-
ções normais, e a olhos verdes ou cor de avelã
quando sofre uma mutação. Determinadas
variantes de outro gene próximo, o HERC2, são
responsáveis pelos olhos azuis.
Claro que não nos podemos esquecer de que
existe uma graduação diferente até na cor da
íris. Assim, Manfred Kayser e os seus colegas
do Departamento de Identificação Genética
da Universidade Erasmo de Roterdão (Países
Baixos) demostraram que há outros quatro
genes que regulam a intensidade da cor: é a eles
que devemos a vasta gama de azuis claros,
azuis escuros, cor de avelã, ocre ou mel, entre Cena do crime. Prevenir a destruição
outros. Utilizados em conjunto com o OCA2 e o de provas é chave para a polícia científica,
HERC2, permitem aos técnicos forenses prever pelo que se levam a cabo exercícios
a tonalidade dos olhos com uma precisão de treino como o que se vê na foto, com
cadáveres reais de pessoas ou animais.
superior a 90 por cento.
LOUROS E MORENOS
O tom capilar também não é mistério. Kayser numa única “letra” da sequência genética – de tistas londrinos, os quais proporcionaram uma
descobriu treze marcadores genéticos, distri- um A (adenina) por um G (guanina) – para fazer grata surpresa aos peritos forenses, que espe-
buídos por onze genes, que diferenciam os o cabelo deixar de ser castanho escuro e tor- ram agora poder também detetar os suspeitos
cabelos louros, castanhos, pretos e ruivos. nar-se dourado, segundo um artigo publicado pelo seu apêndice nasal. Além disso, outro gene,
Ao teste que desenvolveu, soma-se a recente por David Kingsley, da Universidade de Stanford o EDAR, determina a densidade da barba.
demonstração de que basta uma alteração (Estados Unidos), na revista Nature Genetics.
Quando essa substituição ocorre, modifica-se TENTATIVAS PROMISSORAS
a expressão de um gene denominado KITLG, Tudo isto parece extraordinário, mas será
como se se tratasse de um interruptor que que se pode realmente desenhar um retrato
Gémeos idênticos? basta premir para ativar de imediato a tona-
lidade mais clara. A mutação, como seria de
preciso do rosto com base no ADN? Ainda não,
embora as primeiras tentativas sejam promis-
52 SUPER
A mente
do delinquente
N o futuro, até os principais há-
bitos de um suspeito poderão
ser deduzidos quando se esquadrinha
a sua informação genética. Para não
irmos mais longe, se o ADN de um
delinquente possuir o gene Per2, será
mais provável ter comportamento
de mocho e tendência para fazer
noitadas; se se encontrar o gene Per3
no genoma, é provável que pertença
ao grupo dos madrugadores. Por
outro lado, se formos aquilo que a
psicologia designa por “adeptos de
emoções fortes”, o ADN também nos
denuncia. Determinadas versões do
gene que dirige a síntese da enzima
monoamina oxidase (MAO) são pró-
prias de pessoas que gostam de des-
portos radicais, são mais propensas
a consumir tabaco e drogas, viajam
habitualmente para lugares exóticos
e escolhem profissões de risco ou que
Interessante 53
Criminologia
Crimes
IMPERFEITOS
Nem o delinquente mais cuidadoso
e calculista, equipado com luvas
e gorro passa-montanhas para não deixar
impressões digitais ou cabelos caídos,
consegue hoje despistar os técnicos
forenses. Sim, até os odores
podem servir para caçar um malfeitor!
54 SUPER
da Universidade de Nottingham (Reino Unido),
permite obter imagens digitais nítidas da
pegada que deixámos a caminhar ou parados.
“O modo de andar determina como distribuímos
o peso, e isso reflete-se em pontos específicos
da sola do sapato que estão em contacto com
o chão”, explica Sharp. A técnica poderia ser
utilizada na identificação individual.
CIRCUITOS
Começa a autópsia. Sobre a mesa, o técnico
forense espalha chips, placas eletrónicas, con-
densadores... O corpo de delito, neste caso,
é digital: um computador. Antes de explorar
o cérebro eletrónico (o disco rígido), tem de
cloná-lo, pois a lei não permite utilizar o mate-
rial original, só cópias clonadas. O mesmo acon-
tece com pen drives, telemóveis ou consolas
de jogos, que se tornaram importantes teste-
provém. Não é de estranhar que haja cientistas VOZ munhas pela quantidade de informação que
empenhados em conseguir que a botânica Que há vozes singulares é algo que qualquer podem fornecer sobre o suspeito.
forense seja reconhecida como disciplina: além amante de música sabe. Porém, o facto é que
de indicar os lugares onde esteve um delin- também não há duas exatamente iguais. A ana- TINTA
quente, permite detetar envenenamentos ou tomia das cordas vocais, da laringe e das cavi- Se um documento tiver menos de cinco anos,
averiguar a origem de uma dose de droga. dades vocal e nasal é tão específica que é quase podemos saber quando foi escrito. Ao analisar
impossível encontrar dois indivíduos que soem moléculas como o 2-fenoxietanol (PE), pre-
CINZAS exatamente igual. Por isso, os linguistas foren- sente em 80 por cento das tintas de esferográ-
Já não é necessário que o delinquente deixe bea- ses recorrem ao estudo das ondas de som que fica, Rosa María Alonso e os seus colegas da
tas na cena do crime para se saber que tabaco a nossa voz produz (espectrografia) para iden- Universidade do País Basco estabeleceram um
fuma. Técnicos forenses da Universidade do tificar as pessoas. O sotaque, os padrões de padrão que relaciona o estado da tinta com o
Oklahoma Central descobriram que as cinzas respiração enquanto falamos e as inflexões tempo decorrido. Foi assim que criaram o sis-
permitem identificar a marca exata do cigarro. são também tomados em consideração. tema Datink, que permite precisar a idade da
O método é simples: depois de tratar as cinzas tinta com uma margem de erro mínima. Trata-
com ácidos nítrico e hidroclorídrico, analisam- PEGADAS -se de um verdadeiro avanço: antes, só se con-
-se os seus principais componentes. O resul- Uma nova técnica permite analisar com maior seguia determinar se um texto era jovem (com
tado é uma espécie de código de barras único precisão do que nunca as marcas deixadas por menos de 90 dias) ou velho (mais de dois anos).
para cada marca de tabaco. um pé. Desenvolvida pelo físico James Sharp, E.S.
Interessante 55
Psicologia
Diga não à
sinais de alarme. Antes de chegar à
agressão física, o homem foi estabelecendo as
bases de uma relação sexista, de domínio. As
pancadas e as tareias são o culminar de atos
prévios igualmente inadmissíveis, mas que mui-
tas vezes não são tomados em consideração
VIOLÊNCIA!
como maus presságios. Saiba que comporta-
mentos devemos considerar indícios de futura
violência machista, que tirou a vida a 22 mulhe-
res em Portugal, em 2016.
ISOLAMENTO
O agressor isola a mulher do ponto de vista
emocional. Trata-se de um boicote que se vai
Domínio, humilhação, ameaça latente... instalando pouco a pouco, afastando-a dos
membros da família, dos amigos, dos colegas
O comportamento de alguns homens de trabalho. Ele não gosta do que rodeava a
companheira, pelo que vai introduzindo pre-
relativamente às suas companheiras textos para ela se afastar das pessoas que lhe
são próximas. Qualquer tentativa de se dar com
é o prelúdio de agressões físicas. Aprender amigos ou familiares é sempre frustrada por
a identificá-lo pode ser essencial para a vítima. problemas que se impõem como razões objeti-
vas. Assim, a vítima deixa de se relacionar com
aqueles que a poderiam ajudar quando se pro-
duzir o primeiro episódio de violência.
56 SUPER
SHUTTERSTOCK
CULPABILIZAÇÃO DITADURA CASEIRA INTIMIDAÇÃO
Dia após dia, o agressor convence a compa- Antes de sê-lo, o agressor conseguiu fazer a vida O casal só funciona quando a vítima, submissa,
nheira de que é responsável por tudo de mau do casal centrar-se totalmente nele. Os seus aceita o que foi estabelecido pelo agressor.
que lhe acontece. Assim, a vítima vai adqui- estados de espírito determinam o quotidiano: O mínimo desacordo produz uma tensão
rindo progressivamente a convicção de que os quando chega aborrecido, fica tudo paralisado exacerbada: embora a vítima tente falar com
seus defeitos justificam as explosões de cólera para não aumentar o seu mau humor; se vem calma e explicar a sua posição, a reação do
do agressor. Uma das táticas habituais deste contente, a companheira respira de alívio. futuro agressor intimida-a. Posteriormente,
tipo de assédio emocional é o chamado “duplo Ele é também o fiel da balança nas relações com produz-se uma sensação latente de ameaça
vínculo”: qualquer comportamento merece o mundo exterior e familiar: o agressor tende permanente . No fim, acabam por surgir tabus,
castigo. Por exemplo, se ela lhe dá um beijo, ele a agradar muito ou a desagradar profundamente assuntos sobre os quais não se pode falar, por-
queixa-se de que é enjoativa; quando não o faz, aos outros; exibe comportamentos exagerados que o agressor impôs uma espécie de lei do
é porque é fria. e faz a atividade social do casal oscilar entre silêncio. O juízo crítico da outra pessoa fica
esses extremos. anulado e silenciado.
LEI DO MEDO
Antes mesmo de ser alvo da primeira agres- VISÃO ÚNICA DENIGRAÇÃO
são física, o sentimento preponderante é o Do estilo de vida ao modo como gasta o seu O agressor procura sempre satisfazer a sua
receio. A relação, que se baseava inicialmente dinheiro, passando pelos momentos de ócio ou ânsia de poder. Por isso, controla cada porme-
no amor, acaba por ser dominada pelo medo. a sexualidade, todos os assuntos do quotidiano nor da vida da vítima: como se veste, com quem
A vítima sente que a negociação é impossível e da vítima são apreciados de uma única perspe- pode relacionar-se, de que maneira deve fazer
que há apenas uma estratégia possível: acatar tiva: a do agressor, que impõe os seus critérios o seu trabalho, etc. A fim de impor essa hege-
tudo. A sua mente está constantemente a tentar através de uma linguagem caracterizada por monia, utiliza frequentemente a humilhação:
adivinhar o que quer o agressor, e raramente expressões impessoais ou absolutistas, do menospreza continuamente o critério da vítima
manifesta as suas necessidades ou os seus sen- género “as coisas têm de ser feitas assim” ou para que ela duvide da sua capacidade de
timentos, pois teme as represálias se o compa- “eu é que sei como devem ser feitas”. Pouco tomar decisões, expõe a sua suposta incapa-
nheiro se sentir frustrado. Imagina as possíveis a pouco, o elemento masculino da relação cidade à frente de familiares e amigos, troça
ações que ele pode perpetrar e organiza toda impõe a sensação de que detém a verdade constantemente das suas opiniões ou desau-
a sua vida em torno do objetivo de evitar essas absoluta, e de que qualquer desvio deve ser toriza-a diante dos filhos.
reações, que a amedrontam. considerado uma aberração. L.M.
Interessante 57
Saúde
58 SUPER
Explicações científicas para o fenómeno
GETTY
O que é um
VAMPIRO?
O cinema e o folclore europeu popularizaram estes “chupadores de
sangue” que não podem ver a luz do Sol. Hoje, sabe-se que algumas
doenças raras poderiam estar relacionadas com o mito do vampiro.
Interessante 59
O mito
teve origem
na Europa
de Leste
S
imon e George Cullen são dois irmãos
de 18 e 16 anos, respetivamente, que
vivem em Sudbury (Inglaterra). As
suas unhas são quebradiças e o cabelo
é muito fino e claro. Têm de ser extremamente
cuidadosos com a temperatura ambiente,
pois nem as suas glândulas sudoríferas nem
as lacrimais funcionam adequadamente: não
transpiram nem choram. A pele, extremamente
pálida, é muito sensível e propensa a lesões, pelo
que têm de evitar apanhar sol. Perderam a maior
parte dos dentes e os que ficaram parecem afia-
dos incisivos. Não, não fazem parte de um filme
sobre vampiros adolescentes, embora tenham
o mesmo apelido do protagonista da saga Cre-
púsculo. São vítimas de uma doença genética
rara que afeta cerca de 7000 pessoas em todo o
mundo. Chama-se displasia ectodérmica hipo
idrótica (DEH). Apesar da sintomalogia, única
forma de diagnosticar o problema, os doentes
não têm problemas de crescimento ou de mobi-
lidade. Como tantas outras doenças genéticas,
é incurável, só se pode controlar os sintomas.
Por exemplo, a incapacidade para regular a
temperatura do corpo obriga-os a dispor sem-
ARQUIVO TK
60 SUPER
isso deve-se a “um medo primitivo da morte, à
falta de conhecimentos sobre os processos de
decomposição do corpo e, talvez, aos sintomas
de uma doença mental que é hoje conhecida
por ‘vampirismo clínico’ ”.
No entanto, a comunidade científica nunca
aceitou a existência da doença (não aparece
nos manuais de diagnóstico de distúrbios men-
tais), cujos sintomas incluiriam a necessidade
compulsiva de beber sangue. É verdade que já
se verificaram casos em que a pessoa afetada
possui a convicção delirante de ser um vampiro
e, portanto, necessitar de ingerir o líquido vital
custe o que custar. Esta compulsão não provém
da ficção, nem do cinema, mas de uma atração
erótica pelo sangue provocada pela falsa ideia
de que a pessoa que o beber ficará com deter-
minados poderes.
Em 1892, o psiquiatra forense alemão Richard
von Krafft-Ebing referia, na obra Psychopathia
Sexualis, vários casos de homens vítimas dessa
obsessão, como o de um vinhateiro de 24 anos
que assassinou uma menina de 12 anos na flo-
resta, mutilando-lhe os genitais, comendo
parte do coração, bebendo o seu sangue e
enterrando-a, ou o do homem que cortou o
braço à mulher para lhe chupar o sangue, que
lhe despertava um forte desejo erótico.
Vida de terror. O ator
norte-americano Michael Berryman, APRESENTAÇÃO FORMAL
de 68 anos, padece de DEH. Devido A primeira apresentação formal do vampi-
ao seu aspeto (carece de cabelo, rismo clínico coube aos psicanalistas freudianos
pestanas e sobrancelhas), participou Richard Vanden Bergh e John Kelley, em 1964:
em vários filmes de terror.
“A popularidade da figura do vampiro eviden-
cia a noção de Freud quanto à existência de um
masoquismo primário inerente. Esse impulso
de ficção, há 500 anos eram uns mortos muito uma coincidência: trata-se de um tijolo vulgar erótico é de natureza primitiva e não parece
vivos, ao ponto de a Europa oriental ter sucum- que podia ter caído acidentalmente na boca da edipiano.” Embora tenha havido poucos casos
bido, no século XVIII, a uma epidemia de vam- mulher depois de sepultada. de ingestão de sangue no contexto da violência
piros. Milhares de notícias dão conta das suas sexual e dos homicídios, seriam suficientes para
maldades, habitualmente ligadas a mortes ines- VESTÍGIOS EXPLÍCITOS alguns psiquiatras os agruparem sob o termo
peradas e inexplicáveis. Ninguém conseguia Contudo, há outros vestígios mais explícitos. de “vampirismo clínico”.
vê-los, pois são invisíveis, mas as consequências Em 2012, foram feitas escavações em mais de Em 1984, o professor Herschel Prins, da Uni-
dos seus atos eram manifestas. Era preciso aca- 600 túmulos do cemitério de uma igreja da versidade de Leicester (Reino Unido), dirigiu
bar com eles, o que significava abrir o túmulo cidade búlgara de Sozopol, no mar Negro. Ali, um inquérito a “psiquiatras forenses e psiquia-
do suposto vampiro, cravar-lhe uma estaca no foi encontrado um par de esqueletos que pare- tras com um interesse particular por esse des-
peito, decapitá-lo e queimá-lo. ciam ter recebido um tratamento especial: vio grave”, e concluiu que o vampirismo era
Não há muitos vestígios arqueológicos da um tinha um objeto semelhante a um arado que uma condicão clínica sobretudo associada a
loucura antivampírica que alastrou pela Europa, lhe atravessava o lado esquerdo da caixa torá- “distúrbios esquizofrénicos, histeria, distúrbio
mas temos alguns indícios. Durante uma esca- cica; o outro, um objeto metálico não identifi- psicopático grave e atraso mental”.
vação na ilha veneziana de Lazzaretto Nuovo, cado na zona do plexo solar. Uma visão menos dura da doença seria
o antropólogo Matteo Borrini, da Universidade Segundo o arqueólogo Dimitar Nedev, do proporcionada pelo psicólogo Richard Noll,
de Florença, encontrou, em 2009, a caveira de Museu Arqueológico de Sozopol, são a prova autor do livro Bizarre Diseases of the Mind. Em
uma mulher com um tijolo entre os dentes. de que os habitantes da cidade se protegeram 1990, quando escrevia a introdução para outra
Segundo Borrini, era uma vampira: “Para matar contra os indivíduos que poderiam, suposta- das suas obras, Vampires, Werewolves and
um destes seres, é preciso tirar-lhe o sudário mente, transformar-se em vampiros. Por outro Demons: Twentieth Century Reports in the
da cabeça, porque lhe serve de alimento, e pôr- lado, foram descobertos, em 2013, no com- Psychiatric Literature, sugeriu que o vampirismo
-lhe algo incomestível na boca.” O esqueleto plexo arqueológico medieval de Perperikon clínico devia chamar-se “síndrome de Renfield”,
surgiu numa vala comum de vítimas da epidemia (Bulgária), dois esqueletos com duas barras a personagem do romance de Stoker que vivia
de peste de 1576. Ao fazer com que mordesse de ferro a perfurar o peito. encerrada num manicómio e comia aranhas e
o tijolo, evitava-se a propagação da doença. Como chegámos a acreditar no vampirismo? moscas para lhes absorver a força vital.
Porém, alguns investigadores não partilham Segundo a psicóloga forense Katherine Rams- Controlado mentalmente por Drácula, a sua
esta interpretação e acreditam que se trata de land, autora do livro A Ciência dos Vampiros, vida acaba quando se apaixona por Mina Harker
Interessante 61
Há provas
arqueológicas
da histeria
antivampiros
e enfrenta o vampiro. “Recordo que me ria
enquanto pensava que podia fazer um pastiche
de um distúrbio mental centrado em Renfield”,
afirmaria Noll numa entrevista. O psicólogo
explicou que a síndrome de Renfield é caracte-
rizada por uma “compulsão por beber sangue,
geralmente associada a uma forte componente
sexual”. Os afetados passam por uma situação
na puberdade que implica a ingestão do líquido
vital. “Nessa idade, funde-se com as fantasias
sexuais e surge o autovampirismo, isto é, o
afetado começa a beber o próprio sangue.”
Depois, passa a ingerir sangue de animais
(zoofagia) e, finalmente, o de outros seres
humanos vivos (vampirismo).”
UM CASO SÉRIO
Na realidade, Noll não levava estas ideias a
sério, mas outros fizeram-no. O Journal of the
History of the Neurosciences publicou, em 2011,
um artigo de Regis Olry e Duane Haines intitu-
lado “A síndrome de Renfield – uma doença psi-
quiátrica extraída de Drácula, de Bram Stoker”.
Quando o leu, Noll comentou: “Estou meio
divertido, meio horrorizado pelo monstro que
criei por capricho. Se isto continuar assim,
poderá muito bem acabar no DSM-VI!”, disse,
referindo-se ao manual de referência sobre
Morta depois de morta. Este crânio
doenças psiquiátricas. Os autores tinham feminino a morder um tijolo, descoberto
escrito, com toda a seriedade, que a sua “etio- num túmulo da ilha de Lazzaretto Nuovo,
logia continua a ser ignorada”. foi batizado como “a vampira de Veneza”.
Numa linha semelhante, a literatura médica
começou, desde finais do século passado, a
incluir artigos sobre o culto dos vampiros. Em
2010, os investigadores Megan White e Hatim de outro ser, frequentemente humano: os organizado. No que respeito à sua principal fonte
Omar, da Universidade do Kentucky, escreve- vampiros não conseguem manter o bem-estar de alimentação, 52% confessam ser sanguiná-
ram que a subcultura vampírica contemporâ- físico, mental e espiritual se não seguirem esse rio (ou seja, bebe sangue) e 68% identificam-se
nea inclui indivíduos que dizem ser vampiros regime alimentar; caso contrário, tornam-se como “vampiros psíquicos”, isto é, que se apo-
e se comportam como se espera que estes o letárgicos, enfermiços, deprimidos e, muitas deram, para poder subsistir, da energia alheia
façam: só saem de noite, dormem em caixões, vezes, sofrem física e psiquicamente”. O cofun- por outros meios, através do tacto ou por sis-
usam dentes falsos e chegam a beber sangue. dador do grupo, que quer ser conhecido por temas não físicos. Por fim, 40% identificam-se
White e Omar referiam o caso de um adoles- Merticus e que se identificou como vampiro em como híbridos, ou seja, fazem ambas as coisas.
cente que dizia ser viciado em sangue e prati- 1977, realizou dois estudos financiados pela Sus- Será que estas pessoas estão loucas ou são
car o autovampirismo. citatio Enterprises, uma empresa que se dedica vítimas de alguma doença psíquica? Parece que
a investigar o fenómeno do vampirismo. não é o caso de todas. Cerca de 31% são depres-
15 000 NOS ESTADOS UNIDOS Depois de enviar 950 inquéritos a vampiros sivas, 16% têm doença bipolar e outras tantas
Contudo, não devemos pensar que a comuni- de todo o mundo, Merticus obteve os seguintes sofrem de ataques de pânico. Na realidade, a
dade dos “chupadores de sangue” se restringe resultados: a maior parte é adulta, caucasiana grande maioria nunca foi a um psiquiatra, não
aos adolescentes. Nos Estados Unidos, cerca (72 por cento) e heterossexual (55%), e alega ter consome drogas ou álcool, não possui antece-
de 15 mil indivíduos declaram ser vampiros um quociente intelectual acima da média. Tal- dentes de abuso sexual nem foi condenada por
verdadeiros, e esse número não inclui apenas vez fosse mais correto falarmos de vampiras, delitos violentos. São como nós, exceto num
aqueles que cumprem à risca o que se espera de pois, ao contrário do que afirma a literatura pormenor insignificante: acreditam ser vampiros.
um vampiro de ficção. Segundo a Atlanta Vam- médica sobre o assunto, há mais mulheres Curiosamente, muitos deles gostariam que
pire Alliance, uma das maiores organizações (63%) do que homens nesses coletivos. Outra fosse encontrada uma explicação científica,
sobre estes seres do país, trata-se de “indivíduos surpresa: apenas 35% se identificam como góti- desde que não fosse psiquiátrica, para os escla-
que se alimentam da energia vital ou do sangue cos, e 24% pertencem a um grupo de vampiros recer sobre o motivo por que se sentem desse
62 SUPER
de os vampiros tradicionais terem sofrido uma
forma particularmente grave, denominada
“porfiria eritropoética congénita”, ou doença
de Gunther. Extremamente rara (apenas afeta
uma em cada milhão de pessoas no mundo),
apresenta sintomas muito específicos,
incluindo a coloração avermelhada dos dentes.
Contudo, nem a prevalência desta doença nem
as suas características podem explicar a origem
do mito dos vampiros. A suposta rejeição da luz
solar não provém do folclore, mas da literatura
fantástica. Na Roménia, acredita-se que, pas-
sado algum tempo, os vampiros podem viver
como pessoas normais e mesmo chegar a ter
filhos, os quais, como é evidente, se transfor-
marão em vampiros quando morrerem.
Dolphin justificou a aversão ao alho pelo
facto de conter sulfeto de alilo, substância que,
segundo ele, exacerba os sintomas das porfi-
rias e o desejo de beber sangue em consequên-
cia da doença: como o grupo hemo, compo-
nente não aminoacídico que faz parte de diver-
sas proteínas (como a hemoglobina), trava a
produção de porfirinas, Dolphin sugeriu que, por
isso, os pacientes “procuram instintivamente
o hemo, mordendo pessoas para lhes beber
o sangue”.
Apesar de ser uma teoria interessante, nada
a sustenta. Alguns especialistas assinalaram
que, na realidade, a porfiria não implica o desejo
de beber sangue (que de nada serve), nem é
agravada pelo alho ou está associada a qual-
quer deficiência do grupo hemo. No entanto,
continua a ser considerada, em alguns meios,
como a doença dos vampiros.
Interessante 63
Ambiente
Quanto vale a
BIODIVERSIDADE?
H
á tempos, uma amiga lamentou-se: as moscas-das-flores e os escaravelhos, daque-
“Tenho pavor de abelhas e, para les que podem infligir picadelas. Além disso,
mal dos meus pecados, o meu jar- como vês, não precisas de matá-los para te
dim está sempre cheio delas. Mato- veres livre deles”, concluí. “Já te disse: para
-as, mas não vale de nada, pois estão sempre mim é tudo igual e as abelhas deviam morrer
a chegar mais…” De modo a tornar mais todas!”, retorquiu em tom alvoroçado, acres-
evidente a sua preocupação, estendeu-me o seu centando, de forma inopinada: “Afinal, não
telemóvel e mostrou-me algumas fotografias servem para absolutamente nada!”
em que se viam vasos floridos e inúmeros artró- Este episódio demonstra bem como conhe-
podes mortos. Digo “artrópodes” (animais cemos muito mal a nossa biodiversidade e como
com os apêndices articulados e o corpo segmen- metemos tudo no mesmo saco (espécies peri-
tado e revestido por exosqueleto endurecido) gosas, inofensivas, úteis, prejudiciais, autócto-
porque, na verdade, as imagens não eram nes, exóticas, etc.), sem atendermos às suas
apenas de abelhas: entre os vários cadáve- especificidades e ao seu valor, não só ecoló-
res, encontravam-se também abelhões (vul- gico, mas também económico. Já pensou o
gares e azuis), vespas, tanto nacionais como que aconteceria à Terra e à humanidade se as
estrangeiras (leia-se “asiáticas”), moscas-das- abelhas desaparecessem? No dia a dia, quem se
-flores, escaravelhos e aranhas de várias cores. lembra do facto de estes insetos serem vitais
“Reparaste, com certeza, que não mataste só para a alimentação e a economia?
abelhas?”, perguntei, enquanto apontava para
o ecrã do telemóvel. “Não interessa, para mim TESOUROS VIVOS
é tudo igual. Não as quero no meu terraço!” Li algures que “milhões de seres vivos fazem
Perante a sua notória apifobia (medo de abe- do nosso planeta um tesouro”. Além de soar
lhas) e incomodado com a mortandade desne- como um grito de alerta para a necessidade de
cessária que as imagens retratavam, comecei conservarmos um planeta biologicamente rico
por lhe explicar que é essencial identificar e diverso, a frase indica-nos que os organismos
corretamente cada um dos insetos, pois as solu- têm, realmente, um valor (in)calculável.
ções para os manter à distância são diferentes “Biodiversidade” (do grego bios, vida), tam-
para os que se alimentam de néctar, como as bém conhecida por “diversidade biológica”, é
abelhas, por exemplo, e para os que preferem uma palavra que está na moda e que pode ser
carne e restos orgânicos, como as vespas. definida, de uma forma simples, como a varie-
Assim, sugeri-lhe que diminuísse a quantidade dade de seres vivos presentes numa dada área
de plantas floridas no terraço, nomeadamente geográfica: um lugar, uma região, um país, um
de alfazemas e alecrim; garantisse que os cai- continente ou a totalidade do planeta.
xotes de lixo exteriores tivessem sempre tam- Porém, do ponto de vista científico, o conceito
pas herméticas; verificasse se existem ninhos de biodiversidade é muito mais vasto, podendo
de vespas, de modo a removê-los enquanto aplicar-se a diferentes níveis de organização bio-
são de pequenas dimensões; não importu- lógica, desde o genético (diversidade de genes
nasse eventuais visitantes voadores, pois eles existentes no conjunto de indivíduos que com-
costumam picar sobretudo quando se sentem põem uma espécie ou população), passando
ameaçados, etc. pelo das espécies (uma espécie é constituída
“É igualmente importante saber distinguir os por um conjunto de organismos, normalmente
que são totalmente inofensivos e úteis, como semelhantes, que se cruzam entre si, origi-
64 SUPER
A 22 de maio, comemora-se o Dia Internacional
Interessante 65
Algumas
espécies exigem
cuidados
especiais
nando descendência fértil), até ao dos ecos-
sistemas, compreendendo no seu sentido mais
lato toda a biosfera, o subsistema terrestre que
inclui todos os seres vivos existentes na Terra
e as suas interações, bem como os ambientes
em que se desenvolvem.
A diversidade genética é precisamente a base
da evolução dos seres vivos: apesar de a seleção
natural atuar sobre o fenótipo (as caracterís-
ticas) dos indivíduos de uma população, este
resulta da expressão do genótipo, ou seja, da
constituição genética de cada criatura. Regra
geral, quanto maior for o número de indivíduos
de uma espécie, maior a variabilidade genética.
Ao invés, quanto menor for o número de indi-
víduos, menor será a diversidade de genes e,
portanto, maior o risco de extinção.
Por exemplo, se nos debruçarmos sobre o
mundo vegetal, não precisaremos de nos preo-
cupar demasiado com a preservação do feto-
-ordinário (Pteridium aquilinum), uma das pte- Preciosidade. O lírio do Gerês
ridófitas mais abundantes e bem-sucedidas, é uma flor rara e bela que ocorre
que ocorre em muitas partes do mundo e é muito em pequenos núcleos, não existindo
em qualquer outra parte do mundo.
comum em Portugal continental e nos arqui-
pélagos dos Açores e da Madeira.
Já o mesmo não se poderá dizer do lírio do
Gerês (Iris boissieri), uma flor bela e rara que das sete espécies e duas subespécies exclusivas têm vértebras). Entre os mais conhecidos,
ocorre em pequenos núcleos, exclusivamente do território continental português. encontram-se os insetos (borboletas, escara-
na serra do Gerês, não existindo em qualquer Segundo o artigo “Os insetos endémicos de velhos, abelhas, vespas, moscas, formigas, gri-
outro lugar do mundo. Trata-se de uma planta Portugal continental”, coordenado pelo inves- los, gafanhotos e libélulas, entre outros), que
bolbosa, que surge, durante os meses de maio tigador João Farminhão, da Faculdade de Ciên- representam mais de três quartos de todos
a julho, em fendas de rochas montanhosas, em cias da Universidade de Lisboa, no nosso país, os animais catalogados, embora ainda haja
zonas incultas e pedregosas, de solo muito “o conhecimento sobre os insetos é ainda bas- muito por descobrir. Até ao momento, só foram
pobre, entre os 600 e os 1300 metros de alti- tante escasso, o que é crítico tendo em conta classificadas pouco mais de um milhão de
tude, com folhas persistentes, e que ostenta as taxas de endemismo conhecidas de diferen- espécies de invertebrados, estimando-se que
uma flor intensamente violácea, com uma tes grupos”. Até 2014, data de publicação do existam entre cinco e 30 milhões de espécies
faixa longitudinal amarela. referido estudo, estavam identificadas como de organismos com seis patas, corpo dividido
Se olharmos para o mundo animal, encontra- endemismos lusitânicos 369 espécies e 33 em três partes (cabeça, tórax e abdómen) e
remos situações similares. Por exemplo, não subespécies, “embora a listagem não esteja dois pares de asas (os insetos são os únicos
precisaremos de nos incomodar com a even- ainda finalizada e haja carência de informação invertebrados alados).
tual extinção dos afídios, também conhecidos geográfica”, lembram os entomólogos. Na pior das estimativas, falta ainda encon-
por “pulgões” ou “piolhos-das-plantas” trar e descrever mais de oitenta por cento das
(minúsculos insetos que se alimentam da seiva INFINITA VARIEDADE espécies de insetos, um grupo de seres magní-
vegetal, dos quais se conhecem mais de 850 O número total de espécies identificadas ficos que desempenham funções essenciais no
espécies só na Europa), pois, somente numa em todo o mundo, desde que Lineu, no século funcionamento dos ecossistemas e na econo-
área equivalente a um campo de futebol da XVIII, estabeleceu as regras para a sua classi- mia mundial. Os himenópteros, por exemplo,
primeira divisão (um hectare), podem viver ficação, até ao final de 2016, segundo o Catá- que compreendem as formigas, as abelhas e as
cerca de cem milhões de indivíduos. logo da Vida (http://www.catalogueoflife.org), vespas, com cerca de 200 mil espécies catalo-
Ao invés, merecerão maior atenção outros ronda 1,64 milhões. Esta é, no entanto, uma gadas, constituem os principais polinizadores
insetos, como a cigarra-dos-arbustos (Neocalli- pequena amostra, pois os especialistas que do mundo e são também muito importantes
crania barrosi), que têm um efetivo populacio- estudam a diversidade biológica estimam que como agentes de controlo biológico, evitando
nal reduzido e ocupam territórios diminutos. o valor real esteja compreendido entre cinco e a formação de pragas.
Esta espécie, por exemplo, encontra-se apenas cem milhões de espécies. Ainda nos invertebrados, merecem destaque
na faixa litoral entre Leiria e Setúbal e pertence A grande maioria das espécies catalogadas os aracnídeos (aranhas, ácaros e escorpiões).
ao grupo dos ortópteros, que inclui os grilos e (cerca de 1,3 milhões) corresponde a organis- Estes distinguem-se facilmente dos insetos
os gafanhotos, no qual estão atualmente lista- mos invertebrados (literalmente, os que não por não terem antenas e possuírem quatro
66 SUPER
O mato protege o solo da erosão.
Estudo pioneiro
N o final de 2014, foi dado a conhe-
cer o primeiro Estudo da Econo-
mia dos Ecossistemas e da Biodiversida-
o ecoturismo, “embora se reconheça o
potencial de recreio e lazer providencia-
do pela área em estudo”.
de (conhecido pela sigla “TEEB”: The Sem entrarmos em pormenores técni-
Economics of Ecosystems and Biodiversity) cos, que estão fora do âmbito deste ar-
realizado em Portugal. Este foi desen- tigo, podemos dizer que a estimativa do
volvido por investigadores do Instituto valor económico dos serviços dos ecos-
Superior Técnico, de Lisboa, e consistiu sistemas analisados no Parque Natural
no mapeamento e na avaliação dos ser- da Serra de São Mamede totaliza mais
viços de ecossistema do Parque Natural de 33 milhões de euros por ano, numa
da Serra de São Mamede, que foi criado área correspondente a cerca de 55 mil
em 1989 e se localiza no Alto Alentejo, hectares, que inclui pastagens, florestas,
englobando a totalidade do concelho de matagais, culturas arvenses e campos
Marvão e parte dos concelhos de Porta- agrícolas, entre outros. Destes, quase 22
legre, Arronches e Castelo de Vide. milhões de euros resultaram do serviço
pares de patas, tendo sido catalogados, até à Recorde-se que um “parque natural” é de proteção do solo (erosão evitada),
atualidade, mais de 102 mil espécies, podendo uma área que contém predominante- produzido sobretudo pelos matos e pelas
o seu número real atingir os 600 mil. mente ecossistemas naturais ou semina- florestas; 4,5 milhões de produção de ali-
Até mesmo os crustáceos, que incluem turais, onde a preservação da biodiversi- mento vegetal; 3,4 milhões de produção
animais marinhos (caranguejos e camarões), dade a longo prazo depende da atividade de fibra; 1,8 milhões de produção animal
de água doce (pulgas-de-água) e terrestres humana, assegurando um fluxo sustentá- extensiva; um milhão de biodiversidade
(bicho-de-conta), dos quais se conhecem cerca vel de produtos naturais e de serviços. (assumindo os autores que este valor es-
de 67 mil espécies, exibem maior diversidade Vale a pena ler o documento para ter uma tará claramente subestimado); e cerca de
específica do que todos os vertebrados juntos. ideia do valor atribuído pelos especialistas 620 mil euros de sequestro de carbono.
Recorde-se que os vertebrados são seres que ao nosso património natural. Além disso, Embora 33 milhões de euros anuais pos-
têm esqueleto interno (cartilagíneo ou ósseo), como o estudo foi realizado numa área sa não parecer muito, é importante não
caracterizado fundamentalmente pela pre- protegida, permite ainda, pela primeira esquecer que estamos a falar de um ter-
sença de crânio, que lhes protege o cérebro, e vez, perceber os reais benefícios econó- ritório serrano e quase selvagem, onde a
que possuem, em muitos casos, coluna verte- micos gerados pelas áreas classificadas maioria das pessoas pensava que apenas
bral. Falamos de um grupo taxonómico com que fazem parte da Rede Nacional de se protegiam alguns habitats naturais,
mais de 66 mil espécies inventariadas, no qual Áreas Protegidas. Isto é relevante porque, meia dúzia de animais raros, como a
se incluem os peixes, os anfíbios, os répteis, as lembram os autores, “a perceção de que as águia de Bonelli (símbolo do parque), e
aves e os mamíferos. áreas classificadas providenciam múltiplos um punhado de plantas curiosas, como
Tal como acontece a nível mundial, torna-se benefícios para a sociedade é um fator de a erva-pinheira-orvalhada (uma peculiar
quase impossível saber com certeza quantas grande importância para justificar o relevo planta carnívora, cuja distribuição geo-
espécies ocorrem em Portugal. Só os insetos e a eficiência do investimento público na gráfica se encontra confinada a Portugal,
portugueses ascendem a 20 mil espécies, e sua criação, gestão e conservação”. ao sul de Espanha e ao norte de Marro-
encontram-se listadas mais de 400 espécies de Como se tratou de um trabalho pionei- cos). Este estudo pioneiro foi apenas
vertebrados terrestres e cerca de 3000 espécies ro, não foi possível realizar a avaliação o primeiro passo para uma avaliação
de plantas. Por incrível que pareça, a biodiver- económica de todos os serviços ambien- nacional dos ecossistemas e da biodi-
sidade nacional é das mais ricas da Europa. tais, uma vez que não estava disponível a versidade, que irá continuar e provará,
Seja qual for o número final de espécies, informação necessária para fazer todas as certamente, que é rentável e vale a pena
uma coisa é certa: nenhum ser vivo está no estimativas. Por exemplo, não foi conta- preservar a diversidade genética, de es-
planeta (e no nosso país) por acaso. Todos os bilizado qualquer serviço cultural, como pécies e dos ecossistemas.
organismos, mesmo os que parecem ser mais
Interessante 67
Sem diversidade
biológica,
não haveria
humanidade
insignificantes e dispensáveis, têm funções
importantes. A diversidade biológica tem um
papel fundamental na manutenção do equilí-
brio dos ecossistemas e, por incrível que pareça,
assegura a continuidade das condições que per-
mitem a existência da espécie humana, como
o ar puro, a água potável ou os solos férteis.
VARIEDADE É RIQUEZA
A biodiversidade é o sustentáculo de uma
multiplicidade de recursos que o homem retira
da natureza. Assim, encontra-se na base dos
chamados “serviços naturais”, “ambientais”
ou “dos ecossistemas”. Um ecossistema é um
sistema de organismos (produtores, consumi-
dores e decompositores) que interagem entre
si e com o meio físico em que estão instalados
(denominado “biótopo” e caracterizado por
parâmetros como o clima e as propriedades
do substrato). São exemplos de ecossistemas
as florestas, os rios, as pastagens, os campos
agrícolas, os parques urbanos, etc. Porém, não
é fácil delimitar onde começa e acaba um ecos-
sistema: por exemplo, um oceano pode ser
considerado um ecossistema, tal como uma
poça de água deixada a descoberto durante
a maré baixa. por vezes, com valor de mercado, resultantes do ecossistemas de montanha e as florestas são
Os ecossistemas estão dependentes de com- contacto com os ecossistemas. Enquadram-se fundamentais para a manutenção do ciclo
plexas interações biológicas, químicas e físicas neste âmbito o ecoturismo, o lazer e a recreação, hidrológico? Por tudo isto, todos os ecossis-
(afetadas pelas atividades humanas) e são os valores patrimoniais e culturais, os aspetos temas devem ser geridos de forma eficaz,
diferenciados relativamente ao tipo de bene- estéticos, espirituais e religiosos, a pesquisa de modo a contribuir para alcançar as metas
fícios que prestam, podendo ser de suporte, científica e a educação. de um desenvolvimento sustentável, isto é,
provisionamento, regulação ou culturais. Uma vez que o homem está completamente que satisfaça as necessidades do presente
Os serviços de suporte, como o nome indica, dependente da natureza e dos serviços ambien- sem comprometer a capacidade de as futuras
estão na base de todos os outros serviços tais, estes afetam o seu bem-estar de diversas gerações satisfazerem as suas próprias neces-
ambientais. Incluem-se aqui a formação do solo, formas, desde a segurança aos recursos mate- sidades.
os ciclos biogeoquímicos, a reciclagem da água riais básicos para uma vida salutar, à saúde e às
e dos nutrientes, a produção primária (fotos- relações sociais e culturais. Assim, alterações EXPLORAÇÃO INSUSTENTÁVEL
síntese), o fornecimento de habitat para a nos ecossistemas (recorde-se que a biodiver- O problema é que a procura de serviços
fauna e a flora, entre outros. sidade é parte integrante e indissociável de ambientais tem vindo a aumentar de uma forma
Os serviços de provisionamento, também qualquer sistema ecológico) podem pôr em insustentável: temos explorado muitos ecos-
chamados “de produção”, são todos os pro- causa a segurança pessoal, aumentar a vulne- sistemas acima das suas capacidades, sem que
dutos e bens de consumo obtidos a partir dos rabilidade a desastres e hipotecar o acesso a eles tenham oportunidade de responder ade-
ecossistemas. São exemplos os alimentos, a recursos básicos que permitem obter rendi- quadamente ao aumento da procura. Como
água potável, a madeira, as fibras, os combus- mento, sustento ou abrigo. Além disso, no que se não bastasse, os ecossistemas estão ainda
tíveis, os medicamentos e os recursos genéticos. diz respeito à saúde e às relações sociais, podem sujeitos a grandes catástrofes, tanto naturais,
Consideram-se serviços de regulação os impedir uma alimentação adequada, a obtenção muitas vezes imprevisíveis, como provocadas
benefícios, geralmente sem valor de mercado, de água potável e a existência de ar puro, a capa- pela ação do homem (antrópicas).
resultantes dos processos que ocorrem nos cidade de permanecer livre de doenças, a coe- As catástrofes naturais incluem, por exemplo,
ecossistemas associados à gestão de riscos são social, o respeito mútuo e oportunidades sismos, maremotos, vulcões, tempestades
naturais. Incluem-se neste rol, por exemplo, a para expressar valores estéticos, recreativos, (como furacões), secas, incêndios espontâ-
manutenção da qualidade do ar, a regulação culturais e espirituais. neos, inundações e movimentos de terrenos.
da água e do clima, o controlo das pragas e da Umas vezes, estes serviços são muito evi- As catástrofes antrópicas compreendem, por
erosão, a purificação da água e a polinização. dentes, como acontece com os de produção de exemplo, a desflorestação, os incêndios de ori-
Entende-se por serviços culturais ou de alimentos; noutras, a sua importância é menos gem humana e as invasões biológicas por espé-
informação os benefícios imateriais, ainda que, óbvia. Por exemplo, quem se lembra de que os cies exóticas. As espécies invasoras podem ori-
68 SUPER
Ecossistemas e empresas
A valorização económica dos serviços
dos ecossistemas vai deixar de ser
um mero passatempo dos economistas
ambientais para passar a ser uma obriga-
toriedade legal. O Plano Estratégico para
a Biodiversidade de 2011-2020, assinado
por Portugal em 2010, e a Estratégia de
Biodiversidade da União Europeia para
2020, estabelecida em 2011, exigem,
entre outras coisas, que os estados-
-membros passem a incluir na contabili-
dade nacional o valor da biodiversidade
e dos serviços dos ecossistemas (mesmo
que não tenham um valor de mercado Por tudo isto, existe há alguns anos o
expresso), bem como os passivos am- BCSD Portugal – Conselho Empresarial
bientais. Esta obrigatoriedade estende-se para o Desenvolvimento Sustentável
tanto ao poder central, como às câmaras (http://www.bcsdportugal.org), uma
municipais e às empresas. Integrar esta associação sem fins lucrativos, de utilida-
informação nos sistemas contabilísticos de pública, que agrega e representa em-
e nos relatórios públicos permitirá com- presas que se comprometem ativamente
preender o valor do capital natural dos com a sustentabilidade. A sua visão
territórios, transmitindo aos decisores estratégica prevê que em 2030 Portugal
políticos a importância dos ecossistemas seja um país de referência nas soluções
e da biodiversidade. Ajudará a repensar empresariais que promovem uma econo-
esses territórios de forma mais inteli- mia de baixo carbono, que valorizam os
gente e integrada, com efeitos sobre serviços dos ecossistemas e que contri-
a qualidade de vida das populações, e buem para o bem-estar das pessoas.
possibilitará análises de custo/benefício O BCSD Portugal assume claramente
mais realistas de políticas públicas e de que “todos os setores de atividade de-
Riqueza. Muitas atividades económicas projetos empresariais, que promovam pendem, direta ou indiretamente, de
dependem de uma natureza saudável.
efetivamente a sustentabilidade dos produtos fornecidos pelos ecossistemas
ecossistemas, conciliando a visão econó- e causam impactos nos serviços que es-
mica com a conservação da natureza. tes prestam, contribuindo para a sua de-
ginar situações de competição com as autóc- A nova visão, que contabiliza os ativos e gradação ou para a sua melhoria, quando
tones, afetando seriamente a diversidade passivos ambientais, deverá melhorar o geridos de forma proativa”. Reconhece
biológica e os serviços dos ecossistemas, impli- planeamento e o ordenamento do terri- ainda que os impactos ambientais, quan-
cando perdas significativas a nível económico, tório, possibilitando o desenvolvimento do negativos, “prejudicam economica-
tanto na produção agrícola como florestal de novos serviços e produtos. Além mente outras atividades que dependem
e piscícola, e gastos elevados na aplicação de disso, poderá permitir o pagamento ou desses ecossistemas para operar”.
medidas de controlo. a compensação por serviços dos ecossis- Os riscos associados à perda de biodiver-
Pela mão do homem, temos ainda as deno- temas, como a fiscalidade verde, e o uso sidade e à degradação dos ecossistemas
minadas “catástrofes tecnológicas”, isto é, que mais eficiente e limitado dos recursos são reais. Por exemplo, em 2010, o re-
resultam do desrespeito pelas normas de segu- naturais. Estes valores serão cada vez latório TEEB (The Economics of Ecosys
rança que regem a produção, o transporte, mais tidos em consideração pelo setor tems and Biodiversity) evidenciou as con-
o armazenamento e o manuseamento de certos financeiro e nas relações entre empresas, sequências económico-financeiras da
produtos ou o uso incorreto de determinada na medida em que avaliam os riscos e as destruição da diversidade biológica e dos
tecnologia. Neste âmbito, destacam-se, por oportunidades de investimento empre- sistemas ecológicos, que poderá repre-
exemplo, os acidentes com transportes de sarial. Além disso, existe desde 2008 o sentar uma perda económica da ordem
substâncias perigosas, as ameaças nucleares, regime jurídico da responsabilidade por dos 20 por cento, entre 2010 e 2050.
radiológicas, biológicas e químicas e a poluição, danos ambientais, com base no princípio Poderá dizer-se que as empresas estão
que pode afetar a água, o ar e o solo. do poluidor-pagador. Desde essa data, preocupadas apenas com o seu lucro
Portanto, exigem-se políticas apropriadas os operadores de atividades económi- económico e com os riscos crescentes
e intervenções de gestão dos ecossistemas, cas, independentemente do seu caráter (operacionais, regulatórios, reputacio-
ao nível global, nacional, regional e local, que público ou privado, lucrativo ou não, nais, financeiros e de mercado) que de-
possam conter, mitigar ou reverter a degrada- passaram a ser responsáveis, não apenas correm da perda acelerada da biodiver-
ção ambiental a que temos assistido nas últi- pelos custos de limpeza decorrentes de sidade e dos serviços dos ecossistemas.
mas décadas. Saber quando e como intervir poluição causada pelas suas instalações, Seja qual for a sua motivação, uma coisa
exige um profundo e abrangente conhecimento mas também pelos danos provocados é certa: no final, todos beneficiaremos
dos sistemas ecológicos e sociais envolvidos. aos recursos naturais, habitats e espécies, com isso, pois somente a preservação da
Nesse sentido, uma avaliação de ecossistemas, incluindo as despesas para repor o am- biodiversidade e o desenvolvimento sus-
conforme foi preconizada pelo Millennium biente e demais condições naturais no tentável nos poderão garantir um futuro
Ecosystem Assessment (MEA), já no longínquo seu estado inicial. com qualidade de vida.
mês de junho de 2001, poderá ser muito útil.
Interessante 69
Nem todo
o dinheiro
pagaria
alguns serviços
A avaliação dos ecossistemas permitirá
aprofundar a compreensão da relação e das
ligações entre os ecossistemas e o bem-estar
humano, demonstrar o potencial dos ecossis-
temas para contribuir na redução da pobreza
e no aumento do bem-estar, avaliar a compa-
tibilidade de políticas estabelecidas a diferen-
tes escalas, integrar aspirações económicas,
ambientais, sociais e culturais, incorporar
informações das ciências naturais e sociais,
identificar e avaliar opções políticas e de
gestão para proteger os serviços dos ecossis-
temas e harmonizá-los com as necessidades
humanas e facilitar a gestão integrada dos
ecossistemas.
Há década e meia, o MEA alertava para
situações altamente preocupantes, como, por
exemplo, o facto de os seres humanos estarem
a causar alterações sem precedentes nos
ecossistemas, para atender a crescentes
demandas de alimentos, água, fibras e ener-
gia. “Estas alterações ajudaram a melhorar a
vida de milhares de milhões de pessoas, mas,
ao mesmo tempo, enfraqueceram a capaci-
dade da natureza de prover outros serviços própolis (goma ou resina com propriedades fruta), havendo casos em que a própria merca-
fundamentais, como a purificação do ar e da medicinais), cera, etc. doria também serve para matar a fome, como
água, a proteção contra catástrofes naturais Embora as abelhas sejam amiúde odiadas acontece com o pólen, rico em proteínas, que
e os remédios naturais”, salientava o docu- pelas suas dolorosas picadas, são as principais constitui um importante alimento para as abe-
mento. Acrescentava ainda que “as atividades polinizadoras agrícolas e florestais: polinizam lhas. Estas levam-no para o interior da colmeia,
humanas levaram o planeta à beira de uma cerca de 80 por cento das culturas que comemos sendo utilizado na preparação do alimento das
onda maciça de extinção de várias espécies, e um sem-número de espécies vegetais silves- larvas jovens, devido ao seu alto valor nutritivo:
ameaçando ainda mais o nosso bem-estar”. tres. A sobrevivência da maioria das plantas do além das proteínas, possui sais minerais
Face a isto, vaticinava que “as pressões sobre planeta está completamente dependente das (potássio, fósforo, enxofre, cobre, ferro, cloro,
os ecossistemas aumentarão à escala global, viagens dos grãos de pólen (que carregam os magnésio e silício) e quantidades variáveis de
nas próximas décadas, se a atitude e as ações gâmetas masculinos, os anterozoides), ou seja, elementos dos complexos vitamínicos B, C, D e E.
humanas não mudarem”. da sua transferência dos estames (estruturas Sem os veículos voadores de transporte de
O mais incrível é que, afinal, “o conhecimento sexuais masculinas) para os estigmas (estru- pólen, como as abelhas, não haveria muitas
e a tecnologia de que dispomos hoje podem turas sexuais femininas) das flores. Esse é o das hortaliças que conhecemos, como abó-
reduzir consideravelmente o impacto humano primeiro passo fundamental para que possa boras, beterrabas, cenouras, couves, feijões e
nos ecossistemas, mas a sua utilização em pleno ocorrer a fecundação dos óvulos e a conse- tomates, ou dos frutos, como maçãs, melões,
permanecerá reduzida enquanto os serviços quente formação das sementes e dos frutos, morangos, peras e pêssegos, entre muitos
naturais continuarem a ser percebidos como essenciais para a sobrevivência das plantas e outros. Nem teríamos algodão, amêndoas,
gratuitos e ilimitados e não receberem o seu para a nossa alimentação. café, chocolate, girassol e linho. Nem sequer
devido valor”. Ainda que a polinização possa ser realizada vinho (a flor da videira também é polinizada
exclusivamente pelo vento (polinização ane- por insetos) e leite, pois as vacas alimentam-se
QUANTO VALEM AS ABELHAS? mófila), como acontece com a oliveira, a azi- de forragem constituída essencialmente por
Diz-se que “por morrer uma andorinha, não nheira, o sobreiro e os cereais (aveia, centeio, luzerna, trevo-branco e outras herbáceas igual-
acaba a primavera”. E se morrerem todas? E se cevada, milho e trigo), na maioria dos vegetais, mente dependentes da polinização entomófila.
em vez das andorinhas forem as abelhas a desa- esta é assegurada por insetos (polinização Ora, se as abelhas fossem recompensadas,
parecer? Convém deixar claro que as abelhas entomófila), uma vez que, ao longo do processo em conjunto com os outros insetos polinizado-
não são todas iguais, existindo mais de 20 evolutivo, demonstrou ser muito mais eficiente res, pelo seu serviço de regulação, isto é, pelo
mil espécies espalhadas pelo mundo, sendo do que a executada pelo simples movimento seu trabalho na polinização dos pomares e dos
a abelha-comum ou melífera (Apis melífera) a do ar na atmosfera. vegetais cultivados, teríamos de lhes pagar,
representante mais conhecida. Esta foi domes- Assim, o pólen e as sementes acabaram por anualmente, mais de 180 mil milhões de euros.
ticada e tem sido criada em larga escala para se tornar mercadorias transacionadas pelos A este valor seria ainda necessário acrescentar
a produção de mel, pólen apícola, geleia real, insetos em troca de comida (néctar e polpa de várias centenas de milhões de euros pelos lucros
70 SUPER
cenário alarmante. O mais preocupante é que,
afinal, somos nós, os humanos, que estamos
a provocá-lo. Desde o tempo dos dinossau-
ros que não desapareciam tantos seres vivos:
“A nossa sociedade global começou a destruir
outras espécies a um ritmo acelerado, iniciando
um episódio de extinção em massa nunca
visto em 65 milhões de anos”, afirma Gerardo
Ceballos, que adverte: “Se o ritmo de extinção
atualmente elevado se mantiver, os humanos
irão brevemente (em menos de três gerações)
ficar privados de muitos dos benefícios forne-
cidos pela biodiversidade.” O mais grave é que
essa perda poderá ser permanente e irreversí-
vel ou com uma lenta recuperação, que não
sabemos se ocorrerá antes de nós próprios
desaparecermos, não como indivíduos, mas
como espécie.
Se olharmos para as outras extinções do
género, verificaremos que, após cada evento
cataclísmico, foram necessários vários milhares
a milhões de anos para os ecossistemas se
reequilibrarem e os organismos sobreviventes
recuperarem, tanto em número como em varie-
dade. Por exemplo, após a extinção em massa
Veículos voadores. Quatro em cada mais devastadora, que aconteceu há cerca de
cinco espécies de plantas dependem 252 milhões de anos e marcou o início da Era
dos insetos polinizadores, como Mesozoica e o fim da Paleozoica, foi preciso
as abelhas, para se reproduzirem.
esperar 10 a 20 M.a. até surgirem novas espécies
para preencher os habitats e os níveis tróficos
deixados vagos pelas que se extinguiram.
adicionais que temos com os seus serviços de mundial. Muitos cientistas, como Gerardo A questão essencial é: conseguiremos nós
produção, ou seja, com o fabrico de mel e de Ceballos, acreditam que nos aproximamos, sobreviver até isso acontecer? Os dinossauros,
outros produtos apícolas. a passos largos, de uma grande extinção ao por exemplo, não se extinguiram devido ao
No entanto, todos sabemos que a sobrevi- nível planetário. Estudos desenvolvidos por impacto de um corpo celeste, mas em conse-
vência das abelhas está ameaçada a nível global, investigadores norte-americanos e mexica- quência das profundas modificações dos seus
devido ao uso de pesticidas, à destruição dos nos confirmam que “são incontestáveis as ecossistemas que daí resultaram e que os impe-
habitats, ao ataque de parasitas e, sobretudo, provas de que as taxas de extinção recentes diram de obter alimentos e de se adaptar, em
ao aumento das temperaturas. Assim, se não não têm precedentes na história do homem e tempo útil, às mudanças ambientais e às trans-
começarmos a tomar medidas sérias para redu- são altamente incomuns na história da Terra; formações ocorridas nos seus habitats.
zir o ritmo das alterações climáticas, poderá no último século, os vertebrados têm estado Importa referir que muitos serviços natu-
verificar-se, efetivamente, a previsão do estudo a desaparecer a um ritmo 114 vezes superior rais não podem ser reproduzidos por proces-
científico coordenado por Gerardo Ceballos, da ao do passado”. sos artificiais. Mesmo que isso fosse possível,
Universidade Nacional Autónoma do México, A sexta extinção em massa, que está já em nem todo o dinheiro do mundo seria suficiente
e publicado em junho de 2015, na revista Science curso, é conhecida pela comunidade científica para executar estes trabalhos (leia-se: serviços
Advances, no qual se vaticinava que “as abe- como “extinção do Holoceno”, uma vez que, dos ecossistemas, baseados na diversidade e
lhas podem desaparecer dentro de apenas três na escala de tempo geológico, o Holoceno riqueza biológica) de maneira artificial.
gerações humanas”, ou seja, dentro de um (também chamado Holocénico) é a época do Segundo os cientistas norte-mericanos e
século (leu bem: cem anos!). período Quaternário que se iniciou há cerca mexicanos, a sexta extinção em massa não é
Há quem alvitre que, caso desapareçam os de 11,7 mil anos e se estende até ao presente. necessariamente uma inevitabilidade: “Evitar
insetos polinizadores, isso levará, inevitavel- Embora este intervalo temporal corresponda a a deterioração dramática da biodiversidade e a
mente, à extinção da grande maioria das plan- um simples piscar de olhos em termos geológi- subsequente perda de serviços dos ecossiste-
tas com flor, por bloqueamento da polinização cos, tem muito interesse para nós, pois signifi- mas ainda é possível através de esforços de
e da dispersão de sementes, e dos vertebrados cou mudanças radicais na história da humani- conservação intensificados.” No entanto, é
terrestres, uma vez que se interromperia o fluxo dade, que começaram com a sedentarização, preciso termos consciência de que “a janela de
de matéria e energia nas cadeias e teias tróficas. passaram pela civilização e pela revolução oportunidade está a fechar-se rapidamente”.
A ser verdade, como iremos sobreviver? industrial e culminaram na sociedade da infor- Muito provavelmente, enquanto leu este
mação e da comunicação em que vivemos, texto, algum ser vivo do nosso planeta terá
PERDA DA BIODIVERSIDADE dominada pela ciência e pela tecnologia. desaparecido para sempre. Qual seria o seu
O que se passa com as abelhas e com os Todos gostaríamos que os dados científicos valor? Possivelmente, nunca o saberemos, mas
restantes insetos polinizadores é apenas um fossem outros. No entanto, a cada dia que uma coisa é certa: temos agora menos biodi-
exemplo do que está a acontecer à biodiver- passa, as notícias vindas a público, nos quatro versidade e uma Terra mais pobre.
sidade em geral, tanto a nível nacional como cantos do mundo, parecem confirmar este J.N.
Interessante 71
Fotografia
Gotas sem
FRONTEIRAS
O fotógrafo Zachary Burns recolheu pequenas amostras de água
em diferentes lugares do mundo e deixou que se evaporassem
sobre finas lâminas de cristal, onde as substâncias não voláteis
presentes no líquido deixaram formas e cores sugestivas.
72 SUPER
Dos dois lados do Atlântico
A amostra da página oposta foi obtida da
rede pública de Chicago. A desta página,
numa baía da ilha de Ré, na costa atlântica
francesa. É água misturada com lodo
marinho, recolhida durante a maré baixa.
Interessante 73
Da poluição à pureza. A água da esquerda foi recolhida na baía
de Guanabara, que alberga o porto do Rio de Janeiro, e por isso está
muito contaminada. A de cima, num ribeiro das colinas de Redmond
(Washington). A de baixo, de uma nascente na prefeitura de Okayama
(Japão). As águas das nascentes costumam ser muito ricas em
componentes não voláteis procedentes das rochas que percorreram.
74 SUPER
Vapores artísticos. O mar de Seto separa (ou une, como se
queira) as ilhas de Honshu, Shikoku e Kyushu, no sul do Japão.
É de lá que veio a água evaporada que se vê em cima. A de baixo,
à esquerda, provém de outro ribeiro de Redmond. A da direita foi
colhida num local muito próximo, também no estado de Washington:
o lago Rattlesnake, com uma profundidade média de seis metros.
Interessante 75
Saúde
E se não houvesse
VACINAS?
A divulgação por parte de certos meios e através das redes sociais de opiniões
contra a vacinação produz alarme social e sanitário: casos de crianças cujos pais
se negaram a imunizá-las e que contraíram sarampo, difteria, tétano, poliomielite
e outras infeções que estavam quase erradicadas.
76 SUPER
Interessante 77
Esquecemo-nos
das doenças,
mas elas não se
esquecem de nós
E
stamos em 2066. A imprensa do dia
destaca nas primeiras páginas que a
esperança de vida alcançou um novo
mínimo: 56 anos. Entretanto, uma
epidemia descontrolada de sarampo infantil
coloca em xeque os serviços de saúde. Na
secção de sociedade, anuncia-se a abertura
de cinco novos hospitais pediátricos para dar
cobertura aos casos de poliomielite, difteria,
tétano e rubéola, que não cessam de se multi-
plicar. Uma campanha oficial recorda aos leito-
res que há mais surdos do que nunca, em con-
sequência dos numerosos casos de meningite.
Reivindicam-se melhores acessibilidades para
os milhares de novos deficientes provocados
pela poliomielite. No panorama internacional,
os jornais viram-se para o Japão, onde faz
estragos uma epidemia de tosse convulsa.
Não se trata de uma distopia futurista impro-
vável. Em 2015, o caso de um menino espanhol
de seis anos que morreu vítima de difteria,
28 anos depois de a doença ter sido erradicada
naquele país, foi notícia a nível internacional
e trouxe para primeiro plano os perigos reais
de atribuir credibilidade aos movimentos
antivacinas. O facto é que os pais da criança
tinham decidido não lhe dar a vacina tripla (dif-
teria, tétano e tosse convulsa) com receio dos
supostos efeitos adversos. No mesmo ano,
os visitantes da Disneylândia, na Califórnia,
enfrentaram um surto de sarampo infantil por
causas semelhantes. Este ano, morreu uma
adolescente portuguesa, depois de ter con-
traído sarampo no Hospital de Cascais. Se a ten-
dência para não acatar os planos nacionais de
vacinação prosseguir, muitas outras doenças
poderão reaparecer, e até com mais força.
78 SUPER
Sofrimento evitável. Menino palestiniano
vítima de poliomielite, uma doença que
pode causar paralisia. Depois de ter sido
erradicada em muitos locais há décadas, está
Cinco mitos antivacinas
1 4
a regressar devido ao movimento antivacinas.
“É melhor ficar imunizado por ter a “A sida surgiu da criação de uma
doença do que através das vacinas.” vacina.” Na realidade: em 1992, foi
Na realidade: os preparados imunológi- publicado um artigo a sugerir que a sida
cos interagem com o sistema de defesa tinha tido origem em vacinas contra a
do organismo para proporcionar uma poliomielite administradas no Congo
reação semelhante à que seria produzida Belga, entre 1957 e 1960. Os autores
pela infeção natural, mas não causam argumentavam que o composto imuno-
a doença nem expõem o indivíduo aos lógico fora cultivado em células renais
riscos de possíveis complicações. Em de chimpanzé contaminadas com o vírus
contrapartida, o preço da imunização da imunodeficiência dos símios (VIS),
por infeção natural poderá ser um atraso o qual sofrera uma mutação, nas pessoas
mental provocado por Haemophilus in- vacinadas, para uma forma viral muito
fluenzae tipo B, deficiências congénitas semelhante: o vírus da imunodeficiência
devido à rubéola, cancro do fígado por humana (VIH). Premissas falsas, pois
causa do vírus da hepatite B ou mesmo a o VIS não se encontra nas células de
morte por sarampo. rim de macaco, além de não terem sido
dados irrefutáveis, como o de que a mortali- exagerado. Esses efeitos são, aliás, inevitáveis,
dade mundial por sarampo foi reduzida em 74 pois nem as vacinas nem qualquer outro trata-
por cento, ou que, desde 1988, a incidência da mento terapêutico ou preventivo podem ser
poliomielite diminuiu 99%, passando de mais 100% inócuos.
de 350 mil casos para 1410 em 2010. Claro que é fácil cair no erro de pensar que,
Se as vantagens das vacinas são tão evidentes, como as doenças que se podem evitar através
por que motivo não são utilizadas de forma da vacinação estão quase erradicadas nos paí-
maciça? Como é possível que, enquanto as orga- ses desenvolvidos, já não há motivo para nos
nizações de saúde a nível mundial decidiram imunizarmos, o que é absolutamente falso.
consagrar a década 2011–2020 a tornar realidade Mesmo que não se produza um caso em décadas,
a imunização universal, se verifique o paradoxo os agentes infeciosos que as desencadeiam
de tantos pais, em países desenvolvidos, rejei- continuam a circular – evoluindo e passando
tarem voluntariamente a imunização dos seus por mutações – em algumas partes do mundo.
filhos? Em grande parte, porque as vacinas “Se decidíssemos desligar todos os aqueci-
estão a ser vítimas do seu próprio êxito, como mentos porque os aparelhos já funcionaram
explicam diversos especialistas no assunto. e está mais quente, o frio acabaria sempre
Efetivamente, à medida que as vacinas vão por voltar, mais tarde ou mais cedo”, sugere,
alcançando o seu objetivo de eliminar uma em jeito de comparação, José Bayas, especia-
doença, abre-se o caminho ao esquecimento lista em medicina preventiva e saúde pública.
ABID KATIB / GETTY
Interessante 79
As mais contestadas
D e todas as vacinas, há duas que gozam de especial má
fama: a do vírus do papiloma humano (VPH) e a da
gripe. A primeira, uma das últimas a chegar, previne a infeção
por um vírus que causa verrugas genitais e, a longo prazo, le-
sões pré-cancerosas no útero, ou mesmo cancro da boca e da
faringe através da prática de sexo oral. Isto é: se o seu uso se
generalizar, a vacina poderia transformar-se na segunda, após a
da hepatite B, a agir na prevenção do cancro, sobretudo depois
de a OMS ter ratificado a sua segurança. Todavia, é demoniza-
da por muitos grupos. José Bayas atribui esse comportamento
ao facto de os seus benefícios não serem assim tão evidentes:
“Desde a infeção pelo vírus, que surge normalmente quan-
do se começa a ter relações sexuais, até surgirem problemas
graves de saúde, como o cancro do colo do útero, decorrem
entre vinte e trinta anos.” Além disso, a ideologia também tem
influência devido às suas conotações sexuais: “Nos Estados
Unidos, alguns entraves à vacinação contra o VPH chegam
de grupos católicos ou conservadores, os quais pensam que
vacinar as adolescentes poderá encorajá-las a manter relações
sexuais mais cedo”, sublinha Bayas. Relativamente à vacina
contra a gripe, a conversa é outra. “Trata-se de uma vacina
imperfeita, pois baseia-se numa previsão dos vírus da gripe que
ainda não apareceram”, explica Bayas. Os laboratórios isolam
o vírus, meses antes, observam a tendência de evolução e pro-
curam antecipar-se. Todavia, estes germes estão em constante
mutação, pelo que, por vezes, se acerta em cheio na imuniza-
ção; outras, é um estrondoso fracasso. “O facto de apenas nos
protegerem por um tempo limitado [um ano] também não
contribui para a sua popularidade”, admite Bayas. Acresce que
há centenas de micróbios que causam sintomas semelhantes
aos da gripe, pelo que alguns dos vacinados que ficam cons-
tipados ou contraem outras doenças semelhantes acreditam,
erradamente, que a vacina não os protegeu.
mas o risco da doença é maior Sciences, as pessoas que não se vacinam podem
ser classificadas em quatro perfis:
1. As que confiam na sorte. Trata-se de pessoas
o especialista, devemos ter sempre presente tal como as sociedades eficazes, dependem da que não se preocupam com a imunização, nem
que, “embora nós nos esqueçamos das doen- cooperação de cada pessoa no sentido de participam em debates; descuidam, simples-
ças, elas nunca se esquecem de nós”. assegurar o bem comum”, diz a organização. mente, esse aspeto da sua saúde.
O que é preciso reconhecer é que, normal- 2. As que não o fazem por comodidade. É aqui
mente, as consequências de um punhado de PERIGO COLETIVO que se inserem os indivíduos que não se vaci-
pessoas decidir não se vacinar não são graves, Se muitos indivíduos de um grupo optarem nam por preguiça, porque dão maior impor-
dado que existe uma imunidade coletiva: se a por não se vacinar (ou não vacinar os filhos), a tância aos inconvenientes de ter de marcar
grande maioria da população estiver vacinada, imunização coletiva diminui e é mais fácil surgi- consulta, adquirir as vacinas e deslocar-se ao
os micróbios terão muita dificuldade em conse- rem epidemias. Foi o que aconteceu na Califór- médico ou ao centro de saúde.
guir propagar-se. Por outras palavras, quando nia, com o sarampo. Um estudo alemão publi- 3. Os receosos. São pessoas desinformadas,
99% da população se vacina, o restante 1% está cado na revista PLOS ONE advertia que são com uma visão distorcida do risco das vacinas, e
protegido, mesmo que não tenha imunização. cada vez mais os casos de panencefalite escle- que desconfiam explicitamente da imunização.
O verdadeiro perigo surge quando a percen- rosante subaguda, uma doença neurológica 4. Indivíduos que pesam os prós e os contras
tagem de não vacinados aumenta: os vírus e fatal que surge em adultos que tiveram sarampo das vacinas e geralmente as rejeitam quando
as bactérias que tínhamos perdido de vista em criança, e que poderá adquirir ainda mais encontram informação contraditória.
podem voltar a atravessar as nossas fronteiras, força. Perante esta realidade, o governo aus- O que salta à vista, de modo geral, é que a ori-
propagar-se e alcançar as pessoas desprotegi- traliano decidiu retirar benefícios fiscais às gem da rejeição das vacinas parte quase sempre
das, por vezes com consequências fatais. famílias que optem pela não vacinação. Por sua da desinformação, ou, para sermos mais exatos,
Daí que a OMS insista no facto de que não nos vez, alguns estados norte-americanos não de uma informação incorreta. Seja como for,
vacinamos apenas para nos protegermos a nós permitem que crianças não imunizadas vão quem se encarregou, em 1998, de catapultar
próprios: é também para proteger os que nos à escola, a fim de evitar surtos infeciosos nas o medo das vacinas foi o médico britânico
rodeiam. “Os programas eficazes de vacinação, instituições de ensino. Andrew Wakefield. Nesse ano, publicou na
80 SUPER
Combater o inimigo
Processo de síntese da
vacina contra a hepatite B.
A imunização continua a
ser a arma mais eficaz
contra vírus e bactérias.
SPL
revista The Lancet um artigo em que assegurava falaciosa é a predisposição para a confirmação, mente, um debate, o que permite que persistam
que a vacina tripla contra o sarampo, a papeira isto é, a tendência para prestar unicamente e atraiam atenção. Outro ponto a seu favor.
e a rubéola causava autismo. Investigações pos- atenção ao que confirma as ideias, o sistema “Em nenhuma outra época da história sou-
teriores demonstraram que se tratava de uma de crenças ou mesmo os preconceitos que já bemos tanto sobre medicina e, todavia, pro-
fraude, e que Wakefield tinha mentido intencio- tínhamos, deixando de lado, obviamente, a liferam as dietas milagrosas, a homeopatia
nalmente. Aparentemente, o médico difundira informação que os questiona ou contradiz. conhece uma expansão incessante e há quem
a falsa ideia porque pretendia fazer dinheiro Quattrociocchi encontrou também resposta considere que é snob opor-se à vacinação; tudo
a comercializar vacinas alternativas. A revista para a proliferação das “câmaras de resso- isso sem qualquer base científica”, reflete
retirou o artigo, mas o mal já estava feito. nância”, isto é, de comunidades polarizadas Bayas. “Contudo, a verdade é que não se pode
Denunciá-lo e retirar-lhe a licença para exercer que consomem o mesmo tipo de informação. dizer ‘não acredito nas vacinas’, tal como não
medicina não impediu que o suposto estudo São cada vez mais frequentes graças às redes se pode afirmar ‘não acredito que a Terra é
fomentasse o movimento antivacinas em todo sociais. O especialista assegura que se produz redonda’, pois não se trata de questões de fé,
o mundo. Apesar de Wakefield ter sido defini- uma homogeneização no seu seio: as infor- mas de ciência”, acrescenta,
tivamente desmentido, as suas ideias perma- mações ou convicções são constantemente Segundo uma investigação recente da Uni-
neceram vivas, e o risco de autismo continua a repetidas, impedindo que surjam visões alter- versidade da Califórnia, não é útil, para fazer
ser um dos argumentos mais recorrentes por nativas. Em consequência disso, é fácil os mem- os pais que apoiam o movimento antivacinas
parte dos movimentos antivacinação. A falsa bros do grupo aceitarem como válidas infor- abandonar o seu erro, empenhar-se em
informação espalhou-se como a pólvora. mações objetivamente falsas ou com pouco demonstrar que as injeções não causam autismo
fundamento, quer se trate do perigo das vacinas, nem lesões cerebrais. É preferível utilizar esse
CÂMARAS DE RESSONÂNCIA do ceticismo climático, de uma ideia pseudo- empenho para os informar dos riscos que acar-
Os cientistas gostam de encontrar funda- científica ou de uma teoria da conspiração. reta deixar de vacinar uma criança: os danos
mento para os comportamentos humanos, e Além disso, o estudo demonstrou que as da poliomielite, da difteria e do sarampo, as
o crédito que damos à falsa informação não é notícias científicas publicadas na internet e nas mortes e as deficiências que provocam, as pos-
uma exceção: possui também uma explicação redes sociais se expandem de forma rápida, síveis sequelas, etc. “Concentraram-se no risco
científica. Como alertava, recentemente, o mas o interesse diminui em pouco tempo. Em de dizer sim à pica, mas esqueceram-se do risco
investigador italiano Walter Quattrociocchi na contrapartida, as notícias conspirativas são de dizer não”, defendem os investigadores.
revista PNAS, o que faz propagar a informação de assimilação lenta, mas produzem, gradual- E.S.
Interessante 81
História
A evolução
da COMIDA
Cozinhar os alimentos distinguiu-nos das
restantes espécies. Depois, o desenvolvimento
da cozinha e dos gostos culinários
marcaria a cultura de povos e países.
N
os livros de história, não há mui- medievais. De igual modo, no mundo moderno,
tos dados sobre o quotidiano das os salões aristocráticos e os cafés burgueses
pessoas comuns. É muito mais foram palco de constantes debates políticos e
abundante a informação sobre o filosóficos. Não é por acaso que os atuais homens
percurso dos grandes impérios e as façanhas de negócios passam mais tempo em restau-
dos soberanos mais insignes. Por exemplo, rantes do que nos seus gabinetes ou na Bolsa.
durante muito tempo, a historiografia menos-
prezou um aspeto da nossa existência que GUERRA ENTRE RELIGIÕES À volta da fogueira
é de extrema utilidade quando se pretende A comida constituiu ainda um agente dife- A capacidade de dominar
o fogo e aplicá-lo aos alimentos
estudar as culturas do passado: a alimentação. renciador. Segundo a historiadora Raffaella fez disparar a evolução
A que se deviam e como evoluíram os padrões Sarti, especialista na história do quotidiano dos humana: ao assar a carne,
alimentares dos nossos antepassados? Que povos, a batalha entre o Islão e o cristianismo ela torna-se mais tenra
histórias se escondem por detrás dos pratos foi também travada no âmbito culinário. Por e saborosa, mas também se
M.B. RICHART
que comemos diariamente? exemplo, os cristãos consumiam carne de elimina parasitas e bactérias,
reduzindo o risco de doenças.
Felizmente, nos últimos anos, numerosos porco em abundância para reforçar a sua
historiadores, sociólogos e antropólogos come- identidade coletiva perante os muçulmanos,
çaram a investigar esta fascinante matéria. para os quais é um alimento proibido. Por sua
Quase todos concordam em afirmar que os cos- vez, os protestantes acabaram com os jejuns Garcia, lê-se que, entre os caçadores-horticul-
tumes culinários não estão apenas relacionados impostos pelo papado, para se distinguirem tores, a distribuição da carne refletia a hierar-
com as necessidades fisiológicas, mas fazem dos católicos, enquanto a Contra-Reforma pro- quia masculina, assim como a supremacia dos
parte da cultura dos povos. Por detrás de cada pagou a moda das verduras para se distanciar homens sobre a mulher.
prato servido ao longo dos tempos, existe dos povos protestantes, mais carnívoros, do As injustiças relativamente à distribuição dos
todo um mundo por descobrir. norte da Europa. Por outro lado, segundo o his- alimentos prolongaram-se ao longo dos milé-
Segundo o historiador Fernandez-Armesto, a toriador Massimo Montanari, da Universidade nios. Na Índia, há vinte séculos, um servo rece-
invenção da cozinha diferenciou o ser humano de Bolonha (Itália), na atual África pós-colonial, bia um sexto da ração de que um nobre dispu-
das restantes criaturas da natureza, pois a brancos e negros continuam a confecionar os nha; hoje, entre os hindus, os padrões alimen-
cultura teve início quando os alimentos crus respetivos pratos tradicionais para reafirmar a tares decorrem das diferenças de casta. Na
começaram a ser cozinhados e os acampamen- sua própria identidade. Idade Média, condimentar os pratos com carís-
tos dos homens primitivos se transformaram A alimentação é também um valor que marca simas especiarias era sinónimo de prestígio;
em locais de reunião. A partir de então e até aos as relações de poder. Segundo Fernandez- depois, paulatinamente, os aristocratas dei-
nossos dias, a mesa tem constituído o principal -Armesto, “nunca houve uma idade de ouro xaram de consumi-las quando o seu preço se
foco de socialização dos seres humanos. As da igualdade”, pois mesmo nas sepulturas tornou acessível a toda a população.
syssítia (refeições comuns) foram uma autêntica paleolíticas se podem detetar diferenças entre Até há pouco, continuava-se a acreditar que
instituição em Esparta, enquanto os banquetes membros da mesma comunidade: sim, os ricos havia uma dieta apropriada para cada segmento
estavam na base da vida social tanto em Roma comiam melhor. Na obra Alimentação e Cultura, social. Tudo o que estava perto ou debaixo
como entre os povos germânicos e os senhores dos antropólogos Jesus Contreras e Mabel de terra – nomeadamente, os tubérculos –
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era comida de pobres, enquanto o que sulcava pas pode marcar a diferença numa campanha expansionismo púnico e romano não apenas
os céus – isto é, as aves – constituía manjar de bélica. Como dizia Napoleão, “um exército pelos metais que possuía como, também,
príncipes. Quando Leonardo da Vinci e Botticelli marcha sobre o estômago”. Além disso, muitos pelas suas salinas, em especial as da atual costa
serviram aos humildes trabalhadores florenti- confrontos foram desencadeados pelo controlo portuguesa.
nos os mesmos pratos requintados que reina- de bens comestíveis, os quais eram mesmo uti- O processo de colonização iniciado pelos
vam na corte renascentista, o seu restaurante, lizados como substitutos do dinheiro. Em épo- europeus no final da Idade Médica deveu-se, em
chamado Os Três Caracóis, teve de fechar por cas de crise, os romanos trocavam produtos por parte, à necessidade de obter especiarias, um
falta de clientes. sal, substância muito valiosa pela capacidade produto então considerado tão valioso como o
No século XVIII, muitos médicos juravam que para conferir sabor e conservar a comida. Por ouro. Quando os otomanos cortaram a via que
faisões e perdizes eram nocivos para a saúde do sua vez, as culturas pré-colombianas negocia- permitia aos europeus chegarem à Índia, Cris-
povo comum, quando, na realidade, os pobres vam com grãos de café, e os povos orientais tóvão Colombo propôs aos Reis Católicos uma
tinham falta de proteínas e os ricos sofriam de com folhas de chá. rota alternativa que conduziria à descoberta e
gota por comerem demasiada carne. Não é de conquista do Novo Mundo através do Atlântico.
estranhar que os grandes populistas da história, CEREAIS E ESPECIARIAS Passado algumas décadas, a luta pelo con-
como Júlio César ou Napoleão, se gabassem Na antiguidade, as zonas de produção de trolo do sal constituiu uma das causas para a
de comer o mesmo que o povo. cereais eram um objetivo prioritário para todas Guerra dos Oitenta Anos entre Espanha e as
Ao longo da história, a alimentação também as potências hegemónicas. Se a Trácia foi o Províncias Unidas dos Países Baixos. Do outro
foi determinante na guerra. Em primeiro lugar, celeiro de Atenas, o norte de África sê-lo-ia lado do Atlântico, a Lei do Chá, promulgada
é óbvio que o abastecimento adequado das tro- para Roma. A península Ibérica foi vítima do pelo parlamento britânico em 1773, seria a
Interessante 83
Um padeiro
Vacas sagradas, romano
batatas diabólicas
teve direito
A o longo da história, muitos
alimentos estiveram na mira
das autoridades religiosas. A classe a uma estátua
sacerdotal do antigo Egito vetou di-
versas variedades de peixe, enquanto
os pitagóricos da antiga Grécia re- segunda causa a abrir caminho à independência
pudiavam as favas, pois acreditavam dos Estados Unidos. A primeira, segundo A His-
que transmigravam as almas dos tória do Mundo em Seis Tragos, de Tom Stan-
defuntos. Muitos cultivos do Novo dage, seria a decisão dos colonos de não pagar
Mundo foram proibidos pela Igreja, uma taxa sobre bebidas espirituosas.
talvez alarmada pelo facto de esta- Ora, o que comiam os nossos antepassados
rem isentos do dízimo. As batatas mais remotos? Segundo os arqueólogos, os
foram consideradas transmissoras homens pré-históricos eram, fundamental-
de lepra e classificadas como diabó- mente, recoletores e caçadores, embora o seu
licas por crescerem debaixo de terra, regime alimentar incluísse também carniça de
tal como aconteceu com o alho e a diversos animais, insetos, lagartos e larvas. Por
cebola, no início da Idade Média. O outro lado, é possível que o canibalismo tenha
café foi proibido durante algum tem- feito parte de uma primeira etapa no desen-
po tanto pelo Islão como pelo cris- volvimento de todas as culturas.
tianismo, e o chocolate não era bem A partir do Neolítico, com a invenção da
visto, pois os fiéis consumiam-no agricultura, a alimentação passou a ser maio-
durante os jejuns, que ocupavam, ritariamente constituída por cereais. No estô-
naquela época, quase metade dos mago de Ötzi (a múmia masculina com cerca de
dias do ano. O catolicismo também 5300 anos encontrada congelada nos Alpes,
lançou uma cruzada contra o garfo, a 3200 metros de altitude, na fronteira entre
por ser um invento dos ortodoxos a Áustria e Itália), foram detetados vestígios
de Bizâncio. No século XVIII, os de uma espécie de pão ou pastel de escândea
católicos mais temerosos da ira de (uma qualidade de trigo durázio), além de
Deus ainda o consideravam um ins- carne de veado e de camurça.
trumento maligno. No século XX,
o poeta futurista e ideólogo fascista RECEITAS DA ANTIGUIDADE
Filippo Marinetti desistiu de comer O historiador francês Jean Bottero conseguiu
pasta por ser um prato alegadamente recuperar, através do estudo de três tabuinhas
pouco viril, e os comunistas avisa- de escrita cuneiforme da antiga Mesopotâmia,
vam que a Coca-Cola era prejudicial cerca de quarenta receitas de há 3700 anos.
para a saúde. Por sua vez, a feminista Predominam os assados e os caldos, com os
Charlotte Perkins Gilman afirmou vegetais como elemento essencial. A base da general Lúcio Licínio Lúculo (118–56 a.C.) se
que era preciso acabar com as cozi- alimentação egípcia, segundo a arqueóloga tornou mais célebre pelos seus opulentos ban-
nhas para alcançar a libertação da Phyllis Pray Bober, era a cevada, com a qual quetes do que pelas façanhas bélicas, o padeiro
mulher: no utópico mundo socialis- faziam pão e cerveja, bebida que já era popu- Marco Virgílio Eurisaces conseguiu que lhe
ta, os proletários comeriam nas casas lar na Suméria e que é referida na Epopeia de erguessem uma estátua digna de um senador.
do povo. Nos nossos dias, os hindus Gilgamesh, o poema mais antigo conhecido. Nas mesas dos nobres, não podiam faltar os
continuam a não comer carne de Na antiga Grécia, o sustento da maioria da molhos, que eram quase metade das receitas
vaca, enquanto judeus e islâmicos população tinha por base as verduras e os incluídas na primeira obra gastronómica da his-
rejeitam a de porco. Segundo o an- cereais; todavia, os ricos contratavam cozinhei- tória: o De Re Coquinaria, de Marco Gávio Apí-
tropólogo Marvin Harris, tais tabus ros profissionais que lhes preparavam pratos cio. De todos, o mais apreciado era o garum,
estão estreitamente relacionados de carne assada ou peixe, doces e tortas de uma espécie de pasta à base de vísceras fer-
com a realidade material dos luga- queijo. Segundo as obras teatrais de Aristófa- mentadas de peixe que tornou prósperos
res em que nasceram as referidas nes e a obra O Banquete dos Sofistas, de Ateneu os centros onde se produzia.
religiões. Os porcos são omnívoros de Náucratis, a quantidade de comida servida aos Por sua vez, a comida dos plebeus era muito
e, por conseguinte, a sua criação é convidados era desmesurada, de modo que mais modesta: favas, lentilhas, grão e queijo
anti-económica numa terra tão erma não é de estranhar que fossem os gregos a eram os principais alimentos. Durante muito
como o Médio Oriente. As vacas inventar as primeiras dietas. tempo, um dos pratos mais típicos do povo
são indispensáveis para os trabalhos Claro que, quando se fala em excessos à romano foi a puls, uma papa à base de espelta.
agrícolas na Índia, pelo que a sua sal- mesa, os helénicos foram largamente ultra- A verdade é que a fast food não é uma invenção
vaguarda se transformou numa ques- passados pelos romanos, que chegavam a gas- do mundo atual. A maior parte das casas roma-
tão sagrada. Não é por acaso que tar mais, nos mercados de escravos, por um nas não dispunha de cozinha, pelo que era
também o Senado romano perseguia cozinheiro reputado do que por um bom gla- habitual comer na rua o que se comprava já feito.
em épocas de penúria quem comes- diador. Em Roma, a alimentação adquiriu uma Com a chegada dos bárbaros, a elite romana
se bovinos aptos para a agricultura. importância extraordinária e deu origem a ver- começou a consumir mais pratos à base de
dadeiros paradoxos na hierarquia social. Se o carne, mas foram os povos germânicos que aca-
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Sem fome. Segundo alguns
historiadores, a Idade Média
não foi a época de carência
Cães assados?
de que é costume falar-se.
A alimentação era variada
e não faltavam banquetes. M uitos pratos que estiveram na
moda no passado parecem-nos
hoje pouco apetecíveis. Os romanos
adoravam o garum, esse molho espesso
que combinava vísceras fermentadas
de peixe com vinho, vinagre, azeite,
sangue, pimenta e mel. O historiador
Pierre Tallet recorda que foi encon-
trada carne de rato no estômago de
alguns dos corpos mumificados pelos
antigos egípcios. Na obra Unmentio-
nable Cuisine, do veterinário e epide-
miologista norte-americano Calvin W.
Schwabe, lê-se que muitos povos, dos
romanos aos astecas, apreciavam carne
de cão, algo que continua a acontecer
noutras regiões do planeta, como a
China ou o Vietname. A verdade é que
os padrões alimentares de algumas
culturas exóticas nos horrorizam; por
sua vez, os nossos petiscos são abo-
minados noutros países. Pense nos
caracóis, por exemplo. Os aborígenes
australianos consideram alguns vermes
deliciosos, e os insetos fazem parte da
alimentação de alguns países asiáticos.
Antes de olhar com desprezo tais
alimentos, recorde que a alimentação
ocidental está sujeita a preconceitos
semelhantes. Muitos povos acham
repugnante comer “fungos, pedras e
secreções rançosas de glândulas ma-
márias”, por mais que os apresentemos
à mesa sob nomes mais atraentes, co-
mo cogumelos, sal e queijo...
AGE
baram por se adaptar à alimentação baseada tados à mesa dos nobres. Segundo os estudos com as crises de fome, como demonstra o facto
em cereais. A época das invasões foi muito de Shelagh e Jonathan Routh, nos esboços de de, em meados do século XIX, uma doença da
dura para os mais humildes, e muitos sobre- A Última Ceia, Leonardo pintou as especialida- batateira ter obrigado meia Irlanda a emigrar.
viveram comendo raízes e frutos silvestres. des consumidas nas cortes renascentistas: cor- Na época contemporânea, a revolução agrí-
Contudo, é falso o mito de que a Idade Média deiro com natas, quadris de rã com verduras e cola e industrial e o mercado global permitiram
foi uma extensa etapa de constante carência. coxa de galeirão com flores de curgete. Pou- a democratização de muitos produtos que eram
Segundo Massimo Montanari, na alta Idade cas décadas depois, triunfava na península Ibé- exclusivos dos ricos no passado. Contudo,
Média, a alimentação era rica e variada, e a rica o manjar-branco, uma mistura de frango, segundo numerosos especialistas, tais mudan-
carne ainda não era um privilégio. açúcar, leite, arroz, especiarias e amêndoas. ças também escondem ameaças inquietantes
A península Ibérica, em particular, beneficiou e podem mesmo colocar em dúvida a índole
dos novos produtos que os árabes trouxeram, UMA DESCOBERTA FUNDAMENTAL socializadora que caracteriza o ser humano
como o açafrão e a cana-de-açúcar. Quanto A descoberta da América foi fundamental desde tempos imemoriais. Segundo o histo-
ao arroz, não se sabe se foi introduzido por para melhorar as condições de vida na Europa, riador Fernandez-Armesto, invenções como a
muçulmanos ou bizantinos, mas o seu cultivo embora o milho e a batata fossem considera- do micro-ondas, por exemplo, conduziriam ao
prosperou rapidamente; em Valência, por dos, durante muito tempo, comida de selva- retrocesso evolutivo, pois essa “ferramenta
exemplo, tornou-se o principal alimento dos gens, pelo que estavam reservados ao gado e diabólica” devolve-nos à era em que o homem,
pobres, que já comiam, no século XVI, um aos escravos. O preconceito estava tão arrei- ainda desconhecedor do fogo, comia isolado
prato semelhante à moderna paella. gado que, no século XVIII, Frederico II da Prús- dos seus semelhantes. Efetivamente, cada pes-
Segundo o historiador Fernand Braudel, foi sia teve de ordenar ao seu exército que obri- soa pode, hoje em dia, aquecer naquele eletro-
no século XVII que a Europa passou a sofrer gasse os camponeses a cultivar os produtos doméstico um prato pré-cozinhado comprado,
seriamente de fome. A alimentação, naqueles americanos. Inicialmente, o tomate foi apenas e consumi-lo afastado dos outros membros da
anos, era tão precária que também era dado utilizado como planta ornamental, mas acabou sua comunidade. Assim, a alimentação poderia
vinho às crianças, pois as caloriais que contém por triunfar na alimentação de muitos países. perder, após várias dezenas de milhares de anos,
eram essenciais para o seu sustento. Claro que Por sua vez, a introdução de cultivos mais nutri- a sua função socializadora.
nunca deixaram de ser servidos pratos requin- tivos do que o trigo foi essencial para acabar D.M.
Interessante 85
História
O império
do SUBORNO
Filhos de Roma para o bem e para o mal, os países
ocidentais não deixam de ser palco de uma corrupção
semelhante à que se verificava no império, onde seria
uma das principais causas para o seu declínio e queda.
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Interessante 87
Tudo tem um limite. “Até quando,
Catilina, abusarás da nossa paciência?”
Foi esta a famosa pergunta de Cícero
ao corrupto político, sentado à direita
neste quadro de Cesare Maccari.
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A crise de 33
H ouve um grande crash da eco-
nomia no início da nossa era, à
semelhança do que ocorreu em 1929.
Os protestos contra os abusos pratica-
dos pelos prestamistas tinham-se tor-
nado um clamor tão avassalador que o
imperador Tibério decidiu aplicar um
estrito controlo para que se voltassem
a respeitar as normas e os limites de
juros que tinham sido estabelecidos
por Júlio César. Patrícios e mandatá-
rios, quase todos envolvidos na burla,
conseguiram uma moratória de ano
e meio para receber os pagamentos
pendentes antes do regresso à lega-
lidade. Sem crédito, os milhares de
devedores foram obrigados a vender
propriedades ao desbarato, pelo que
os preços caíram a pique e o sistema
entrou em colapso. Para poder sair do
berbicacho, Tibério não teve outro
remédio senão conceder empréstimos
limpos, à custa da sua fortuna pessoal.
Contudo, não hesitaria em utilizar es-
tratagemas para se ressarcir e recupe-
rar solvência; por exemplo, à custa de
Sexto Mário, o homem mais rico da
Hispânia. O dono de todas as minas
de Mons Marianus (denominação da
época e origem etimológica da atual
MARY EVANS PICTURE LI / AGE
de verbas, corrupção, extorsão, prevaricação, quentes províncias adquiririam. Faziam-se de as guerras e os seus negócios. No fim de con-
tráfico de influências, subornos… Estratage- desentendidos tanto o imperador como os res- tas, Roma era o que era graças às conquistas:
mas que se tornavam mais fáceis com a ajuda tantes figurões capitolinos das negociatas que um bolo enorme do qual o império em si e cente-
de um bom padrinho, um alto cargo que ser- prosperavam na Gália, na Hispânia ou na Trá- nas de intermediários retiravam grossas fatias.
visse para proteger e encobrir. Por isso, era cia, relacionadas com a cobrança de impostos Por lei, os espólios de guerra eram para o estado,
muito importante a retórica: saber apresentar- ou bens. Foi assim que o clientelismo e a cor- mas, na prática, apenas uma porção chegava
-se e exprimir-se bem era essencial para ganhar rupção acabaram por se aplicar não apenas a aos cofres imperiais, pois a maior parte já fora
a confiança desse senhor importante, que pessoas como, também, a cidades, regiões ou previamente distribuída pelos altos funcioná-
poderia conceder favores e fazer vista grossa, nações no seu conjunto. rios do exército.
pois ele próprio enriqueceria ainda mais e por- Esses lucros eram posteriormente aumenta-
que também tinha muito a esconder. Assim, OBTER O FAVOR DO IMPERADOR dos com os que obtinham com os prisioneiros,
a única opção era conseguir medrar entre as Patrícios e os magnatas mais opulentos dos quais, em conivência com os comandos
classes altas. Para os ricos e poderosos, nada apressavam-se a conseguir esses cargos, nos militares e outros de menor patente, tiravam
melhor do que merecer a atenção do tesou- quais poderiam orientar-se à vontade. Obter o um bom rendimento ao vendê-los como escra-
reiro imperial, o qual, a troco de uma boa spor- favor imperial exigia um grande investimento, vos ou pedir resgates: “Passem para cá os
tula (gratificação), autorizava a saída de fun- pois era sobretudo conquistado através do denários e não se fala mais disso...” A guerra
dos para esta iniciativa ou aquela construção, evergetismo: gastar à tripa-forra em obras e sempre foi, e continua a ser, um negócio muito
que custavam metade do que era declarado. edifícios públicos, promover espetáculos, orga- lucrativo, abençoado e exaltado por pátrias e
Tão suculento jogo deu origem a uma ver- nizar festas… Isto sucessivas vezes, até que o religiões. Quem iria queixar-se de um general
dadeira rede de influências e recomendações, imperador, encantado com as iniciativas que ou um patrício abastado que se preparava para
na qual havia especialistas, os proxenetae, que mais elogiavam a sua liderança, acabava por nova conquista em nome da Roma aeterna?
traficavam literalmente os favores e as cunhas atribuir um cargo importante ao postulante. Ninguém iria questionar a honestidade desse
junto dos mais importantes. Era uma imensa Chegados a essa posição de poder, sobretudo patriota, pelo menos em voz alta, e muito
teia de aranha que se ampliava em simultâneo os equites (a ordem equestre romana ), ficavam menos meter o nariz nas negociatas em torno
com o império, favorecida pelo estatuto quase com acesso às práticas corruptas mais suculen- do fornecimento de armas, roupas, alimentos...
de empresa privada que as conquistas e conse- tas e apetecíveis de todas: as relacionadas com Custavam uma fortuna, claro, pois os preços
Interessante 89
Nos bairros Incorruptível. O cônsul Mânio Cúrio
Dentato (século III a.C.), célebre pela
sua honestidade, recusa a tentativa
pobres, de suborno por parte de uma delegação
do povo itálico dos samnitas.
sucediam-se
os despejos
estavam inevitavelmente inflacionados. Havia
também as terras por conquistar e roubar, as
cidades a destruir e reconstruir, os negócios, as
estradas e os aquedutos por fazer... Subornos
aqui e acolá, dívidas por todo o lado, fundos
imperiais extraviados, mas... tudo pela pátria!
Ave, Imperator!
IMPOSTOS À DISCRIÇÃO
Era um verdadeiro achado, pois o financia-
mento de conflitos exonerava os equites de
pagar impostos, base económica estatal que
vinha de tempos antigos e que, em Roma, se
consolidava em fórmulas que, em alguns casos,
ainda se mantêm. O termo publicum aludia aos
impostos, de forma geral, e tributum (que vem
de “tribo”) referia-se às taxas sobre as terras.
Durante os primeiros séculos, os impostos
cobravam ao cidadão romano um por cento
dos seus rendimentos em tempo de paz, e 3%
em anos de guerra. Depois, com a consolida-
ção do império, o sistema tornar-se-ia mais
complexo e incessantemente mais corrupto.
O Senado decidia diretamente a aplicação
ou dedução fiscal, consoante as circunstâncias
e os casos, quer se tratasse de pessoas indi-
viduais ou de propriedades. Nas províncias,
havia officinae, para gerir as taxas nas prin-
cipais cidades, mas, em zonas rurais, eram
contratados publicani ou serviços privados,
que aumentavam por sua conta as quantias a
cobrar e estavam disponíveis para aceitar bons
subornos. Claro que, para aqueles que queriam preços inflacionadíssimos, eram também alvo eram os patrícios que se mantinham fiéis à
pagar menos do que o devido, havia paraísos de frequentes incêndios e derrocadas. Aliás, riqueza tradicional e de maior estatuto: as
fiscais onde esconder tesouros e dinheiro. Foi o jurista Ulpiano referia que, em Roma, havia propriedades rurais. Nos tempos da República,
o caso, por exemplo, da ilha grega de Delos, incêndios todos os dias. tinham sido exploradas com recurso à pro-
no século II a.C., que dispunha de uma verda- Tal era a realidade da maioria dos cidadãos, dução intensa e barata proporcionada pelos
deira infraestrutura especializada. muito distante da vida na luxuosas villas que escravos, mas, à medida que o império se
Neste contexto, banqueiros e prestamistas periodicamente emergem nas escavações impunha e as propriedades aumentavam em
desempenhavam um papel primordial, o que arqueológicas. Era dessa diferença em relação extensão, tornou-se cada vez mais comum o
justificava a sua eterna má fama. Plauto escre- ao cenacula (como se denominava cada casa das arrendamento a colonos. Essas herdades che-
veu: “Na realidade, meteria todos no mesmo insulae), num dos quais vivia, que se queixava gariam a funcionar, no que se considera ser a
saco: donos de prostíbulos e banqueiros. Pelo o poeta Marcial. Outro poeta, Juvenal, escre- semente do feudalismo, quase como entidades
menos, os primeiros têm o seu negócio num veria: “O encarregado do edifício está diante autónomas, com o seu próprio exército e à mar-
lugar oculto, mas vós estais instalados no meio de uma casa prestes a desabar e, enquanto gem de muitas leis. É de supor que os abusos
do fórum.” Estavam por detrás de muitos dos procura tapar uma comprida fenda, deseja-te dos senhores, como depois se tornaria patente
habituais abusos, de fraudes e mesmo de des- sonhos felizes.” na Idade Média, não tinham limites no que se
pejos que se verificavam nas insulae, os prédios O encarregado era uma personagem fun- refere à cobrança de impostos e à expoliação
onde viviam os mais pobres. Parece familiar? damental. Era por ele que passavam todas as e expulsão dos próprios colonos.
extorsões dos proprietários, sobretudo nobres Este descomunal descalabro da legalidade,
AUTÊNTICOS BAIRROS DE LATA e, cada vez mais, escravos libertos transforma- que seria uma das feridas mais graves no fim da
As insulae inundaram Roma e outras grandes dos em novos ricos, dados aos excessos e à civilização romana, foi alvo de tentativas para
cidades, sendo objeto de constante especula- ostentação, como um tal Máximo que, segundo o travar, através de sucessivas leis e medidas que
ção: erguidas graças a licenças “compradas”, se conta, chegou a ser o maior proprietário de pouco fizeram ou podiam fazer. Ainda na Repú-
construídas com um mínimo de qualidade e casas da cidade de Roma. blica, o suborno foi classificado como delito.
escassa salubridade, vendidas ou arrendadas a Igualmente dados ao luxo e à ostentação Em 149 a.C., antes do fim da última guerra
90 SUPER
Queda das alturas
A Roma que sobreviveu à gravíssi-
ma crise do século III já era um
mundo ferido de morte. As reformas
do consciencioso imperador Diocle-
ciano para tentar impor sensatez e
repor a justiça (chegando mesmo a
estabelecer uma lei de preços máxi-
mos) diluíram-se, após a sua morte,
no mar incontrolável em que se tinha
transformado o coeso e intensamente
legislado aparelho estatal, fortaleci-
do por Otávio Augusto três séculos
antes. Naturalmente, as causas para a
queda de Roma, no século V, são vá-
rias, mas a corrupção está por detrás
de todas elas e é a inequívoca prota-
gonista de um desastre que custaria
ao Ocidente quinze séculos ou mais
de atraso. O enovelado esqueleto bu-
rocrático do século IV já não era mais
do que uma rede à mercê da cobiça e
dos abusos. Tudo se comprava e ven-
dia: as instituições e os cargos públi-
cos, o exército, os cargos eclesiásticos
(o cristianismo viria depois a assumir
o sistema), os juízes, os impostos... O
poder imperial, esfiapado por infini-
tos canais privados, esfumava-se em
corruptelas que se tornariam norma.
Tudo preocupantemente semelhante
ao atual panorama. Basta procurar
nos mesmos sítios...
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Interessante 91
História
Para lá do LIMES
O termo “bárbaros” foi criado pelos gregos
e adotado pelos romanos para se referir
àqueles que habitavam fora das suas fronteiras:
povos estranhos que, pouco a pouco,
conseguiram impor-se.
92 SUPER
Interessante 93
O Reno era uma fronteira
entre os bárbaros e a civilização
S
e saíssemos à rua para fazer um questão dos bárbaros nos poemas homéricos, conservadoras do Senado, embora aprendes-
inquérito entre os transeuntes e lhes e ele próprio dava a resposta: dado que o próprio sem em segredo grego e mandassem os seus
falássemos dos bárbaros, surgiria na uso de “helénicos” demorou a generalizar-se, filhos aprendê-lo. Triunfaram de imediato a
cabeça de muitos uma série de ima- o mesmo se passou com o de “bárbaros”, tragédia e a comédia, e também a filosofia e
gens que, na mentalidade coletiva do Ocidente, entendido como conceito oposto ao primeiro. a história.
lhes estão associadas desde há mais de dois Há muito que essas dimensões do pensa-
milénios. Poderia acontecer que algum dos CULTURA E BARBÁRIE mento grego influenciavam os setores elitistas
inquiridos recordasse o bando de cabeludos “Bárbaros” correspondia, antes de mais, à de Roma, mas a conquista total acelerou o
que surge, ocasionalmente, em filmes ou em ideia de alteridade. Aplicava-se especialmente processo. Nessa bagagem cultural, seguiu
anúncios televisivos. Outros poderiam indicar a aos povos que viviam a norte da Grécia, em também o conceito de barbárie. Nessa altura,
palavra “vândalo” como sinónimo de selvagem particular aos citas, mas também a grupos com o século II a.C. bem avançado, os romanos
e mesmo de desordeiro. É provável que a maioria muito diferentes. Heródoto, por exemplo, já tinham conquistado boa parte do Medi-
os relacionasse com a “destruição de Roma”. mostra-nos os persas como quintessência terrâneo oriental, do norte de África e do sul
Os bárbaros estão colados, na nossa psicologia da barbárie, em oposição à civilização encar- da Europa, pelo que o termo, convertido para o
coletiva, ao fim do mundo romano. Talvez isso nada pelos helénicos (a que, depois, os roma- latim barbarus, lhes dava muito jeito. Adotaram
aconteça porque a cultura ocidental deve muito nos chamariam “gregos”). De certo modo, a o conceito dos gregos, mas a sua aplicação
a Roma e porque os intelectuais europeus se decoração escultórica do Parténon seria uma manifestar-se-ia, neste caso, num contexto
interrogaram insistentemente, desde o Ilumi- representação dessa imagem da luta entre claramente imperialista.
nismo, no século XVIII, sobre as causas da queda civilização e barbárie.
do império romano do Ocidente, entre as quais A ideia da submissão das comunidades a um FRONTEIRA FÍSICA E MENTAL
os bárbaros eram uma das mais recorrentes. soberano era, de facto, uma das características Com o tempo, o mundo romano consolidou-
Como é bem sabido, a história, tal como os do bárbaro, segundo a tese desenvolvida por -se como um imperium e, para além do limes
ocidentais a entendem, surgiu na Grécia clás- Aristóteles, um século depois, no primeiro (o limite, a fronteira), o que havia, aos olhos de
sica. No século V a.C., os primeiros historiadores volume da Política. Nele, insistia que os bár- Roma, era um território alheio, povoado por um
faziam perguntas sobre os bárbaros sempre baros tinham uma tendência natural para o conglomerado de povos estranhos; em suma,
de uma perspetiva helenocêntrica. Pensemos servilismo em relação aos déspotas. Esse jogo o Barbaricum. Quando o grande poeta Ovídio
na própria palavra “bárbaro”. Tem uma etimo- de permanentes contraposições criava tópicos foi desterrado para as proximidades do que
logia onomatopeica: “barbar”, pois era assim que redundaram, finalmente, numa série de conhecemos por mar Negro, queixava-se, nas
que soavam, aos ouvidos dos gregos, as línguas elementos que tinham a ver com a língua, o suas Tristia, do sítio em que tinha de viver. Nin-
daqueles povos do norte; para eles, pouco mais aspeto e os costumes. guém o compreendia, e não conseguia encon-
do que sons guturais. De modo que, desde o Quando a república romana conquistou a trar um único livro: “Aqui, o bárbaro sou eu,
início, a palavra “bárbaro” teve um sentido Grécia, em meados do século II a.C., as ideias pois ninguém me entende.”
depreciativo e, como é óbvio, descaradamente que o pensamento helénico tinha vindo a Décadas depois, Tácito divulgaria inúmeros
helenocêntrico. configurar passaram para a nobilitas romana. lugares-comuns entre os leitores das elites
O vocábulo deve ser entendido em termos de Como exprimiria, de forma poética, Horácio, romanas, através do seu tratado sobre os ger-
alteridade, entre o “nós” dos gregos e o “eles” algum tempo depois, a Grécia foi conquistada, mânicos, no qual pormenorizava, em parte com
aplicado a esses povos (aos olhos dos helénicos) sim, mas foi ela que seduziu, que domou o base em informações em segunda e terceira
incultos e selvagens. Tucídides, no início do seu conquistador. A Roma chegavam esculturas, mão, os nomes, os costumes militares, políticos
relato sobre a Guerra do Peloponeso, inter- pinturas, o que hoje designaríamos por e sexuais dos numerosíssimos grupos que inte-
rogava-se sobre a causa para mal se tocar na “modas”, que escandalizaram as mentes mais gravam o diversificado panorama que os roma-
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nos designavam por Germani. Esses tópicos
sobre os bárbaros que viviam para além das
fronteiras do Reno e do Danúbio foram aceites
sem discussão.
Poucas décadas depois de Tácito escrever o
seu ensaio sobre os germânicos, o imperador
Adriano ordenou a construção da muralha e do
conjunto de fortes e guarnições militares que
conhecemos hoje, precisamente, como Mura-
lha de Adriano, no norte da atual Inglaterra.
Se o leitor já visitou a muralha, é provável que
tenha tido a perceção visual da ideia de alteridade
na qual os romanos tanto insistiram: “eles” do
lado de lá; “nós” do lado de cá. Contudo,
impõem-se, pelo menos, dois esclarecimentos.
O primeiro tem a ver com os registos arqueo-
lógicos; o segundo, com os próprios textos.
Por um lado, sabemos, através da arqueo-
logia, que romanos e bárbaros não viveram
isolados. Pelo contrário. A fronteira era, por
vezes, um espaço permeável, através do qual Caminho sólido. Costuma considerar-se
se comerciava e em que havia interligações a “passagem do Reno” como o início das
sociais e culturais. De facto, sabemos que, no invasões bárbaras: a entrada em território
norte da Europa, se importavam objetos de imperial de numerosos grupos germânicos
luxo romanos. Algumas jazidas permitiram no último dia de 404, aproveitando a superfície
comprovar que os líderes e as oligarquias gelada do rio (aqui, à passagem por Estrasburgo).
Na realidade, as migrações tinham começado
bárbaras adquiriam anéis, alfinetes e fivelas três décadas antes, através do Danúbio.
de cintos que faziam parte da linguagem sim-
AGE
Interessante 95
A “queda
de Roma”
deveu-se
a múltiplos
fatores
bólica dos diferentes escalões da sociedade
e da milícia romanas, entendidos como sinais
de prestígio, de poder. Isso permite-nos com-
preender que o que se designa, habitualmente,
por “invasões” era, por vezes, a procura de um
lugar seguro dentro do império, ou de um posto
para os chefes dentro do sistema militar
romano.
IMAGEM DISTORCIDA
Em segundo lugar, é preciso dizer que as
informações que temos sobre os bárbaros na
época imperial romana dependem de textos
atribuídos a autores que escreviam em grego
ou latim. Isso significa que a visão que possuí-
mos dos bárbaros resulta do que conseguimos
observar através de lentes ou filtros que são
romanos, politicamente falando (quer fossem
textos em grego ou latim), isto é, escritos no
seio do império.
Por esse motivo, a imagem que nos chegou
do bárbaro está deformada, o que representa,
naturalmente, um desafio para os historiado-
res. Uma das discussões científicas mais impor-
tantes da atualidade reside na natureza desses
textos e em que medida refletem, ou não, a Breve triunfo. Alarico entrou em Roma
em agosto de 410. Morreria ainda nesse ano,
estrutura dos grupos que surgem referidos
ao tentar assaltar a costa do norte de África.
pelas fontes como Gothi ou Franci, por exemplo.
Desde finais do século II, os imperadores tive-
ram de enfrentar, com maior ou menor êxito,
as infiltrações de diferentes grupos bárbaros PACTOS, MIGRAÇÕES E BATALHAS vezes, o império tinha conseguido vencê-lo nos
em solo imperial. Na última centúria do império O certo é que os godos acabaram por esta- campos de batalha e travado tais exigências.
do Ocidente, o século V, tudo se complicou. belecer-se entre os romanos. Quando Teodósio Finalmente, porém, Alarico entrou em Roma,
É o que habitualmente se designa por “invasões morreu, em 395, o império foi oficialmente no verão de 410.
bárbaras”. Pensa-se geralmente que a travessia dividido em duas partes (partitio), a oriental e a As deslocações populacionais do século V
por vários desses grupos de um Reno gelado, ocidental, governadas pelos seus filhos Arcádio surgem diante dos nossos olhos dotadas de
no último dia do ano 406, foi algo semelhante e Honório, respetivamente. Nos Balcãs, os godos uma grande complexidade. Não se podem
à “mãe de todas as invasões”, mas a questão começaram a aglutinar-se em torno de Alarico. limitar a um mapa com cores e setas, ou a uma
não é assim tão simples. Os problemas nas fronteiras do norte multipli- lista de guerras, embora sejam necessários
Por exemplo, três décadas antes, em 376, caram-se, e as fontes dão conta de numerosas para uma primeira abordagem. Houve violência,
outro conglomerado de povos – tervíngios e movimentações populacionais, por vezes fruto obviamente, mas também negociações que
grutungos, entre outros – atravessara o Danú- de pactos, como aconteceu com a entrada de podemos entrever nos textos, que – não o
bio, o outro grande rio da fronteira setentrional. suevos, vândalos e alanos na Hispânia. Tinham esqueçamos – provêm do lado romano.
Os textos romanos englobavam tais grupos no atravessado o Reno em 406, penetrando nas A história do século V está cheia de bata-
termo Gotthi/Gothi, godos. Porém, não se tra- Gálias, e chegaram às províncias hispânicas em lhas, como a que representou a derrota de
tou, na realidade, de uma invasão, mas conse- 409. Contudo, temos indícios que permitem Átila perante uma coligação articulada por
quência de um pacto com o imperador Valente, pensar que a sua entrada na península resultou Aécio, o principal general do imperador Valen-
que desejava mão de obra barata para os cam- de um pacto com altas patentes militares roma- tiniano III, em meados do século, mas está
pos e tropas auxiliares para a sua projetada nas que se tinham sublevado contra Honório. também repleta de pactos, como o estabe-
invasão do império vizinho, o persa sassânida. Enquanto o governo romano evacuava da lecido pelo próprio Aécio com outros povos
Dois anos depois, o próprio imperador e milha- própria Britânia (a atual Grã-Bretanha), por bárbaros, precisamente para travar Átila,
res de soldados do exército imperial das provín- volta de 410, Alarico há muito instava esse ou os que o governo de Honório negociou
cias orientais seriam aniquilados pelos godos, mesmo governo a conceder-lhe subsídios, com os godos para os estabelecer no sul da
na batalha de Adrianópolis. terras, pagamentos e comandos militares. Por Gália, por volta de 418.
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Os godos
e o saque de Roma
A luz mais brilhante do mundo
apagou-se.” Foi na Palestina
que Jerónimo escreveu estas dra-
máticas palavras, e acrescentava
que “todo o mundo pereceu numa
única cidade”. Estava muito bem
informado sobre o que sucedia em
Roma. A que se referia com tão
grandiloquentes expressões? Em
agosto do ano 410, Alarico e as suas
tropas entraram na cidade de Ro-
ma. Durante três dias, submeteram
a capital do império a pilhagens e
violações, episódios referidos com
horror nas trocas epistolares entre
Jerónimo e os seus contactos na
cidade. Nessa altura, há década e
meia que o império romano esta-
va oficialmente dividido em duas
partes. Alarico era um chefe dessa
amálgama de povos que os textos
da época identificavam como Got-
thi ou Gothi, godos. Na realidade,
tinham sido situados pelas fontes,
anos antes, a norte do Danúbio,
com líderes como Atanarico ou
Fritigerno, entre outros, e com no-
mes como tervíngios e grutungos,
para referir apenas dois dos grupos
que tinham entrado no imperium
atravessando o rio, em 376, com
autorização do imperador Valente.
Os incumprimentos das autori-
dades romanas, descritos com
ALAMY
Interessante 97
Queda cinematográfica. Os historiadores
atuais preferem falar de uma desintegração lenta
do império, mas até há pouco predominou a imagem
de um derrube violento pelos bárbaros. Foi o caso
ALBUM
do filme A Queda do Império Romano (na foto).
A cultura popular fala de batalhas, das suas cartas de algumas velhas bárbaras, a
que chama “bêbedas” e “desavergonhadas”.
mas esquece pactos e alianças Noutra ocasião, quando um amigo lhe pede
para compor um poema em honra de Vénus,
Sidónio nega-se a escrevê-lo, alegando que lhe
caram-se ao serviço da construção de mitos DAS HORDAS AOS REGNA é difícil dedicar versos a Vénus no mundo em
sobre a origem das nações europeias, olhando Dado o crescente protagonismo dos bárba- que vive, rodeado de “hordas de cabeludos e
para aqueles reinos bárbaros surgidos na der- ros na geoestratégia imperial, não é de estra- comilões”, que falam línguas bárbaras e derra-
radeira fase da história romana. nhar que, à medida que o tempo passava, mam manteiga rançosa nas cabeleiras.
No Romantismo, no século XIX, não foram aumentassem as referências a esses povos. Para além do lugar-comum, a ideia de alte-
poucos os filósofos, historiadores, filólogos Algumas fontes deleitam-se com lugares- ridade impregnava a mentalidade desses
e literatos que participaram numa espécie -comuns como as compridas cabeleiras, a potentados de tradição romana, que de todas
de febre coletiva para detetar essas supostas embriaguez ou o mau odor. Enquanto o as maneiras não tiveram outro remédio senão
origens. O historicismo e o positivismo de boa império romano do Ocidente enlanguescia, já negociar com os chefes bárbaros. Eles (os oli-
parte desse século, e também do século XX (e, bem avançado o século V, a aristocracia de garcas como Sidónio e seus companheiros de
por vezes, do XXI), insistiram na mesma ideia. tradição romana procurava situar-se no novo geração), os seus filhos e os filhos dos seus
Angli, Saxoni, Alammanni, Franci, Gothi, entre panorama político. Na Hispânia, graças à filhos acabariam por fazer parte de um sistema
outros, emergiam como espectros de um pas- crónica do bispo Hidácio, conhecemos tanto político diferente. Já não se tratava do império
sado arcaico que fazia remontar à noite dos tem- pactos como conflitos entre as comunidades romano, mas dos regna: os “reinos bárbaros”,
pos a origem das poderosas nações europeias. da Gallaecia e os suevos, ali instalados desde cuja existência não poderia, de modo algum,
Este tipo de aberrações conduziu, por exem- o início do século. Na Gália, os godos (depois explicar-se sem a colaboração dos herdeiros
plo, à busca de uma identidade germânica nos conhecidos por “visigodos”), estabelecidos da antiga aristocracia romana.
materiais arqueológicos. A visita do nazi Himmler no sul, ou os burgúndios, no corredor do S.C.
a Espanha, no início da década de 1940, numa Ródano, constituíam as novas referências N.R. – Este artigo é a introdução à última edição
caça obsessiva de “tesouros” e “mistérios” políticas para os oligarcas de tradição romana, especial da SUPER, dedicada aos povos bárbaros
mas também dos supostos materiais arqueo- habituados há gerações a servir os interesses e à sua complexa relação com o império romano,
lógicos que justificariam o pangermanismo, é e a administração imperiais. na qual são abordados em pormenos todos os
talvez um dos exemplos mais sombrios. Um deles, Sidónio Apolinar, queixa-se numa temas aqui tratados.
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HISTÓRIA
| BÁRBAROS |
A destruição do império romano
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