Você está na página 1de 162

José Roberto Fortes Palau

A Força Salvífica da Mortificação


Proposta de uma nova reflexão teológico-pastoral acerca da
mortificação cristã

Tese de Doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor pelo Programa de Pós-
Graduação em Teologia da PUC-Rio.

Orientador: Dr. Alfonso Garcia Rubio

Rio de Janeiro, março de 2007


6

Resumo

Palau, José Roberto Fortes; Rubio, Alfonso Garcia. A força salvífica da


mortificação. Rio de Janeiro, 2007. 238 p. Tese de Doutorado –
Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.

A presente tese traz como título: “A força salvífica da mortificação –


Proposta de uma nova reflexão teológico-pastoral acerca da mortificação cristã”.
Ela aborda toda a problemática que envolve a teologia e a práxis da mortificação
cristã, desde a origem da palavra ascese na filosofia antiga greco-romana,
passando pelo surgimento da teologia da mortificação nos antigos manuais de
ascética e mística, até a proposta de uma nova reflexão teológico-pastoral sobre o
assunto. Esta pesquisa contribuirá primeiramente para a identificação e
compreensão dos equívocos que marcaram tanto a teologia como a práxis da
mortificação. Notadamente a influência do dualismo neoplatônico e do estoicismo
na antropologia cristã, que resultou na visão dualista da realidade e numa
espiritualidade marcada pelas penitências exageradas. Esta tese irá propor como
solução, para restaurar o verdadeiro sentido da mortificação, uma nova reflexão
teológica alicerçada numa antropologia de integração. Esta nova concepção
antropológica também considera a pluralidade de dimensões do ser humano,
porém é capaz de integrá-las sempre na unidade fundamental que é a pessoa
humana concreta. Evita, desse modo, o erro do passado, quando a mortificação foi
reduzida a penitências corporais. Mortificação era sinônimo de disciplina do
corpo. A partir da antropologia de integração, mortificação será ‘disciplina da
pessoa’, para vencer o homem velho, o “Adão pecador”. Essa pesquisa também
abordará a contribuição do pensamento e da vida de Madre Maria Teresa de Jesus
Eucarístico a este processo de recuperação do verdadeiro sentido da mortificação
cristã. Por fim, ainda contribuirá esse trabalho para o resgate do valor positivo da
disciplina, como imperativo antropológico para a vida cristã.

Palavras-chave
Salvação, Mortificação, Discípulo.
8

Sumário

Introdução geral 15

Parte I – Mortificação: origem, história e descrédito 21


1. Mortificação: origem e história do termo 22
1.1. Ascese: origem, significado e desenvolvimento 23
1.1.1. Ascese na filosofia greco-romana 24
1.1.1.1. Pitagorismo 30
1.1.1.2. Platonismo 32
1.1.1.3. Epicurismo 34
1.1.1.4. Estoicismo 36
1.1.1.5. Neopitagorismo 38
1.1.1.6. Neoplatonismo 39
1.2. Ascese na fé bíblica 41
1.2.1. Antigo Testamento 41
1.2.2. Judaísmo palestinense 43
1.2.3. Novo Testamento 44
1.2.3.1. Evangelhos 44
1.2.3.2. Ensinamento Paulino 45
1.2.3.2.1. Inimigos da ascese cristã 45
1.2.3.2.2. A ascese em metáforas esportivas 47
1.3. Ascese na história da Igreja 48
1.3.1. Época patrística 49
1.3.2. Época medieval 56
1.3.3. Época moderna 60
1.4. Mortificação: uma dimensão da ascese 63
1.5. Conclusão 64

2. Mortificação: teologia e prática 68


2.1. Teologia da mortificação 68
2.1.1. Para vencer as conseqüências do pecado original 70
9

2.1.2. Para vencer as conseqüências dos pecados pessoais 72


2.1.3. A luta contra o mundo 73
2.1.4. A luta contra as tentações do demônio 74
2.1.5. Desapego para alcançar a perfeição 75
2.2. A prática da mortificação 76
2.2.1. Mortificação do corpo 77
2.2.1.1. Modéstia do corpo 77
2.2.1.2. Modéstia dos sentidos 78
2.2.2. Mortificação dos sentidos internos 79
2.2.3. Mortificação das paixões 80
2.2.3.1. Paixões desordenadas 81
2.2.3.2. Paixões ordenadas 82
2.2.4. Mortificação das potências da alma 83
2.2.4.1. Mortificação da inteligência 83
2.2.4.2. Mortificação da vontade 83
2.3. Conclusão 85

3. Mortificação: dolorismo e descrédito 88


3.1. Antropologia dualista 88
3.2. Soteriologia reducionista 91
3.2.1. Interpretação ritual: a teologia do sacrifício expiatório 92
3.2.2. Interpretação jurídica: a teologia da satisfação 95
3.2.3. Interpretação moral: a teologia do mérito 96
3.3. Conseqüências para a espiritualidade cristã 98
3.3.1. Repressão da sexualidade 98
3.3.2. A cruz desvinculada da história 101
3.3.3. Medo de Deus e sentimento de culpa 102
3.4. Conclusão 103

Parte II – Madre Maria Teresa: um testemunho equilibrado de


mortificação 105
4. Madre Maria Teresa: vida e obra 106
4.1. Biografia e escritos 106
4.1.1. Formação inicial e vocação religiosa 107
10

4.1.2. Surgimento da tuberculose 107


4.1.3. São José dos Campos: contextualização histórica 108
4.1.4. Tratamento em São José dos Campos 109
4.1.5. O apostolado junto aos tuberculosos 110
4.1.6. Carisma de fundadora 112
4.1.7. Apoio de Dom Epaminondas 112
4.1.8. Ereção canônica 115
4.1.9. Espiritualidade da nova congregação 115
4.1.10. Novas fundações 116
4.1.11. Escola de enfermagem 116
4.1.12. Falecimento 117
4.1.13. Escritos 118
4.1.14. Processo de canonização 118
4.2. Discípula de santa Teresa de Lisieux 120
4.2.1. Teologia da infância espiritual 121
4.3. Conclusão 124

5. Madre Maria Teresa: uma nova prática de mortificação 125


5.1. Antropologia 125
5.1.1. Santidade: comungar do amor de Cristo 125
5.1.2. Espírito de sacrifício: condição para crescer no amor 128
5.1.3. Virgem Maria: modelo de santidade 129
5.1.4. Conclusão: amar é a vocação de todo ser humano 131
5.2. Soteriologia 133
5.2.1. Eucaristia: modelo-referência de sacrifício cristão 134
5.2.2. Imolação da vida: participação nos sofrimentos de Cristo 135
5.2.3. Espírito de imolação e de reparação pelos sacerdotes 137
5.2.4. Conclusão: o valor redentor do sofrimento cristão 139
5.3. Da disciplina exterior à disciplina interior 141
5.3.1. Confiança em Deus e conhecimento de si: mortificação do medo e
da culpa mórbida 142
5.3.2. Fidelidade nas pequenas coisas: mortificação da vontade 145
5.3.3. Amabilidade constante: mortificação do temperamento 146
5.4. Conclusão 148
11

Parte III – Proposta de uma nova teologia e práxis da mortificação


cristã 150
6. O consumismo: desafio contemporâneo à mortificação 151
6.1. A sociedade do consumismo 151
6.1.1. A excessiva valorização do corpo 153
6.1.2. Corpo objeto: prazer e frustração 154
6.1.3. Saúde ou culto ao corpo? Onde está o limite? 156
6.1.4. A negação da dor 158
6.2. Consumismo e felicidade 159
6.2.1. Publicidade: utilizada como prevenção contra comportamentos
anticonsumo 160
6.3. Gratificação imediata e juízo crítico 161
6.3.1. A obsessão pela fama 162
6.4. Crise ecológica: perigo do consumismo predatório 163
6.4.1. Poluição do ar, da água e do solo 164
6.4.2. Poluição sonora, visual e atômica 166
6.5. A religião: objeto de consumo 167
6.5.1. O neopentecostalismo 168
6.5.2. A Nova Era 170
6.6. Conclusão 171

7. Os fundamentos para uma nova teologia da mortificação 173


7.1. Uma antropologia integrada 173
7.1.1. A unidade do ser humano no Antigo Testamento 173
7.1.2. A unidade do ser humano no Novo Testamento 177
7.1.3. O contributo da filosofia grega 181
7.1.4. Unidade na dualidade 182
7.2. Uma soteriologia otimista 184
7.2.1. Cruz: do excesso de ódio ao excesso de amor 187
7.2.2. Sofrimento: acolhido, mas não procurado 189
7.2.3. Ambivalência do sofrimento 190
7.2.4. Sofrimento salvífico 190
7.3. Resgatar o valor positivo da disciplina 193
7.3.1. Autodomínio 193
12

7.3.2. Autoconhecimento 194


7.4. Conclusão 195

8. A força salvífica da mortificação 196


8.1. Batismo: fonte da mortificação 196
8.1.1. Dinamismo salvífico da mortificação 197
8.2. A mortificação nos dias de hoje 199
8.2.1. Mortificação da fé 199
8.2.1.1. Aceitar e integrar os próprios limites 200
8.2.1.2. Superar as falsas imagens de Deus 203
8.2.1.3. Assumir a fragmentariedade da história 205
8.2.1.4. A perseverança na prática da oração 206
8.2.2. Mortificação da esperança 207
8.2.2.1. O compromisso com a justiça 208
8.2.2.2. A pobreza evangélica 209
8.2.2.3. O testemunho da alegria pascal 209
8.2.3. Mortificação da caridade 210
8.2.3.1. Amar sem discriminação 210
8.2.3.2. Perdoar sempre 211
8.2.3.3. Preservar a natureza 212
8.2.3.4. Hospitalidade 212
8.3. Espiritualidade batismal: alicerce para uma nova evangelização 213
8.4. Conclusão 214

Conclusão Final 215

Referências bibliográficas 219


13

Abreviaturas e Siglas

AAS Acta Apostolicae Sedis


BAC Biblioteca de Autores Cristianos
CCPMMI Constituições da Congregação das Pequenas Missionárias
de Maria Imaculada
CIC Catecismo da Igreja Católica
CMMTJE Conferências de Madre Maria Teresa de Jesus Eucarístico
CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CTI Comissão Teológica Internacional
DBT Dicionário Bíblico Teológico
DC Deus Caritas est
DCB Dicionário Católico Básico
DCFT Dicionário de Conceitos Fundamentais de Teologia
DCT Dicionário Crítico de Teologia
DEFM Dicionário de Ética e Filosofia Moral
DES Dizionario Enciclopedico di Spiritualità
DF Dicionário de Filosofia
DFC Dicionário da Fé Cristã
DGAE Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no
Brasil
DIB Dicionário Ilustrado da Bíblia
DIPS Dicionário Interdisciplinar da Pastoral da Saúde
DM Dicionário de Mística
DME Dicionário Mítico-Etmológico
DPAC Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs
DS H. Denziger, A. Schönmetzer, Enchiridion Symbolorum,
Definitionum et Declarationum de rebus fidei et morum.
DTDC Dicionário Teológico – O Deus Cristão
DTM Dicionário de Teologia Moral
DTVC Dicionário Teológico da Vida Consagrada
IPMMI Instituto das Pequenas Missionárias de Maria Imaculada
LDTE Lexicon – Dicionário Teológico Enciclopédico
14

LG Lumen Gentium
RH Redemptor Hominis
RMi Redemptoris Missio
SD Salvifici Doloris
SOTER Sociedade de Teologia e Ciências da Religião
TE Tempo e Eternidade
15

Introdução geral

A mortificação, tanto o termo como a sua práxis, parece que foi banida do
universo cristão; não é mais um vetor da formação cristã como no passado. De
imediato, o termo mortificação suscita lembranças negativas, como jejuns e
penitências exageradas. Recorda também episódios de violência ao corpo. Por isso
é uma palavra que prontamente provoca fortíssima rejeição e aversão, devido a
uma prática, no passado, inconteste de excessos e abusos. Dificilmente é
encontrada entre os verbetes dos mais recentes dicionários de teologia;
usualmente é apenas citada como uma dimensão da ascese. Portanto, termo e
práxis, atualmente parecem não gozar mais nem de pertinência teológica nem de
relevância pastoral, como se observa pela escassa literatura a respeito.
Esta constatação, no entanto, é superficial, é enganosa. A mortificação
continua existindo e desfrutando de amplo espaço no cotidiano de nosso povo.
Evidentemente, não o termo, mas a vida disciplinada, que se constitui no núcleo,
propriamente, da prática da mortificação. Uma vida regulada por dietas, exercícios
físicos e até jejuns é assunto relevante para a cultura contemporânea. Pessoas de
todas as idades ‘malham’, caminham ou correm diariamente e, quando podem,
submetem-se a privações alimentares de certas dietas e processos de purificação
em ‘spas’, para recuperar ou preservar a saúde. Homens e mulheres submetem-se
diariamente a exercícios físicos, e até mesmo a jejuns, para manter um corpo
esbelto, magérrimo, segundo os atuais padrões de beleza. Do mesmo modo, atletas
se sujeitam a exigentes programas de condicionamento físico, para serem
competitivos. Tudo isso objetivando bem estar pessoal, qualidade de vida e
vantagens financeiras.
Mesmo sem referência a valores religiosos, esta realidade é importantíssima
para a reflexão teológica, pois revela que a disciplina é um dado fundamental da
existência humana. É um imperativo antropológico, algo que não pode ser
simplesmente eliminado, sem graves prejuízos ao ser humano. Para se realizar
objetivos, independentemente da motivação originária, é indispensável o esforço
pessoal, uma vida pautada pela disciplina. A mortificação, em sentido amplo, é
16

isso: luta de morte a tudo aquilo que obstrui a obtenção de um ideal, que atrapalha
a consecução de uma meta. Por essa razão a mortificação é parte integrante da
educação humana.
Se falarmos em sentido cristão, é evidente que a mortificação continua não
somente atual, mas necessária à vida cristã. Ser cristão é revestir-se do homem
novo; e para que este viva, o velho homem tem de morrer em nós. A morte do
homem velho já é realizada e celebrada pelo batismo, mas necessita ser efetivada
historicamente. Embora no batismo nos seja concedida a semente da vida nova,
esta precisa ser atualizada e concretizada nas atitudes e ações do dia-a-dia, pois o
homem velho, o Adão pecador, ainda continua presente e ativo em nós, dividindo
espaço com o homem novo; e assim permanecerá durante nossa existência
terrestre. A força salvífica da mortificação consiste exatamente no esforço que
empreendemos cotidianamente para disciplinar e reduzir a negatividade do
homem velho; criando, ao longo do tempo, as condições necessárias para o
crescimento do homem novo.
No concreto da vida diária, matar o homem velho implica renunciar a tudo
que contradiz o evangelho. Significa lutar para viver segundo os mesmos valores
que nortearam a vida de Jesus, na relação consigo mesmo, com a comunidade,
com a natureza e com Deus. Isto sem dúvida exige que o cristão seja determinado
e disciplinado, pois luta contra: as próprias fragilidades, o individualismo, a
vontade de poder, o consumismo, o hedonismo, a religião de acomodação e de
fuga do compromisso com o excluído, a utilização depredatória da natureza, a
injustiça em todas as suas manifestações, a coisificação das pessoas e das relações
humanas, a imagem distorcida de Deus. Enfim, contra tudo aquilo que é típico do
homem velho, de uma existência humana pecaminosa.
Portanto, o objetivo geral desta tese doutoral é elaborar um renovado
discurso teológico que demonstre que a mortificação não está superada, mas
continua válida e necessária ao discipulado de Cristo. E para atingir esta
finalidade, utilizaremos a contribuição de Madre Maria Teresa de Jesus
Eucarístico. Religiosa, fundadora do ‘Instituto das Pequenas Missionárias de
Maria Imaculada’, falecida aos setenta e um anos de idade (1901-1972), na cidade
de São José dos Campos/SP. Ela deixou reflexões equilibradas sobre o assunto. E
o principal: viveu com coerência o que ensinou. Nela, vida e ensinamento se
identificam.
17

Influenciada pela teologia da infância espiritual, de santa Teresa de Lisieux,


e também devido à frágil saúde, que não lhe permitia praticar penitências
exageradas, Madre Maria Teresa compreendeu que o verdadeiro sentido da
mortificação não estava na prática de jejuns rigorosos, abstinências, cilícios,
prostrações e outras penitências corporais, mas no esforço para disciplinar a
vontade humana, tornando-a gradativamente capaz de aderir às exigências do
evangelho. Tanto que as constituições do instituto das pequenas missionárias não
prescrevem atos de mortificação, mas espírito de mortificação. Por isso ela foi
muito original ao evoluir da disciplina exterior à disciplina interior.
Hoje, como na época de Madre Maria Teresa, novamente se faz necessária
uma evolução no conceito de mortificação. É urgente um novo discurso teológico
que ofereça um conjunto de conceitos antropológicos e soteriológicos atualizados,
atraentes, e ao mesmo tempo, fiéis à proposta neotestamentária. Capaz de resgatar
o valor positivo da disciplina e da renúncia, motivando o cristão a viver com
coerência o batismo; não recebendo em vão a graça divina (cf. 2Cor 6, 1).
Por isso, na tentativa de prosseguir este processo de resgate e atualização da
mortificação cristã, iniciado por Madre Maria Teresa, esta tese propõe uma nova
reflexão teológica, alicerçada numa antropologia de integração, que contempla o
ser humano integralmente, em todas as suas dimensões, evitando, assim, o erro do
passado, quando a mortificação foi reduzida às penitências corporais. A partir da
antropologia de integração, mortificação se torna ‘disciplina da pessoa’, para
vencer o homem velho, o Adão pecador. Ainda neste processo de atualização está
considerado também o consumismo, ideologia onipresente no contexto sócio-
cultural e religioso em que vivemos, e que se constitui no grande desafio hodierno
a uma vida disciplinada.
Para a realização desta pesquisa, utilizamos quatro tipos de fontes
bibliográficas: todos os manuscritos espirituais de Madre Maria Teresa de Jesus
Eucarístico, arquivados na sede do ‘Instituto das Pequenas Missionárias de Maria
Imaculada’; três antigos manuais de ascética e mística: ‘Compêndio de teologia
ascética e mística’, ‘As três idades da vida interior’ e ‘Teologia da perfeição
cristã’; documentos do magistério eclesiástico; e obras teológicas de autores
contemporâneos que aprofundam a temática em questão.
Como esta tese trata-se de uma pesquisa teórica de natureza teológico-
pastoral, empregamos o método analítico sistemático na leitura e análise de textos
18

e o método dedutivo na procura das conseqüências a que visa a proposta aqui


expressa. A partir de uma acurada e crítica resenha histórica são levantadas as
principais objeções hodiernas à teologia e práxis da mortificação. Estas objeções
são confrontadas com a vida e os manuscritos espirituais de Madre Maria Teresa
de Jesus Eucarístico. O resultado deste confronto, acrescido pelos desafios e pelos
conceitos teológicos contemporâneos, oferece os elementos necessários para a
sistematização de uma nova e atualizada teologia e práxis da mortificação cristã.
Em sua estrutura, a tese se divide em três partes. A primeira parte – com o
título “Mortificação, origem, história e descrédito” – apresenta a origem e os
abusos que marcaram tanto a concepção como a prática da mortificação ao longo
da espiritualidade cristã. Esta primeira parte está organizada em três capítulos. No
primeiro capítulo será abordada a origem e a história do termo. Desde a origem da
ascese na filosofia antiga greco-romana até a classificação da mortificação como
ascese ativa. No segundo capítulo será estudada a teologia da mortificação
subjacente aos tradicionais e clássicos manuais de ascética e mística: “Compêndio
de teologia ascética e mística”, de Adolphe Tanquerey; “As três idades da vida
espiritual”, de Reginald Garrigou-Lagrange; e “Teologia da perfeição cristã”, de
Antônio Royo Marin. A abordagem abrangerá a mortificação segundo sua
natureza, necessidade e prática. No terceiro capítulo serão analisadas as
conseqüências para a espiritualidade do dualismo antropológico e do pessimismo
soteriológico ensinado e praticado por várias gerações cristãs. Encerrando esta
primeira parte será realizada, à guisa de conclusão parcial, uma avaliação crítica
dos desvios e abusos que marcaram a prática da mortificação cristã até a
atualidade. Será então que a teologia e práxis da mortificação foi um grande
equívoco para a Igreja? A resposta a esta indagação será o ponto de partida da
segunda parte desta tese doutoral.
A segunda parte – com o título “Madre Maria Teresa, um testemunho
equilibrado de mortificação” – aborda a vida e obra de Madre Maria Teresa de
Jesus Eucarístico. Que comprova que a mortificação não é um equívoco, mas
prática necessária ao desenvolvimento da vida cristã. Esta segunda parte está
organizada em dois capítulos. No quarto capítulo é exposta uma minuciosa
biografia de Madre Maria Teresa, que contempla o contexto histórico e religioso
de sua época, além da forte influência da teologia da infância espiritual de santa
Teresa de Lisieux em sua vida. No quinto capítulo é utilizado o método analítico
19

sistemático na leitura e análise dos manuscritos espirituais de Madre Maria


Teresa. É analisada a antropologia e a soteriologia implícita nos seus escritos, que
a levou a realizar a evolução da disciplina exterior à disciplina interior. Como
conclusão desta segunda parte é ressaltada a contribuição de Madre Maria Teresa
para o avanço tanto da conceitualização como dos modos de praticar a
mortificação. Esse processo continua. Hoje é preciso evoluir para uma
compreensão integral de ser humano, evoluindo da disciplina da vontade para a
disciplina da pessoa. Isso implicará em novas formas de mortificação. É a tarefa
da terceira parte desta tese doutoral.
A terceira e última parte – com o título “Proposta de uma nova teologia e
práxis da mortificação” – busca a sistematização de uma nova teologia e práxis da
mortificação cristã, compatível com a realidade contemporânea e fiel à proposta
neotestamentária. É a tentativa de resgatar o autêntico sentido do termo
mortificação e de seu dinamismo salvífico. Esta terceira parte está organizada em
três capítulos. No sexto capítulo são analisados alguns aspectos da realidade
contemporânea à luz da mortificação. Hoje vivemos na chamada ‘sociedade do
excesso’, que através da publicidade transforma tudo em objeto de consumo
imediato, desde a estética corporal até a religião. É o consumismo desenfreado e
predatório que agride não só o ser humano, mas todo o ecossistema. É a sociedade
do consumismo e do repúdio à disciplina. No sétimo capítulo é abordada a
necessidade de uma nova teologia da mortificação, que enfrente os desafios da
sociedade consumista. Um novo discurso teológico embasado numa moderna
antropologia de integração, bem como numa soteriologia otimista, que supere,
assim, os erros e abusos do passado. Uma teologia que resgate, enfim, a disciplina
pessoal como caminho para a maturidade integral, como meio indispensável para
vencer os apelos sedutores da publicidade mercantil. No oitavo e último capítulo,
ainda dentro do contexto de elaboração de uma nova teologia da mortificação, é
incluída uma reflexão sistemática sobre o batismo como fonte da mortificação.
Sem disciplina pessoal não é possível viver com coerência o batismo. Do
indicativo cristão (batismo) brota o imperativo cristão (mortificação). No esforço
cotidiano para conservar e desenvolver a graça batismal fundamenta-se a
legitimidade antropológica da mortificação. É dinamismo de fidelidade crescente
à graça. Pelo batismo, o cristão faz de sua existência comunhão de vida com
Cristo crucificado e ressuscitado. É capacitado pela graça a transformar toda
20

situação de morte em situação de ressurreição. Capaz de passar da dilaceração do


pecado para a comunhão com Deus, com o próximo, com a natureza e consigo
mesmo. Deste modo, a vida cristã pressupõe, a cada instante, uma ‘Páscoa
parcial’, uma passagem de nosso ser de uma situação de morte parcial para uma
situação de vida crescente; até a última passagem, a ‘Páscoa derradeira’, quando
acontecerá a passagem definitiva: da morte pessoal para a ressurreição plena. A
mortificação é, portanto, o processo ativo de viver a existência batismal. Processo
que pressupõe luta diária contra o homem velho, o Adão pecador. Ainda no oitavo
capítulo, será analisada a eficácia pastoral produzida pela mortificação e sua
importância para a nova evangelização.
Portanto, contribuirá esta pesquisa para o resgate do valor positivo da
mortificação, como imperativo antropológico para a vida cristã.
22

1
Mortificação: origem e história do termo

Antes de tratar o tema da mortificação sob o aspecto teológico,


procuraremos, de início, abordá-lo sob o prisma histórico, analisando o contexto
em que surgiu, o que e quem influenciou seu desenvolvimento, e como chegou ao
atual estágio, em que praticamente é ignorado pela maioria dos cristãos. Não só
ignorado, mas, por alguns, também fortemente contestado e rejeitado. A simples
abordagem do termo mortificação já provoca as mais variadas reações: desde
assombro até ironia e, em alguns casos, o desdém. Muitos perguntam: ‘hoje, ainda
é conveniente se falar de mortificação?’
No pólo oposto, e num passado não tão distante assim, conceituados
manuais de teologia ascética e mística abordavam com ênfase o tema,
considerando a mortificação como prática necessária para dominar o corpo e,
assim, colocá-lo a serviço da alma. O corpo era considerado um inimigo
perigosíssimo, fonte de pecados. Dentre as práticas penitenciais recomendadas
pelos referidos manuais, encontra-se a ‘mortificação corporal’, cuja finalidade é,
simultaneamente, acalmar os ardores intempestivos da carne e estimular o desejo
da piedade. Cilícios apertados aos braços ou à cintura e alguns bons golpes de
chicote eram as mortificações mais comuns até bem pouco tempo atrás. É
evidente que tais práticas só podem ser condenadas, pois são frutos de uma
mentalidade religiosa que hoje não é mais aceita, devido ao seu grande
pessimismo antropológico. Mas isso não significa que a mortificação seja algo
superado e desnecessário ao desenvolvimento da vida cristã. É premente resgatar,
a partir de conceitos antropológicos e soteriológicos atualizados, uma nova
teologia e, conseqüentemente, uma nova prática da mortificação cristã.
Por isso, este primeiro capítulo é de fundamental importância para
entendermos como começou, e se desenvolveu, a mentalidade religiosa que criou
e justificou a violência ao corpo. Vamos identificar e analisar, de maneira
sumária, as principais correntes filosóficas e teológicas que, ao longo da história,
23

contribuíram decisivamente para a configuração pessimista, tanto da prática como


da teologia da mortificação cristã.
Iniciaremos a pesquisa com uma análise semântica do termo ascese,
originado na Grécia, e como sua temática se desenvolveu na filosofia grega, na
bíblia e na história da Igreja. E concluiremos com a abordagem teológica da
mortificação e sua prática, segundo os tradicionais manuais de teologia ascética e
mística, utilizados até boa parte do século XX, mais precisamente até o ‘Concílio
Vaticano II’.
1.1.1.1.
Ascese: origem, significado e desenvolvimento

Nos antigos manuais de ‘teologia ascética e mística’, a mortificação é


definida como uma dimensão da ascese, desta derivando sua concepção. Portanto,
um estudo aprofundado acerca da mortificação, naturalmente, requer uma análise
semântica do termo ascese e como esta se desenvolveu historicamente.
O termo ascese foi adotado, mas não criado pelo cristianismo. O substantivo
askésis (a~schsiß), ascese, e o adjetivo asketés (ajschthvß), ascético, derivam do
verbo grego askéo (ajscevw), que possui uma vasta gama de significados. Além do
conhecido sentido de exercitar-se, ascese também significa trabalhar com arte,
criar com engenho, ornar, embelezar, prover, aprontar e honrar1. É um termo
originariamente polissêmico.
A cultura grega empregou o termo ascese com o sentido de exercício
realizado com esforço e método. Da acepção inicial de caráter físico (asceta
equivalia a atleta), o termo evoluiu para adquirir também caráter intelectual
(ascética como exercício da filosofia), moral (ascética como exercício do bem e
controle dos instintos) e religioso (ascética como sinônimo de culto divino)2.
Deste modo, ascese indicava qualquer exercício físico, intelectual, moral e
religioso, realizado com método e disciplina, objetivando progresso constante;
assim, por exemplo, o soldado se exercitava no uso das armas, o filósofo na
meditação; o sábio no exercício das virtudes e o religioso exercitava-se na
contemplação de Deus.

1
Cf. RUSCONI, C., Dicionário do grego do Novo Testamento, São Paulo, Paulus, 2003, p. 81;
PEREIRA, I., Dicionário grego-português e português-grego, Braga, Livraria Apostolado da
Imprensa, 1998, p. 86.
24

Para os gregos, ascese não era um termo com conotação unilateralmente


abnegativa. Pelo contrário, era compreendida tranqüilamente como algo
necessário ao desenvolvimento humano. Exprimia seguramente um
comportamento abnegado, direcionado a eliminar os fatores que impediam o
crescimento numa determinada dimensão da vida, mas ao mesmo tempo,
estimulava e consolidava a disciplina imprescindível à conquista de um objetivo
almejado; como, por exemplo, o adestramento de um pugilista, que treina para
eliminar o excesso de peso e, simultaneamente, para dar o máximo vigor aos
músculos3. Empenho pessoal e vida pautada pela disciplina eram para a cultura
grega valores construtivos.
Todavia, no âmbito cristão, a ascese ficou assinalada preferencialmente pela
dimensão abnegativa, como vimos no início de nossa abordagem sobre o tema. É
inegável reconhecer que no processo de adoção cristã, a ascese, tanto o termo
como a práxis, sofreu o denso influxo de uma antropologia dualista e pessimista,
que lhe conferiu um significado distinto da concepção original grega. Por isso, é
mister analisar o processo histórico que produziu esta diferenciação semântica. E
para melhor aprofundar essa análise, vamos dividi-la em três etapas: período da
filosofia greco-romana, período bíblico e período eclesial.
1.1.1.1.1.1.
Ascese na filosofia greco-romana

A experiência religiosa, no mundo grego, teve seu início por volta do século
XII a.C., com a consolidação progressiva de um conjunto de crenças míticas4.
Essas crenças começaram com os chamados ‘mitos teogônicos e cosmogônicos’,
que explicavam a origem dos deuses, do universo, do homem e dos fenômenos

2
Cf. GOZZELINO, G., Al cospetto di Dio – Elementi di teologia della vita spirituale, Torino, Elle
di Ci, 1999, p. 92.
3
Cf. Ibidem.
4
Cf. ARRUDA ARANHA, M. L.; PIRES MARTINS, M. H., Filosofando – Introdução à
filosofia, 2. ed., São Paulo, Moderna, 1997, p. 55; STEPHANIDES, M., Os deuses do Olimpo, 3.
ed., São Paulo, Odysseus, 2004, pp. 3-4: O mito explica a realidade a partir de uma verdade
intuída, isto é, percebida de maneira espontânea, sem exigência de comprovações. O critério de
adesão do mito é a crença, e não a evidência racional. O mito é portanto uma intuição (ação pré-
reflexiva) compreensiva da realidade vivida. E o povo grego criou os mitos mais fascinantes da
antiguidade, inspirado na beleza natural de seu país e na tentativa de explicar os fenômenos da
natureza, que, ao mesmo tempo em que, amedrontavam e provocavam desastres com suas forças
aterradoras, também fascinavam com seu poder e grandiosidade. Assim surgiram os heróis e os
deuses do Olimpo.
25

naturais5. Aliás, cada fenômeno da natureza era atribuído a um deus: os trovões e


os raios eram lançados por Zeus; as ondas do mar eram levantadas pelo tridente de
Posseidon; o sol era carregado pelo áureo carro de Apolo, entre outras explicações
míticas. Os deuses, porém, eram rebeldes, viviam em constante conflito, levando
o perigo do caos ao mundo criado. Até que Zeus impõe a sua lei sobre os outros
deuses, e sobre os homens, mantendo o mundo fora de perigo. A partir de então, a
cultura grega passou a projetar nos deuses e deusas atividades que são próprias do
gênero humano, tais como, amar, odiar, discutir, beber, ouvir música, dormir,
entre tantas outras6. Durante essa etapa da história da cultura grega, os mitos que
narravam a divinização da natureza e os da antropomorfização dos deuses se
fundiram formando o que hoje conhecemos como ‘mitologia grega’7. Os poetas
Homero, autor de ‘Ilíada’ e ‘Odisséia’8 (século IX a.C.), e Hesíodo, autor de
‘Teogonia’9 (século VIII a.C.) são os expoentes máximos da literatura mitológica
grega.

5
Para um estudo aprofundado da mitologia grega, sugiro as seguintes obras: BULFINCH, T., O
livro de ouro da mitologia – Histórias de deuses e heróis, 32. ed., Rio de Janeiro, Ediouro, 2005,
412 p.; CHAMOUX, F., Civilização grega, Edições 70, Lisboa, 2003, 343 p. (especialmente o
capítulo VI, pp. 143-204); FRIEDRICH OTTO, W., Os deuses da Grécia, Odysseus, São Paulo,
2005, 266 p.; MONTANELLI, I., História dos gregos, Edições 70, Lisboa, 2003, 255 p.; REALE,
G., História da filosofia antiga, Vol. I, 4. ed., São Paulo, Loyola, 2002, 415 p. (especialmente o
capítulo II, pp. 19-27); SCARPI, P., Politeísmos: as religiões do mundo antigo, Editora Hedra,
São Paulo, 2004, 245 p. (especialmente o capítulo V, pp. 91-108); SOUZA BRANDÃO, J.,
Mitologia grega, Vols. I, II, III, Vozes, Petrópolis, 2004; STEPHANIDES, M., Os deuses do
Olimpo, 3. ed., Odysseus, São Paulo, 2004, 204 p.; VERNANT, J. P. e NAQUET, P. V., Mito e
tragédia na Grécia antiga, Editora Perspectiva, São Paulo, 2002, 376 p.
6
BULFINCH, T., O livro de ouro da mitologia – História de deuses e heróis, 32. ed., Rio de
Janeiro, Ediouro, 2005, pp. 09-10.“A morada dos deuses era o cume do monte Olimpo, na
Tessália. Uma porta de nuvem, da qual tomavam conta as deusas chamadas Estações, abria-se a
fim de permitir a passagem dos imortais para a terra e para dar-lhes entrada em seu regresso (...).
Era também no grande palácio do rei do Olimpo que os deuses se regalavam, todos os dias, com
ambrósia e néctar, seu alimento e bebida, sendo o néctar servido pela linda deusa ‘Hebe’. Ali
discutiam os assuntos relativos ao céu e à terra; enquanto saboreavam o néctar, Apolo, deus da
música, deliciava-os com os sons de sua lira e as musas cantavam. Quando o sol se punha, os
deuses retiravam-se para as suas respectivas moradas, a fim de dormir”.
7
Cf. STACCONE, G., Filosofia da religião – O pensamento do homem ocidental e o problema de
Deus, 2. ed., Petrópolis, Vozes, 1991, pp. 13-15.
8
Cf. BULFINCH, T., op. cit., pp. 254-293: Os dois poemas épicos de Homero, ‘Ilíada’ e
‘Odisséia’, como é sabido, relatam os mitos que descrevem a destruição pelos gregos da cidade de
Tróia. Segundo a obra de Homero, a guerra de Tróia teria durado cerca de dez anos e seu início foi
marcado pelo rapto de Helena, a mais bela mulher do mundo, esposa do rei Menelau, de Esparta.
O autor do rapto foi Paris, filho de Príamo, rei de Tróia. Para defender sua honra, Menelau e seu
irmão, Agamenon, rei de Micenas, reúnem forças gregas de diversos reinos para resgatar Helena
em uma ação contra Tróia, que é chamada de Ilion no poema narrado por Homero, daí o nome
IlÍada. Já o poema Odisséia é posterior à Ilíada e narra as aventuras do herói Odisseu (Ulisses,
segundo a tradição latina), em seu retorno da guerra de Tróia para sua cidade, Ítaca.
9
Cf. REALE, G., História da filosofia antiga, Vol. I, 4. ed., São Paulo, Loyola, 2002, pp. 41-43: A
‘Teogonia’ de Hesíodo narra o nascimento de todos os deuses; e, dado que alguns deuses
26

Zeus, soberano dos deuses e dos homens, vivia no ‘Olimpo’, um monte


elevado e constantemente nevado localizado no extremo norte da Grécia. Junto
com Zeus moravam somente os deuses mais importantes. Eram eles: Hera, esposa
de Zeus e protetora do casamento; Deméter, a deusa da agricultura; Posseidon,
irmão de Zeus, o senhor dos mares; Afrodite, filha de Zeus, a deusa do amor e da
beleza; Palas, a deusa da sabedoria; Ares, filho de Zeus, deus da guerra; Apolo, o
deus da arte de atirar com o arco, da adivinhação e da música; Ártemis, deusa da
caça e protetora da vida selvagem; Hefesto, filho de Zeus, deus das artes e do
fogo; Hermes, filho de Zeus, deus do comércio, da luta e de outros exercícios
ginásticos; e Dionísio, filho de Zeus, deus do vinho, promotor da civilização,
legislador e amante da paz10.
Existiam também os heróis ou semideuses, isto é, filhos de um deus e de
uma mortal ou vice-versa. Embora mortais, eram capazes de façanhas sobre-
humanas. Um dos mais famosos foi ‘Aquiles’, do poema ‘Ilíada’, filho da deusa
Tétis11 com um humano chamado Peleu12. Não faltavam também animais
fabulosos como a ‘esfinge’, que tinha corpo de leão, cabeça de mulher e devorava
quem não decifrasse seus enigmas13; as ‘sereias’, que tinham a cabeça e o tronco
de mulher, mas da cintura para baixo tinham a forma de pássaro ou de peixe, esses
animais atraiam e prendiam os homens para devorá-los14; os ‘centauros’, metade

coincidem com partes do universo e com fenômenos do cosmo, além de teogonia ela se torna
também cosmogonia, ou seja, explicação fantástica da gênese do universo e dos fenômenos
cósmicos. Hesíodo imagina, no proêmio, ter tido aos pés de Hélicon, na Boécia, uma visão de
Musas, e ter recebido delas a revelação da verdade da qual ele se faz, mediatamente, arauto. Em
primeiro lugar, diz ele, gerou-se o ‘Caos’, em seguida gerou-se ‘Gea’ (a terra), em cujo seio amplo
estão todas as coisas, e nas profundidades da Terra gerou-se o ‘Tártaro escuro’, e, por fim ‘Eros’
(o Amor) que, depois, deu origem a todas as outras coisas. Do caos nasceram Êrebo e Noite, dos
quais se geraram o Éter (o Céu superior) e Êmera (o Dia). E da Terra sozinha se geraram ‘Urano’
(o Céu estrelado), assim como o mar e os montes; depois, juntando-se ao Céu, a Terra gerou
Oceano e os rios. Procedendo no mesmo estilo, Hesíodo narra a origem dos vários deuses. Zeus
pertence à última geração: de fato, foi gerado de Crono e de Rea (que, por sua vez, tinham sido
gerados da Terra e de Urano); e, como Zeus, fazem parte da última geração todos os outros deuses
do Olimpo homérico, vale dizer, os deuses que o grego venerava.
10
Cf. BULFINCH, T., O livro de ouro da mitologia – História de deuses e heróis, 32. ed., Rio de
Janeiro, Ediouro, 2005, pp. 10-14.
11
Cf. Ibidem, p. 255.
12
Cf. Ibidem, p. 169.
13
Cf. SOUZA BRANDÃO, J., Esfinge. In: DME, Vol. I, pp. 384-388.
14
Cf. Idem, Sereia. In: DME, Vol. II, pp. 375-378.
27

homem, metade cavalo, que raptavam e violentavam mulheres15. Estes são os


mais conhecidos e famosos16.
Toda essa mitologia, como já foi dito anteriormente, visava dar uma
explicação integral à origem do universo e do gênero humano, assim como às
vicissitudes ambientais e históricas que acompanham a existência humana. Mito e
realidade se compenetravam a tal ponto que o destino do universo e da
humanidade dependia do humor dos deuses. E qualquer descuido poderia irritá-
los, daí a necessidade de agradá-los e, quando necessário, acalmá-los através de
sacrifícios. O respeito, a reverência e os sacrifícios prestados aos deuses
constituíram a primeira experiência religiosa do mundo grego; ou melhor,
‘experiência piedosa’, pois os gregos não usaram o termo ‘religião’, mas sim
eusebia (eujsejbeia), piedade17. E a ‘piedade’ era praticada através dos cultos
populares realizados em templos, santuários e bosques, administrados por
sacerdotes18, dedicados aos deuses e heróis. Aconteciam também festivais, com
certa regularidade, para que toda a comunidade pudesse honrar o deus da cidade.
As Olimpíadas, por exemplo, eram festivais da cidade de Olímpia, em honra a
Zeus, e aconteciam a cada quatro anos19.
A antropomorfização dos deuses revela também um outro dado essencial: o
homem grego via-se a si mesmo nos deuses. Estes eram considerados forças
naturais diluídas em formas humanas idealizadas; eram considerados homens
amplificados e idealizados, mas não qualitativamente diferentes da natureza
humana. E para elevar-se até os deuses, o homem não deveria de modo algum
reprimir sua natureza, ou seja, não deveria em nenhum sentido disciplinar seus
impulsos e tendências naturais; muito pelo contrário, deveria tão somente ser ele
mesmo, dando total vazão aos seus impulsos. Pois tudo o que é próprio da
natureza humana é legítimo, além de válido também para os deuses. O homem

15
Cf. Idem, Centauro. In: DME, Vol. I, pp. 199-200.
16
Cf. BULFINCH, T, O livro de ouro da mitologia – História de deuses e heróis, 32. ed., Rio de
Janeiro, Ediouro, 2005, pp. 150-158.
17
Cf. RIBEIRO JR., W.A., Introdução à religião grega. In: PORTAL GRAECIA ANTIQUA.
Disponível em: <http://www.greciantiga.org/fil/fil09.asp>. Acesso em: 01 de setembro de 2005.
18
Cf. REALE, G., História da filosofia antiga, Vol. I, 4. ed., São Paulo, Loyola, 2002, p. 23: Os
sacerdotes que ajudavam o povo a ofertar os sacrifícios não gozavam de uma posição de destaque
junto aos deuses; não eram mediadores. Apenas administravam os templos e os santuários, e na
comunidade eram tratados como simples cidadãos.
19
Cf. RIBEIRO JR., W.A., Mitologia e religião para iniciantes. In: PORTAL GRAECIA
ANTIQUA. Disponível em: <http://www.greciantiga.org/ini/ini08.asp>. Acesso em: 01 de
setembro de 2005.
28

mais divino é aquele que desenvolve de modo mais vigoroso suas forças humanas.
Por isso, o cumprimento religioso resumia-se tão somente a prestar uma
homenagem, fazer um ‘agrado’ aos deuses, e nada mais20. Era o que poderíamos
chamar de “religião natural”.
Por volta do século VI a.C., o pensamento grego sofreu uma verdadeira
revolução no modo de conceber a realidade divina e com ela relacionar-se. Tal
mutação consistiu em considerar o divino uma realidade não mais exclusivamente
externa, mas interna ao próprio homem. Por isso, em círculos restritos,
desenvolveram-se os “cultos mistéricos”; assim chamados porque suas doutrinas e
rituais podiam ser revelados somente aos ‘iniciados’, que juravam mantê-los em
segredo. Entre os cultos mistéricos, o que mais influenciou a cultura grega foi o
“orfismo”21.
A fé órfica introduziu na civilização grega um novo esquema de crenças e
uma nova interpretação da existência humana. Enquanto a concepção grega
tradicional, a partir de Homero, considerava o homem como mortal, colocando na
morte o fim total de sua existência, o orfismo proclama a imortalidade da alma e
concebe o homem segundo um esquema dualista que contrapõe a alma ao corpo.
Com esse novo esquema de crenças, o homem via pela primeira vez contraporem-
se em si dois princípios em contraste e luta: a alma e o corpo. Cai por terra a
concepção naturalista de religião; o homem grego, a partir de agora, compreende

20
Cf. ANTISERI, D.; REALE, G., História da filosofia – Antiguidade e Idade Média, Vol. I, 7.
ed., São Paulo, Paulus, 2002, pp. 21-22.
21
REALE, G., História da filosofia antiga, Vol. I, 4. ed., São Paulo, Loyola, 2002, pp. 23-24: “Os
órficos consideravam como fundador do seu movimento o mítico poeta da Trácia, Orfeu (que ao
contrário do tipo de vida encarnado pelos heróis homéricos, teria cantado um tipo mais interior e
espiritual de vida) e dele derivam o nome. Não sabemos a origem do movimento e como ele se
difundiu na Grécia. Heródoto o faz derivar do Egito (Heródoto, II, 123), o que é impossível,
porque os documentos egípcios não apresentam traços de doutrinas órficas e, ademais, o cuidado
dos corpos e o seu embalsamento contrasta nitidamente com o espírito do orfismo, que despreza o
corpo como cárcere e grilhão da alma. O movimento é posterior aos poemas homéricos (que não
apresentam nenhum traço dele) e a Hesíodo. É certo o seu florescimento ou reflorescimento no
século VI a.C. O núcleo fundamental das crenças ensinadas pelo orfismo, despojadas das várias
incrustações e amplificações que aos poucos se lhe acrescentaram, consiste nas seguintes
proposições: a) no homem vive um princípio divino, uma alma (demônio), caída num corpo por
causa de uma culpa originária; b) essa alma (demônio), preexiste ao corpo, é imortal e, portanto,
não morre com o corpo, mas é destinada a reencarnar-se sempre de novo em corpos sucessivos
através de uma série de renascimentos para expiar a sua culpa (metempsicose); c) a vida órfica,
com as suas práticas de purificações, é a única que pode por fim ao ciclo das reencarnações; d) por
conseqüência, quem vive a vida órfica (os iniciados) goza, depois da morte, do merecido prêmio
no além (a libertação); para os não iniciados há uma punição”. Para um melhor aprofundamento,
sugiro a leitura de SOUZA BRANDÃO, J., Mitologia grega, 15. ed., Petrópolis, Vozes, 2005, pp.
141-171 (Orfeu, Eurídice e o Orfismo).
29

que nem todas as tendências ligadas ao corpo são boas, que algumas, ao contrário,
devem ser disciplinadas, e que é necessário libertar a alma do corpo através de
cerimônias e ritos purificadores22.
Concomitante ao surgimento dos cultos mistéricos, ocorre o advento da
reflexão filosófica, que substitui o pensamento mítico. A filosofia nasce
basicamente da insatisfação com a explicação paradoxal da realidade oferecida
pela crença mítica, que ao recorrer ao mistério para explicar a realidade, esbarra e
pára no inexplicável, na impossibilidade racional do conhecimento. Por sua vez, o
pensamento filosófico busca a explicação da realidade nas próprias causas
naturais que a constituem, abrindo-a, desse modo, à compreensão racional, à
possibilidade de explicação23. O que vale em filosofia é o argumento da razão, a
motivação lógica. Não basta à filosofia constatar uma realidade, mas deve ir além,
para encontrar a causa ou as causas através da razão. É justamente essa qualidade
peculiar que garante ‘cientificidade’ à filosofia24.
No entanto, o surgimento da filosofia não levou ao desaparecimento, mas à
mudança de função do mito, que, a partir de então, passou a ser parte da tradição
cultural do povo grego e não mais critério único de explicação da realidade.
Certamente no mito há fantasia, algo irreal, mas há também uma mensagem, uma
idéia, que pretende responder às indagações mais inquietantes e profundas do
homem, a que muitas vezes a razão não pode responder. Mais que uma resposta
pré-filosófica, o mito supõe uma resposta supracientífica, enquanto transcende a
visão científica da realidade. O mito supõe um esforço para conhecer o
“incognoscível”25. Por isso, não desaparece, pelo contrário, continua presente na
reflexão filosófica, como expressão das verdades primordiais sobre o universo e a
humanidade, auxiliando a razão no processo de conhecimento da realidade.
Naturalmente, a nova realidade religiosa grega, marcada pela interioridade
dos cultos mistéricos, tornou-se objeto de reflexão da filosofia, já a partir do
século VI a.C. até, provavelmente, 529 d.C., ano em que o Imperador Justiniano

22
Cf. ANTISERI, D.; REALE, G., História da filosofia – Antiguidade e Idade Média, Vol. I, 7.
ed., São Paulo, Paulus, 2002, pp. 17-19.
23
Cf. MARCONDES, D., Iniciação à história da filosofia – Dos pré-Socráticos até Wittgenstein,
9. ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005, pp. 20-21.
24
Cf. ANTISERI, D.; REALE, G., op. cit., p. 22.
25
Cf. YARZA, I., História de la filosofia antigua, 3. ed., Pamplona, Ediciones Universidad de
Navarra, 1992, p. 20.
30

mandou fechar as escolas filosóficas e dispersar seus seguidores26. É o período da


chamada filosofia antiga grega e greco-romana. Basicamente neste arco de tempo,
algumas escolas filosóficas ofereceram uma explicação racional ao sentido da
vida; outras foram mais além e se esforçaram para oferecer uma configuração
sistemática à experiência religiosa. Dentre elas destacaram-se o pitagorismo, o
platonismo, o epicurismo, o estoicismo, o neopitagorismo e o neoplatonismo.
Como resultado prático, cada uma dessas correntes filosóficas desenvolveu
uma ética, seguida de uma correspondente prática ascética. Algumas dessas
práticas, como veremos, repercutiram posteriormente no judaísmo e também no
cristianismo. Aliás, ainda hoje influenciam fortemente a doutrina cristã. Por isso,
importa analisá-las detalhadamente, porém, como o saber filosófico é por natureza
o mais amplo possível, tomaremos o cuidado para não fugir ao viés religioso do
tema em estudo, objetivando, assim, evitar o excesso de informações secundárias
e, sobretudo, as digressões.
1.1.1.1.
Pitagorismo

Pitágoras nasceu provavelmente no século VI a.C., na cidade de Samos, na


Jônia. Quando adulto, deixou sua terra natal e passou a residir na Itália, onde, na
cidade de Crotona, fundou uma escola, que logo alcançou grande sucesso devido à
novidade de seus ensinamentos de cunho místico e ascético. É muito possível que
o ensinamento de Pitágoras tenha sido somente, ou predominantemente, oral.
Acrescente-se a isso o fato de que, logo após sua morte, Pitágoras já era venerado
como ‘divindade’, e suas palavras reverenciadas como oráculos, tornando
impossível a distinção entre seu pensamento original e os ensinamentos
posteriores de seus discípulos. Porém, como a filosofia pitagórica é homogênea, é
lícito considerá-la como um bloco unitário, denominando-a “pitagorismo”27.
O ensinamento de Pitágoras é uma combinação de inteligência teórica,
sabedoria ética e contemplação mística. Para ele, o número constitui o elemento
básico explicativo da realidade, podendo-se constatar uma proporção ideal em
todo o cosmo, o que explicaria a harmonia da realidade criada, garantindo o seu

26
Cf. ANTISERI, D.; REALE, G., História da filosofia – Antiguidade e Idade Média, Vol. I, 7.
ed., São Paulo, Paulus, 2002, p. 25.
27
Cf. Ibidem, pp. 39-40.
31

perfeito equilíbrio28. Conhecer a realidade é descobrir que o número forma sua


substância secreta. Essa teoria instaurou, de fato, as bases da racionalidade
científica, que consiste em ter por princípio que o universo é regido por leis
matemáticas. Pitágoras inventou, além do conhecidíssimo teorema sobre o
quadrado da hipotenusa, o sistema decimal e a tabela da multiplicação,
contribuindo muitíssimo para o desenvolvimento da matemática. Mas Pitágoras
também aplica seu princípio de racionalidade à linguagem religiosa. Ele cria uma
“filosofia religiosa”, isto é, transforma as idéias e a linguagem religiosa em
conceitos teóricos. Identifica os deuses com o ‘cosmo’, no sentido que ele deu a
essa palavra: o mundo perfeitamente ordenado de acordo com as leis e a harmonia
dos números29.
Segundo a filosofia pitagórica, fortemente influenciada pelo orfismo, o
homem possui algo da perfeição divina, do cosmo, pois sua alma se assemelha ao
divino além de ser também imortal. Sua missão na terra é libertar a alma
(elemento divino) do corpo (elemento material). A partir desse axioma, a
existência humana é compreendida como uma ocasião purificadora, em virtude da
qual o homem, através de exercícios ascéticos, pode libertar-se das necessidades
do corpo e retornar, assim, à pátria eterna30.
Todavia, na escolha dos instrumentos e meios de purificação, os pitagóricos
se diferenciaram dos órficos. Estes propunham, além de austeras penitências,
celebrações rituais dotadas de um misterioso poder de purificação31. Os
pitagóricos, por sua vez, consideraram a prática da música e a filosofia como
caminhos da purificação, além de uma rigorosa prática moral32. À filosofia, em
primeiro lugar, vem reconhecida uma missão purificadora. As elucubrações
filosóficas desempenham um papel de autênticas iniciações, pois levam o homem
a tomar consciência de sua parentela divina, o purificam, o libertam do ciclo fatal
da metempsicose. Por isso, os pitagóricos foram iniciadores da chamada “vida

28
Cf. MARCONDES, D., Iniciação à história da filosofia – Dos pré-socráticos até Wittgenstein,
9. ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005, p. 33.
29
Cf. VERGOTE, A., Modernidade e cristianismo – Interrogações e críticas recíprocas, São
Paulo, Loyola, 2002, p. 47.
30
Cf. Ibidem.
31
Cf. SOUZA BRANDÃO, J., Mitologia grega, Vol. II, 15. ed., Petrópolis, Vozes, 2005, pp. 160-
161: Os órficos praticavam penitências corporais rigorosas, como jejuns, abstenção de carne e de
ovos (princípios da vida), abstinência temporária ou perpétua da vida sexual. Ainda, no contexto
de ‘catarse’ (purificação) do corpo, faziam parte também os cantos, os hinos e as litanias.
32

reflexiva”, isto é, vida dedicada à busca da verdade e do bem através do


conhecimento, que é a mais perfeita forma de purificação, de caminho para a
comunhão com os deuses33.
No que tange à prática moral, os pitagóricos adotaram práticas positivas de
ascese. A mais famosa foi o exame de consciência. Antes de dormir passavam em
revista as ações do dia para tomar consciência daquilo que fora feito, em que
falharam e o que fora omitido. Tal prática contribuiu para o desenvolvimento da
consciência moral, consolidando um vivo sentido da responsabilidade pessoal e
um desejo de aperfeiçoamento interior. Também praticavam a abstinência de
carne, baseada na argumentação da defesa da vida animal, evitando assim a
carnificina exercida sobre os “mamíferos de quatro patas”, os quais poderiam ter
sido, segundo a crença da reencarnação, vidas humanas, já que a metempsicose
dá-se a nível hierarquicamente inferior ou superior, conforme o grau de perfeição
de cada ser34.
Em última instância, o conjunto da ascese pitagórica visava, sem dúvida, a
libertação das necessidades do corpo. Era necessário não destruir, mas superar o
corpo. Contudo, o objetivo final era tornar-se um sábio: alguém que ainda na terra
já vivia à semelhança dos deuses35.
1.1.1.2.
Platonismo

O platonismo é o ensinamento filosófico de Platão (427-347 a.C.), e da


escola por ele fundada, conhecida como “Academia de Atenas”, cuja missão era
formar filósofos, isto é, homens sábios, versados na arte de bem viver. A
originalidade de Platão consiste na síntese que fez entre os ensinamentos de
Sócrates e de Pitágoras. De Sócrates herdou o método do diálogo, a ironia, o
interesse voltado aos problemas da condução da vida; de Pitágoras, a idéia de uma
formação pela matemática e da aplicação dessa ciência ao conhecimento da
natureza. Ainda do pitagorismo, Platão foi profundamente influenciado pela
doutrina da preexistência e imortalidade da alma36.

32
Cf. ANTISERI, D.; REALE, G., História da filosofia – Antiguidade e Idade Média, Vol. I, 7.
ed., São Paulo, Paulus, 2002, pp. 45-46.
33
Cf. Ibidem, p. 46.
34
Cf. PIAZZA, W., Religiões da humanidade, 3. ed., São Paulo, Loyola, 1996, p. 145.
35
Cf. MARÍAS, J., História da filosofia, São Paulo, Martins Fontes, 2004, p. 19.
36
Cf. HADOT, P., O que é a filosofia antiga?, 2. ed., São Paulo, Loyola, 2004, pp. 92-93.
33

A filosofia platônica é uma reflexão ontológica e epistemológica sobre a


realidade e a alma humana. Para Platão, o verdadeiro conhecimento da realidade
não tem como objeto o mundo empírico das coisas, visível, material e mutável,
mas o mundo das idéias, invisível e eterno, metafenomênico, captado apenas pela
inteligência37. O mundo sensível é ilusório, reflexo mutável, pura sombra do
mundo real; o verdadeiro mundo é o das idéias, que o homem atinge pela
contemplação e pela depuração dos enganos dos sentidos. Platão usa o “mito da
caverna” para explicar e justificar a estrutura dualista da realidade38.
Já para explicar a origem da alma e o conhecimento do mundo da idéias,
Platão utiliza o “mito de Fedro”. Segundo esse famoso mito que Sócrates conta a
Fedro, a alma, em sua situação originária, pode ser comparada a um carro puxado
por dois cavalos alados; um dócil e de boa raça, o outro indócil (os instintos
sensuais e as paixões), dirigido por um cocheiro (a razão) que se esforça por
conduzi-lo bem. Esse carro, num lugar supraceleste (hiperurânio), circula pelo
mundo das idéias, que a alma assim contempla. As dificuldades para guiar a
parelha de cavalos fazem com que a alma caia: os cavalos perdem as asas, e a
alma fica encarnada num corpo. A vida humana à qual a alma dá origem é
moralmente mais perfeita na proporção que mais houver contemplado a verdade
no hiperurânio; e é naturalmente menos perfeita quanto menos a tenha
contemplado. Por esse motivo, as almas estão numa hierarquia de nove graus, que
vai do filósofo ao tirano. Contudo, o homem não recorda as idéias que

37
Cf. MIANO, F., Platão. In: DM, pp. 879-880.
38
MARÍAS, J., História da filosofia, São Paulo, Martins Fontes, 2004, pp. 54-55: “O conteúdo do
mito resume-se basicamente ao seguinte. Platão imagina alguns homens que desde pequenos se
encontram numa caverna provida de uma abertura por onde penetra a luz exterior; estão presos de
modo tal que não podem se mover nem olhar, a não ser para o fundo da caverna. Fora desta, nas
costas desses homens, brilha o resplendor de um fogo aceso sobre uma saliência do terreno, e entre
o fogo e os homens acorrentados há um caminho com um pequeno muro; por esse caminho
passam homens que levam todo tipo de objetos e estatuetas, mais altos que o muro, e os
acorrentados vêem as sombras dessas coisas, que se projetam sobre o fundo da caverna: quando os
transeuntes falam, os acorrentados ouvem suas vozes como se procedessem das sombras que
vêem, para eles a única realidade. Um dos acorrentados, livre de sua sujeição, contempla a
realidade exterior; a luz faz com que lhe doam os olhos, e ele quase não vê; o sol o deslumbra
dolorosamente e o cega. Pouco a pouco tenta habituar-se, primeiro consegue ver as sombras; em
seguida, as imagens das coisas, refletidas nas águas; depois, as próprias coisas. Veria o céu de
noite, as estrelas e a lua; e ao amanhecer, a imagem refletida do sol, e, por último, depois de um
longo esforço poderia contemplar o próprio sol. Então sentiria que o mundo em que tinha vivido
antes era irreal e desdenhável; e se falasse a seus companheiros desse mundo de sombras e
dissesse que não eram reais, eles ririam dele, e se tentasse salvá-los e arrastá-los para o mundo
real, o matariam. O que está simbolizado nesse mito? A caverna é o mundo sensível, com suas
sombras, que são as coisas. O mundo exterior é o mundo verdadeiro, o mundo inteligível ou das
idéias”.
34

contemplou. A partir do momento que se une ao corpo, o conhecimento da alma


cai num estado de sono profundo. Mas de suas asas ainda restam cotos doloridos,
que se excitam quando o homem vê as coisas, porque estas lhe fazem recordar as
idéias, vistas na existência anterior. Portanto, a realidade é apenas um estímulo
para a alma recordar as idéias que contemplou no hiperurânio39.
O corpo, porém, é fonte de problemas para a alma, por causa das paixões
que suscita e pelas necessidades que impõe ao homem. Deve, portanto, a alma,
libertar-se do corpo, como de um cárcere. E este processo de libertação começa e
avança através da reflexão filosófica, ou seja, do conhecimento racional que
purifica a inteligência e leva a alma a relembrar as idéias contempladas no
hiperurânio40.
No processo de purificação da inteligência situa-se a ascese platônica. Esta
pode, inclusive, ser denominada ‘ascese do corpo e do pensamento’, pois supõe
um árduo esforço para vencer as paixões do corpo e as distrações da alma41. E
como a libertação total só acontece com a morte, também compete à ascese
platônica libertar a alma do medo da morte.
1.1.1.3.
Epicurismo

Escola fundada por Epicuro de Samos (341-270 a.C.), por volta do ano 306
a.C., em Atenas. Segundo Epicuro, os deuses existiam, mas não se envolviam de
forma alguma com a vida dos homens, pois o curso dos acontecimentos naturais é
determinado tão somente pelas leis que derivam dos movimentos dos átomos e
não pela ação dos deuses. Portanto, não fazia sentido cultuar os deuses, era inútil
invocá-los nas dificuldades e improdutivo oferecer-lhes sacrifícios. A alma
também pertence ao mundo material; como o corpo, ela, apenas, é o resultado de
uma constelação acidental de átomos42. “Era, portanto, impossível a Epicuro
associar suas idéias de religião com qualquer poder transcendente”43.
Epicuro ensinava que para chegar à verdadeira felicidade era preciso viver
de acordo com a natureza. E como o conhecimento da natureza não poderia

39
Cf. Ibidem, pp. 52-53.
40
Cf. ANTISERI, D.; REALE, G., História da filosofia – Antiguidade e Idade Média, Vol. I, 7.
ed., São Paulo, Paulus, 2002, p. 156.
41
Cf. HADOT, P., O que é filosofia antiga?, 2. ed., São Paulo, Loyola, 2004, pp. 105-106.
42
Cf. KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento – História, cultura e religião do período
helenístico, Vol. 1, São Paulo, Paulus, 2005, p. 152.
35

proceder de nenhuma ideologia metafísica, era necessário observar os desejos


‘naturais’ da existência humana, presentes em seu estado mais puro na criança,
que não quer outra coisa senão ‘felicidade serena sem nenhuma obrigação’. A
partir dessa concepção naturalista da realidade, Epicuro definiu que todas as ações
humanas devem ser conduzidas em vista de um único fim: o prazer44.
E, tratando-se do corpo, o máximo prazer é a supressão da dor. É o estado
chamado “aponia”, sintetizado em três componentes: não ter fome, não ter sede e
não ter frio. No que tange à alma, o maior prazer é concebido como a supressão da
aflição: é o estado da “ataraxia”. Por conseguinte, o verdadeiro prazer vem a ser a
ausência de dor no corpo (aponia) e a ausência de agitação da alma (ataraxia).
Para Epicuro, era preciso transformar o tempo de vida em tempo de felicidade. E a
felicidade estava exatamente no prazer45.
A ascese epicurista busca eliminar da vida humana tanto o sofrimento físico
como o espiritual. Quando a dor é física, esta deve ser eliminada com a
rememorização de uma situação prazerosa do passado ou uma esperançosa do
futuro. Quando a dor é da alma, devem ser revistos os valores que orientam a
vida. Após esse redirecionamento, com a conseqüente eliminação dos temores,
recupera-se a saúde espiritual e a dor desaparece. Recordando momentos de
prazer e redefinindo os valores existenciais, a ascese epicurista combatia o
sofrimento.
Segundo Epicuro, o cálculo utilitário dos prazeres e dos sofrimentos
possíveis era o primeiro passo para a conquista da felicidade. O homem sábio era
aquele que sabia selecionar e dosar os prazeres necessários e abster-se daqueles
que eram inúteis; capaz também de renunciar aos prazeres que poderiam ser
futuras fontes de sofrimentos e aceitar a dor quando ela fosse portadora de um
prazer vindouro46.
1.1.1.4.
Estoicismo

A escola estóica tirou seu nome da “Stoá Poikile” (Pórtico das Pinturas),
sobre a ágora de Atenas; é aí que seu fundador, Zenão de Cítio (334-262 a.C.),

43
Ibidem.
44
Cf. Ibidem.
45
Cf. LAKS, A., Epicuro. In: DEFM, Vol. I, p. 530.
36

começou a ensinar, após anos de formação. Os principais mestres desta escola


foram, além de Zenão, Cleante de Axo e Crisipo de Soles47.
Enquanto os epicuristas viam a natureza como uma constelação acidental de
átomos, para os estóicos, o universo não é feito de matéria morta, mas de uma
substância viva, um princípio racional: o ‘logos’, concebido intencionalmente, que
provê a beleza e a ordem do mundo. A religião estóica caracterizou-se,
justamente, por uma fé monoteísta, que, além de rejeitar conceitos
antropomórficos de Deus, propagou o panteísmo e o racionalismo. Os diferentes
deuses cultuados pelas várias nações eram, segundo os estóicos, apenas nomes
para uma só e mesma razão divina, Zeus, a mais elevada divindade dos gregos48.
Para o estoicismo, o ‘logos’ divino distribui seus desígnios a todos os seres
vivos, para que todos ajam e se desenvolvam segundo a parcela que receberam.
Assim sendo, a finalidade da vida humana não é o prazer, como afirmavam os
epicuristas, mas a ‘vida racional’; pois o homem deve viver conforme a razão, que
é a porção do logos divino inata ao seu ser e que o coloca em comunhão com todo
o universo. As experiências naturais da existência humana, como o corpo físico, a
saúde e tudo o que é necessário para a vida humana, são apenas a etapa preliminar
de uma vida pautada totalmente pela racionalidade. No entanto, as chamadas
‘doenças da alma’, isto é, as emoções e as afeições, podem impedir o autodomínio
racional. O desejo, o medo, o prazer, a tristeza e a compaixão são estados
patológicos da alma, dos quais o homem deve livrar-se para alcançar a
‘imperturbabilidade’, a ‘apatia’, a ‘ataraxia’, meta da ascese estóica49.
O estoicismo foi muito influenciado pelo cinismo. Vínculos concretos
uniram os primeiros cínicos e os que haviam de tornar-se os estóicos. Zenão de
Cítio fora discípulo de Crates de Tebas, filósofo cínico. Estóicos como Zenão e
Cleanto de Axo praticavam uma ascese bastante semelhante à dos cínicos:
pobreza, sobriedade, frugalidade e amor ao esforço50. A tese principal do cinismo
é que a finalidade da existência humana é a felicidade; e esta consiste numa vida
virtuosa. Para os cínicos, a virtude não é aquisição de conhecimentos teóricos,

46
Cf. CHAVES CURVÊLO, L., O epicurismo. In: CULTURA BRASIL. Disponível em:
<http://www.culturabrasil.pro.br/oepicurismo.htm>. Acesso em: 05 de setembro de 2005.
47
Cf. BRUNSCHWIG, J., Estoicismo antigo. In: DEFM, Vol. I, p. 579.
48
Cf. KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento – História, cultura e religião do período
helenístico, Vol. I, São Paulo, Paulus, 2005, p. 154.
49
Cf. Ibidem, pp. 155-156.
37

mas ação; não é na complexidade do discurso que se realiza o bem, mas no ato
concreto. Trata-se, pois, de habituar o corpo a suportar os males, a fim de que ele
jamais seja um obstáculo às decisões morais da pessoa. Fora das virtudes não
existem bens, de modo que foi característica dos cínicos o desprezo pela
comodidade, pelas riquezas e pelos prazeres. Com isso adquire-se a força de alma
que permite à pessoa ser autônoma e indiferente diante das vicissitudes da
existência, e, deste modo, ser livre e feliz51. A infelicidade humana decorre da não
satisfação dos desejos, portanto, é preciso agir sobre si mesmo, isto é, selecionar
os desejos, a tal ponto que se disponha imediatamente dos meios para satisfazê-
los52. A ascese cínica é ainda concebida como um método preventivo, capaz,
simultaneamente, de extinguir o temor diante dos males vindouros e de dar força
para enfrentar os que se apresentam, inclusive a morte. Diógenes de Sinope,
expoente da filosofia cínica, preparando-se para enfrentar os sofrimentos inerentes
à morte, treinava abraçando estátuas cobertas de gelo e rolando sobre areia
quente53.
A ética estóica é uma variante mais evoluída da ética cínica. Pois guarda
suas vantagens e evita seus inconvenientes. Evita seus inconvenientes quando não
obriga o ser humano a tentar tornar-se indiferente àquilo que não pode possuir ou
evitar. Se não consegue evitar um acontecimento ou uma situação, suporta-os
estoicamente: sua felicidade não dependeria de evitá-los. Se não consegue obter
um objeto ou um estado de tranqüilidade, não sofre dolorosamente sua privação:
sua felicidade não dependeria de sua obtenção. Por outro lado, o estoicismo
guarda a vantagem de selecionar os desejos com os meios compatíveis para
realizá-los. Conseqüentemente, o estóico só escolherá aquilo que julgar útil e
conveniente para sua felicidade54.
A virtude estóica é a indiferença a todos os bens do mundo que não
dependem do esforço humano, e cujo curso é fatalmente determinado pela
natureza. Por conseguinte, a ascese estóica consiste na renúncia e indiferença a
tudo, exceto ao uso da razão. A indiferença permite ao ser humano ser feliz
mesmo nos sofrimentos, mesmo no que se chama de infelicidade, porque ele já se

50
Cf. GOULET CAZÉ, M. O., Cínicos. In: DEFM, Vol. I, pp. 261-265.
51
Cf. ABBAGNANO, N., Cínicos. In: DF, pp. 141-142.
52
Cf. BRUNSCHWIG, J., Estoicismo antigo. In: DEFM, Vol. I, p. 584.
53
Cf. GOULET CAZÉ, op. cit., p. 262.
54
Cf. BRUNSCHWIG, J., op. cit., pp. 584-585.
38

tornou indiferente a tudo o que não pode ser alterado e não depende da vontade
humana. O famoso adágio “suporta-te e abstém-te” resume o ensinamento
estóico55.
Para os estóicos, os homens são sábios ou loucos: sábios, se livres das
paixões; loucos, se dominados por elas. É preciso evitar as emoções, pois elas são
incompatíveis com o autodomínio racional. A paixão é sempre e substancialmente
má, pois é movimento irracional e doença da alma. A única atitude do sábio
estóico deve ser o aniquilamento da paixão, até a indiferença. O ideal da ascese
estóica não é o domínio racional da paixão, mas a sua destruição total, para dar
lugar unicamente à razão: ideal do homem sem paixão, que anda como um deus
entre os homens. Daí a luta do estoicismo contra o sentimento, a emoção, a
paixão, donde derivam o desejo, o vício e a dor, que devem ser aniquilados56.
O sábio é feliz, nada afeta seu verdadeiro ser, porque está em total harmonia
consigo mesmo; e, assim, permanece ‘imperturbável’, mesmo em meio aos mais
intensos e diferentes acontecimentos57.
1.1.1.5.
Neopitagorismo

Embasado no misticismo órfico do pitagorismo, e combinando elementos do


platonismo com elementos do estoicismo, o neopitagorismo emergiu como
movimento místico e religioso bem caracterizado nos séculos I-0 a.C. Influenciou
todas as religiões da época, sobretudo as novas formas de religiosidade, como a
dos essênios que, posteriormente, influenciou o cristianismo58.
A novidade do neopitagorismo está na sistematização filosófica daquilo que
as religiões oferecem como revelação divina. Acreditavam os neopitagóricos
numa espécie de intuição direta da divindade como uma nova e mais perfeita
forma de conhecimento, totalmente distinta da razão discursiva. A partir de então,
a revelação divina é invocada como princípio de autoridade doutrinária. E a figura

55
Cf. RIBEIRO JR., W.A., O estoicismo. In: PORTAL GRAECIA ANTIQUA. Disponível em:
<http://www.greciantiga.org/txt/estoicos.asp>. Acesso em: 05 de setembro de 2005.
56
Cf. PORTAL MUNDO DOS FILÓSOFOS, O estoicismo. Disponível em:
<http://www.mundodosfilosofos.com.br/estoicismo.htm>. Acesso em: 05 de setembro de 2005.
57
Cf. KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento – História, cultura e religião do período
helenístico, Vol. I, São Paulo, Paulus, 2005, p. 157.
58
Cf. PAULI, E., Neopitagorismo. In: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA.
Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/Megahist-filos/Hel-Rom/2642y390.html>.
Acesso em: 05 de setembro de 2005.
39

ideal do filósofo, identificada de modo paradigmático com Pitágoras, torna-se a de


um profeta, um homem superior, que recebe revelações dos deuses59.
Influenciado pelo dualismo platônico, o neopitagorismo também ensinava a
necessidade de desprender-se a alma do corpo para unir-se à divindade. Por isso, a
ascese neopitagórica consistia basicamente na purificação da alma pela repressão
da sensualidade60. Era uma ascese marcadamente estóica e, como tal, visava a
felicidade já neste mundo.
1.1.1.6.
Neoplatonismo

Desenvolvido por Plotino (205/270) no início do século IV, início da


decadência do Império Romano, o neoplatonismo tornou-se uma das mais
importantes escolas filosóficas da época e foi a última contribuição do
pensamento grego à filosofia ocidental. Sua influência se fez sentir tanto no
judaísmo como no cristianismo61.
É importante enfatizar que a filosofia neoplatônica não implica somente a
retomada do pensamento platônico. Plotino fundiu conceitos de Parmênides,
Platão e Aristóteles, da filosofia estóica e neopitagórica com idéias místicas de
origem oriental. Os discípulos de Plotino, posteriormente, tomaram caminhos
diferentes; contudo, a doutrina neoplatônica básica estipulava o abandono do
mundo material para que a alma pudesse unir-se a uma entidade superior,
incompreensível e auto-suficiente, que permeia toda a realidade criada62.
Segundo Plotino, toda a realidade provém, numa processão intemporal, de
um princípio último perfeitamente simples, imutável e incognoscível, a que ele
chamou de “Uno”63. “O Uno é atividade autoprodutiva, absoluta liberdade
criativa, é o ‘Bem que cria a si mesmo’, causa de si, o que existe por si e para si, é
o próprio transcendente”64.
O Uno gera sucessivamente dois princípios, duas hipóstases: a inteligência
e, depois, a alma universal, que se expande em ação criadora. A inteligência e a
alma universal procedem do Uno por emanação. Pela teoria da emanação, Plotino

59
Cf. Ibidem.
60
Cf. Ibidem.
61
Cf. RIBEIRO JR., W.A., O neoplatonismo. In: PORTAL GRAECIA ANTIQUA. Disponível
em: <http://www.greciantiga.org/fil/fil08.asp>. Acesso em: 05 de setembro de 2005.
62
Cf. Ibidem.
63
Cf. STEAD, C., Platonismo cristão. In: DCT, pp. 1402-1403.
40

ensinava que todas as coisas existentes derivam necessariamente do Uno e vão se


tornando cada vez menos perfeitas à medida que se afastam dele;
conseqüentemente, o mundo inteligível (Uno, inteligência e alma universal) é
distinto e mais perfeito que o mundo sensível (material)65. A inteligência é a
origem de toda justiça, de toda virtude e de toda beleza; é o princípio que faz a
realidade ter uma forma. Da inteligência procede a alma universal, que é a
mediação entre a inteligência e o mundo sensível, cuja ordem é constituída por
ela. As almas humanas também emanam dessa alma universal, constituindo-se na
parcela divina presente em cada homem66.
O mundo sensível, a matéria, é para Plotino o oposto ao Bem; é, ao
contrário, o mal e a fonte do mal. Onde está presente a matéria há não somente
uma falta de bondade, mas também uma falta de realidade, pois a matéria é o
ilusório. A matéria é o não existente, a antítese do Uno. Somente o Uno está livre
da matéria; só ele é luz; só ele é plenamente real. E como o homem é constituído
de corpo e alma, é seu dever retornar ao Uno, eliminando de seu ser tudo o que é
material67.
O primeiro passo da alma, no processo de retorno ao Uno, é reentrar em si
mesma, libertando-se do mundo material, para contemplar em si o intelecto
interior. Da contemplação do intelecto interior alcança a contemplação do
intelecto superior e, assim, progressivamente, até alcançar a contemplação do
Uno, quando se atinge o êxtase, isto é, um estado de hiper-racionalidade, não de
inconsciência68. “No êxtase, a alma se vê exaltada e preenchida pelo Uno”69.
Êxtase é simplificação, é eliminação de alteridade, separação de tudo o que é
terreno70.
O ascetismo neoplatônico se constitui num trabalho de libertação da matéria
para levar a alma ao êxtase. O que impede a contemplação é a dispersão da alma
em múltiplas preocupações, e estas são causadas pelo mundo sensível. É preciso

64
MIANO, F., Plotino. In: DM, p. 880.
65
Cf. ABBAGNANO, N., Neoplatonismo. In: DF, pp. 710-711.
66
Cf. PORTAL MUNDO DOS FILÓSOFOS, O neoplatonismo. Disponível em:
<http://www.mundodosfilosofos.com.br/neoplatonismo.htm>. Acesso em: 05 de setembro de
2005.
67
Cf. PORTAL ENCICLOPÉDIA CATÓLICA, Neoplatonismo. Disponível em:
<http://enciclopediacatolica.com/neoplatonismo.htm>. Acesso em: 05 de setembro de 2005.
68
Cf. MIANO, F., loc. cit.
69
ANTISERI, D.; REALE, G., História da filosofia – Antiguidade e Idade Média, Vol. I, 7. ed.,
São Paulo, Paulus, 2002, p. 349.
41

vencer a dispersão, sendo indiferente a tudo, até atingir o estado de indiferença


que possibilitará ao homem ser feliz até entre tormentos físicos, pois sua alma
estará unida ao Uno, enquanto seu corpo sofre71.
Não diferindo da estrutura ascética das escolas filosóficas anteriores, o
neoplatonismo também inclui a prática da abnegação, mas apenas como meio para
se chegar ao êxtase, que é o fim almejado.
1.2.1.2.
Ascese na fé bíblica

Na bíblia encontramos o termo grego ascese apenas duas vezes, uma no


Antigo Testamento (cf. 2Mc 15, 4), “asken” (ajskei'n)72, referente à observância
do sábado; e outra no Novo Testamento (cf. At 24, 16), “asko” (ajskw'), quando
são Paulo, diante do procurador Félix, alude ao esforço constante para alcançar
consciência pura diante de Deus e dos homens73.
A utilização do termo é escassa, mas o esforço abnegado, um dos elementos
constitutivos da prática ascética, encontra-se em várias passagens da Sagrada
Escritura. É o que veremos agora.
1.2.1.2.1.
Antigo Testamento

Não há nenhuma tendência para o ascetismo na piedade do Antigo


Testamento, que louva a criação e vê riqueza, descendência numerosa e vida
longa como bênçãos de Deus (cf. Gn 12, 1-3; 13, 14-17; Gn 49; Jó 42, 10-16). Já
que para o pensamento semítico o homem é um ser indivisível e o corpo não é
considerado uma parte inferior, também os impulsos corporais são valorizados:
uma mesa farta (cf. Sl 23, 5), a alegria do vinho (cf. Sl 104, 15), a vida conjugal e
a fecundidade (cf. Sl 128) são estimadas. Somente em determinadas situações o
respeito religioso, o temor do sagrado, prescrevia abster-se do ato sexual (cf. Ex
19, 15; 1Sm 21, 4ss; 2Sm 11, 11) ou do uso do vinho (cf. Lv 10, 9)74.
Uma ascese religiosamente motivada encontramo-la no jejum de penitência
celebrado pelo povo em ocasiões especiais (cf. 1Sm 7, 6; Jr 36, 6; Jl 1, 13ss; 2,

70
Cf. Ibidem, p. 350.
71
Cf. Ibidem, p. 348.
72
Tradução da Septuaginta.
73
Cf. MASOLIVER, A., Ascese. In: DTVC, p. 42.
74
Cf. SCHNACKENBURG, R., Ascese. In: DBT, p. 34.
42

12), bem como no dia da ‘Expiação’ (cf. Lv 16, 29ss); mais tarde também na
‘festa de Purim’ (cf. Est 9, 31). Havia também o jejum espontâneo, individual,
praticado depois de falta grave (cf. 2Sm 12, 16ss; 1Rs 21, 27), cuja finalidade era
esconjurar a ira e o castigo de Deus. Somente no judaísmo pós-exílico, sofrido e
consciente da culpa dos antepassados e de sua própria culpa, cresceu no povo o
desejo de renúncia e de penitência. Ao mesmo tempo a piedade legalista, que se
baseava sobre um grande número de boas obras e méritos, exigia a prática de
exercícios religiosos, entre os quais estavam: rezar em determinadas horas do dia,
dar esmolas e jejuar (cf. Tb 12, 8)75.
Um dado importante é que toda essa prática penitencial exterior deveria ser
acompanhada por um comportamento interior de conversão, de repúdio ao pecado
e de ardente desejo de retornar a Deus (cf. 1Sm 7, 3)76. Por isso, os profetas
insistiram tanto no conteúdo espiritual das práticas exteriores de penitência; isto é,
para que tivessem valor e produzissem frutos, precisavam ser acompanhadas da
contrição interior, pois somente assim poderiam refrear os vícios e as paixões (cf.
Is 58, 1-9)77.
O povo de Israel conheceu também a prática do “Nazireado”, que alguns
escolhiam como forma de consagração temporária a Deus (cf. Nm 6, 1-8). Embora
no Antigo Testamento não se encontre determinado um número de dias para o
cumprimento de tal voto, a tradição judaica prescrevia trinta dias, podendo-se
duplicar ou até triplicar esse período. Sansão, Samuel e João Batista foram os
únicos nazireus vitalícios registrados na bíblia, sendo que já antes de seu
nascimento, seus pais fizeram os votos por eles (cf. Jz 13, 4-5.7; 1Sm 1, 11-21; Lc
1, 15). Eram deveres do nazireu: privar-se de todo tipo de bebida alcoólica; abster-
se de cortar os cabelos e a barba, sinal visível da consagração; fugir de todo
contato impuro, especialmente com os cadáveres, não lhes sendo permitido sequer
sepultar os próprios parentes. Ao término dos votos, o nazireu oferecia um
holocausto, um sacrifício expiatório e um agradecimento, pães ázimos, óleo e
libações. Durante o sacrifício de agradecimento, o nazireu tinha os cabelos

75
Cf. Ibidem, p. 35.
76
Cf. ANCILLI, E.; LAUDAZI, C., Ascesi. In: DES, p. 214.
77
Cf. Ibidem.
43

cortados e queimados no fogo; depois podia beber vinho, pois estava totalmente
liberado do voto78.
1.2.2.
Judaísmo palestinense

Somente alguns grupos separados, como os essênios de Qumran, praticavam


a penitência com método e constância. A comunidade essênia existiu na Palestina
desde o século II a.C. até a guerra judaica com Roma (66-73 d.C.). Observavam o
celibato, colocavam os bens em comum e procuravam alcançar a perfeição
abstendo-se da impureza legal, mas, sobretudo, estudando assiduamente a
“Torá”79. Costumavam levantar-se para a oração antes do nascer do sol. Depois,
trabalhavam até o meio-dia, quando tomavam banho – para terem certeza de que
estavam limpos – antes da refeição. Em seguida, trabalhavam novamente até a
refeição noturna80.
Nutriam expectativas escatológicas iminentes: esperavam o fim do mundo e
o juízo divino num futuro próximo e, deste modo, definiam a si mesmos como os
‘filhos da luz’, como o ‘resto santo de Israel’, o verdadeiro povo de Deus da época
final da história81. Isso os levava ao isolamento, para longe do povo, uma vez que
fundavam colônias do tipo monacal, no deserto, onde o ideal de pureza cultual e
moral podia se realizar82.
Todo aquele que desejasse se tornar um essênio deveria ceder tudo o que
possuísse à comunidade. Depois receberia um típico manto branco usado pela
comunidade. Somente depois de mostrar que era digno de confiança pelo período
de um ano é que teria permissão de usar a água da comunidade para purificação.
Além disso, deveria provar que era realmente confiável por mais dois anos antes
de se tornar um membro efetivo. Depois de prometer guardar os padrões dos
essênios, o candidato tornava-se um membro e recebia permissão para participar
das refeições comunitárias. No entanto, caso transgredisse a lei do grupo, era
excluído da comunidade83.

78
Cf. YOUNGBLOOD, R., Nazireu. In: DIB, p. 1013.
79
Cf. SCHNACKENBURG, R., Ascese. In: DBT, p. 35.
80
Cf. YOUNGBLOOD, R., Essênios. In: DIB, pp. 505-506.
81
Cf. TILLY, M., Assim viviam os contemporâneos de Jesus, São Paulo, Loyola, 2004, p. 78.
82
Cf. SCHNACKENBURG, R., loc. cit.
83
Cf. YOUNGBLOOD, R., Essênios. In: DIB, p. 506.
44

1.2.3.
Novo Testamento

No Antigo Testamento o núcleo da ascese era a prática da penitência, tanto


para reparar pecados como para obter graças particulares. Já no Novo Testamento,
especialmente com a teologia paulina, há um deslocamento da idéia de penitência
para luta e combate espiritual. A vida cristã é uma luta constante entre o “homem
velho”, marcado pelo pecado, e o “homem novo”, habitado pela graça.
1.2.3.1.
Evangelhos

Jesus, com a mensagem e o anúncio do reino de Deus motiva o homem à


conversão (cf. Mt 4, 17; Mc 1, 15), interpela-o e solicita dele uma resposta clara e
decidida. A cada homem é solicitada a adesão total à sua pessoa, que deve ser
demonstrada através de um amor superior ao tido pelos genitores, pelos filhos,
pelos parentes e, por fim, até pela própria vida (cf. Mt 10, 37-39; 16, 24-25; Mc 8,
34-38; Lc 9, 23-27; 14, 26-27). No esforço para tornar-se discípulo consiste o
ensinamento ascético de Jesus84.
É importante acrescentar que a renúncia, por si só, não constitui elemento
qualificante e essencial ao discipulado de Jesus. Nos evangelhos não é proposta
uma ascese que comporte por princípio a renúncia à posse ou ao uso dos bens e a
continência sexual. Todavia, não significa que tais renúncias não são requisitadas
em casos concretos, como no episódio do jovem rico (cf. Mt 19, 21) e no convite
ao celibato àqueles que querem consagrar-se exclusivamente ao serviço do reino
(cf. Mt 19, 12). Mas, via de regra, o princípio basilar é que a renúncia somente é
exigida quando há qualquer pessoa, coisa ou circunstância que impeça o
seguimento de Cristo. O que é comum a todos os discípulos é a árdua luta para
entrar no reino (cf. Mt 7, 13)85.
1.2.3.2.
Ensinamento Paulino

A vida cristã, na compreensão paulina, é toda iluminada pela teologia do


batismo. Com este sacramento o homem participa da paixão, morte e ressurreição
de Cristo; é regenerado e torna-se nova criatura, “homem novo”, pela inabitação

84
Cf. SCHNACKENBURG, R., Ascese. In: DBT, p. 35.
85
Cf. Ibidem.
45

do Espírito Santo (cf. Rm 8, 5ss; Gl 5, 16-25). A fidelidade a esta nova vida


justifica e exige constante luta contra as paixões da carne (cf. Rm 6; Gl 5, 24),
próprias do “homem velho”; pois o homem novo recebido no batismo não existe
ainda em plenitude; esta só será alcançada combatendo e vencendo o homem
velho, para revestir-se de Cristo (cf. Gl 3, 27-28)86. É, por conseguinte, intrínseco
à vida cristã o imperativo de viver de modo coerente com a graça recebida no
batismo.
1.2.3.2.1.
Inimigos da ascese cristã

São Paulo em diversas passagens recorda aos cristãos os principais inimigos


e os obstáculos que se opõem ao desenvolvimento da graça batismal. Alguns
desses inimigos estão dentro do próprio homem, outros estão fora; alguns são
deste mundo, outros o transcendem. Dentre os principais inimigos da vida cristã
está Satanás, o homem velho, o mundo e o dinheiro87.
O inimigo mais duro e aguerrido, astuto e maligno é Satanás. São Paulo
considera-o como o tentador do homem por induzi-lo à rebelião contra Deus; o
tentador por antonomásia (cf. 1Ts 3, 5). Como fez com Eva, utiliza ainda a
sedução e a astúcia para enganar os cristãos e desviá-los de uma vida simples e
pura: “Receio, porém, que, como Eva foi enganada pela esperteza da serpente,
assim também vossos pensamentos sejam desviados da simplicidade e da pureza
exigidas para o seguimento de Cristo” (2Cor 11, 3)88.
O demônio age sempre com método e astúcia e com toda sorte de
maquinações, e também com violência (cf. Ef 6, 10-20). Sabe camuflar-se como
anjo de luz, para melhor enganar e seduzir (cf. 2Cor 11, 14). Ao cristão é
necessária uma contínua vigilância para não ser surpreendido. Por isso mesmo,
utilizando metáforas militares que correspondem a algumas virtudes cristãs, são
Paulo indica as armas a serem usadas contra o demônio. Ele as chama de
“armadura de Deus”. Pois contra Satanás não basta uma defesa somente humana,

86
Cf. Ibidem.
87
Cf. MARIANI, B., L’ascesi cristiana. In: RIVISTA DI VITA SPIRITUALE, Roma, 1967, p.
497.
88
Cf. Ibidem.
46

pois ele age nas trevas, é invisível e capaz de toda maquinação. O cristão deve
estar equipado para uma guerra, portando armas de defesa89:

“Por isso, protegei-vos com a armadura de Deus, a fim de que possais resistir no
dia mau, e assim, empregando todos os meios, continueis firmes. Ficai, pois, de
prontidão, tendo a verdade como cinturão, a justiça como couraça e os pés calçados
com o zelo em anunciar a Boa-Nova da paz. Em todas as circunstâncias, empunhai
o escudo da fé, com o qual podeis apagar todas as flechas incendiadas pelo
maligno. Enfim, ponde o capacete da salvação e empunhai a espada do Espírito,
que é a Palavra de Deus” (Ef 6, 13-17).

O cristão não deve, contudo, esquecer que a batalha é contra um inimigo


que transcende a esfera deste mundo, por isso são Paulo acrescenta que para
derrotar Satanás é necessária a colaboração divina. Ou seja, é necessária a oração
incessante, contínua, ‘feita em espírito’, isto é, movida pelo Espírito Santo: “Com
toda sorte de preces e súplicas, orai constantemente no Espírito” (Ef 6, 18a). A
oração perseverante fortalece o cristão tornando-o apto a vencer as insídias de
Satanás90.
Outro inimigo da ascese cristã é o “homem velho”. Este inimigo está dentro
de nós. Chama-se homem velho porque é uma herança de Adão e porque também
tem como antagonista o “homem novo”, isto é, o homem regenerado pela graça
batismal, enxertado em Cristo, protótipo do homem novo. Ao esforço de espoliar-
se do homem velho, deve corresponder o esforço de revestir-se do homem novo.
Este revestimento do homem novo requer uma transformação radical que
comporta a renovação da mente (cf. Rm 12, 1-2), isto é, um modo de pensar
totalmente novo. Equivale a revestir-se de Cristo (cf. Rm 13, 14; Gl 3, 26-29),
conformando-se a ele (cf. Rm 15, 3)91.
O terceiro inimigo a ser combatido é o “mundo”. São Paulo considera
Satanás o ‘deus’ deste mundo, pois com suas astúcias obstrui a mente humana
impedindo, assim, que a luz do evangelho penetre e transforme o íntimo das
pessoas (cf. 2Cor 4, 4). Por isso mesmo, são Paulo utiliza o termo ‘mundo das
trevas’, isto é, mundo pleno de tentações, de armadilhas e de seduções. Este
mundo apresenta uma ilusão de vida fácil e agradável às pessoas, bem de acordo
com o orgulho, a ambição e a vaidade próprias da natureza humana, tornando-se

89
Cf. Ibidem, p. 498.
90
Cf. Ibidem.
91
Cf. Ibidem, p. 499.
47

dessa forma uma tentação difícil de resistir. Obcecado pelas seduções do mundo,
o homem torna-se seu escravo (cf. Rm 6, 16-23). Daí a necessidade de um esforço
do cristão para libertar-se do influxo do mundo92.
Por fim, o último inimigo do cristão é o “dinheiro”. São Paulo não é
contrário ao dinheiro e ao seu uso honesto. Ele mesmo organiza coletas para
beneficiar os cristãos de Jerusalém (cf. Rm 15, 25-28; 1Cor 16, 1-4; 2Cor 8-9; Gl
2, 10). Trabalha dia e noite com as próprias mãos para garantir seu próprio
sustento, a fim de não ser peso para nenhuma comunidade cristã (cf. 1Cor 4, 12;
1Ts 2, 5-9; 2Ts 3, 8-10). Pede aos fiéis que trabalhem com as próprias mãos, não
só para fugir do ócio, mas também para que as comunidades cristãs não fiquem
dependente dos pagãos (cf. 1Ts 4, 11-12). Por isso adverte que aquele que não
trabalha, também não deve comer (cf. 2Ts 3, 10.12)93.
São Paulo se dá por satisfeito com o necessário para sobreviver com
dignidade, e não busca nada além disso: “Então, tendo com que nos sustentar e
nos vestir, fiquemos contentes” (1Tm 6, 8). Desta maneira, sente que tem mais
credibilidade para anunciar a Palavra de Deus. Ele sabia muito bem, por
experiência que tinha do mundo de então, que o amor ao dinheiro é insaciável, é a
origem de todos os males: “Na verdade, a raiz de todos os males é o amor ao
dinheiro. Por se terem entregue a ele, alguns se desviaram da fé e se afligem com
inúmeros sofrimentos” (1Tm 6, 10)94.
1.2.3.2.2.
A ascese em metáforas esportivas

São Paulo compara o cristão a um atleta: “Acaso não sabeis que, no estádio,
todos correm, mas só um ganha o prêmio? Correi de tal maneira que conquisteis o
prêmio” (1Cor 9, 24). O cristão não é, todavia, um simples atleta, mas é aquele
que corre para ganhar o prêmio. No seu modo de agir deve ser ágil, sempre
disposto a correr rumo à pátria celeste. A vida cristã é uma corrida para pessoas
fortes, determinadas a vencer sempre. Tudo o que impede a vitória na competição
deve ser eliminado. Como o corpo e a vontade através do treinamento tornam o
atleta o mais capacitado possível para a vitória, do mesmo modo a luta contra o
pecado e as tentações tornam o cristão também apto à vitória. Assim como o atleta

92
Cf. Ibidem, p. 501.
93
Cf. Ibidem, pp. 502-503.
48

se disciplina regulando a alimentação, o descanso, os prazeres, submetendo-se a


duros esforços através de treinamentos diários, para conseguir uma coroa
perecível (cf. 1Cor 9, 25a), muito mais motivos tem o cristão para exercitar-se na
luta contra o pecado, pois o prêmio é infinitamente superior: uma coroa
incorruptível (cf. 1Cor 9, 25b)95.
Enquanto cidadão romano, são Paulo podia não apenas assistir às lutas de
pugilato, mas também assistir aos treinos dos pugilistas. Estes eram homens
robustos, que treinavam duramente para defender-se dos rudes golpes adversários,
assim como para atacar o oponente com vigor. Os treinamentos eram muito
severos. Baseado nesta experiência, são Paulo transferiu para a vida cristã a
experiência dos pugilistas: sem esforço, sem treinamento duro e constante se torna
impossível vencer as tentações e perseguições contra a vida cristã. Ele próprio,
são Paulo, cita seu exemplo: “Até a presente hora, padecemos fome, sede e nudez;
somos esbofeteados e vivemos errantes; esgotamo-nos no trabalho manual; somos
injuriados, e abençoamos; somos perseguidos e suportamos” (1Cor 4, 11-12)96.
Da mesma maneira, o cristão para manter-se fiel à dinâmica batismal, é submetido
às duras provas (cf. At 14, 22; 1Ts 3, 3; 2Tm 3, 12), que devem ser suportadas
com paciência (cf. Rm 5, 3-5), pois a cruz é o caminho inevitável para tomar parte
na glória de Cristo (cf. 2Tm 2, 11-12)97.
A concepção paulina de ascese cristã pode ser definida como esforço
constante para desenvolver a graça batismal, configurando-se, assim, o cristão, ao
longo da vida, a Cristo morto e ressuscitado.
1.3.
Ascese na história da Igreja

A Igreja primitiva, desde as suas origens, acolheu, guardou e difundiu o


conteúdo ascético recebido da bíblia; de modo especial, o ensinamento paulino de
conceber a configuração a Cristo como uma corrida. Esta idéia fica bem
assinalada pelos padres apostólicos e pelos apologistas do século II, que
comparam freqüentemente o homem de fé com a figura do atleta. Deste atletismo

94
Cf. Ibidem, p. 503.
95
Cf. Ibidem, pp. 508-509.
96
Cf. Ibidem, p. 510.
97
Cf. BORRIELLO, L., Ascese-ascética. In: DM, p. 113.
49

ainda não derivam exercícios ascéticos precisos, mas delineiam-se alguns


elementos que posteriormente constituirão a prática ascética oficial da Igreja98.
1.3.1.
Época patrística

Nos três primeiros séculos, as formas mais características do ascetismo


cristão foram: o martírio, a virgindade e o monaquismo. Aliás, os primeiros santos
do calendário litúrgico foram os mártires, e os primeiros altares e igrejas foram
construídos sobre suas sepulturas.
O martírio constituiu-se no ideal ascético dos séculos II e III, época da feroz
perseguição do Império Romano aos primeiros cristãos. Foi o testemunho
sangrento ante os poderes imperiais; o testemunho da fé defendida com a entrega
da própria vida. As fontes históricas são as “Acta” dos mártires e os tratados de
santo Inácio de Antioquia, são Cipriano, Orígenes e Tertuliano99.
Justamente por significar união à paixão de Cristo, ao aspecto doloroso de
sua vida, e, ao mesmo tempo, prova suprema de amor por ele, o martírio tornou-se
o paradigma da vida e da ascese cristã, o testemunho perfeito de Cristo. E como a
paixão de Cristo é a prova de seu amor pela humanidade, do mesmo modo o
sofrimento e a morte do mártir provam seu amor por Cristo. Ao mártir cabia a
aplicação simples e imediata da fórmula evangélica: “Ninguém tem maior amor
do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15, 13)100.
“O mártir cristão não é um simples herói (exemplar humano dotado de
fortaleza para assumir seu destino trágico), pois não busca sua própria glória, mas
o triunfo de Cristo nele”101. Não busca a morte deliberadamente. A fortaleza do
mártir não se encontra no desejo mórbido de sofrimento e morte, mas na
serenidade com que vai ao encontro da execução inevitável, confiando na graça
divina, e não nas próprias forças.
A Igreja rechaçou toda manifestação irracional de querer sofrer ou de
apresentar-se espontaneamente para ser jogado às feras, ou então, para ser
decapitado. Esses comportamentos não eram aconselhados nem admirados,
porque eram próprios das pessoas desequilibradas, como acontecia entre os

98
Cf. BORACCO, P., Ascese e disciplina. In: DTM, pp. 37-38.
99
Cf. MONDONI, D., Teologia da espiritualidade cristã, São Paulo, Loyola, 2000, pp. 31-32.
100
Cf. COGNET, L., Lês problèmes de la spiritualité, Paris, Éditions Du Cerf, 1967, pp. 59-60.
101
Cf. MONDONI, D., op. cit., p. 32.
50

“montanistas”102. Por conseguinte, a Igreja só reconheceu como mártires aqueles


que não tendo alternativa, derramaram o próprio sangue para dar testemunho de
Cristo103.
O martírio implicava o desapego total deste mundo, por amor de Cristo.
Todo cristão, se assim fosse necessário, deveria dar esse testemunho de fé. Por
isso, tendo sempre como referencial o desprendimento, os primeiros cristãos
usavam desinteressadamente os próprios bens, atentos às necessidades dos pobres;
praticavam o jejum de alimentos e bebidas duas vezes por semana (quarta e sexta-
feira); abstinham-se de assistir a espetáculos violentos (lutas gladiatórias ou contra
as feras) e de tomar parte em divertimentos libertinos104. Dessa forma, a ascese do
martírio era essencialmente prática, estruturada nas atividades cotidianas de
desprendimento.
A situação eclesial, porém, mudou completamente a partir do século IV. O
Imperador Constantino concedeu liberdade religiosa aos cidadãos do Império
Romano105. Terminava, assim, o período das perseguições, e o benefício imperial

102
Cf. AMATO, A., Montanismo. In: DM, pp. 761-762; PADOVESE, L., Montanismo. In: LDTE,
pp. 512-513: O montanismo foi um movimento apocalíptico surgido na Frigia, Ásia Menor, por
volta da segunda metade do século II, e deve seu nome a Montano. Antes da conversão ao
cristianismo, Montano fora sacerdote de Apolo e de Cibele e, depois do batismo, sentiu-se
chamado pelo alto a tornar-se porta-voz do Espírito Santo, profetizando a descida da Jerusalém
celeste (cf. Ap 21, 1.10) no vilarejo frígio de Pepuza, considerado a nova “cidade santa”. Montano
pressupunha ser a encarnação do próprio Espírito Santo e o iniciador de uma nova fase da
revelação divina, depois da neotestamentária. Com seu estilo profético pretendia promover o
antigo fervor da Igreja despertando o carisma da profecia e da glossolalia, pregando a iminência do
fim do mundo e propondo certo rigor moral e ascético, como a prática do jejum, o desprezo pelo
matrimônio e a condenação de segundas núpcias. A primeira fase do montanismo foi concluída ao
término do século II, quando, não se concretizando o fim do mundo, a expectativa crucial aos
poucos se extinguiu. No início do século III começou a segunda fase, de acentuado rigor moral,
que teve em Tertuliano excepcional intérprete. Indício desse rigor foi a firme proibição de fugir ao
martírio, pois a fuga era vista como indevida conivência com o mundo, em vias de ser destruído. A
iminência do fim do mundo também justificava o entusiasmo com que os montanistas falavam da
renúncia ao matrimônio e da proibição de segundas núpcias. Nessa fase o rigor montanista
assumiu postura herética, quando se opôs à atitude da Igreja de perdoar os cristãos que caiam em
pecado depois do batismo. Era a contestação do poder das chaves detido pela Igreja. Em “De
pudicitia”, Tertuliano não reconhecia mais esse poder dos bispos: a Igreja hierárquica não seria
mais depositária do poder de perdoar os pecadores, e sim a Igreja espiritual. O montanismo não se
limitou à Frigia, mas espalhou-se pelo mundo antigo encontrando adeptos por todas as partes.
Traços da prolongada persistência do montanismo são as reiteradas condenações a que é
submetido. Uma das últimas remonta ao VI Concílio Ecumênico, no final do século VII.
103
Cf. DIEGO SANCHEZ, M., Historia de la espiritualidad patrística, Madrid, Editorial de
Espiritualidad, 1992, p. 62.
104
Cf. BORACCO, P., Ascese e disciplina. In: DTM, p. 38.
105
JOSÉ MATOS, H. C., Introdução à história da Igreja, Vol. I, 5. ed., Belo Horizonte, O
Lutador, 1997, pp. 97-98. “Entre os atos de Constantino em favor da Igreja, podem ser citados: a
concessão de imunidades ou isenção de obrigações pessoais para com o Estado (impostos, etc.),
tanto para os sacerdotes pagãos, como para o clero católico; o reconhecimento jurídico das
decisões episcopais: os bispos podem arbitrar causas também de pagãos; abolição da crucifixão e
51

fazia do cristianismo a religião protegida dentro do pluralismo religioso então


existente, até que se convertesse na religião oficial do Império, com Teodósio.
O cristianismo se expandiu por todo o Império. E a contrapartida estava na
perda de qualidade da vida cristã. De pequenas comunidades, a Igreja passou a ser
multidão. Os cristãos, antes, eram rigorosamente preparados para o batismo, tanto
que passavam por um período aproximado de três anos de catecumenato, agora,
bastava uma breve preparação. Os batismos eram dados em profusão e, com isso,
afloravam os oportunistas, os neoconvertidos, que recebiam o batismo por pura
conveniência106. Sentia-se saudade do fervor da época da perseguição. Surgiu,
então, uma séria dificuldade: era preciso estimular novas formas de testemunho de
fé, que favorecessem o ideal cristão de santidade e que servissem de estímulo a
uma sociedade cristã, tão somente no nome107. Surgem, assim, a virgindade
consagrada e o monaquismo como substitutos do martírio.
A virgindade, que já estava enraizada na Igreja desde seus primórdios, como
um carisma (cf. 1Cor 7, 25), a partir de agora é progressivamente assumida como
substituição e suplência da falta do martírio, justamente pelo fato de que consistia
em oferta voluntária e total a Deus, como fazia o mártir108. As virgens eram
comumente chamadas de “esposas de Cristo”, pois a ele pertenciam.
Renunciavam ao matrimônio, contudo viviam sua consagração no contexto
familiar, participando da comunidade local109.
São Cipriano recomendava às virgens: modéstia nas vestimentas, desprezo à
vaidade, desapego do coração, fuga das reuniões mundanas e das companhias
perigosas. As virgens também ocupavam o tempo em reuniões de oração, visita
aos órfãos, às viúvas, aos pobres e aos doentes110. Conseqüentemente,
desprendimento e caridade constituíam o núcleo ascético da virgindade
consagrada.
Contemporaneamente à experiência ascética das virgens consagradas, o
monaquismo surgiu como movimento eclesial original e diferenciado, justamente

proibição das lutas de gladiadores (...); permissão à Igreja de receber heranças e grandes doações
(...); reconhecimento do domingo como feriado e progressiva redução das festas pagãs”.
106
Cf. ESTRADA DÍAZ, J. A., La espiritualidad de los laicos, México, Paulinas, 1994, p. 87.
107
Cf. BORACCO, P., loc. cit.
108
Cf. Ibidem.
109
Cf. DIEGO SANCHEZ, M., Historia de la espiritualidad patrística, Madrid, Editorial de
Espiritualidad, 1992, p. 72.
110
Cf. Ibidem.
52

por apresentar uma nova proposta ascética, caracterizada pela separação do


mundo, a fim de testemunhar uma existência de fé mais radical. A fuga do mundo
representou, também, crítica do monaquismo a um cristianismo reduzido à
religião de conveniência.
No início, a vida monástica era rigorosamente contemplativa e eremítica.
Esse estilo de vida começou no Egito, com Paulo de Tebas e santo Antão.
Buscavam os primeiros monges o martírio incruento através da pobreza
voluntária, do trabalho manual, da opção celibatária, da penitência corporal
(jejuns prolongados, abstenção do sono, entre outros), da meditação da palavra de
Deus, da recitação de jaculatórias, da luta constante contra as paixões, como
também da resistência às tentações do mau espírito. Por isso, retiravam-se para a
solidão, para o deserto − lugar, por excelência, da tentação, do combate contra o
demônio. O monge era o novo mártir: ele não morria para o mundo, mas o mundo
morria para ele111.
Na Igreja oriental, são Pacômio e são Basílio introduziram mudanças na
vida monástica, dando origem aos primeiros mosteiros. Embora separados do
mundo, os monges deveriam viver em comunidades, não distantes das cidades,
para, assim, exercerem um trabalho pastoral (geralmente, a direção espiritual) em
benefício da Igreja. E com a introdução da vida comunitária, dá-se grande ênfase à
obediência ao pai espiritual, o “abade”112; e, dessa maneira, mais um elemento é
acrescentado à ascese monástica: a renúncia à vontade própria para submeter-se a
um superior. É o sacrifício da própria autonomia113.
Através de Atanásio e Cassiano, as principais idéias e práticas do
monaquismo oriental chegaram ao Ocidente. Contudo, depois que aí ingressou, o
monaquismo rapidamente sofreu mudanças, ganhando identidade própria. E foram

111
Cf. AUMANN, J., Síntese histórica da experiência espiritual católica. In: GOFFI, T.,
SECONDIN, B. (Orgs.), Problemas e perspectivas de espiritualidade, São Paulo, Loyola, 1992, p.
72.
112
PENCO, G., Abate. In: DES, p. 01: “Tarefa do abade é dirigir os monges no caminho da
perfeição sobretudo com o exemplo, corrigindo os negligentes mas sabendo adaptar-se à índole de
todos. Ele preside a celebração litúrgica (se bem que o seu ofício não requeira necessariamente o
sacerdócio) e imprime ao mosteiro a sua fisionomia particular. A tradição espiritual considera o
abade como pastor do rebanho, médico da alma, mestre e artífice da arte ascética, sábio
dispensador dos mistérios de Deus, anjo da comunidade; desde a Alta Idade Média foi lhe
conferida as insígnias pontificais além de considerar seu ofício como perpétuo”.
113
Cf. ESTRADA DÍAZ, J. A., La espiritualidad de los laicos, México, Paulinas, 1994, p. 88.
53

Santo Agostinho e são Bento de Núrsia os grandes responsáveis por essa


transformação114.
Santo Agostinho (354-430), inspirado pelo neoplatonismo, implanta o
“princípio da interioridade”115 à ascese cristã: no interior do homem se encontra a
verdade. E a verdade é Deus:

“Instigado por esses escritos (neoplatônicos) a retornar a mim mesmo, entrei no


íntimo do meu coração sob tua guia, e o consegui, porque tu te fizeste meu auxílio.
Entrei e, com os olhos da alma, acima destes meus olhos e acima de minha própria
inteligência, vi uma luz imutável. Não era essa luz vulgar e evidente a todos com
os olhos da carne (...). Quem conhece a verdade conhece esta luz, e quem a
conhece, conhece a eternidade. O amor a conhece (...)”116.

Para Agostinho, o objetivo último da ascese não é a renúncia em si mesma,


mas a renúncia enquanto purificação interior para encontrar e contemplar Deus,
presente no coração humano. O monge não é o ‘domador da carne’, mas aquele
que ‘purifica o coração para amar a Deus e ao próximo’117. Amar o próximo, aliás,
é o principal motivo pelo qual se entra na vida monástica118, além de ser o
fundamento da regra agostiniana119. Por isso, a ‘ascese agostiniana’ pode ser
definida como esforço para crescer na capacidade de amar120. E esse crescimento
é uma luta que perdura até a morte; luta porque é necessário reparar a desordem

114
Cf. AUMANN, J., Síntese histórica da experiência espiritual católica. In: GOFFI, T.,
SECONDIN, B. (Orgs.), Problemas e perspectivas de espiritualidade, São Paulo, Loyola, 1992, p.
73.
115
Cf. GROSSI, V., Il “cor” nella spiritualità di sant’Agostino. In: BERNARD, C. A. (Org.),
L’antropologia dei maestri spirituali, Paoline, Cinisello Balsamo (Milano), 1991, pp. 132-133.
116
SANTO AGOSTINHO, Confissões, 5. ed., Edições Paulinas, São Paulo, 1984, p. 175 (Livro
VII, 10, 16).
117
Cf. GROSSI, V., op. cit., p. 133.
118
Cf. DATRINO, L.; SORSOLI, C.; TRAPÈ, A., Agostino (santo). In: DES, Vol. I, pp. 56-60;
MONDONI, D., Teologia da espiritualidade cristã, São Paulo, Loyola, 2000, p. 39: O ideal
monástico agostiniano inspira-se no ideal de vida da primeira comunidade cristã (cf. At 2, 44; 4,
34) e na perfeição da vida social dos santos no céu. Portanto, a vida monástica, segundo Agostinho
deve ser fundada sobre a pobreza individual absoluta, como renúncia total à propriedade e como
vida de comunhão perfeita. Vivendo essa pobreza radical, o monge será capaz de vencer a
concupiscência e crescer na caridade. Para Agostinho, caridade nunca é amor privado, isto é, amor
fechado em nosso interesse pessoal, amor por aquilo que é passageiro, amor desordenado de si,
que gera orgulho e está na raiz de toda frustração e agressividade. Caridade é sempre amor social,
amor que abraça o universo e toda criatura, que elimina progressivamente o egoísmo da alma
humana. Também, por isso, o monge movido pela caridade sente a necessidade de dedicar-se ao
trabalho missionário da Igreja. A regra de santo Agostinho permite aos monges o trabalho pastoral.
119
SPANNEUT, M., Os Padres da Igreja – Séculos IV-VIII, Vol. II, São Paulo, Loyola, 2002, p.
209: “(...) Depois de ter enumerado os preceitos, ele lembra, numa oração final, o espírito de
caridade e de liberdade que tudo deve animar. As prescrições concretas, pouco numerosas e
adaptáveis às circunstâncias, encontram seu sentido apenas nessa mesma caridade. É o amor que é
a razão de ser do mosteiro e que dá testemunho. (...) Os mosteiros são como que pontos de
ancoragem do amor, em que a ‘Cidade de Deus’ tende a se tornar visível entre os homens”.
54

que o pecado provocou na natureza humana, a qual se manifesta, sobretudo, na


“concupiscência”121. Como ‘ascese interior’ para vencer a concupiscência e,
assim, crescer na caridade, Agostinho indica o desapego, o recolhimento e a
humildade. O desapego permite ao homem tomar distância das coisas exteriores; o
recolhimento permite-lhe estar habitualmente presente em si mesmo e em
comunicação com Deus; e a humildade faz o homem sentir-se criatura diante de
Deus. Essa ascese interior restabelece a ordem na natureza humana: a alma se
submete a Deus, e, assim, as paixões são dominadas122.
Mas o grande nome do monaquismo ocidental é são Bento (480-547). Ele
aperfeiçoou as regras de Pacômio e Basílio para o monaquismo latino123. A união
de trabalho e oração constitui o aspecto novo do monaquismo beneditino (no
oriente o trabalho apenas preenchia os momentos livres do monge): ao longo do
dia se alterna o ofício divino com o trabalho manual e com a formação
espiritual124. A humildade é o núcleo da regra e da ascese beneditina: como Cristo
(cf. Fl 2, 8), o monge se humilha aqui na terra para alcançar a glória celeste. A

120
Cf. GROSSI, V., Agostinho (santo). In: DM, pp. 25-27.
121
MONDONI, D., Teologia da espiritualidade cristã, São Paulo, Loyola, 2000, p. 39: “Todo ser
humano está envolvido na herança de Adão pecador: este provocou uma situação de morte
espiritual, um enfraquecimento da liberdade, e levou o ser humano a um estado beligerante entre
as aspirações da alma e o sentir corpóreo; o ser humano histórico é uma imagem deformada,
estimulado ao amor de si; sair deste estado significa dar novamente ao humano sua imagem
primigênia, criar nele um contínuo processo de assemelhar-se ao Deus uno e trino”.
122
Cf. DATRINO, L.; SORSOLI, C.; TRAPÈ, A., Agostino (santo). In: DES, p. 56.
123
SPANNEUT, M., Os Padres da Igreja – Séculos IV-VIII, Vol. II, São Paulo, Loyola, 2002, p.
315: “(Bento) Elabora para seu uso (...) ‘a mais famosa regra monástica do Ocidente latino’,
‘modelo deste gênero literário’. Ela é, sem dúvida, inspirada na anônima ‘Regra do Mestre’, que já
era conhecida na região de Roma desde o começo do século VI, mas também na ‘regra do nosso
santo pai Basílio’, de Agostinho e de Cassiano (...). A comunidade, organizadíssima, mas vivida
muito fraternalmente, está colocada sob a autoridade de um abade, eleito pela vida toda,
administrador e mestre espiritual, que exige total obediência, mas que sabe adaptar parcialmente,
com sabedoria e discernimento surpreendentes, as exigências ascéticas e espirituais às capacidades
e à personalidade de cada membro. O ofício divino ocupa o centro das atividades, ‘para que em
tudo Deus seja glorificado’. O restante do tempo é consagrado ao retiro silencioso, com a leitura
meditada da bíblia, e ao trabalho manual. O mosteiro deve ser auto-suficiente e estar aberto ao
exterior para a acolhida e a partilha, apesar da clausura. A estabilidade definitiva é exigida na
entrada. A virtude mais destacada é, sem dúvida, a humildade, dividida em doze graus; são Bento
é o primeiro a dar o exemplo disso: fala de sua ‘pequena regra para principiantes’ e recomenda
calorosamente as outras (...). A regra é para ‘a raça bastante corajosa’ dos cenobitas, mas visa
também, além deles, à solidão dos anacoretas. Aos poucos, essa regra se impôs a todo o Ocidente,
ao lado da regra de santo Agostinho, mais apreciada pelos clérigos. Ela tem pontos de contato com
a regra mais austera do monge irlandês Columbano, que encontrou adeptos também na Itália e na
Gália. Algumas vezes as duas Regras chegam a se amalgamar. O Papa Gregório Magno, que
enaltece longamente Bento em seus ‘Diálogos’, parece adotar sua Regra. Ele a enviou para a
Inglaterra, com os quarenta monges evangelizadores. Porque, mediante essas influências tão
diversas, ‘fez erguer-se sobre o nosso continente a aurora de uma nova era’, são Bento mereceu ser
reconhecido por Paulo VI como ‘patrono principal de toda a Europa’”.
124
Cf. MONDONI, D., Teologia da espiritualidade cristã, São Paulo, Loyola, 2000, pp. 41-42.
55

ascese beneditina concebe a humildade como uma escada com doze degraus, cuja
subida exige, sobretudo, obediência e paciência125. O primeiro degrau da
humildade é o temor de Deus e o medo do inferno; o décimo segundo, e último
degrau da humildade, objetivo principal da ascese beneditina, é a obediência sem
hesitação, o que é próprio daqueles que não amam nada nem ninguém acima de
Cristo. Portanto, a humildade se exercita pela obediência e pela paciência, bem
como pelo rebaixamento e pelo silêncio. Ser flexível aos irmãos, dobrar-se às suas
justas exigências, sem fazer das idéias próprias medidas absolutas, é sinal,
condição e conseqüência da humildade126.
Além da regra, para proteger o monge do assédio do mundo e também para
preveni-lo do envolvimento num trabalho pastoral, são Bento acrescentou à vida
dos beneditinos o voto de estabilidade, que fixou o monge física e juridicamente
no seu mosteiro127. Esse voto foi muito oportuno para pôr fim ao péssimo costume
de viver trocando de mosteiro, por parte de alguns monges, o que denotava,
muitas vezes, ausência de vocação à vida monástica.
Em suma, enquanto no oriente era acentuada a ascese corporal, no ocidente
se valorizava a ascese interior, pela influência direta de santo Agostinho e de são
Bento. Mas tanto no oriente, como no ocidente, todos os meios ascéticos – do
trabalho manual aos períodos de solidão e de oração; do trabalho pastoral até
mesmo às mais rudes penitências corporais –, todos visavam um único objetivo: a
santidade128.
Ao povo, a Igreja também recomendou as práticas ascéticas, motivando
abstinências, jejuns e orações. Todavia, a plena educação ascética realizava-se
individualmente, sob a orientação dos confessores e diretores espirituais, mediante
práticas e métodos adaptados à índole, exigências e capacidade de cada fiel129.
1.3.2.
Época medieval

Apesar da influência de santo Agostinho e de são Bento, a espiritualidade


ocidental, na Idade Média, acabou aderindo com força à mais rude ascese

125
Cf. DE VOGÜE, A., Bento de Núrsia (santo). In: DM, pp. 166-167.
126
Cf. MONDONI, D., op. cit., p. 42.
127
Cf. AUMANN, J., Síntese histórica da experiência espiritual católica. In: GOFFI, T.,
SECONDIN, B. (Orgs.), Problemas e perspectivas de espiritualidade, São Paulo, Loyola, 1992, p.
73.
128
Cf. ANCILLI, E.; LAUDAZI, C., Ascesi. In: DES, Vol. I, p. 216.
56

corporal. Da Irlanda veio uma espécie de ‘invasão ascética’ ao continente


europeu130. E a explicação para isso é simples: a Igreja irlandesa nunca teve
muitas relações com Roma, ao passo que, por via marítima, manteve intensos
contatos com o cristianismo oriental131.
Pela forte influência oriental, na Irlanda, ascese significou praticamente
entrar para a “ordem dos penitentes”132, como expressão de arrependimento e
meio de expiação pelos pecados cometidos. São os monges irlandeses, sob o
comando de são Columbano (543-615)133, que introduzem na Igreja latina o
costume da confissão privada, originando os chamados ‘livros penitenciais’134,

129
Cf. Ibidem.
130
LECLERCQ, J., La spiritualità del medioevo, Vol. IV/A, 2. ed., Bologna, Dehoniane Bologna,
1986, p. 82: “Pode-se dizer que na Irlanda a instituição monástica atingiu uma popularidade que
não teve nada semelhante em outro país, ou em outra época, de modo que a característica mais
notável deste período é um extremo entusiasmo pelo ideal monástico. Esta situação deixará uma
marca profunda na vida eclesiástica: no V e VI século, os bispos eram abades ou monges
nomeados pelos abades”.
131
Cf. ROUILLARD, P., História da penitência – Das origens aos nossos dias, São Paulo, Paulus,
1999, p. 36.
132
Cf. RUIZ, F., Penitenza (sacramento della). In: DES, Vol. III, pp. 1918-1919: O ingresso do
pecador na ordem dos penitentes era decisão do bispo, e em alguns casos dos sacerdotes. O
pecador submetia-se a um rito litúrgico que o agregava a outros penitentes. O rito compreendia
uma imposição de mãos por parte do bispo e a aceitação de uma determinada ‘prática penitencial’
por parte do penitente: em alguns lugares, usava-se o cilício; na França, raspava-se a cabeça; na
Espanha deixava-se o cabelo e a barba crescerem. Com o ingresso na ordem dos penitentes, o
pecador começava o seu período penitencial com as penitências que lhe foram impostas. A
duração do período penitencial variava de lugar para lugar. Ao término do período penitencial, o
pecador era reconciliado com a Igreja, mediante uma solene celebração presidida pelo bispo, e da
qual normalmente participava todo a comunidade. Depois da reconciliação ele podia adentrar a
Igreja e participar da comunhão eucarística. A penitência eclesiástica era permitida uma única vez
na vida, pois era como um ‘segundo batismo’, e por isso não podia ser repetido. Com o advento da
penitência tarifada, a confissão passou a ser privada e reiterável, não havia mais a admissão
pública à ‘ordem dos penitentes’; o que permaneceu da antiga prática penitencial era o rigor das
penitências a serem cumpridas, como forma de expiar os pecados cometidos.
133
MALASPINA, E., Columbano. In: DPAC, p. 314: “Monge irlandês, do mosteiro de Bangor,
partiu, com a permissão do abade S. Comgall, como peregrino e missionário através da França.
Fundou vários mosteiros até chegar à Burgúndia, onde se fixou, a convite do rei Gontrão, na região
dos Vosges. Aí, para viver seu intenso espírito de penitência, escolheu as ruínas da antiga
Luxovium (Luxeuil), fundando o célebre mosteiro. A regra por ele dada a seus monges dava
grande importância à obediência, à penitência e ao trabalho manual (...). Já que reprovava os
costumes dissolutos da corte burgúndia, foi preso e banido do reino (610). Visitou em Tours o
túmulo de são Martinho e, peregrinando através da França, suscitou numerosas vocações
monásticas e fundou outros mosteiros (...). Foi hóspede de Agilulfo em Milão, onde teve uma
disputa com os arianos; fundou o mosteiro de Bobbio (614), onde morreu no ano seguinte e onde
está sepultado”.
134
ROUILLARD, P., História da penitência – Das origens aos nossos dias, São Paulo, Paulus,
1999, pp. 36-37: “Nesses mosteiros (irlandeses), como no Oriente, os monges e, depois, os
clérigos e os leigos que viviam na órbita do mosteiro confessavam suas faltas a um monge
espiritual, sacerdote ou não, e recebiam dele uma penitência, cuja duração, que podia ir de alguns
dias a vários anos, era proporcional à gravidade das faltas; cumprida a penitência, o pecador se
apresentava de novo ao seu confessor e recebia dele o perdão, considerado mais como uma
absolvição pessoal do que como uma reconciliação eclesial (...). Os confessores, para exercerem
57

que, por sua vez, incentivarão a ‘prática penitencial privada’, isto é, fora do
sacramento da confissão135. Dentre essas práticas, as mais conhecidas foram: o
jejum, a vigília prolongada com os braços em cruz e as imersões em água gelada,
recitando preces136. Essas práticas ascéticas foram exercitadas por séculos, por
uma multidão de fiéis. Igualmente as peregrinações por amor de Cristo, uma
espécie de exílio voluntário assumido por muitos como meio de santificação, que
consistia na separação voluntária dos próprios parentes, distanciando-se da terra
natal, à semelhança de Abraão, que deixou sua pátria137.
No século XI, são Pedro Damião (1007-1072) contribui para acirrar ainda
mais a ascese corporal, incentivando toda uma espiritualidade centrada nos
sofrimentos de Cristo durante sua paixão. A partir de então, a espiritualidade
cristã não mais concebeu a cruz como um instrumento de libertação, nem como
um testemunho de amor, mas como um exemplo particularmente impressionante
de sofrimento, não apenas voluntariamente aceito, como também procurado. O
importante é imitar, reproduzir na própria vida os sofrimentos de Cristo. Como
conseqüência, novas formas de penitência corporal são criadas, e outras, já
existentes, como a ‘disciplina’ (autoflagelação voluntária), são aperfeiçoadas138. O
grande promotor do uso da disciplina foi são Pedro Damião; porém, quem a
praticou de modo radical foi Maria d’Oignies (†1213), que uniu genuflexão e
autoflagelação: a cada genuflexão, ela infligia a si mesma trezentos golpes de
chicote. Pelo fim da Idade Média, a disciplina cotidiana foi levada ao fanatismo

bem seu ministério, dispunham de pequenos livros, chamados ‘penitenciais’, os quais indicavam,
de maneira precisa, a penitência a impor por cada falta: daí o nome de ‘penitência tarifada’ dado a
esse sistema”. Para um maior aprofundamento a respeito dos ‘livros penitenciais’, sugiro: RAMOS
REGIDOR, J., Teologia do sacramento da penitência, São Paulo, Paulinas, 1989, 507 p.;
especialmente o capítulo II, pp. 193-205.
135
Cf. ANCILLI, E.; LAUDAZI, C., Ascesi. In: DES, Vol. I, p. 216.
136
Ibidem: “São célebres os banhos gelados de são Patrício, de santa Brígida de Kildare, que toda
noite de inverno mergulhava nas águas geladas de uma lagoa, rezando e derramando santas
lágrimas. Assim também o célebre abade de Bobbio, são Columbano († 615), recitava
freqüentemente um saltério inteiro na água gelada”.
137
Cf. LECLERCQ, J., La spiritualità del medioevo, Vol. IV/A, 2. ed., Bologna, Dehoniane
Bologna, 1986, p. 84-86.
138
Cf. BOUYER, L., Introduction a la vie spirituale, Paris, Desclée & Cie Éditeurs, 1960, p. 139;
ANCILLI, E.; LAUDAZI, C., loc. cit.: “A disciplina como instrumento de penitência era praticada
correntemente já desde os tempos de são Bento, porém, mais como penitência disciplinar do que
como voluntária autoflagelação. Neste sentido, é mais recente. São Pedro Damião foi o grande
promotor do uso da disciplina no século XI, com o opúsculo ‘De laude flagellorum’, com o
exemplo e com a pregação”.
58

pelos “flagelantes”139, causando descrédito à ascese cristã. A maior parte dos


ascetas se flagelavam até a efusão do sangue140.
Com o advento do século XIII, surgem as ‘ordens mendicantes’ como
concretização do anseio de muitos monges por deixar a vida exclusivamente
conventual para inserir-se mais profundamente na vida do povo através do
trabalho pastoral. Num período de profundas mudanças da sociedade européia
(início da economia de mercado, crescimento demográfico e urbanização) e de um
forte desejo de maior fidelidade ao evangelho, as ordens mendicantes nascem
como um grito profético frente a uma Igreja ainda muito ligada aos privilégios
feudais, acomodada, desinteressada e distante do povo141.
Sem vínculos com lugares determinados e dispostos a propagar o evangelho
a todos, os mendicantes abrem novos campos pastorais para a Igreja, não somente
junto aos pobres, mas também junto aos centros universitários. Por isso, os
‘franciscanos’ e os ‘dominicanos’ sintetizam muito bem a ascese dos
mendicantes142. São Francisco de Assis (1181-1226), fundador dos franciscanos,
segue à risca as indicações do evangelho de Mateus (cf. Mt 10, 9-11) e contrai
místicas núpcias com a ‘Senhora Pobreza’143. Por sua vez, são Domingos de
Gusmão (1170-1221), fundador dos dominicanos, além da vivência da pobreza
evangélica, acrescenta a ‘ascese do estudo’ ao cotidiano de seus frades. Esta nova
ascese caracteriza-se pelo esforço para dominar o orgulho intelectual, a vã
curiosidade, as leituras profanas e inúteis, a preguiça de continuar aprendendo e,
por fim, a tentação do saber centrado sobre si mesmo144.
Em fins da Idade Média, algumas formas de franciscanismo, centradas na
contemplação dos estigmas de São Francisco, desenvolveram uma ‘ascese da
compaixão’. Contudo, esta nova prática ascética somente foi formulada, com toda

139
Cf. PETROSILLO, P., Flagelantes. In: DFC, p. 112: Flagelantes eram os membros de
movimentos e confrarias medievais que praticavam a penitência com flagelações públicas. Esse
movimento teve seu ponto alto na segunda metade do século XIII, quando grupos de pessoas
percorriam as cidades e campos flagelando-se em público a si mesmos ou uns aos outros, enquanto
rezavam.
140
Cf. ANCILLI, E.; LAUDAZI, C., Ascesi. In: DES, Vol. I, p. 216.
141
Cf. PIGNA, A., La vita religiosa – Teologia e spiritualità, Roma, Edizioni OCD, 1991, pp. 22-
23.
142
Cf. Ibidem, p. 23.
143
Cf. GOZZELINO, G., Al cospetto di Dio – Elementi di teologia della vita spirituale, Torino,
Elle di Ci, 1999, p. 102.
144
Cf. Ibidem, p. 103.
59

clareza, pelo místico dominicano do século XIV, Henrique Suso145. A partir de


então, a meta ascética não é tanto a luta e a vitória sobre o pecado, mas sofrer com
Cristo para aliviar seus sofrimentos, deles participando146.
Ainda na Idade Média, mais precisamente entre os séculos XIV e XV,
devido a grande mortandade provocada pela peste negra na Europa, predominou
uma farta literatura de cunho antropológico pessimista, uma verdadeira “ascese da
morte”, que exalta o eterno em detrimento do mundo sensível, utilizando-se de
narrações e imagens do apodrecimento do corpo humano. Nesta literatura o tema
dominante é o da decomposição do corpo, como este texto do abade Odon, de
Cluny:

“A beleza do corpo está toda na pele. Com efeito, se os homens fossem dotados,
como os linces da Beócia, de penetração visual interna e vissem aquilo que está
debaixo da pele, a simples visão das mulheres ser-lhes – ia nauseabunda: esta graça
feminina é apenas saburro, sangue, humor, fel. Observem aquilo que se esconde
nas narinas, na garganta, no ventre: impurezas por todo o lado (...) e nós que temos
repugnância em tocar, mesmo que seja com a ponta dos dedos, em vomitado ou
esterco, como poderíamos desejar ter nos braços um saco de excrementos?”147.

Por volta do final do século XIV, as artes plásticas desenvolvem também o


tema da decomposição corporal. Os túmulos são ornamentados com imagens
terríveis de cadáveres nus e podres, pés e punhos rígidos, boca aberta e entranhas
devoradas por vermes. No cemitério dos Inocentes, na França, surgem os afrescos
da chamada “La danse macabre”, uma seqüência de vivos e mortos, agarrados

145
Cf. GIOVANNA DELLA CROCE, Henrique Suso. In: DM, p. 995: Henrique Suso nasceu em
21 de março de 1295, em Constança (em alemão, Überlingen). Ao treze anos entrou para a ordem
Dominicana. Terminado os estudos em Colônia, logo se tornou leitor e prior em Constança. Em
1330, acusado de ter defendido a doutrina heterodoxa de Eckhart, foi obrigado a se retirar do
ensino e se dedicou a obras pastorais, especialmente à direção espiritual das dominicanas. Ao
desencadear-se a luta de Ludovico, o ‘Bávaro’ († 1347), contra o papa, refugiou-se com a
comunidade dominicana em Diessenhofen (1339-1346/7). Voltando a Constança, tornou-se prior
novamente, mas, depois, de graves difamações, transferiu-se para Ulm, onde morreu, em 25 de
janeiro de 1366. Segundo Henrique Suso o ser humano para chegar à comunhão com Deus, tem
necessidade de ser deformado das criaturas, conformado segundo Cristo e transformado em Cristo.
Isso exige que passe pelas purificações passivas, para as quais é indispensável a aceitação plena
dos sofrimentos, com a firme vontade de participar da paixão de Cristo. Isso pressupõe o desapego
radical, o abandono perfeito e profunda interioridade. Exige também meditação assídua dos
sofrimentos de Cristo, até chegar a profunda compaixão e imitação existencial.
146
Cf. BOUYER, L., Introduction a la vie spirituale, Paris, Desclée & Cie Éditeurs, 1960, p. 139.
147
HUIZINGA, J., Le déclin du Moyen Age, Paris, Payot, p. 407. Apud CHAUNU, P., O tempo
das reformas (1250-1550). A crise da cristandade, Lisboa, Edições &0, 2002, p. 158.
60

uns aos outros e a dançar, lembrando que a morte afeta pessoas de qualquer idade
e condição148.
1.3.3.
Época moderna

Na Idade Moderna surgiu o “jansenismo”, um movimento que exerceu forte


influência não apenas na espiritualidade, mas também na dogmática e na moral
cristã. O jansenismo tornou-se sinônimo de um Deus severo e de uma religião
caracterizada pelas penitências exageradas e pelo sentimento de culpa149. Isso
ocorreu porque a visão jansenista do mundo e do ser humano era
fundamentalmente pessimista. Segundo Cornélio Jansênio, depois do pecado
original o ser humano está intrinsecamente corrompido e dominado pela
concupiscência, que o leva inevitavelmente ao pecado. Somente a graça divina
pode salvá-lo, e sem ela o ser humano não consegue fazer o bem. A graça, no
entanto, é fruto da predestinação divina; é Deus mesmo que predestina ao céu ou
ao inferno com vontade antecedente a qualquer consideração de mérito pessoal.
Portanto, somente recebem a graça os predestinados ao céu; aqueles para os quais
Cristo ofereceu sua morte salvífica150.
Pressupondo que Deus havia escolhido poucos eleitos, o comportamento do
cristão, segundo o jansenismo, deve ser o “temor”; temor servil diante da
possibilidade de não se encontrar entre o número dos eleitos. Ainda segundo o
jansenismo, a graça que Cristo conquistou para os eleitos é transmitida através dos
sacramentos, mas o seu recebimento exige muita pureza e perfeição; poucos são
dignos de recebê-los, a ponto de estarem convencidos de que a metade dos
católicos não era capaz de guardar alguns dos mandamentos e, portanto, era
indigna de receber a comunhão eucarística151. Desse modo, os sacramentos se
tornavam mais como um prêmio da perfeição do que como meio para alcançá-la.
A pureza para aproximar-se dos sacramentos exigia muita penitência. Além de ser

148
Cf. CHAUNU, P., O tempo das reformas (1250-1550). A crise da cristandade, Lisboa, Edições
70, 2002, pp. 157-159.
149
Sobre o sentimento de culpa na espiritualidade cristã recomendo a obra de DELUMEAU, J., O
pecado e o medo. A culpabilização no Ocidente (séculos XIII-XVIII), 2 vol., Bauru, Editora da
Universidade do Sagrado Coração, 2003, 1061 p.
150
Cf. PACHO, E., Giansenismo. In: DES, Vol. II, p. 1113.
151
Cf. LOWERY, D., Jansenismo. In: DCB, p. 82.
61

meio de reparação por supostos pecados cometidos, a disposição à penitência era


também considerada uma espécie de garantia de fazer parte dos eleitos de Deus152.
Somando-se às duras penitências, o jansenismo igualmente apregoava “a
fuga mundi”, como exigência de toda a vida cristã, e não apenas das pessoas
chamadas à vida religiosa. Para a visão jansenista, o mundo não serve como
mediação válida para chegar até Deus, porque a distância entre criador e criatura é
muito grande. Da mesma forma, insistia que toda oração deveria ser sempre
dominada pelos sentimentos de temor, de arrependimento e de dor pelos pecados
cometidos, em oposição aos sentimentos de amor e de alegria153.
Embora duramente combatidas pelo jansenismo154, a ascese da época
moderna caracterizou-se ainda pelas novas formas de devoção ao “Sagrado
Coração de Jesus”, inspiradas pela mística ‘Santa Margarida Maria Alacoque’
(1647-1690). É o advento da ‘ascese da reparação’: sofrer para compensar os
sofrimentos causados à humanidade de Cristo pelas infidelidades dos cristãos,
especialmente em relação à presença eucarística155. As penitências praticadas por
Santa Margarida Maria Alacoque consistiam em dormir com a cabeça sobre um
travesseiro de madeira ou em beber muita água de uma só vez, para provocar
náusea e vômito, entre outras. Sofrer era uma prática diária, algo que ela
procurava todos os dias. Assim, acreditava, tornava-se participante da paixão e
redenção realizada pelo “Coração do Cristo”, o qual amou a humanidade e, em
troca, só recebeu ingratidões156. Santa Margarida Maria ainda promoveu e
recomendou as seguintes ‘práticas reparadoras’: missa e comunhão reparadora,
toda primeira sexta-feira do mês; adoração e hora santa meditando a Paixão do
Senhor; orações reparadoras e devoção à festa litúrgica do “Sagrado Coração de
Jesus”157.
No decurso do século XVIII, a ascese de reparação evoluiu para tornar-se
“ascese de substituição”. Através desta nova forma de ascese, os ‘cristãos

152
Cf. PACHO, E., Giansenismo. In: DES, Vol. II, p. 1114.
153
Cf. JANSEN, T., Jansenismo. In: LDTE, pp. 407-408.
154
Cf. MONDONI, D., Teologia da espiritualidade cristã, São Paulo, Loyola, 2000, p. 64;
PACHO, E., op. cit., p. 1115: O jansenismo impunha a idéia de um Deus tão soberano, que o ser
humano não tinha acesso afetivo a ele: sempre o temor e a reverência deveriam ser os sentimentos
do cristão na presença de Deus. Como reação à espiritualidade do medo difundida pelo jansenismo
surgiu com reação a espiritualidade do afeto, difundida pela devoção ao ‘Sagrado Coração de
Jesus’.
155
Cf. BOUYER, L., Introduction a la vie spirituale, Paris, Desclée & Cie Éditeurs, 1960, p. 140.
156
Cf. BALDASSARRE, E., Margarida Maria Alacoque (santa). In: DM, p. 661.
62

piedosos’ infligiam a si mesmos sofrimentos voluntários, para, dessa maneira, à


semelhança de Cristo, substituirem os pecadores sobre os quais o castigo divino
deveria recair. Eles, em comunhão com Cristo sofredor, substituíam, ou melhor,
livremente assumiam o castigo merecido pelos pecadores158. Este tipo de prática
ascética difundiu-se rapidamente, graças a uma farta produção literária. Não
somente influenciou a espiritualidade de numerosos cristãos, mas serviu de
inspiração para a espiritualidade de muitas ordens religiosas, como, por exemplo,
a do ‘carmelo’, onde textos de diretores espirituais ensinavam que a principal
missão de uma ‘carmelita’ é se oferecer como holocausto, como sacrifício de
expiação à justiça divina159.
A conseqüência desta ‘piedade sentimental e dolorosa’ foi que, ao final do
século XVIII, a espiritualidade cristã tinha retornado às formas mais arcaicas de
ascese corporal. O que favoreceu, e muito, no início do século XIX, o surgimento
de um grande número de eremitas, que se retiraram do convívio social para a mais
completa solidão, com a intenção de oferecer a própria vida como sacrifício de
expiação pelos pecados do mundo160.
Práticas ascéticas desprovidas de sólida reflexão teológica foi a
característica marcante do século XIX. Todavia, logo no início do século XX, a
situação muda radicalmente. Através do motu proprio “Sacrorum antistitum”,
cujo objetivo principal era combater o “modernismo”161, o Papa Pio X estimula a
prática e a reflexão teológica sobre a ascese, definindo-a como “ciência da
piedade”162. A parir de então, o estudo da ascética se estende para todos os
seminários. Mas somente em 1931, a “Congregação dos Seminários e das

157
Cf. TESSAROLO, A., Riparazione. In: DES, Vol. III, p. 2176.
158
Cf. COGNET, L., L’ascèse em France du XVI° au XVIII° siègle. In: L’ascèse chrétienne et
l’homme contemporain, Paris, Les Éditions Du Cerf, 1951, p. 89.
159
Cf. Ibidem, pp. 89-90.
160
Cf. Ibidem, p. 92.
161
PETROSILLO, P., Modernismo. In: DFC, p. 184: O modernismo foi um “movimento cultural e
religioso dos últimos anos do século XIX e primeiros do século XX, nascido no catolicismo
europeu, que procurava tornar possível uma reconciliação entre a doutrina cristã e as ciências
modernas, especialmente o método histórico-crítico, e, ao mesmo tempo, a realização das reformas
no âmbito da disciplina eclesiástica, para permitir à Igreja poder responder às novas exigências da
sociedade e às problemáticas levantadas pela cultura moderna. O aparecimento no modernismo de
posições extremistas de autores como A. Loisy († 1940) e G. Tyrrel (1861-1909) levaram a uma
condenação em bloco do modernismo em julho de 1907, pelo decreto Lamentabili, condenação
reafirmada em 08 de setembro de 1907 com a encíclica Pascendi de Pio X”.
162
Cf. PIO PP. X, Littera motu proprio Sacrorum antistitum, (01/09/1910). In: AAS 2 [1910], p.
668. Apud BELDA, M.; ILLANES, J. L., Introduzione alla teologia spirituale, Roma, [s.n.], 1994,
p. 21.
63

Universidades”163, cumprindo orientações da constituição “Deus scientiarum


Dominus” do Papa Pio XI164, determina a criação da cátedra de ascética e mística
nas faculdades teológicas165.
1.4.
Mortificação: uma dimensão da ascese

Com o advento da cátedra de teologia ascética e mística, apareceram, em


pouco tempo, os primeiros manuais sobre o assunto. Textos como os de Adolphe
Tanquerey, “Compêndio de teologia ascética e mística”166, e de Reginald
Garrigou-Lagrange, “As três idades da vida interior”167, tornaram-se muito usados
em seminários e faculdades católicas de teologia168. Em linhas gerais, essas duas
obras clássicas apresentam a ‘teologia ascética e mística’ como uma parte da
teologia, que estuda a vida espiritual sob duas dimensões: a ascética e a mística169.
A ascética trata, sobretudo, da purificação dos vícios e dos defeitos, bem
como da prática das virtudes. A mística ocupa-se principalmente da docilidade às
inspirações do Espírito Santo, da contemplação infusa dos mistérios da fé, da
comunhão com Deus e das graças extraordinárias, como as visões e as revelações
que acompanham, por vezes, a contemplação infusa170. Apesar dessa subdivisão, a
teologia ascética e mística tem na busca da ‘perfeição cristã’ seu objetivo único.
Tanto que o frei dominicano espanhol Antônio Royo Marin, em 1953, publicou

163
Hoje, “Congregação para a Educação Católica”.
164
Cf. PIO PP. XI, Deus scientiarum Dominus, (24/05/1931). In: AAS 23 [1931], pp. 271.281.
Apud BELDA. M.; ILLANES, J. L., op. cit., p. 22.
165
GUERRA, A., Introducción a la teologia espiritual, Santo Domingo, Editorial de
Espiritualidad del Caribe, p. 27: “A recomendação de Pio X se fez pronta realidade com a criação
das cátedras de ascética e mística no ‘Angélico’, em 1919 e na ‘Gregoriana’, em 1920. A primeira,
regida por Fr. Garrigou-Lagrange; a segunda, por Pe. Marchetti”.
166
Adolphe Tanquerey nasceu em Blainville, na França, em 1854. Foi sacerdote sulpiciano e
professor de teologia dogmática e direito canônico. Autor de um grande número de livros e de
publicações de caráter espiritual, Tanquerey adquiriu rapidamente a fama de mestre e suas obras se
converteram em ponto de referência para a teologia da época. Morreu em Aix-em-Provence,
França, em 1932. Publicou ‘Compêndio de teologia ascética e mística’, em 1924.
167
Reginald Garrigou-Lagrange nasceu em Auch, na França, em 1877, e morreu em Roma, em
1964. Frade dominicano, estudou nas universidades de Sorbone e Friburgo. Foi catedrático de
teologia no ‘Angelicum’, em Roma, durante décadas e um dos grandes teólogos de sua geração.
Sua principal obra literária é ‘As três idades da vida interior’, em dois volumes, publicada na
cidade de Paris, em 1938.
168
Cf. SHELDRAKE, P., Espiritualidade e teologia – Vida cristã e fé trinitária, São Paulo,
Paulinas, 2005, p. 74.
169
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, R., Les trois ages vie intérieure, Tome I, Paris, Les Éditions
Du Cerf, 1938, pp. 10-11.
170
Cf. Ibidem.
64

seu manual de teologia ascética e mística, que também se tornou bastante


conhecido e adotado em seminários, intitulando-o “Teologia da perfeição cristã”.
A perfeição cristã supõe etapas progressivas de crescimento. Adolphe
Tanquerey e Reginald Garrigou-Lagrange dividem-na em três: a dos principiantes
(via purgativa), a dos proficientes (via iluminativa) e a dos perfeitos (via
unitiva)171. E é justamente na etapa dos principiantes, aqueles que adentram a via
purgativa, que, finalmente, encontramos, com sistematização lógico-formal, o
termo ‘mortificação’. Até então, mortificação era apenas um conceito usado como
sinônimo de penitências corporais, próprias da ascese cristã. No segundo capítulo
abordaremos a teologia e a prática da mortificação.
1.5.
Conclusão

Esta sumária análise histórica que realizamos desde a filosofia grega até o
surgimento dos clássicos manuais de teologia ascética e mística, no século
passado, ajudou-nos a compreender melhor a “metamorfose” pela qual passou o
termo ascese. A compreensão que nós cristãos atualmente temos de ascese é bem
diversa da concepção inicial grega, como vimos no transcorrer dessa pesquisa.
Vários são os fatores que contribuíram para essa mudança. O marco inicial
foi, sem dúvida, o advento da filosofia, que determinou o fim da religião
naturalista, do pensamento mítico, e o início da sistematização racional da
experiência religiosa. Dessa forma surgiram as escolas filosóficas que procuraram
explicar e ensinar a melhor forma de o homem se autoconhecer e de relacionar-se

171
Cf. TANQUEREY, A., Compêndio de teologia ascética e mística, 3. ed., Porto, Livraria
Apostolado da Imprensa, 1940, pp. 228-229; 608-615; 805-972: O que caracteriza a condição dos
principiantes (via purgativa) é a chamada ‘purificação da alma’, cujo objetivo é conseguir a
comunhão com Deus. Os meios utilizados para alcançar a comunhão teologal são: oração e
mortificação. Porém a mortificação recebe diferentes nomes, segundo os aspectos sob os quais
pondera: chama-se ‘penitência’, quando leva a expiar as faltas passadas; ‘mortificação’
propriamente dita, quando se opõe ao prazer, para diminuir o número de faltas no presente e no
futuro; ‘luta contra os pecados capitais’, quando combate as tendências profundas que levam o
homem a pecar; e, por fim, chama-se ‘luta contra as tentações’, quando resiste ao assalto dos
inimigos espirituais. Purificada a alma das faltas passadas, por meio das penitências; confirmada
na virtude pelo exercício da meditação, é o momento de progredir para a ‘via iluminativa’, assim
chamada por consistir principalmente na imitação de Jesus Cristo, através da oração afetiva, e pela
prática constante das virtudes morais e teologais. E quando totalmente purificada e adornada pelo
exercício positivo das virtudes, a alma está apta para a união habitual com Deus, ou, em outras
palavras, está pronta para a ‘via unitiva’, capacitada para atingir a perfeição cristã. Nesta última
etapa, a alma aperfeiçoa os sete dons do Espírito Santo, a oração se torna simples, convertendo-se,
primeiramente, numa espécie de contemplação ativa, para, em seguida, atingir a contemplação
infusa, podendo, até mesmo, chegar à manifestação de fenômenos místicos extraordinários.
65

com a divindade. Dentre essas, duas merecem destaque especial: o estoicismo e o


neoplatonismo. Essas duas correntes do pensamento filosófico grego constituíram
os dois elementos antropológicos que marcaram profundamente a prática ascética
cristã: a resignação diante do sofrimento e a desvalorização do corpo.
A Idade Média foi pródiga na aplicação das idéias estóicas e neoplatônicas
às práticas ascéticas. Foi o período das mais duras e extravagantes asceses
corporais. Interessante observar é que no período que se estende da Idade Média
até os inícios do século XX, não existiu uma consistente e constante reflexão
sistemática acerca da ascese. Tudo isso porque a partir do século XIII, a teologia
escolástica foi se distanciando das questões relacionadas à vida espiritual. Foi o
início do processo de divórcio entre teologia e espiritualidade, característico do
Ocidente moderno. A teologia ocidental tornou-se mais especulativa, erudita,
teórica, freqüentemente árida e causa de aridez espiritual. No século XIV se
verificou uma reação contrária à teologia meramente especulativa, por conta de
alguns teólogos estudiosos dos fenômenos místicos. Esta teologia foi chamada de
“mística especulativa”, pois buscava dar uma explicação à experiência mística
tendo como base os principais dogmas da fé. Os principais expoentes deste
movimento foram: Eckhart († 1327), Tauler († 1376) e Ruysbroeck († 1381).
Característica comum destes teólogos era, novamente, a influência das idéias
estóicas e neoplatônicas, além da linguagem complexa utilizada para descrever as
técnicas para ascender até Deus172.
Como reação contrária à mística especulativa, ao final do século XIV e,
sobretudo, no século XV, surgiu com muita força o movimento conhecido como
“Devotio moderna”. Os seus principais expoentes foram Groote († 1384),
considerado o fundador deste movimento, e o livro “Imitação de Cristo” (1441),
comumente atribuído a Tomás Kempis, se bem que haja vozes discordantes
quanto à sua paternidade. Estes autores incentivavam a busca da devoção afetiva e
da contemplação da humanidade de Jesus como caminho para chegar até à
comunhão com Deus. Procuravam apresentar a vida espiritual nos seus aspectos
acessíveis a todos os cristãos. E é justamente nesta época que acontece
efetivamente o divórcio entre teologia e espiritualidade. Passam a ser freqüentes

172
Cf. VANDENBROUCKE, F., Le divorce entre théologie et mystique. Ses origines. In:
NOUVELLE REVUE THÉOLOGIQUE, n. 82, 1950/4, pp. 372-389. Apud BELDA, M.;
ILLANES, J. L.; Introduzione alla teologia spirituale, Roma, [s.n.], 1994, pp. 10-11.
66

as disputas entre ‘teólogos’ e ‘espirituais’. Os teólogos desconsideravam a


literatura espiritual, os chamados ‘livros de devoção’, que a partir de então não
eram mais considerados como teologia. Surge, assim, de uma parte, uma teologia
especulativa, rigorosa na análise conceitual e no método argumentativo, mas
carente de incidência vital, e de outra parte, surge uma literatura piedosa e
devocional, nas quais são acolhidas experiências e ensinamentos espirituais, mas
sem cumprir o rigor de uma reflexão teológica profunda sobre a totalidade da vida
espiritual173.
Não se pode deixar de lado o esforço individual de grandes mestres
espirituais, tais como, santa Teresa de Jesus, são João da Cruz, são Pedro de
Alcântara, são João D’Ávila, santo Inácio de Loyola e frei Luís de Granada, que
conseguiram sistematizar suas experiências de vida interior, através de obras sobre
a oração e a vida espiritual; obras que obtiveram grande difusão174. Ainda no
transcorrer dos séculos XVI a XVIII é importante destacar os esforços de grandes
doutores escolásticos que elaboraram alguns tratados de vida espiritual com
finalidade didática, mas escritos com metodologia teológica e utilizando não
somente a experiência de santos, mas também o ensinamento dos grandes
doutores escolásticos. Dentre essas obras, as mais significativas foram:
“Dissertatio ascético-scholastica de natura et dotibus theologiae asceticae”
(1717) e “Instructio et manuductio ad theologiam misticam et dilectionem Dei”
(1727), obras do teólogo beneditino suíço Erhard (†1729), que marcaram a divisão
do estudo da vida espiritual em duas dimensões: a ascética e a mística. Porém,
apesar de todos esses esforços, a separação entre teologia e espiritualidade
persistiu em âmbito geral175.
Este divórcio entre teologia e espiritualidade foi o terreno fértil para o
acirramento das práticas ascéticas. Para isso, torno a enfatizar, contribuiu
negativamente a forte influência na cultura cristã do pensamento estóico e
neoplatônico. No entanto, precisamos ser justos com tantos homens e mulheres
que corresponderam à graça de Deus e se tornaram santos e santas, apesar de
terem sido formados numa cultura impregnada por uma espiritualidade pessimista,

173
Cf. Ibidem, p. 11.
174
Cf. Ibidem.
175
Cf. PACHO, E., Storia della spiritualità moderna, Roma, [s.n.], 1984, p. 247.
67

caracterizada pela dor e pelas austeras penitências. Sinal de que a graça de Deus
supera as limitações culturais e humanas.
Os manuais de teologia ascética e mística, do início do século XX, marcam
o retorno da reflexão teológica à prática ascética. Constituem um marco na
história da espiritualidade. Por isso, vamos analisá-los no próximo capítulo.
68

2
Mortificação: teologia e prática

Trataremos, agora, da teologia da mortificação e sua rigorosa prática


penitencial, cuja influência se faz sentir até hoje, na espiritualidade cristã. Como
fonte de pesquisa utilizaremos os três manuais clássicos de teologia ascética e
mística, já citados no primeiro capítulo: “As três idades da vida interior”, de
Reginald Garrigou-Lagrange; “Compêndio de ascética e mística”, de Adolphe
Tanquerey; e “Teologia da perfeição cristã”, de Antônio Royo Marin.
2.1.
Teologia da mortificação

Segundo Antônio Royo Marin e seu manual, a configuração com Jesus


Cristo é a finalidade da vida cristã; e a mortificação é o meio para se atingir esse
objetivo. Somente seremos santos à medida que vivermos a vida de Cristo, ou
melhor, à medida que Cristo viver sua vida em nós. O processo de santificação
pode até ser chamado de processo de “cristificação”; pois necessariamente, o
cristão, para alcançar a perfeição, tem que se converter em outro Cristo (cf. Gl 2,
20). A santidade nada mais é que uma fiel reprodução da vida de Cristo, com
todas as suas conseqüências176.
Para Royo Marin o caminho para a “cristificação” é assinalado, de modo
inequívoco, pelo próprio Cristo: “Se alguém quiser vir em meu seguimento,
renuncie a si mesmo e tome sua cruz cada dia, e siga-me” (Lc 9, 23). Não há outro
caminho possível, é imperativo abraçar a dor, carregar a própria cruz e seguir
Cristo até o Calvário, não apenas para contemplá-lo, mas para ser crucificado com
ele. Amar cada vez mais o sofrimento177 deve ser a tônica da vida cristã; mas, para
isso, é imprescindível vencer a natural repugnância humana à dor, exercitando-se,
diariamente, no amor à cruz.

176
Cf. ROYO MARIN, A., Teologia da perfeição cristã, 4. ed., Madrid, BAC, 1962, pp. 48-49.
339.
177
Cf. Ibidem, pp. 342-346: Existem cinco graus de amor ao sofrimento. São eles, por ordem
ascendente de perfeição: 1°) Não omitir nenhum dever desagradável; 2°) Aceitar com resignação
69

Aceitar com resignação, sem revolta, os sofrimentos que Deus envia já é um


grau considerável de amor à cruz; todavia, ensina Royo Marin, para chegar à
perfeição, é preciso ir além da simples passividade, é indispensável tomar a
iniciativa, ou seja, buscar a dor, praticando a mortificação cristã em todas as sua
formas recomendáveis, para dominar as pulsões do corpo, como recomendou são
Paulo: “trato duramente o meu corpo e o mantenho submisso” (1Cor 9, 27).
Quanto mais comodidade se oferece ao corpo mais rebelde e propenso ao pecado
ele se torna. Por outro lado, quando submetido a uma disciplina de sofrimentos e
severas restrições, o corpo se torna dócil e resistente às tentações178. Assim sendo,
conclui Royo Marin, para evitar os pecados, é imprescindível a prática diária da
mortificação; mas não só para evitá-los; também para sanar seus efeitos residuais,
as chamadas ‘penas temporais’. Prevenir e sanar são, pois, os dois motivos sobre
os quais está estruturada a teologia da mortificação.
Adolphe Tanquerey ensina em seu manual que a motivação ‘preventiva’
justifica a utilização da dor como instrumento eficaz de luta contra as más
inclinações do corpo, com a finalidade de preservar-nos das faltas presentes e
futuras. Já a motivação ‘sanante’, segundo ele, legitima as práticas de
mortificação como oportunidade para adquirirmos méritos179 diante de Deus,
obtendo, dessa maneira, a quitação das penas devidas pelos pecados do
passado180.
Para tornar nosso estudo mais rico de esclarecimentos, esses dois motivos
fundamentais serão desmembrados, para, assim, analisarmos detalhadamente as
razões teológicas que os originaram. Seguindo a partir de agora o manual de
Reginald Garrigou-Lagrange, o desmembramento dar-se-á a partir das seguintes
causas: as conseqüências do pecado original, as conseqüências dos pecados

as cruzes que Deus envia; 3°) Praticar a mortificação voluntária; 4°) Preferir a dor ao prazer; 5°)
Oferecer-se a Deus como vítima de expiação.
178
Cf. Ibidem, p. 340.
179
Cf. DS 1548: Assim como o pecado gera uma dívida com Deus, a obra meritória tem direito a
uma recompensa, que pode quitar totalmente ou parcialmente as penas devidas pelos pecados
cometidos. O mérito não tem sua origem no simples esforço humano, mas na graça divina; é
conseqüência da filiação divina, da ação de Deus na vida humana. A graça, unindo o homem a
Cristo, assegura a qualidade sobrenatural de seus atos e, conseqüentemente seu mérito diante de
Deus. Os méritos das boas obras são sempre dons da bondade divina.
180
Cf. TANQUEREY, A., Compêndio de teologia ascética e mística, 5. ed., Porto, Livraria
Apostolado da Imprensa, p. 492-493.
70

pessoais, a luta contra as tentações do mundo, a luta contra as tentações do


demônio e o desapego para alcançar a perfeição181.
2.1.1.
Para vencer as conseqüências do pecado original

Embasado no Concílio de Trento e na teologia de Santo Tomás de Aquino,


Garrigou-Lagrange atesta que Adão, o primeiro homem, por seu pecado, perdeu a
santidade e a justiça original182; e transmitiu para todo gênero humano uma
natureza decaída, privada da graça e ferida183. Por esse motivo, todo homem vem
ao mundo com uma vontade apartada de Deus, inclinada ao mal e frágil para fazer
o bem; com uma razão que facilmente cai no erro, e uma sensibilidade
violentamente inclinada ao prazer desordenado e à cólera184. É a “ferida da
natureza humana”185, raiz do orgulho, do esquecimento de Deus e do egoísmo em
todas as suas modalidades186.
Em razão dessa desordem e dessa fraqueza da vontade, prossegue Garrigou-
Lagrange, não nos é possível amar eficazmente e, mais que a nós mesmos, a Deus,
autor de nossa natureza. E só conseguimos superar essa debilidade com o auxílio
da graça sanante187. Acrescenta ainda Garrigou-Lagrange a desordem da
concupiscência, tão palpável, que santo Tomás vê nela um ‘sinal bastante
provável do pecado original’, sinal que vem confirmar aquilo que a revelação nos
ensina acerca do pecado de Adão188. Em lugar da tríplice harmonia original entre
Deus e a alma, entre a alma e o corpo, bem como entre o corpo e as coisas
exteriores nasceu a tríplice desordem de que nos fala são João: “Pois tudo o que

181
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, R., Les trois ages de la vie intérieure, Tome I, Paris, Les
Éditions Du Cerf, 1938, p. 389.
182
Ibidem, p. 391: “A justiça original era uma harmonia perfeita entre Deus e a alma criada para
amá-lo, conhecê-lo e servi-lo, e entre a alma e o corpo; a alma guardava essa submissão a Deus, as
paixões da sensibilidade permaneciam também submetidas à reta razão iluminada pela fé, e a
vontade era vivificada pela caridade; o corpo participava por privilégio desta harmonia, e não
estava sujeito nem à enfermidade, nem à morte”.
183
Cf. DS 1512.
184
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, I, II, q. 85, a. 3. Apud GARRIGOU-
LAGRANGE, R., op. cit., p. 391.
185
GARRIGOU-LAGRANGE, R., op. cit., p. 393: “Segundo os Padres, em particular o venerável
Beda, em seu comentário à parábola do bom Samaritano, o homem caído está, não somente
despojado da graça e dos privilégios do estado de justiça original, mas também está ferido em sua
natureza, ‘per peccatum primi parentis, homo fuit spoliatus gratuitis et vulneratus in naturalibus’”.
186
Cf. Ibidem, pp. 393-394.
187
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, I, II, q. 109, a. 3. Apud GARRIGOU-
LAGRANGE, R., op. cit., p. 393
188
Cf. Idem, Summa contra gentiles, I. IV, c. LII, n. 3. Apud: GARRIGOU-LAGRANGE, R., op.
cit., p. 394.
71

está no mundo – a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a


confiança orgulhosa nos bens – não vem do Pai, mas vem do mundo” (1Jo 2,
16)189.
Segue ensinando Garrigou-Lagrange que o batismo nos sanou do pecado
original, aplicando-nos os méritos do Salvador, dando-nos a graça santificante e as
virtudes infusas; assim, pela virtude da fé, nossa razão foi sobrenaturalmente
esclarecida; e, pelas virtudes da esperança e da caridade, nossa vontade se voltou
para Deus. Todavia, enfatiza nosso autor, permanece, mesmo nos batizados em
estado de graça, a debilidade original e as ‘feridas em vias de cicatrização’, que às
vezes nos fazem sofrer e que foram conservadas, segundo santo Tomás, como
ocasião de luta e méritos190. Garrigou-Lagrange faz questão de ressaltar que essa
debilidade original é bem assinalada por são Paulo:

“Compreendamos bem isto: o nosso homem velho foi crucificado com ele, para
que seja destruído esse corpo de pecado e, assim, não sejamos mais escravos do
pecado. Pois aquele que está morto está libertado do pecado (...). Portanto, que o
pecado não mais reine em vosso corpo mortal para vos fazer obedecer as suas
concupiscências. Não ponhais mais os vossos membros a serviço do pecado como
armas da injustiça; mas como vivos saídos dentre os mortos, fazendo dos vossos
membros armas da justiça, ponde-vos a serviço de Deus” (Rm 6, 6-13).

Garrigou-Lagrange prossegue realçando que esse ‘homem velho’ precisa ser


mortificado, precisa morrer em nós. Do contrário, nunca conseguiremos o
domínio sobre nossas paixões, além de experimentarmos oposição e guerra
perpétua entre a nossa natureza e a graça. Se as almas não mortificadas não se dão
conta dessa guerra, é sinal de que a graça leva nelas vida muito raquítica; a
natureza egoísta é sua dona e senhora absoluta, ainda que possuam algo da virtude
da temperança e certas boas inclinações naturais que se tomam por verdadeiras
virtudes, completa Garrigou-Lagrange191.
Conclui Garrigou-Lagrange afirmando a necessidade da mortificação contra
as conseqüências do pecado original, que ainda continuam existindo nos batizados
como ocasião de luta, luta esta indispensável para não cairmos em pecados atuais
e pessoais. Devemos nos esforçar para fazer desaparecer as conseqüências do

189
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, R., Les trois ages de la vie intérieure, Tome I, Paris, Les
Éditions Du Cerf, 1938, p. 393-394.
190
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, III, q. 69, a. 3, ad 3; DS 1520. Apud
GARRIGOU-LAGRANGE, R., op. cit., pp. 394-395.
191
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, R., op. cit., pp. 395-396.
72

pecado original, especialmente a concupiscência, que inclina aos demais pecados.


Se nos mortificamos, as feridas vão se cicatrizando continuamente com o aumento
da graça que sana e que, às vezes, nos levanta para uma nova vida: ‘gratia sanans
et elevans’. Muito distante de destruir a natureza, pela prática da mortificação, a
graça a restaura, a sana e a torna mais dócil nas mãos de Deus192.
2.1.2.
Para vencer as conseqüências dos pecados pessoais

Os pecados, segundo Garrigou-Lagrange, quando repetidos, engendram os


vícios; estes, por sua vez, geram uma inclinação pecaminosa, que passa a ser um
elemento constitutivo do caráter. Essa tendência ao pecado, santo Tomás chamou-
a “reliquae peccati”, acrescenta Garrigou-Lagrange193. Um exemplo, segundo
nosso autor em questão, para bem ilustrar essa realidade: alguém que por muito
tempo foi viciado em bebida alcoólica e se confessa com contrição recebe, com o
perdão, a graça santificante e a virtude infusa da temperança; contudo, ainda
conserva a inclinação ao vício e, se não fugir das ocasiões, voltará a cair no
mesmo pecado de alcoolismo. Essas inclinações ao pecado precisam ser
mortificadas, precisam morrer, para libertar de grandes amarras a natureza e a
graça194.
Conforme Garrigou-Lagrange a ‘satisfação’ vem também a confirmar a
necessidade da mortificação para vencer as conseqüências dos pecados pessoais.
Quando o pecador recebe a absolvição sacramental, lhe é imposta uma penitência,
isto é, uma satisfação, para obter a remissão da pena temporal de seus pecados.
Esta satisfação é parte do sacramento da reconciliação, através do qual ele recebe
os méritos de Jesus Cristo, que restitui, ou aumenta, a graça em sua alma,
conforme ensinamento de Santo Tomás de Aquino195. Assim, prossegue Garrigou-
Lagrange, fica quitada, pelo menos em parte, sua dívida com a justiça divina. Para
conseguir esse efeito, o pecador ainda deve aceitar com resignação as penalidades
próprias da vida; e se isso não for suficiente para purificá-lo totalmente, deverá

192
Cf. Ibidem.
193
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, III, q. 86, a. 5. Apud GARRIGOU-
LAGRANGE, R., Les trois ages de la vie intérieure, Tome I, Paris, Les Éditions du Cerf, 1938, p.
397.
194
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, R., op. cit., pp. 395-397.
195
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, III, q. 86, a. 4, ad 2. Apud
GARRIGOU-LAGRANGE, R., Les trois ages de la vie intérieure, Tome I, Paris, Les Éditions Du
Cerf, 1938, p. 398.
73

passar pelo “purgatório”. E Garrigou-Lagrange ainda acrescenta que o dogma do


purgatório é uma prova contundente da necessidade da mortificação, pois toda
dívida com a justiça divina precisa ser paga, pelos méritos nesta vida, ou pelo
fogo purificador na outra196.
Citando mais uma vez Santo Tomás de Aquino, Garrigou-Lagrange ensina
que assim como todo pecado requer satisfação, da mesma maneira todo ato
inspirado pela caridade é merecedor de recompensa197. E conclui afirmando que
um arrependimento pleno de amor quitaria tanto a falta como a pena temporal,
conforme o demonstraram as lágrimas da mulher pecadora, que Jesus abençoou:
“Se eu te declaro que os seus pecados tão numerosos foram perdoados, é porque
ela demonstrou muito amor” (Lc 7, 47)198.
2.1.3.
A luta contra o mundo

Para falar da luta contra o mundo utilizaremos o manual de Antônio Royo


Marin. Segundo esse autor, o mundo é o ambiente anticristão, em que as pessoas
assumem uma mentalidade totalmente diversa do evangelho e, desse modo, ficam
distantes de Deus, totalmente entregues às coisas da terra. Este ambiente refratário
a Deus, acrescenta Royo Marin, constitui-se e manifesta-se visivelmente de quatro
modos: através das falsas máximas, das perseguições, dos prazeres e diversões, e
dos escândalos e maus exemplos199.
As falsas máximas exaltam as riquezas, os prazeres, a violência, a fraude e a
corrupção para obter vantagens pessoais. Essas máximas subvertem a verdade das
coisas de tal modo, que, por exemplo, um corrupto é concebido como um ‘homem
hábil’ em seus negócios. As perseguições visam ridicularizar a vida de piedade, a
honestidade nos negócios, a fidelidade na vida matrimonial, enfim, buscam
desqualificar os valores cristãos. Os prazeres e diversões oferecidos pelo mundo −
teatros, cinemas, bailes, piscinas, praias, revistas, periódicos, novelas, frases de
duplo sentido, entre outros −, além de imorais, produzem uma verdadeira
escravidão, pois as pessoas passam a viver apenas em função deles, não

196
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, R., Les trois ages de la vie intérieure, Tome I, Paris, Les
Éditions Du Cerf, pp. 397-398.
197
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, III, q. 85, a. 3; I, II, q. 87, a. 1, 3, 4, 5.
Apud GARRIGOU-LAGRANGE, R., op. cit., p. 398.
198
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, R., op. cit., p. 399.
199
Cf. ROYO MARIN, A., Teologia de la perfeccion cristiana, Madrid, BAC, 1962, p. 304.
74

reservando tempo para outras atividades prementes ao bem estar humano, como,
por exemplo, o descanso. Por fim, completa Royo Marin, os escândalos e maus
exemplos são usados pelo mundo como incitação ao pecado, em algumas de suas
formas200.
Ainda segundo Royo Marin, o remédio mais eficaz contra o mundo seria
ausentar-se, refugiando-se num mosteiro. Mas como nem todos os cristãos têm
vocação à vida eremítica ou monástica, e a maioria necessita viver imersa no
mundo sem, contudo, renunciar à perfeição cristã, é preciso adquirir a mentalidade
de Jesus Cristo, que é diametralmente oposta à mentalidade do mundo. Isso se dá
de muitas maneiras: fugindo das ocasiões perigosas; evitando espetáculos que
excitam as mais baixas paixões; avivando a fé; desmascarando as máximas do
mundo com as máximas do evangelho; meditando a fugacidade do mundo e a
eternidade de Deus; e, por fim, não sendo covarde, negando o evangelho de Cristo
para simplesmente agradar o mundo, mesmo que isso custe inimizades e
perseguições (cf. Jo 15, 18-20), finaliza Royo Marin201.
2.1.4.
A luta contra as tentações do demônio

Para falar das tentações do demônio retornemos ao manual de Adolphe


Tanquerey. Para embasar nossa luta contra as tentações do demônio, Tanquerey
utiliza as palavras de São Paulo: “Pois não é o homem que afrontamos, mas as
Autoridades, os Poderes, os Dominadores deste mundo de trevas, os espíritos do
mal que estão nos céus” (Ef 6, 12). Também cita São Pedro, que compara o
demônio a um leão que nos rodeia com a intenção de devorar-nos: “Sede sóbrios,
vigiai! Vosso adversário, o diabo, como um leão que ruge, ronda, procurando a
quem devorar” (1Pd 5, 8). Segundo compreensão de Tanquerey, a divina
providência permite estes ataques, pois todas as vezes que vencemos as tentações
do demônio fortalecemos nossa vontade e adquirimos méritos diante de Deus202.
Contudo, Tanquerey adverte que o demônio não pode agir diretamente sobre
nossas faculdades superiores, a saber, a inteligência e a vontade, as quais Deus
reservou para si como um santuário: só Deus pode penetrar em nossa alma e

200
Cf. Ibidem, pp. 304-305.
201
Cf. Ibidem, pp. 305-307.
202
Cf. TANQUEREY, A., Compêndio de teologia ascética e mística, Porto, Livraria Apostolado
da Imprensa, 1955, pp. 130-131.
75

mover nossa vontade sem fazer violência. Mas o demônio, ainda segundo
Tanquerey, pode agir diretamente sobre o nosso corpo, sobre os nossos sentidos
externos e internos, especialmente sobre nossa memória e nossa imaginação,
assim como sobre as paixões que têm origem em nosso apetite sensitivo; e, desta
maneira, consegue agir ‘indiretamente’ sobre nossa vontade, cujo consentimento
solicita através dos diversos movimentos da sensualidade. Mas ainda que o poder
do demônio se estenda às faculdades sensíveis e ao corpo, Tanquerey,
fundamentado na teologia paulina, assevera que Deus estabelece um limite a esse
poder, para não sermos tentados além de nossas forças (cf. 1Cor 10, 13)203.
E para não ser vítima das astúcias do demônio, que inicialmente nos
estimula a praticar faltas leves para depois levar-nos a outras mais graves, Jesus
Cristo mesmo nos exortou a recorrer à oração, ao jejum e à esmola (cf. Mt 17, 21).
Agindo dessa maneira, conforme Tanquerey, a tentação, não apenas será
derrotada, mas, citando São Tomás de Aquino, se converterá em ocasião de atos
meritórios204.
2.1.5.
Desapego para alcançar a perfeição

Para explanar a busca da perfeição utilizaremos os manuais de Garrigou-


Lagrange e Antônio Royo Marin. Ao falar da perfeição, Garrigou-Lagrange parte
do princípio bíblico de que somos chamados a participar da vida íntima de Deus.
Nosso fim último é a vida sobrenatural. Por isso não basta que vivamos somente
segundo a reta razão, isto é, como seres racionais que submetem as paixões à
razão; é necessário que vivamos como ‘filhos de Deus’, submetendo a razão ao
domínio da fé, de tal modo que a caridade sobrenatural inspire todas as nossas
ações. Isto nos obriga ao desapego de tudo aquilo que seja simples interesse
terreno; enfim, de tudo o que não seja meio para alcançar Deus. Por isso, conclui
Garrigou-Lagrange, necessitamos combater o natural apego às coisas da terra, que
absorve nossa atenção em detrimento da vida da graça. E como fundamentação
bíblica, cita São Paulo: “Visto que ressuscitastes com Cristo (pelo batismo),

203
Cf. Ibidem, pp. 131-132.
204
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, III, supl. q. 15, a. 5. Apud
GARRIGOU-LAGRANGE, R., Les trois ages de la vie intérieure, Tome I, Paris, Les Éditions Du
Cerf, 1938, p. 400.
76

procurai o que está no alto, lá onde se encontra Cristo, sentado à direita de Deus; é
no alto que está a vossa meta, não na terra” (Cl 3, 1-2) 205.
Ainda para reforçar que o cultivo do espírito de desapego é um dos grandes
preceitos cristão, mais uma vez Garrigou-Lagrange cita São Paulo: “Doravante,
aqueles que têm mulher sejam como se não a tivessem (...), os que compram como
se não possuíssem, os que tiram proveito deste mundo, como se não
aproveitassem realmente. Pois a figura deste mundo passa” (1Cor 7, 29-31). É
preciso evitar o apego às coisas e às pessoas, para chegar até Deus. A infinita
dignidade de nosso fim sobrenatural requer total abnegação às coisas humanas,
por legítimas que sejam, pois poderíamos nos deixar absorver por elas,
prejudicando, dessa maneira, a vida da graça, finaliza Garrigou-Lagrange206.
Para enriquecer o tema, finalizamos acrescentando o pensamento de
Antônio Royo Marin a respeito da busca da perfeição. Segundo esse autor, Jesus
crucificado é o modelo, por excelência, de desapego e abnegação às coisas do
mundo. Nossa incorporação a Cristo, pelo batismo, obriga-nos à experiência
purificadora da dor, pois somente a cruz nos configura com Cristo de uma
maneira perfeitíssima, libertando-nos dos apegos desordenados. Antônio Royo
Marin é incisivo, para ele quem almeja a perfeição deve alimentar amor pelo
sofrimento, e cita como fundamentação bíblica São Paulo, que nutre verdadeira
paixão pelo sofrimento ao declarar que vive crucificado com Cristo (cf. Gl 2, 19)
e não quer gloriar-se senão na cruz de Jesus Cristo, pelo qual vive crucificado para
o mundo (cf. Gl 6, 14)207.
2.2.
A prática da mortificação

O estudo que acabamos de fazer do embasamento teológico da mortificação,


a partir dos manuais de ascética e mística, evidenciou como o pecado, o mundo, o
demônio, os apegos desordenados e a aversão à dor dificultam e limitam a ação da
graça para levar-nos à perfeição. É preciso lutar energicamente contra esses
obstáculos que afetam o corpo com seus sentidos exteriores e a alma com todas as
suas potências, segundo ensinamento geral dos três manuais em estudo. A partir

205
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, R., Les trois ages de la vie intérieure, Paris, Les Éditions Du
Cerf, 1938, p. 401.
206
Cf. Ibidem.
207
Cf. ROYO MARIN, A., Teologia de la perfeccion cristiana, Madrid, BAC, 1962, p. 341.
77

desta constatação, a prática da mortificação preocupa-se em abarcar integralmente


todas as dimensões do ser humano, através de exercícios estáveis para purificar o
corpo, os sentidos internos, as paixões e as potências da alma208. É o que
analisaremos neste item, utilizando o manual de ascética e mística de Adolphe
Tanquerey.
2.2.1.
Mortificação do corpo

Ensina Tanquerey que no estado de natureza decaída, o corpo busca


prazeres sensuais, sem fazer caso do que é permitido ou proibido; tem, aliás,
inclinação especial pelos prazeres ilícitos e muitas vezes se revolta contra as
potências da alma que lhe advertem quanto ao pecado que está cometendo. É
tratado como inimigo perigoso, porque nos acompanha por toda parte, à mesa, no
leito, no trabalho, e muitas vezes até encontra cúmplices dispostos a exercitar-lhe
a sensualidade e a luxúria. É, pois, absolutamente necessário ao homem dominar
seu corpo, reduzi-lo à servidão, para não ser traído por ele209.
2.2.1.1.
Modéstia do corpo

Para Tanquerey, a primeira forma de mortificação corporal é a modéstia do


corpo. Esta se realiza, segundo nosso autor, inicialmente, pela observância das
regras da modéstia na vestimenta. O princípio geral é o ensinamento de são Paulo:
“Não sabeis porventura que os vossos corpos são membros de Cristo? (...). Ou não
sabeis acaso que o vosso corpo é templo do Espírito Santo que está em vós (...)”
(1Cor 6, 15.19). É mister, pois, respeitar nosso corpo como um templo santo,
como um membro de Cristo. Daí renunciar a roupas indecentes, que não são feitas
senão para provocar a curiosidade e a volúpia. Cada qual, ensina Tanquerey, deve
trazer a vestimenta apropriada a sua condição, sempre simples e modesto, mas
também asseado e decente. Para Tanquerey também faz parte da modéstia a boa
compostura corporal. Por isso insiste na necessidade evitarmos as posições moles,
conservando o corpo sempre ereto; não cruzando nem os pés nem as pernas; não

208
Cf. TANQUEREY, A., Compêndio de teologia ascética e mística, Porto, Livraria Apostolado
da Imprensa, 1955, pp. 424-426.
209
Cf. Ibidem, p. 426.
78

se apoiando indolentemente na cadeira ou sobre o genuflexório; enfim, evitando


sempre os movimentos bruscos e os gestos desordenados210.
E para os mais generosos, ensina Tanquerey, é possível, ainda, o uso de
instrumentos de maceração física, para “acalmar os ardores do corpo” e estimular
o desejo da piedade. Os instrumentos mais comuns de maceração citados por
Tanquerey são: cilícios para apertar os braços ou a cintura, escapulários de crina e
alguns bons golpes de chicote nas costas. Em tudo isso, chama a atenção
Tanquerey, é necessário consultar o parecer de um experiente diretor espiritual,
para evitar os excessos211.
2.2.1.2.
Modéstia dos sentidos

A segunda forma de mortificação corporal abordada por Tanquerey é a


modéstia dos sentidos. Segundo nosso autor, há olhares culpados, que ofendem
não somente o pudor, mas até mesmo a castidade. Esses olhares precisam ser
evitados. Existem também os olhares perigosos, que fixam a vista sem motivo em
pessoas ou objetos que naturalmente suscitarão tentações. Por isso, Tanquerey
recomenda ao cristão sincero mortificar a curiosidade dos olhos, evitando, por
exemplo, olhar pela janela para ver quem passa, conservando os olhos sempre
baixos nas viagens ou passeios. E, quando puder, deve descansar o olhar sobre
uma imagem piedosa ou uma cruz, para, assim, se exercitar no amor de Deus e
dos santos212.
Ainda segundo Tanquerey o ouvido e a língua também devem ser
mortificados. Essa mortificação exige que não se diga nem ouça nada contrário à
caridade, à castidade, à humildade e às demais virtudes cristãs. Conforme
Tanquerey, as palavras lúbricas excitam a curiosidade mórbida, despertam as
paixões, inflamam desejos e, desse modo, levam ao pecado. As palavras pouco
caritativas suscitam inimizades e rancores até nas famílias. Por isso, ensina
Tanquerey que é premente velar sobre as mínimas palavras, para evitar
escândalos, e saber fechar os ouvidos a tudo aquilo que possa perturbar a pureza, a
caridade e a paz213.

210
Cf. Ibidem, pp. 426-427.
211
Cf. Ibidem, pp. 427-428.
212
Cf. Idem, pp. 428-429.
213
Cf. Idem, p. 429.
79

Quanto ao olfato, Tanquerey adverte para o cuidado no uso de perfumes;


pois seu uso imoderado, muitas vezes, nada mais é que um pretexto para satisfazer
a sensualidade e excitar a luxúria. Um cristão sério somente usa perfumes com
moderação, por motivos de grande utilidade. Já os religiosos, conclui Tanquerey,
como norma, não devem usar perfumes214.
2.2.2.
Mortificação dos sentidos internos

Tanquerey ensina que a imaginação e a memória são os dois sentidos


internos que fornecem à inteligência os elementos de que esta necessita para
trabalhar. Por isso, precisam de mortificação para se submeterem ao domínio da
razão e da vontade. Se, ao contrário, forem deixadas à vontade, povoarão a alma
de lembranças e imagens que provocarão dissipação, perda de tempo na oração e
no trabalho; além de criar inúmeras tentações contra a pureza, a caridade, a
humildade e as demais virtudes215.
Para conter os devaneios da memória e da imaginação, Tanquerey afirma ser
necessário afugentar desde o início as imagens ou lembranças perigosas, que
recordam um passado escabroso, ou projetam um futuro repleto de fantasias
sedutoras. Se não forem dominadas, essas imagens e lembranças tornar-se-ão uma
fonte de tentações. E como existe, segundo Tanquerey, um determinismo
psicológico, que leva o homem a passar dos devaneios fúteis aos perigosos, é
prudente mortificar também os pensamentos inúteis, pois, além de produzirem
perda de tempo, preparam o caminho para os pensamentos mais perigosos. A
morte deles, portanto, é a morte dos pensamentos maus216.
Ensina Tanquerey que a melhor maneira de dominar a memória e a
imaginação é concentrar totalmente a alma no momento presente ― trabalhos,
estudos e ocupações cotidianas ―, sem devaneios. Igualmente ensina a utilidade
de se empregar a memória e a imaginação para alimentar a piedade, buscando nas
orações litúrgicas e nos autores espirituais as mais belas comparações e imagens;
utilizando também a imaginação para colocar-se na presença de Deus,
contemplando os acontecimentos evangélicos que marcaram a vida de Jesus
Cristo e da Virgem Maria. E assim, em vez de atrofiar a imaginação, completa

214
Cf. Idem, pp. 429-430.
215
Cf. Idem, p. 430.
80

Tanquerey, ela será povoada de piedosas representações que afugentarão as


imagens perigosas217.
2.2.3.
Mortificação das paixões

Resumidamente, Tanquerey define as paixões como movimentos ardentes


do apetite sensitivo para o bem sensível com repercussão mais ou menos forte
sobre o corpo218. Não são necessariamente más; são, sim, forças vivas que se
podem utilizar para o bem como para o mal. Se disciplinadas, podem alcançar um
nobre fim. Tanquerey divide as paixões em dois grandes grupos: paixões de gozo
(amor, ódio, desejo, aversão, alegria e tristeza) e paixões combativas (audácia,
temor, esperança, desespero e raiva)219.
Segundo nosso autor, Jesus Cristo teve paixões bem ordenadas, amando não
somente com a vontade, mas também com o coração: chorou diante do túmulo de
Lázaro; chorou também sobre Jerusalém; sentiu cólera; sofreu o temor, a tristeza e
o tédio; mas soube conservar essas paixões sob o domínio da vontade e
subordinadas a Deus. O perigo, alerta Tanquerey, é quando as paixões são
desordenadas, pois provocam os mais danosos efeitos. Por isso é preciso
mortificá-las220.

216
Cf. Idem.
217
Cf. Ibidem, p. 431.
218
Ibidem, p. 432: “Na base da paixão, há, pois, um certo conhecimento ao menos sensível, dum
bem esperado ou adquirido ou dum mal contrário a este bem; deste conhecimento é que brotam os
movimentos do apetite sensitivo. Estes movimentos são impetuosos e distinguem-se assim dos
estados afetivos agradáveis ou desagradáveis que são calmos, tranqüilos, sem aquele ardor, aquela
veemência que há nas paixões. Precisamente porque são impetuosos e atuam fortemente sobre o
apetite sensitivo, é que se tem repercussão até no organismo físico, por causa da estreita união
entre o corpo e a alma. Assim, a cólera faz afluir o sangue ao cérebro e distende os nervos, o medo
faz empalidecer, o amor dilata o coração, o temor contrai-o. Nem em todos, porém, se apresentam
no mesmo grau estes efeitos fisiológicos, que dependem do temperamento de cada um e da
intensidade da paixão, bem como do domínio que cada qual adquire sobre si mesmo. Diferem,
pois, as paixões dos sentimentos, que são movimentos da vontade, e, por conseguinte, supõem
conhecimento da inteligência e não têm a violência das paixões. Assim é que há amor paixão e
amor sentimento, temor passional e temor intelectual. Acrescentemos que no homem, animal
racional, as paixões e os sentimentos se combinam muitas vezes, quase sempre, em doses
variadíssimas, e que é pela vontade, auxiliada pela graça, que chegamos a transformar em nobres
sentimentos as paixões mais ardentes, subordinando estas àqueles”.
219
Cf. Ibidem, pp. 432-433.
220
Cf. Ibidem, pp. 433.
81

2.2.3.1.
Paixões desordenadas

Define Tanquerey como desordenadas as paixões que tendem para um bem


sensível proibido, ou até mesmo para um bem permitido, mas com exagerada
avidez, isto é, sem consultar a razão, norteando-se tão somente pelo instinto ou
pelo prazer momentâneo. E como, por natureza, o apetite sensitivo é cego, a alma,
norteando-se por ele, cega-se a si também, tornando-se, nessa condição, incapaz
para julgar retamente a realidade221. O fascínio do prazer, adverte Tanquerey,
impede o homem de ver a verdade, além de enfraquecer sua vontade222 e macular
sua alma223.
Para Tanquerey, quem quiser chegar à comunhão perfeita com Deus,
necessariamente tem que mortificar os apegos desordenados, por menores que
sejam, pois eles paralisam a vontade, comprometendo a liberdade. Nosso autor
cita uma advertência de São João da Cruz: “pouco importa estar o pássaro
amarrado por um fio grosso ou fino; desde que não se liberte, tão preso estará por
um como por outro, por frágil que seja o fio, o pássaro estará retido por ele
enquanto não o quebrar”224.
Para combater eficazmente as paixões desordenadas, sugere Tanquerey,
logo de início, inibir a vontade, reprimindo as ações ou gestos que estimulam a
paixão. Para ilustrar cita dois exemplos: quem se sente tomado pela cólera, deve
evitar os gestos e as palavras ofensivas, calando-se até que readquira a serenidade;
já quem está tomado por uma afeição exagerada deve evitar os encontros com a
pessoa amada, pois, assim, enfraquecerá o ardor gradativamente. Ainda segundo
Tanquerey, outros dois artifícios válidos, neste caso, são: esforçar-se para
esquecer o objeto da paixão, levando a imaginação e a inteligência a ocupar-se de

221
Cf. Ibidem, p. 434.
222
Ibidem, p. 434-435: “Solicitada em sentidos diversos por essas paixões rebeldes, vê-se forçada
a vontade a dispersar as próprias forças, que por isso mesmo vão enfraquecendo. Tudo o que cede
às paixões, aumenta nela as exigências e diminui em si as energias. Semelhante às gomeleiras
inúteis e vorazes que brotam do tronco de uma árvore, os apetites que não são dominados, vão se
desenvolvendo e roubando força à alma, como os rebentos parasitas à árvore. E não tardará o
momento em que a alma enfraquecida caia no relacionamento e na tibieza, disposta a todas as
capitulações”.
223
Ibidem, p. 435: “Quando esta (a alma) cedendo às paixões, se une às criaturas, abate-se ao nível
delas e contrai a sua malícia e as suas manchas; em vez de ser imagem fiel de Deus, torna-se
imagem das coisas a que se apega; grãos de pó; manchas de lodo vêm embaciar-lhe a beleza e
opor-se à união perfeita com Deus”.
82

coisas honestas (estudo, jogo, passeio etc), que produzem uma sadia distração;
bem como refletir sobre as conseqüências naturais e sobrenaturais da paixão
desordenada: escândalo, impossibilidade de avançar na perfeição e salvação em
perigo225.
Também recomenda a realização de atos positivos contrários à paixão,
como, por exemplo: quem experimenta antipatia por alguém deve esforçar-se para
ganhar a simpatia dessa pessoa, prestando-lhe um serviço, sendo amável e,
sobretudo, rezando por ela226.
2.2.3.2.
Paixões ordenadas

Quando as paixões, por outro lado, estão bem ordenadas, isto é, submetidas
à vontade, são muito úteis, segundo Tanquerey, à nossa inteligência e vontade
pois estimulam-nas a buscar a comunhão com Deus227.
Para Tanquerey, quando bem direcionadas, as paixões agem sobre a
inteligência, excitando-a a buscar a verdade com ardor. Se algo nos apaixona,
direcionamos toda nossa atenção para conhecê-lo bem; e, neste processo, a
inteligência apreende mais facilmente a verdade, e a memória é mais persistente
para reter o aprendizado. Por isso, reforça Tanquerey, quem ama
apaixonadamente Jesus Cristo estuda o evangelho com maior entusiasmo e
compreende-o mais prontamente228.
Igualmente quando agem sobre a vontade, as paixões ordenadas levam-na a
utilizar todas as suas energias. O que se faz com amor se faz melhor, com maior
aplicação, constância e êxito. Quando alguém está apaixonado por Deus, não
recua diante de nenhum esforço, sacrifício ou humilhação para fazer o bem,
finaliza Tanquerey229.

224
SÃO JOÃO DA CRUZ, Subida do monte Carmelo, 1, I, c. XI. Apud TANQUEREY, A.,
Compêndio de Teologia ascética e mística, Porto, Livraria Apostolado da Imprensa, 1955, p. 435.
225
Cf. TANQUEREY, A., Compêndio de teologia ascética e mística, Porto, Livraria Apostolado
da Imprensa, 1955, pp. 438-439.
226
Cf. Ibidem, p. 439.
227
Cf. Ibidem, p. 436.
228
Cf. Ibidem.
229
Cf. Ibidem.
83

2.2.4.
Mortificação das potências da alma

Inteligência e vontade são as potências da alma humana. Como também


foram atingidas pelo pecado original, precisam ser mortificadas. Tanquerey ensina
que a inteligência, em vez de ascender espontaneamente a Deus, como no estado
primitivo, tende a se concentrar naquilo que satisfaz sua curiosidade e a
negligenciar o que se refere ao seu fim último; as preocupações do tempo
impedem-na muitas vezes de pensar na eternidade. A vontade, conforme
Tanquerey, tem grandes dificuldades de se submeter a Deus e aos seus
representantes na terra. É inconstante no esforço, e, por isso, muitas vezes se deixa
dominar pelas paixões; por isso necessita constantemente ser mortificada230.
2.2.4.1.
Mortificação da inteligência

Para Tanquerey, as tendências defeituosas da inteligência que devem ser


mortificadas são: a ignorância, a curiosidade e o orgulho231.
A ignorância combate-se através do estudo metódico e constante, sobretudo
do estudo que se refere a Deus e aos meios para alcançá-lo. A curiosidade é
vencida quando estudamos não o que nos agrada, mas o que é útil para edificar a
nós mesmos e aos outros. O orgulho é combatido quando a inteligência submete-
se, com docilidade, aos ensinamentos da fé e às orientações do magistério
pontifício. Nas discussões travadas com os outros, é imperativo buscar não o
triunfo das próprias idéias, mas a verdade. Escutar as razões dos adversários com
atenção e imparcialidade, acolhendo o que há de justo nas suas observações, é o
melhor meio de nos aproximarmos da verdade, bem como de mortificar nosso
orgulho232.
2.2.4.2.
Mortificação da vontade

A vontade governa todas as demais faculdades; é, portanto, a faculdade


mestra. Dominar a vontade, segundo ensinamento de Tanquerey, implica dominar
o homem todo. E a vontade está bem moderada quando é forte para governar as

230
Cf. Ibidem, p. 442.
231
Cf. Ibidem.
232
Cf. Ibidem, pp. 442-445.
84

faculdades inferiores e dócil para obedecer a Deus. Para se atingir esse fim,
Tanquerey coloca como prioridade eliminar a imprudência, a afobação, a
indecisão, a desconfiança, o medo da crítica e os maus exemplos233. Além da
eliminação desses obstáculos, segundo ele, é também indispensável combinar
harmoniosamente o trabalho da inteligência, da vontade e da graça234.
À inteligência compete fornecer as convicções que serão, ao mesmo tempo,
guia e estímulo para a vontade. Essas convicções têm a função de fortalecer a
vontade humana para esta sempre escolher aquilo que é conforme à vontade
divina. Segundo Tanquerey resumem-se nisto: Deus é o meu fim, e Jesus é o
caminho para se chegar a Deus; devo fazer tudo por Deus em comunhão com
Jesus Cristo; o pecado é o obstáculo que se opõe ao meu fim, portanto devo evitá-
lo; se por infelicidade pecar, reparar o mal cometido imediatamente; fazer
constantemente a vontade de Deus é o único meio para se evitar o pecado; enfim,
procurar conhecer a vontade de Deus, repetindo muitas vezes a palavra de são
Paulo, no momento da sua conversão: “Senhor, que quereis que eu faça?” (At 9,
6). E, à noite, durante o exame de consciência, fazer penitência pelas faltas
cometidas, especialmente as menores235.
A vontade, por sua vez, fortemente influenciada pela inteligência, deve agir
com decisão, firmeza e constância. É necessária a decisão. Depois de refletir e
rezar, reforça Tanquerey a importância de se decidir imediatamente, sem
hesitações, pois a vida é curta, e não há tempo a perder. A decisão deve ser firme,
motivando o agir sem esperar o dia seguinte. A firmeza nas pequenas ações é que
assegura a fidelidade nas grandes. E essa firmeza precisa tornar-se constante, para
o que se renovarão muitas vezes os esforços, sem jamais desanimar pelas

233
Cf. Ibidem, p. 446: a) A imprudência ocorre quando não refletimos para praticar uma ação,
antes seguimos o impulso do momento, a paixão, o capricho; por conseguinte, é necessário refletir
bem antes de passar ao ato; b) A afobação é o entusiasmo passageiro, o fogo de palha. A norma é
sempre agir com moderação e constância; c) A indecisão atrofia as forças da vontade. Decidir e
agir sempre com convicção; d) A desconfiança também prejudica a vontade. Em toda ação, sempre
contar com o auxílio divino para chegar a bons resultados; e) O medo da crítica nos torna escravos
da opinião alheia. O que tem valor é o juízo de Deus, sempre sábio, e não os dos homens, sempre
falível; f) Os maus exemplos nos arrastam, quanto mais correspondem a uma propensão de nossa
natureza. Lembremo-nos, então, de que o único modelo a ser imitado é Jesus; e que o cristão deve
fazer o contrário do que o mundo faz.
234
Cf. Ibidem.
235
Cf. Ibidem, pp. 446-447.
85

vicissitudes que sobrevenham, pois ninguém é vencido, senão quando abandona a


luta236.
Para Tanquerey, em última instância, é com a graça de Deus que devemos
contar. Ela não nos é negada, e com ela somos invencíveis. Devemos renovar
nossas convicções sobre a absoluta necessidade da graça, sempre que iniciamos
uma ação importante; por isso devemos pedi-la sempre, em comunhão com Jesus
Cristo, para termos maior segurança de alcançá-la. Lembrar-nos de que Jesus não
é somente o nosso modelo, mas principalmente o nosso colaborador, e apoiar-nos
com confiança nele, certos de que assim podemos empreender e realizar tudo na
ordem da salvação: “Tudo posso naquele que me fortalece” (Fl 4, 13). Então,
nossa vontade será forte, porque participará da força de Deus; será livre, porque a
verdadeira liberdade não consiste em nos entregarmos às paixões, que nos
escravizam, mas em assegurar o triunfo da razão e da vontade sobre o instinto e a
sensualidade237.
Assim, realizar-se-á plenamente o objetivo principal da mortificação:
submeter os nossos sentidos e faculdades inferiores ao domínio de uma vontade
sempre dócil e obediente a Deus; possibilitando, desse modo, desapegar-nos de
todas as seduções do prazer e das ilusões do mundo, para abraçarmos com ardor
as dores, passivas ou ativas, que nos configuram perfeitamente a Cristo.
2.3.
Conclusão

Somente com a instituição da cátedra de teologia ascética e mística, em


1910, o estudo da vida espiritual ganhou cidadania teológica. Oficialmente, estava
encerrada a separação entre teologia e vida espiritual. Porém, uma outra divisão
não foi superada: a dicotomia neoplatônica “alma-corpo”. Basta analisar o próprio
título dado à nova disciplina teológica: ascética e mística. A ascética dedicada ao
estudo dos princípios e do desenvolvimento da vida espiritual, e a mística
dedicada ao estudo das questões especiais da vida espiritual, sobretudo dos
estados místicos mais caracterizados. Simplificando, a ascética cuida das
realidades ‘naturais’, mundanas, relacionadas ao corpo; a mística das realidades
‘sobrenaturais’, relacionadas à alma.

236
Cf. Ibidem, p. 447-448.
237
Cf. Ibidem.
86

Não se pode negar os benefícios que os manuais de ascética e mística


trouxeram à prática da mortificação. O primeiro deles, sem dúvida alguma, foi a
própria reflexão sistemática acerca da mortificação, que até então não passava de
um conjunto de penitências corporais. Teólogos como Adolphe Tanquerey e
Reginald Garrigou-Lagrange com muita competência sistematizaram as
conseqüências do pecado original e dos pecados pessoais na natureza humana;
além de explicitarem, com muita clareza, os mais diversos tipos de tentação a que
todos somos submetidos em nossa vida cotidiana, e que justificam as práticas de
mortificação. De modo especial, a acurada análise da origem e da evolução das
tentações na estrutura psicológica humana, com a conseqüente necessidade da
mortificação da vontade e das potências da alma para combatê-las. Tudo isso não
apenas foi, mas ainda é muito útil e necessário ao desenvolvimento de uma vida
cristã madura e consistente, pois santidade não acontece por geração espontânea, a
graça batismal precisa ser desenvolvida. É importante para a espiritualidade cristã
resgatar para as novas gerações a riqueza de ensinamentos acerca da vida cristã
presente nestes manuais. Eles contêm uma sabedoria muito grande a respeito da
natureza humana. Com certeza, esses manuais ajudaram muitas pessoas a
conhecer melhor a si mesmas e a adotar uma disciplina equilibrada para não
desperdiçarem a graça divina.
Contudo, apesar da grande evolução que trouxeram ao tema da mortificação,
eles não superaram, como já disse ao início dessa análise conclusiva, a influência
do neoplatonismo, assim como também não foram capazes de se desvencilhar da
influência do estoicismo. Ainda há uma grande insistência na valorização da dor.
Não apenas na aceitação passiva da dor, mas inclusive buscando-a para assim
controlar as pulsões do corpo, como recomenda Antônio Royo Marin. Tanquerey
prescreve a utilização da dor como instrumento de prevenção contra o pecado e
como estímulo à piedade. Percebe-se nitidamente nestas recomendações uma
teologia da mortificação embasada numa antropologia dualista e numa
soteriologia reducionista e pessimista; enfim embasada no que convenciono
chamar de ‘teologia do dolorismo’. Para ilustrar esta conclusão basta retomar o
ensinamento de Royo Marin, segundo o qual é necessário abraçar a dor para
configurar-se perfeitamente a Cristo.
No próximo capítulo procuraremos entender como a combinação de uma
antropologia dualista e de uma soteriologia pessimista engendraram ao longo da
87

história a teologia do dolorismo, que persiste até hoje, no pensamento de alguns


religiosos. Realizaremos igualmente uma análise crítica das conseqüências do
dolorismo à vida cristã.
88

3
Mortificação: dolorismo e descrédito

“Vencer a carne”, não oferecer comodidade ao corpo, pois ele é o nosso


maior inimigo. A esta máxima, soma-se a idéia de que a dor é ainda oportunidade
para configurar-se perfeitamente a Cristo, reproduzindo fielmente sua vida,
inclusive identificando-se com suas dores físicas. Temos assim a “teologia do
dolorismo”, fundamento teórico das mais duras e terríveis penitências corporais.
O “dolorismo” constitui a valorização da dor em si mesma como centro da
espiritualidade cristã. Evidente que hoje esta teologia é inaceitável, sendo, sem
sombra de dúvida, a grande responsável pela aversão hodierna à mortificação.
Neste sentido, cabe agora identificarmos e analisarmos criticamente a
antropologia e a soteriologia que fundamentam a “teologia do dolorismo” com
suas danosas e arraigadas conseqüências para a espiritualidade cristã.
3.1.
Antropologia dualista

É uma antropologia fundamentada no antagonismo “alma-corpo”, na


oposição radical entre espírito e matéria, que identifica o ser humano com a alma
e considera o corpo como revestimento acidental e indesejável da alma, como seu
cárcere. Influência evidente da filosofia grega, que, como vimos no primeiro
capítulo, desenvolveu a partir do pitagorismo, inspirado no orfismo, sistematizado
por Platão, e aperfeiçoado pelo neoplatonismo, de Plotino, uma visão
esquizofrênica, irremediavelmente dividida, do ser humano e da realidade
criada238. E, apesar de combatido pelo magistério eclesiástico239, esse dualismo de
linhagem platônica influenciou fortemente a teologia e a espiritualidade cristã ao

238
Cf. Capítulo I, pp. 30-41.
239
GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 276: “A alma não
é divina nem emanação do divino. Não é preexistente nem se encontra em situação de castigo,
prisioneira do corpo (Sínodo de Constantinolpla, DS 403). Concomitantemente, é afirmado que o
corpo não é criado pelo demônio nem é princípio do mal; reafirma-se que o corpo é bom bem
como a realidade da sua ressurreição (Concílio de Braga, DS 455-464). Quer dizer, a dualidade
alma-corpo não deve levar a um dualismo de oposição-exclusão que coloque a alma na esfera do
divino e o corpo no mundo do mal e do demoníaco. Alma e corpo formam parte das realidades
criadas pelo único Deus criador-salvador”.
89

longo dos séculos, através de várias heresias, como: docetismo, gnosticismo,


origenismo, maniqueísmo, priscilianismo e catarismo240.
Sem dúvida, porém, o “gnosticismo” 241 foi a heresia que mais preocupou o
cristianismo, em seus primórdios. Essa apreensão já remonta a alguns textos do
NT, quando são Paulo insiste sobre a importância do corpo de Jesus Cristo para a
salvação, bem como o valor soteriológico atribuído à realidade da ressurreição (cf.
1Cor 6, 12-20 e 1Cor 15). Igualmente o “corpus joâneo” combate o gnosticismo
no prólogo do evangelho (cf. Jo 1, 14) e em 1Jo 4, 2, que estipula como critério da
verdadeira fé a confissão que atesta que Jesus Cristo assumiu um corpo humano.
Somente na Idade Média, santo Tomás de Aquino (1225-1274) elabora uma
sólida fundamentação filosófico-teológica, conhecida como doutrina
“hilemórfica”, que consegue preservar uma visão unitária do ser humano. Para
santo Tomás, alma e corpo não são duas partes no ser humano, ou seja, duas
substâncias completas, mas somente a alma é a única forma do corpo242, de tal
modo que a realidade do ser humano é constituída de alma (como forma) e de
matéria prima. A matéria prima não deve ser confundida com o corpo. “O corpo,
em sentido estrito e vulgar, é a totalidade da substância humana enquanto extensa,

240
Cf. RUIZ DE LA PEÑA, J. L., Dualismo. In: DTDC, p. 233.
241
RUGGERI, F., Gnosticismo. In: DM, pp. 461-462: “Segundo a interpretação gnóstica, Jesus
Cristo seria um dos éons, descido a este mundo para comunicar ao homem o conhecimento do
próprio ser e do próprio destino, a fim de permitir-lhe consumar a própria redenção e salvação,
libertando-se do cárcere do mundo material e da luta entre as inclinações boas e más que o agitam
(conceitos estes que foram levados ao extremo pelo maniqueísmo). Cristo, porém, não assumiu um
verdadeiro corpo humano, isto é, não se contaminou com a matéria, mas revestiu-se somente de
uma aparência humana, como aparentes foram também a sua paixão e a sua morte (conceitos
próprios da heresia docetista) (...). Considerando que a natureza humana é constituída por três
elementos, o espiritual, o psíquico e o material, os homens foram divididos em três categorias,
isoladas entre si e sem possibilidade de contaminação recíproca (como as castas do povo na
civilização oriental): os espirituais, os psíquicos e os hílicos. Somente aos primeiros, constituídos
unicamente pelos gnósticos, o conhecimento tornava possível a redenção do cárcere da condição
terrena. O chefe de escola Valentino († 161) reconhecia somente neles a função de reveladores da
gnose, e por isso, de redentores. Entre os segundos podiam ser enumerados os cristãos, que eram
destinados a uma felicidade intermédia em uma espécie de limbo. Os da terceira classe eram
dependentes da matéria e, por isso, condenados a se consumirem com ela. O destino estava inscrito
na origem destas três castas e não era conseqüência do comportamento dos seus membros. Os
chefes de escola da gnose cristã herética foram Valentino e o seu discípulo Tolomeu († 150),
Basílides († 140), Marcião († depois de 135), ativos no ambiente de Alexandria e enquadrados na
gnose considerada douta. Justamente em Alexandria, em contraposição à gnose herética, Orígenes
e Clemente de Alexandria elaboraram um sistema de definições racionais sobre as verdades de fé,
uma espécie de gnose cristã, que constituiu o primeiro esboço da teologia. Por isso se atribui à
gnose o mérito de ter suscitado questionamentos e estimulado as relativas respostas por parte dos
cristãos, favorecendo a sistematização das verdades da fé, de tal modo que se pudesse responder às
objeções da cultura pagã. A posição gnóstica perdurou em algumas seitas heréticas da primeira
cristandade (encratismo) e, na época medieval, sobretudo nos cátaros”.
242
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, I, q. 76, a. 1 e 3.
90

sensivelmente percebida, o qual inclui a alma como a sua estrutura


constitutiva”243. Entre o corpo humano vivo e o cadáver sempre existirá uma
diferença essencial, qualitativa. “Corpo e alma são, antes, dois princípios
metafísicos dentro de uma unidade primordial do homem, de maneira que toda
atividade do homem é uma ‘operatio totius hominis’”244.
Ainda na Idade Média, na esteira da teologia tomista, o dualismo
antropológico recebeu uma definitiva desqualificação no Concílio de Viena
(1311-1312), que afirmou categoricamente a unidade substancial “alma-corpo”245:

“(...) reprovamos como errônea e inimiga da verdade da fé católica toda doutrina


ou proposição que temariamente afirme ou coloque em dúvida que a substância da
alma racional ou intelectiva não é verdadeiramente e por si mesma forma do corpo
humano; definindo, para que a todos seja conhecida a verdade da fé sincera e se
feche a entrada a todos os erros (...)”246.

Esta luta contra as idéias gnósticas, contou ainda com a valiosa colaboração
de santo Agostinho, particularmente em seu empenho contra o maniqueísmo247. É
inegável o mérito de santo Agostinho, que soube inserir e harmonizar os
fundamentos da fé aos postulados do dualismo neoplatônico, para utilizá-los como
instrumento de diálogo com a cultura helênica. Santo Agostinho faz uso do
chamado “dualismo moderado”, que influenciou decisivamente o cristianismo no

243
DUSSEL, E., El dualismo en la antropologia de la cristianidad, Buenos Aires, 1974, pp. 257.
Apud GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 273.
244
SANTO TOMÁS DE AQUINO, Livro das sentenças, III Sent., d. 31 q. 2a. 4c. Apud GARCIA
RUBIO, A., loc.cit.
245
Cf. RUIZ DE LA PEÑA, J. L., Dualismo. In: DTDC, p. 233.
246
DS 902.
247
BOVE, G., Maniqueísmo. In: LDTE, pp. 461-462: “Designa a religião de Mani ou Maniqueu
(216-274/77), filho de um príncipe parta descendende da dinastia arsácida, casado com Miriam,
provavelmente uma judeu-cristã da mesma estirpe, em um distrito do norte da Babilônia. Morreu
com cerca de 60 anos, decapitado e desmembrado. Justamente pela proveniência de seu fundador,
o maniqueísmo é um sincretismo de doutrinas judeu-cristãs e indo-iranianas. Sua principal
referência teológica diz respeito à salvação, que é arquitetada de modo complexo e difícil de
acompanhar, com uma sucessão de imagens e personagens que, no fim, reduzem-se ao mesmo
‘Salvador e Salvo’, mediante uma luta imune entre Bem e Mal, que representa a contraposição
essencial da concepção maniqueísta, iluminada pela revelação de Mani. Essa iluminação é
transmitida por meio do apelo à justiça proclamado pelos Eleitos maniqueus a todo o povo
remanescente, que se integra aos primeiros mediante o exercício da ‘esmola’. E, juntamente com a
esmola, a oração e o jejum sintetizam a ética maniqueísta. A esmola assegura o repouso na Igreja e
o perdão dos pecados, a oração é uma antecipação luminosa da viagem definitiva rumo à luz, o
jejum é uma expiação penitencial, enquanto os pecados, relativos à boca, às mãos e ao ventre, são
perdoados na confissão. A principal solenidade dos maniqueístas era a celebração de ‘Bema’, nos
últimos dias de fevereiro ou em março, em memória da paixão de Mani; cuja imagem e escritos
eram expostos sobre um dossel recoberto de véus, e cujo meio de acesso eram cinco degraus, que
evocam os cinco graus da hierarquia maniqueísta. A oração e os cantos dos maniqueus são um
emocionante apelo a toda condição de dificuldade, mas sobretudo uma imersão na Luz, mediante a
invocação do próprio Mani”.
91

ocidente. O dualismo moderado de santo Agostinho visa fundamentar a


imortalidade da alma, pois, segundo ele, é justamente a alma imortal que define o
ser humano, enquanto o corpo não passa de instrumento a ser utilizado por ela248.
Além do mais, a doutrina agostiniana ensina que o corpo, como conseqüência do
pecado, possui uma vida instintiva em desconexão com a alma, servindo de
tentação para esta; sendo necessário, por isso, dar primazia à vida espiritual sobre
a matéria. É o advento do “espiritualismo”, que até hoje dá o tom à vida espiritual
de muitos cristãos249.
O espiritualismo foi reforçado pelo estoicismo, que influenciou
poderosamente a vida e o comportamento cristão. Aliás, contribuiu mais que as
correntes platônicas para a consolidação da antropologia dualista na
espiritualidade cristã, pois caiu como uma luva, enquanto meio para se conseguir
a supressão dos afetos e desejos sensíveis vinculados ao corpo. Em conseqüência,
a espiritualidade cristã desenvolveu ao longo dos séculos, além da natural
desvalorização do corpo, práticas ascéticas cujo objetivo principal era reprimir a
afetividade humana, isto é, as emoções e sentimentos ligados a corpo250.
3.2.
Soteriologia reducionista

No decorrer do desenvolvimento histórico do cristianismo, no Ocidente,


aconteceu um afastamento progressivo entre a vida de Jesus e sua morte na
cruz251. Esse processo produziu uma concentração cristológica sobre a cruz de

248
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 272.
249
Cf. Ibidem.
250
Cf. GARCIA RUBIO, A., Elementos de antropologia teológica, Petrópolis, Vozes, 2004, p. 28-
29.
251
FRANÇA MIRANDA, M., A salvação de Jesus Cristo. A doutrina da graça, São Paulo,
Loyola, 2004, pp. 22-23: “Para os primeiros cristãos a morte prematura de Jesus constituía um
forte choque e um enigma a ser resolvido. Pois Jesus era alguém que não pecou, e Deus, contudo,
permitiu sua morte. Assim abre-se a perspectiva de uma morte para os outros, ganhando o texto de
Isaías sobre o ‘servo de Javé’ (cf. Is 52, 13-53, 12) enorme importância. Nele se afirma que o justo
sofre ‘por todos’ (Is 53, 11ss), expressão que Paulo faz sua: ‘E ele morreu por todos (...)’ (2Cor 5,
15). Daí a perda de sentido dos sacrifícios veterotestamentários no Templo de Jerusalém, já que a
morte de Cristo ‘de uma vez por todas’ satisfez pelos pecados do mundo (cf. Rm 6, 10; 1Pd 3, 18;
Hb 7, 27; 9, 12, 10, 10). Tais textos remontam também à tradição da última ceia, na qual se institui
a Nova Aliança com a entrega da vida de Jesus por muitos (cf. Mc 14, 22-25). Naturalmente, essa
compreensão teológica da morte de Jesus estava em estreita continuidade com sua vida terrena
voltada para os outros, de modo especial para os mais pobres e sofridos da sociedade. Mesmo
Paulo, ao exclamar que só quer saber de Cristo e de Cristo crucificado, inclui nesta afirmação toda
a existência histórica de Jesus. Contudo, o crescente afastamento do tempo de Jesus e, sobretudo, o
contexto mental do Ocidente, dominado por categorias morais e jurídicas, vão reduzir o sentido da
expressão paulina. De fato, a mentalidade dos latinos estava mais voltada para a organização
92

Jesus, em detrimento do restante de sua vida252. A partir de então se desenvolveu


uma reflexão soteriológica concentrada na morte de Jesus. Desse modo, toda a
problemática da salvação girava em torno do sentido da morte de Jesus Cristo.
Como interpretá-la não como desgraça, mas como salvação? Uma doutrina
sistemática só veio a concretizar-se na Idade Média, a partir de santo Anselmo de
Cantuária. Contudo, não há uma única, mas diferentes interpretações sobre a
morte de Jesus. Podemos catalogá-las segundo três categorias: ritual, jurídica e
moral.
3.2.1
Interpretação ritual: a teologia do sacrifício expiatório

No primeiro milênio cristão, tanto a teologia neotestamentária, quanto a


teologia patrística, interpretaram a morte de Cristo como sacrifício expiatório:
morreu na cruz para nos resgatar da morte, do pecado e do poder do diabo que nos
mantinha escravos. Tal libertação ocorreu de maneira onerosa, porque foi fruto da
luta e da vitória de Cristo contra as forças do mal, a preço de seu sangue. Esta
onerosidade produziu a afirmação de que Cristo deu sua vida em ‘resgate’, isto é,
como preço por ele pago para a libertação da humanidade.
Esta interpretação era inspirada na experiência ritual e cúltica dos sacrifícios
no templo de Jerusalém. Existiam diversos tipos de sacrifícios, sendo de destacar
os holocaustos, os sacrifícios de comunhão, os sacrifícios expiatórios e as ofertas.
Dentre todos esses, destacava-se o sacrifício expiatório chamado “Tamid”
(cotidiano) que era oferecido no Templo, pela manhã e à tarde, diariamente sem
interrupção, cuja finalidade era obter o perdão pelos pecados (cf. Ex 29, 38; Nm
28, 3). Neste sacrifício era imolado um cordeiro de um ano, sem defeito. Antes de
ser conduzido ao matadouro para ser imolado, era dado ao cordeiro água para
beber numa taça de ouro e o seu sangue era recolhido e lançado na base do altar.
Quanto à pele, esta era vendida em benefício dos sacerdotes e a carne cortada em
doze pedaços que, após salgados, seriam colocados sobre o altar. Os seus ossos
não podiam ser quebrados. O evangelho de João designa Jesus como o “Cordeiro

social, a ordenação política e a estruturação jurídica da comunidade, e não tanto para a


contemplação das idéias como tendência mais forte entre os gregos. Ganhava assim importância o
indivíduo na sociedade, sua liberdade, sua responsabilidade, seu mérito ou sua culpa”.
252
Cf. RATZINGER, J., Introdução ao cristianismo, São Paulo, Loyola, 2005, p. 172.
93

de Deus, aquele que tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29b), numa clara apropriação
do “Tamid” relido como chave interpretativa do sacrifício de Cristo253.
Porém, mais importante que o “Tamid” era a liturgia sacrifical do “Yom
Kippur” (“Dia da Expiação”), que acontecia uma única vez ao ano (cf. Lv 16, 1-
34; Nm 29, 7-11) 254. Neste dia, o sumo sacerdote, fazia uma espécie de procissão,
trazendo sobre os ombros um grande manto, formado de muitíssimos pedaços de
pano. Cada um desses pedaços representava um tipo de pecado em particular.
Desse modo, o sumo sacerdote levava simbolicamente todos os pecados do
povo255.
Chegando ao pátio dos sacerdotes, o sumo sacerdote, e somente ele, oferecia
um novilho em sacrifício, sobre o altar, por seus pecados e pelos pecados dos
sacerdotes. Em seguida, oferecia um bode pelo pecado do povo. Depois adentrava
o santuário, levando consigo o sangue dos animais imolados, e penetrava até o
‘Santo dos Santos’, uma sala totalmente escura que guardava a ‘Arca da Aliança’
e onde estava a presença de Deus. Somente o sumo sacerdote podia entrar nessa
sala, e assim mesmo só uma vez por ano, no dia de ‘Kippur’. Lá dentro ele jogava,
por aspersão, o sangue dos animais imolados sobre o propiciatório e obtinha,
assim, o perdão para todo o povo256.
O rito do bode expiatório completava a celebração. Dois bodes eram
apresentados ao sumo sacerdote, que tinha em suas mãos duas pedras. Uma trazia
a inscrição: ‘para Deus’ e a outra: ‘para Azazel’. O bode sorteado para Deus era
sacrificado e seu sangue derramado sobre a ‘Arca da Aliança’, no ‘Santo dos
Santos’. O outro bode era levado para o deserto depois do sumo sacerdote ter
rezado sobre ele, impondo-lhe as mãos. Deste modo, carregado dos pecados do
povo, era destinado à morte no deserto, lugar do demônio257.
Ainda no AT, encontramos a misteriosa figura do ‘Servo de Iahweh’,
presente no livro do Deutero-Isaías, único texto do AT que utiliza a imagem de
uma vítima humana oferecida em sacrifício de expiação. À semelhança dos

253
DUARTE LOURENÇO, J., O mundo judaico em que Jesus viveu, Lisboa, Universidade
Católica Editora, 2005, pp. 122-123.
254
Cf. VANHOYE, A., Sacerdoti antichi e nuovo sacerdote, Torino, Elle Di Ci, 1990, p. 36.
255
Cf. DAHLER, E., Festas e símbolos, Aparecida, Santuário, 1999, pp. 32-33.
256
Cf. Ibidem, p. 33.
257
Cf. Ibidem.
94

animais oferecidos no dia do ‘Yom Kippur’, o ‘Servo de Iahweh’ também carrega


sobre si os pecados do povo, e morre para alcançar o perdão divino para todos:

“Era o mais desprezado e abandonado de todos, homem do sofrimento,


experimentado na dor, indivíduo de quem a gente desvia o olhar, repelente, dele
nem tomamos conhecimento. Eram na verdade os nossos sofrimentos que ele
carregava, eram as nossas dores, que levava às costas. E a gente achava que ele era
um castigado, alguém por Deus ferido e massacrado. Mas estava sendo traspassado
por causa de nossas rebeldias, estava sendo esmagado por causa de nossos pecados.
O castigo de que teríamos de pagar caiu sobre ele, com os seus ferimentos veio a
cura para nós (...). Sem ordem de prisão e sem sentença, foi detido, e quem se
preocupou com a vida dele? Foi arrancado da terra dos vivos, ferido de morte pelas
rebeldias de meu povo. Sua sepultura foi colocada junto à dos criminosos, seu
túmulo ao lado da tumba dos ricos. Mas ele jamais cometeu injustiça, mentira
nunca esteve em sua boca. Que o sofrimento o esmagasse era projeto do Senhor.
Se, então, entregar a sua vida em reparação pelos pecados, ele há de ver seus
descendentes, prolongará sua existência, e por ele a bom termo chegará o projeto
do Senhor. Em virtude de seus trabalhos ele há de ver e ficará realizado. Com a sua
experiência, o meu servo, o justo, fará que a multidão se torne justa pois ele mesmo
estará carregando o peso dos pecados dela” (Is 53, 3-5.8-11).

Dos evangelhos se deduz que a comunidade compreendeu o “Mistério


Pascal” de Jesus à luz da missão do Servo de Iahweh: “Pois o Filho do Homem
veio, não para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate pela multidão”
(Mc 10, 45). Com a efusão de seu sangue, Cristo estabeleceu uma ‘Nova Aliança’
entre a humanidade e Deus (cf. Mt 26, 28). Ele, Jesus, é o ‘Cordeiro de Deus’,
vítima perfeita, sem mancha que expia definitivamente o pecado do mundo (cf. Jo
1, 29; Hb 9, 1-12.24-28). A dignidade incomensurável daquele que se ofereceu e o
amor ilimitado que o sustentou conferem um valor absoluto e definitivo à
expiação de Cristo. A morte de Jesus obtém de modo definitivo a salvação que as
outras vítimas oferecidas não tinham conseguido258.
Esperavam os discípulos que a morte de Cristo cessaria definitivamente o
sistema de sacrifícios do Templo de Jerusalém (cf. Hb 8, 13), e o fato de assim
acontecer deveu-se conforme a fé que tinham na veracidade de sua interpretação.
Do fato da expiação concluíam que ninguém podia salvar-se pelas próprias obras,
pois se não fosse assim Cristo não precisaria ter morrido ( cf. Gl 2, 21), e que o
único caminho da salvação era aceitar mediante a fé o sacrifício expiatório de
Cristo na cruz (cf. Rm 3, 19-31).

258
Cf. IAMMARRONE, G., Expiação. In: DM, p. 410.
95

Nenhum sacrifício humano conseguia por si mesmo aplacar definitivamente


a ira divina. A encarnação criou a possibilidade de um sacrifício perfeito e
imaculado que pudesse ganhar a total complacência de Deus. Jesus aceitou
livremente ser sacrificado para representar todos os homens diante de Deus e
assim conquistar o total perdão divino. A ira divina como que se extravasou na
morte violenta de Jesus na cruz e se aplacou. Jesus suportou como expiação e
castigo pelo pecado do mundo.
A teologia patrística introduziu ainda na questão da expiação a teoria do
direito do diabo. Assim, para Orígines, a morte de Cristo foi o resgate pago a
Satanás que havia adquirido direitos sobre o homem depois da queda259.
3.2.2.
Interpretação jurídica: a teologia da satisfação

A teologia da satisfação tem sua origem na Idade Média com santo Anselmo
de Cantuária (1033-1109), e por muito tempo permaneceu o conceito chave, isto
é, o conceito capaz de resumir em si todos os aspectos da redenção.
A intenção de santo Anselmo de Cantuária (1033-1109) tinha sido a de
provar que a obra de Cristo foi conseqüência de causas necessárias, para
demonstrar que essa obra tinha de acontecer justamente da maneira como
aconteceu. Em linhas gerais, o seu raciocínio dizia o seguinte: pelo pecado do
homem, dirigido contra Deus, a ordem da justiça foi infringida de uma maneira
infinita, e Deus foi infinitamente ofendido. Na base dessa conclusão está a idéia
que a gravidade da ofensa se orienta no ofendido, ou seja, o peso da ofensa varia
de acordo com o objeto da ofensa. Como Deus é infinito, também a ofensa
cometida contra ele pelo pecado da humanidade tem um peso infinito. O direito
violado precisa ser restabelecido, porque Deus é um Deus da ordem e da justiça,
ou melhor, ele é a própria justiça. Como a medida da ofensa é infinita, exige-se
também uma reparação infinita. Ora, o ser humano não é capaz de oferecer uma

259
SCHWAGER, R., Salvação. In: DCT, p. 1599: “A idéia da luta de Cristo contra Satã
desempenhou um papel importante na época dos Padres da Igreja. Irineu já falava da justa vitória
sobre o inimigo; a essa noção se acrescentou, depois de Origines, a idéia de que o diabo teria
possuído um direito sobre os homens, já que eles se tinham entregado voluntariamente a ele, Nesta
abordagem, a alma de Jesus constituía o ‘preço/prêmio’ (cf. 1Cor 6, 20; 7, 23; 1Cor 2, 14) ou o
‘resgate’ (cf. Mt 20, 28; Mc 10, 45; 1Tm 2, 6) pago ao diabo. Mas o Inimigo se viu ludibriado,
pois não pôde conservar este ‘prêmio’ e perdeu ao mesmo tempo os homens que mantinha em seu
poder. Embora Gregório de Nazianzo se opusesse vigorosamente a tais concepções, a idéia de um
direito do diabo encontrou ecos em diversos Padres: Basílio, Gregório de Nissa, João Crisóstomo,
Ambrósio, Leão Magno e Gregório Magno”.
96

reparação infinita, porque como ser finito, ele sempre só pode oferecer algo que
será finito. A sua força destruidora ultrapassa sua capacidade de construir. Por
isso haverá sempre uma distância infinita entre todas as reparações tentadas pelo
ser humano e o tamanho de sua culpa, ou seja, um abismo que ele nunca será
capaz de superar. Qualquer gesto de desagravo só há de provar-lhe a sua
incapacidade de fechar o abismo que ele mesmo abriu260.
Isso significa que a ordem permaneceria destruída para sempre e que o ser
humano continuaria eternamente preso ao abismo de sua culpa? Nesse ponto,
santo Anselmo aponta para a figura de Cristo. A sua resposta afirma, então: Deus
mesmo corrige a injustiça; mas ele não recorre simplesmente à decretação de uma
anistia (apesar de ter essa possibilidade), porque esta não superaria
intrinsecamente o acontecido. Então o Deus infinito se torna ele próprio ser
humano, e como ser humano que faz parte dos ofensores, mas que possui também
o poder de reparação infinita que é negada ao ser humano comum, ele presta o
desagravo exigido. Dessa maneira, a salvação se realiza totalmente pela graça e
restabelece, ao mesmo tempo, toda a ordem de direito. Com esse raciocínio, santo
Anselmo pensa ter dado uma resposta definitiva àquela pergunta difícil formulada
em “Cur Deus homo?”261, ou seja, a pergunta do porquê da encarnação e da cruz.
A sua reflexão marcou profundamente o segundo milênio da cristandade ocidental
que estava convencida de que Cristo precisou morrer na cruz para reparar a ofensa
infinita que tinha sido cometida pelos homens, e para restabelecer a ordem
violada262.
A redenção tornou-se, assim, sinônimo de ‘satisfação’ da justiça divina, no
sentido de que a morte de Jesus na cruz foi o preço do ‘resgate’ da humanidade,
pago, não ao diabo, como se dizia, em certas orientações, na teologia patrística,
mas a Deus, para satisfazer a sua justiça e torná-lo propício aos homens.
3.2.3.
Interpretação moral: a teologia do mérito

Nos séculos que se seguiram, a teoria de santo Anselmo alcançou ampla


aceitação no ocidente cristão, embora nunca tenha sido assumida como dogma

260
Cf. RATZINGER, J., Introdução ao cristianismo, São Paulo, Loyola, 2005, pp. 172-173.
261
Tratado teológico concluído em 1098, no qual santo Anselmo elabora e explica a teologia da
satisfação.
262
Cf. RATZINGER, J., op. cit., p. 173.
97

pela Igreja. Entretanto, ao longo do tempo, várias modificações foram


introduzidas à soteriologia da satisfação. A mais significativa foi promovida por
santo Tomás de Aquino, que se opôs à idéia de que a encarnação era necessária à
redenção. Segundo santo Tomás, a encarnação era bastante “apropriada”
(conveniente), algo razoável e adequado para Deus realizar, mas não
obrigatoriamente necessário263:

“Para obter determinado fim, algo é necessário de duas maneiras: ou porque sem
ele algo não pode existir, por exemplo, o alimento é necessário para a conservação
da vida humana; ou porque com ele se chega ao fim de modo melhor e mais
conveniente, por exemplo, o cavalo é necessário para viajar. Do primeiro modo, a
encarnação de Deus não foi necessária para a restauração da natureza humana; por
sua virtude onipotente Deus poderia restaurar a natureza humana de muitas outras
maneiras. Mas, do segundo modo, era necessário que Deus se encarnasse para a
restauração da natureza humana. Por isso diz santo Agostinho: ‘Mostremos que a
Deus, a cujo poder tudo está submetido, não faltou outro modo possível, mas que
não havia outro modo mais conveniente para curar nossa miséria”264.

Segundo santo Tomás, a encarnação só pode ser considerada necessária


numa única situação: enquanto plena satisfação pela ofensa cometida contra Deus.

“Um simples homem não poderia satisfazer por todo o gênero humano; portanto
era necessário que Jesus Cristo fosse Deus e homem (...) o pecado cometido contra
Deus tem algo de infinito em razão da infinitude de sua majestade divina: a ofensa
é tanto maior quanto maior é aquele contra o qual é dirigida. Era preciso pois, para
uma satisfação condigna, que a ação do que satisfaz tivesse uma eficácia infinita,
como a que procede do homem Deus”265.

Embora reconheça a necessidade de reparar a ofensa feita a Deus, santo


Tomás coloca como objetivo principal da redenção a restauração do próprio ser
humano. A misericórdia divina é o primeiro e principal motivo da redenção:

“(...) foi conveniente tanto à misericórdia como à justiça divina ser o homem
libertado pela paixão de Cristo. À justiça porque, por sua paixão, Cristo deu
satisfação pelo pecado do gênero humano e assim o homem, pela justiça de Cristo,
foi libertado. À misericórdia porque, não podendo o homem, com suas forças, dar
satisfação pelo pecado de toda natureza humana (...) Deus lhe deu seu Filho para
cumprir essa satisfação (...). O que se tornou uma misericórdia mais abundante do
que se tivesse perdoado os pecados sem satisfação”266.

263
Cf. GALVIN, J., Jesus Cristo. In: GALVIN, J.; SCHUSSLER FIORENZA, F.; (Orgs.),
Teologia sistemática – Perspectivas católico-romanas, Vol. I, São Paulo, Paulus, 1997, p. 364.
264
SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, IIIa, q. 1, a. 2, rep.
265
Ibidem.
266
Ibidem, IIIa, q. 46, a. 1, rep.
98

A prioridade do amor na soteriologia tomista estabelece uma nova chave


hermenêutica para a redenção: o “mérito”. Em razão do amor com que Jesus se
entregou à morte, mereceu para si mesmo a ressurreição, e para a humanidade, a
salvação. Dessa forma, a vida e a morte de Cristo foram ‘meritórias’. A salvação é
a recompensa que Jesus obteve para nós. Se Jesus não tivesse renunciado à sua
glória divina, se não tivesse sido fielmente obediente à vontade do Pai, a
humanidade não obteria a salvação. A ‘kénosis’ de Jesus, concretização de seu
amor, mereceu-nos a salvação267.
Afirmar que Cristo mereceu nossa salvação com sua paixão e morte
equivale a dizer que estas foram as verdadeiras causas de nossa redenção pelo
valor moral que têm diante de Deus.
3.3.
Conseqüências para a espiritualidade cristã

O dolorismo foi nefasto para a espiritualidade cristã. Ousamos dizer que o


maior malefício por ele produzido foi a aversão que muitas pessoas têm ao
simples nome “mortificação”. Porém, existem outros efeitos que perduram até
hoje. Dentre eles destaco: a repressão da sexualidade, a cruz desvinculada da
história e o medo de Deus, acompanhado do sentimento mórbido de culpa.
3.3.1.
Repressão da sexualidade

Influenciada pelo estoicismo a espiritualidade cristã privilegiou a razão em


detrimento da afetividade. O ser humano foi considerado, sobretudo, como razão.
Paixões e afetos devem ser tratados de maneira racional, ou seja, o cristão deve
distanciar-se dos desejos e paixões sensíveis do corpo, contrapondo a eles
considerações e motivações racionais, objetivando, assim, alcançar a indiferença
(a ataraxia) 268. Essa, digamos, “espiritualidade repressora” trouxe grandes danos a
homens e mulheres que reprimiram seu mundo afetivo e pagaram um alto preço
por isso, especialmente as pessoas consagradas.
No campo sexual se fez sentir os maiores danos. O exercício da sexualidade
foi qualificado como comportamento irracional, algo que desumaniza o ser

267
Cf. DUQUOC, C., Cristologia – Ensaio dogmático: O Messias, Vol. II, 2. ed., São Paulo,
Loyola, 1996, pp. 195-198.
268
Cf. GARCIA RUBIO, A., Evangelização e maturidade afetiva, São Paulo, Paulinas, 2006, pp.
94-95.
99

humano, pois ofusca a razão, que é a característica humana fundamental. Era


considerado oposto à dignidade humana o ‘obnubilamento da razão’ que se efetua
no prazer sexual. Por isso, o ato matrimonial, onde a pessoa renuncia
precisamente a essa primazia da razão, é algo indigno e animalesco. O próprio
nome de “pequena epilepsia”, dado ao ato conjugal, já supõe atentado contra a
condição básica do ser humano. O espírito tem que se envergonhar de tudo o que
diga respeito ao instinto. O próprio santo Tomás ensina: “O homem se torna
animal na união carnal, porque não é capaz de moderar pela razão o prazer da
união carnal e o ardor da concupiscência”269. A Igreja não aceitou as teorias e
práticas que condenava o corpo, o sexo e o matrimônio como realidades
intrinsecamente más. Todavia, uma vez que o ambiente cultural predominante
estava fortemente marcado pela filosofia estóica foi inevitável que essas idéias
influenciassem a espiritualidade cristã270.
Isto levou muitos pregadores populares a considerar a sexualidade apenas
como um elemento biológico do ser humano. O sexo deve ser realizado apenas
para conservação da espécie e não para o prazer271. As conseqüências eram
previsíveis: em relação ao sexo predominou uma atitude de medo, desconfiança e
suspeita. Os conhecimentos deficientes tanto na área biológica quanto na
psicológica contribuíram para a permanência destas atitudes. Criou-se em torno
dele um ambiente pouco sadio, de clandestinidade, angústia e sentimentos de
culpa272. Por exemplo, são Bernardino de Siena, pregando na grande praça de

269
SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, I, q. 98, a. 2, rep. Apud LÓPEZ
AZPITARTE, E., Ética da sexualidade e do matrimônio, São Paulo, Paulus, 1997, p. 18.
270
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 379.
271
LORIOT, J., Sermons sur les plus importantes matières de morale chrétiene á l’usage de ceux
qui s’appliquent aux missions et de ceux qui travaillent dans les paroisses, Nova ed. 1725, IV, pp.
290-291 (Sermão n. 9. Dos deveres das pessoas que se casam). Apud DELAMEAU, J., O pecado e
o medo. A culpabilização no Ocidente (séculos 13-18), Vol. II, Bauru, Editora da Universidade do
Sagrado Coração, 2003, pp. 207-208: “Há os que se casam para ter um socorro nas necessidades
comuns desta vida, um alívio nas penas e uma consolação mútua nas aflições (...) essa finalidade é
boa e podemos propô-la legitimamente. Existe outra, que na verdade não é má, mas que é menos
perfeita, é quando alguém reconhece sua fraqueza e, não se sentindo bastante forte para guardar a
continência, serve-se do casamento como um remédio para sua fraqueza. São Paulo diz que se
permite esse remédio por condescendência, mas que não se recomenda. Na verdade, é permitido
usar remédios nas doenças, mas é bem desagradável não poder passar sem ele; e nesses encontros
deve-se pelo menos lembrar-se que não se toma remédio sem necessidade, sem repugnância e sem
asco, e só com precaução, com medida, com circunspecção, e por amor à saúde. Mas a verdadeira
finalidade do casamento, e que alguém deveria ter diante dos olhos quando se casa, é para ter
filhos”.
272
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 379.
100

Siena, ataca quem abusa do olho no momento das relações conjugais. O texto é
chocante:

“Olha para mim, vês este olho? Ele não é feito para o casamento. O que tem o olho
a ver com o casamento? Toda vez que ele quiser ver orgias, será um pecado mortal,
e muito grave. Porque aquilo que é lícito tocar, não é lícito olhar. Para saciar teus
olhos desonestos, tu cometes um grande pecado já que queres olhar o que é
proibido. Agora me dize, confessaste isso? Então vai confessar-te!”273.

O corpo é um objeto perigoso que não se deve olhar nem mostrar. O horror
da nudez levou as congregações a proibir aos religiosos os banhos não motivados
por estritas recomendações médicas274. As danças também eram condenadas. São
Luís Grignion de Monfort afirmava que o diabo se insinuava no corpo das
dançarinas e dos dançarinos para induzir os incautos a pecar contra a castidade. O
mesmo Grignion de Monfort condenava os contos, os romances e as canções de
amor275.
O pecado da impureza era o mais grave de todos. E era visto em todas as
partes. Havia uma verdadeira psicose em relação aos pecados contra a castidade.
Nesse sentido, por exemplo, são João Eudes exortava os confessores a interrogar a
esse respeito os rapazes e homens não casados, perguntando-lhes se eles não se
tocaram a si mesmos para conseguir um prazer sensual; se não tiveram ejaculação
voluntária; se tiveram ejaculação dormindo à qual deram motivo antes, ou na qual
sentiram prazer acordados276.

273
BERNARDINO DE SIENA, Prediche volgari, II, p. 168 (sermão n. 21). Apud DELAMEAU,
J., O pecado e o medo. A culpabilização no Ocidente (séculos 13-18), Vol. II, Bauru, Editora
Universidade do Sagrado Coração, 2003, p. 209.
274
DELAMEAU, J., op. cit., pp. 210-211: “Em 1734, o superior dos Lazaristas, Padre Bonnet,
interrogou a esse respeito (proibição de banhos) jesuítas, trinitários, sulpicianos, etc. Do lado
jesuíta, responderam-lhe: não há entre nós nenhuma lei escrita que proíba de banhar-se. ‘Julgou-se
que o pudor religioso já bastava para proibi-lo. O perigo a que se exporiam os jovens que estariam
sujeitos a essa tentação mais do que às outras seria uma razão para se fazer uma regra para isso;
mas ela não foi julgada necessária, porque não há entre nós nenhuma desordem sobre esse artigo, e
os superiores puniriam severamente aqueles que o pudor e a modéstia não refreassem. Um jovem
que ousou banhar-se no banheiro de uma de nossas casas de campo afogou-se, talvez por um
julgamento misericordioso de Deus, que quis que esse triste exemplo tivesse função de lei’. O
superior de são Sulpício respondeu por sua vez ao Padre Bonnet: ‘Jamais permitimos aos nossos
cavalheiros, nem mesmo aos nossos seminaristas, que se banhem, nem em público, nem em
particular, nos rios, lagos, lagoas e tanques, e por conseguinte, com maior razão, que tampouco
nadem; quando se receitam aos doentes, por razões de saúde, banhos quentes ou frios, eles são
tomados em casa e, nesse caso, colocamos um lençol sobre as tinas, e não se cria nenhuma
dificuldade para deixar um criado no quarto daquele que se banha, para evitar os acidentes que
podem ocorrer e que temeis tão sensatamente’. O Padre Bonnet decidiu no mesmo sentido para a
sua congregação”.
275
Cf. Ibidem.
276
Cf. Ibidem, p. 222.
101

O resultado disso tudo foi que o sexo não foi afastado, ao contrário, ficou
muito presente, perturbando a vida das pessoas, uma vez que foi recalcado e não
integrado de maneira personalizante. É totalmente fora da realidade o ideal de
pureza que não leva em consideração que a sexualidade é uma dimensão básica do
ser humano a ser integrada, não recalcada277. E ainda hoje, em pleno século XXI,
ainda existem resquícios desta espiritualidade repressora calcada numa visão
reducionista da pessoa humana.
3.3.2.
A cruz desvinculada da história

As interpretações soteriológicas fundamentadas nas categorias de expiação,


satisfação e mérito produziram uma grande devoção popular à cruz de Jesus
Cristo. Porém uma devoção que desvinculou a cruz de seu contexto histórico. E aí
se encontra um dos grandes danos que essa devoção produziu, e ainda produz, à
espiritualidade cristã.
Desvincular a cruz de seu contexto histórico significa reduzi-la somente a
símbolo da morte expiatória de Jesus Cristo. O resultado é a redução da pessoa de
Jesus ao papel de vítima expiatória e compensatória. Desse modo, Jesus é privado
de sua existência histórica. As soteriologias tradicionais mutilam Jesus, fazendo
dele apenas uma vítima para sofrer. Transformam especificamente a dor de Cristo
na cruz a causa da salvação da humanidade, além de transmitir uma imagem
vingativa e colérica de Deus: somente o sofrimento físico do Filho é capaz de
compensar a ofensa que a humanidade fez ao Pai. A cólera do Pai só é aplacada
pelo sangue derramado278.
Alguns pregadores populares chegaram a dizer que era preciso compensar o
peso do pecado com um peso equivalente de sofrimentos. Eis aqui o que disse
Bossuet num sermão de sexta-feira santa, no século XVII:

“Pensai, pois, cristãos que tudo o que ouvistes não é mais que uma débil
preparação: o grande golpe do sacrifício de Jesus Cristo, que abate esta vítima
pública aos pés da justiça divina, devia ser propiciado na cruz e vir de um poder
maior que o das criaturas. Só a Deus cabe vingar as injúrias; e enquanto sua mão
não intervém, os pecados só são castigados debilmente. Só a ele toca fazer justiça
aos pecadores como é devido; só ele tem o braço bastante poderoso para tratá-los
como merecem. (...) Por isso era necessário, meus irmãos, que ele mesmo caísse

277
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 380.
278
Cf. VARONE, F., Esse Deus que dizem amar o sofrimento, Aparecida, Santuário, 2001, pp. 96-
97.
102

sobre seu Filho com todas as suas forças; e como havia colocado sobre ele os
nossos pecados, devia fazer recair também sobre ele a sua justa vingança. E assim
o fez, cristãos, não o duvidemos”279.

A morte de Jesus é vista como a condição prévia para que Deus voltasse a
amar a humanidade. Sem sofrimento não há perdão. Essa é a idéia de fundo que
inspira toda uma espiritualidade centrada tão somente na dor. Além disso, a dor
provocada pelos sofrimentos é vista equivocadamente como méritos adquiridos
diante de Deus; méritos que compensam os pecados cometidos. Isso explica
porque tantos santos na história da Igreja usaram a criatividade para inventar
instrumentos e ocasiões para sofrer. Era preciso buscar a cruz, o sofrimento
diariamente, para compensar os pecados cometidos.
Por exemplo, são Pedro de Alcântara revelou a santa Teresa D’Ávila, sua
dirigida espiritual, que durante quarenta anos só tinha dormido uma hora e meia
por noite, e que jamais tinha conhecido penitência mais dura; no início, para
vencer o sono, ele permanecia sentado, com a cabeça apoiada num pedaço de
madeira fixado na parede. Habitualmente, ele só comia um dia em cada três.
Outro exemplo: quando são Carlos Borromeu foi despido para sua toalete fúnebre
(tinha apenas 46 anos), descobrem que seus ombros estavam escalavrados pela
disciplina, seu corpo dilacerado pelas pontas dos cilícios280. A dor era o caminho
real da salvação.
3.3.3.
Medo de Deus e sentimento de culpa

Medo de Deus, medo do inferno. Um Deus implacável, sempre atento a


punir com rigor os pecadores. Esse discurso atemorizante norteou por muitos
séculos a espiritualidade cristã. Formou o inconsciente coletivo de muitas
gerações de cristãos. E está ainda arraigado no íntimo de muitas pessoas.
A própria imagem do inferno, transmitida pelos antigos pregadores, era algo
extremamente assustador para qualquer pessoa. Giroust, jesuíta, pregava uma
imagem exageradamente aterrorizante do inferno:

279
BOSSUET, J. B., Carême des Minimes, pour lê vendredi saint, 26 mars 1660, em Oeuvres
oratoires III, DDB, Paris, 1916, p. 385. Apud SESBOÜE, B., Creer. Invitación a la fé católica
para las mujeres y los hombres del siglo XXI, Madrid, San Pablo, 2000, pp. 339-340.
280
Cf. DELAMEAU, J., O pecado e o medo. A culpabilização no Ocidente (séculos 13-18), Vol. I,
Bauru, Editora da Universidade do Sagrado Coração, 2003, pp. 584-585.
103

“Que prodígio! Um fogo que queima sempre sem jamais consumir o indivíduo ao
qual está ligado e sem jamais se consumir ele próprio (...). É o que se julgaria
impossível, se não soubéssemos que tudo é possível a um Deus que se vinga”281.

Um Deus vingativo que só se abranda quando sua justiça é satisfeita e sua


honra reparada, pelo castigo infligido ao pecador. É evidente que essa imagem de
Deus criou uma espiritualidade do medo. Medo de ofender a Deus e de acabar no
inferno. Muitos cristãos foram verdadeiramente massacrados por essa angústia,
que gerava, por sua vez, um escrúpulo exagerado e um mórbido sentimento de
culpa, isto é, o pensamento fixo de que apesar das muitas mortificações
praticadas, não conseguiriam escapar da danação eterna.
3.4.
Conclusão

É evidente que a cultura contemporânea jamais poderia aceitar uma


espiritualidade alicerçada sobre a desvalorização do corpo e do mundo. E que
ainda prega o dolorismo, a dor como caminho de salvação. Hoje, o corpo é
valorizadíssimo. Portanto, não é mais concebível uma espiritualidade que
despreze o corpo e o mundo. Da mesma forma a soteriologia que motivou muitas
práticas de mortificação não encontra mais eco atualmente. Está totalmente
superada. Hoje, a cruz, o sofrimento salvífico de Cristo, é compreendido no
contexto de toda a sua existência, e não somente no contexto de sua morte. Não
foi um decreto supra-histórico a causa da morte de Jesus, mas uma causa
histórica: a não aceitação da proposta do reino de Deus. A cruz é salvadora porque
resume toda a vida de Jesus: serviço de amor a Deus e à humanidade.
Além dessas motivações teológicas, existem também as motivações
culturais, que provocaram uma grande mudança nos valores da sociedade
ocidental. De modo especial o processo de dessacralização da sociedade. Nas
últimas décadas a Igreja Católica teve uma marcante diminuição de seu poder de
influenciar na formação da consciência das novas gerações. Hoje, os meios de
comunicação social formam a opinião pública, determinam para muitos o que é
certo ou errado. Muitos cristãos freqüentam os shoppings centers aos domingos ao
invés da Igreja.

281
GIROUST, J., Sermons pour le caréme, II, p. 27 (sermão sobre o inferno). Apud
DELAMEAU, J., O pecado e o medo. A culpabilização no Ocidente (séculos 13-18), Vol. II,
Bauru, Editora da Universidade do Sagrado Coração, 2003, p. 144.
104

Após essas considerações são inevitáveis alguns questionamentos:


atualmente muitos jovens e também adultos desconhecem por completo a
problemática que envolve o tema da mortificação; muitos nem mesmo sabem o
que é mortificação. Não seria mais salutar recuperar somente as orientações
positivas, e ainda válidas, dos manuais de ascética e mística acerca da disciplina
pessoal para vencer as tentações? Não seria mais producente em âmbito pastoral
banir definitivamente do vocabulário teológico o termo mortificação?
Para responder a essas indagações, recorreremos a um testemunho
contemporâneo equilibrado de mortificação, dado por uma religiosa que viveu a
maior parte de sua vida na cidade de São José dos Campos, onde desenvolveu um
apostolado admirável junto aos doentes de tuberculose. Falo de Madre Maria
Teresa de Jesus Eucarístico. A mortificação foi um dos pilares de sua vida, tanto
que boa parte de suas conferências dizem respeito à mortificação. A vida e obra de
Madre Maria Teresa por si só já é um testemunho favorável à mortificação. Ela
conseguiu desvencilhar a prática da mortificação das motivações ‘doloristas’,
obtendo, desse modo, um resultado bastante positivo. É o que veremos na segunda
parte desta pesquisa.
151

6
O consumismo: desafio contemporâneo à mortificação

O consumismo é uma ideologia onipresente hoje no mundo. É conseqüência


do grande desenvolvimento industrial que criou a ideologia do conforto e do
desperdício, impulsionando, assim, uma verdadeira explosão de consumo.
Ideologia amplamente alimentada pela mídia, que influencia diretamente os
padrões de saúde, beleza e comportamento social. Os danos provocados pelo
consumismo repercutem na degradação do meio-ambiente, nas reações nocivas à
saúde, na redução do corpo humano a objeto de consumo, na obsessão pela fama a
qualquer custo, entre outros. Também a dessacralização da sociedade é outro
elemento de fundamental importância para a compreensão do consumismo. A
religião é, na mentalidade consumista, mais um bem de consumo; por isso, deve
satisfazer às necessidades dos ‘fiéis consumidores’.
Neste capítulo analisaremos o fenômeno do consumismo como o grande
desafio contemporâneo para a elaboração de uma atualizada teologia da
mortificação.
6.1.
A sociedade do consumismo

O mundo contemporâneo gira em torno do consumismo, que não se


caracteriza apenas por um abuso de consumo de bens, muitas vezes totalmente
desnecessários e dispensáveis; mas também por uma mentalidade que nasce do
seio de uma civilização formada e dominada pela técnica, torna-se sua força
motriz e penetra no mais íntimo das pessoas bem como no costume coletivo431.
O consumismo não se limita apenas a buscar o prazer no ato de consumir,
mas também estimula o psiquismo humano através da imaginação e da emoção.
Procura formar as pessoas de tal maneira que se deixem seduzir por uma procura
ávida do novo, do desejo, acima daquilo que já foi experimentado. O consumismo
alimenta procura, nunca saciada, de um prazer e de uma felicidade que estão

431
Cf. CNBB, DGAE (1999-2002), n. 138.
152

sempre além do alcançado. O resultado dessa procura sem fim do prazer não é o
amadurecimento da pessoa, mas sua escravização pelo desejo insaciável432.
Em conexão com o consumismo, impera hoje um ‘individualismo’ sem
precedentes na história. Em tudo, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto
de vista afetivo, o homem contemporâneo busca primeiramente a si próprio, sua
felicidade433. Estar bem, sentir-se feliz, evitar tensões, produzir e ganhar muito,
poder consumir à vontade são algumas palavras de ordem que explicam o modo
de viver de muitos em nossos dias434. Além disso, o individualismo, na busca
desenfreada pelo bem-estar do indivíduo, questiona tradições e instituições, leva
ao desinteresse pelo bem comum e pelas grandes causas, tende a relegar a religião
à esfera do privado, a utilizá-la numa deformada ótica terapêutica e a selecionar
dela o que não atrapalha seu ideal de felicidade435.
Felicidade é a palavra de ordem. Aliás, a principal mensagem veiculada
pelos meios de comunicação é precisamente a associação entre consumo e
felicidade. A idéia de que através da aquisição de determinados produtos as
pessoas conseguirão ser felizes é bastante incentivada e adotada pela sociedade de
consumo. Quem tem poder aquisitivo para consumir é feliz. No entanto, na prática
cotidiana, outros sentimentos também são produzidos pelo consumismo, como os
de frustração e decepção por não ter; de tédio por ter em demasia; de inveja,
ressentimento e rancor por nada ter e ainda faltar a perspectiva de inclusão no
mercado consumidor. De acordo com este sistema, o fato de uma determinada

432
Cf. Ibidem.
433
BARREIRO, A., A eclesialidade da fé cristã nos novos contextos sócio-culturais. In:
KONINGS, J. (Org.), Teologia e pastoral, São Paulo, 2002, p.131-132: “Submergido no mare
magnum de ideologias, utopias, sonhos, promessas de felicidade e toda sorte de mercadorias, que
lhe são oferecidas por meio das mais variadas formas de propaganda, o consumidor moderno e
pós-moderno é, na verdade, incapaz de escolher. Sua liberdade de escolha é ilusória. Ele não pode
escolher livremente porque outros já escolheram por ele. Literalmente subjugado pelas modas e
pelos modismos, pelos produtos e subprodutos descartáveis, isto é, artificialmente criados para
serem usados e jogados fora a fim de poderem ser substituídos por outros com o mesmo destino, o
indivíduo moderno e pós-moderno vive correndo sem parar para consumir sempre mais. E está
sempre insatisfeito. As referências sociais e morais para a escolha foram substituídas por duas
formas de individualismo: o ‘individualismo utilitário’, pelo qual cada um escolhe aquilo que julga
que mais lhe convém, e o ‘individualismo sentimental’, pelo qual cada um escolhe aquilo de que
mais gosta. Falta de critérios éticos, o indivíduo moderno torna-se inseguro, está sempre
insatisfeito e, por isso mesmo, sempre à cata de novos objetos de consumo. Nada é permanente.
Tudo é provisório”.
434
Cf. FRANÇA MIRANDA, M., Existência cristã hoje, São Paulo, Loyola, 2005, p. 98.
435
Cf. Ibidem, p. 18.
153

pessoa não possuir um certo produto, considerado essencial, coloca-a em posição


inferior em relação ao meio do qual faz parte436.
O discurso e a prática existente na sociedade de consumo é o de que a
valorização das pessoas seja aferida através dos bens materiais a que elas podem
ter acesso. Ao invés de valorizar o indivíduo pelo que ele é, passa-se a dar mais
importância ao que ele tem e ao que ele pode oferecer materialmente437.
6.1.1.
A excessiva valorização do corpo

O consumismo, além de reduzir o corpo à condição de mercadoria,


transformou-o ainda em objeto de culto, em um verdadeiro ‘fetiche’. Os meios de
comunicação de massa são os grandes veiculadores deste culto. Há uma enorme
quantidade de anúncios publicitários nos quais aparecem corpos considerados
perfeitos, induzindo as pessoas a consumirem uma imensa parafernália para
conseguirem a boa forma desejada. O corpo perfeito é um bem de altíssimo valor,
valendo a pena um alto investimento nele. Convencido disso, quem dispõe de
recursos financeiros recorre às operações plásticas, próteses e outros artifícios438.
No entanto, este cuidado todo com o corpo não eliminou o dualismo
antropológico ‘corpo-alma’; ele ainda permanece, porém, com uma diferença
significativa: não é mais a alma que é prisioneira do corpo (como no platonismo),
mas é o corpo que se acha por assim dizer aprisionado na alma. A alma que é, por
assim dizer, o obstáculo para a excessiva valorização do corpo. É preciso ser sem
alma para dedicar-se exclusivamente ao corpo e aos seus deslumbres mundanos,
para usufruir as fascinações dos sentidos, para degustar a sensação de uma eterna
juventude439.
Atualmente, as formas de adoração ao corpo são inumeráveis e
freqüentemente combinam com as formas de individualismo exacerbado ou de
auto-erotismo, mais ou menos latentes: elas vão da aeróbica às saunas, às
massagens e aos tratamentos para emagrecimento; do bronzeamento natural ou
artificial aos vários cosméticos e maquiagens; do naturismo às plásticas faciais;

436
Cf. MALDONADO DA SILVA LYRA, R., Consumo, comunicação e cidadania. In:
CIBERLEGENDA, n. 06, 2001. Disponível em: <http://www.uff.br/mestcii/renata2.htm>. Acesso
em: 13 set. 2006.
437
Cf. Ibidem.
438
Cf. Ibidem.
154

até os concursos de beleza, cenário último de exaltação do corpo, das medidas


perfeitas. A sociedade consumista exalta o jovem e o belo; e todos devem aceitar
essa norma suprema e adaptar-se a ela440.
Neste contexto de “corpolatria” insere-se principalmente o corpo da mulher,
objeto de um verdadeiro fetichismo. Tudo isto aumenta sensivelmente o culto e a
idolatria. A idolatria do corpo feminino revela uma ambigüidade: não está ligada
somente à saúde e ao bem-estar fisiológico, mas comporta também um elemento
de desejo e sedução de que a moda e a roupa se tornam instrumentos e símbolos,
por excelência. Porém, o culto ao corpo deve provocar sempre um distanciamento,
uma impossibilidade de alcançar o próprio corpo, para suscitar o desejo e, ao
mesmo tempo, a não satisfação do desejo. Para ser cultuado, o corpo da mulher
precisa hoje se apresentar como um corpo extremamente atraente e irresistível:
límpido, macio, perfumado, depilado, curvilíneo, de formas perfeitas. E como o
olhar é a expressão mais intensa de todo o corpo, são os olhos especialmente que
precisam se tornar ao mesmo tempo oferta amorosa (suscitar o desejo) e negação
da satisfação (desejo impossível de ser saciado): olhos sofisticados que não vêem
ninguém, que não se abrem para nada, mas que tudo parecem encantar e paralisar.
A sedução do corpo feminino deriva dessa ambigüidade cruel441.
Como se pode ver, a idolatria do corpo não tem uma dimensão restrita, um
sentido unívoco, é antes uma realidade que inclui todas as demais manifestações
de excessiva valorização do corpo na sociedade de consumo: a corporeidade como
objeto sem alma, a corporeidade como mensagem cifrada enviada ao outro, a
corporeidade como incentivo ao individualismo exacerbado, a corporeidade como
sexualidade oferecida e contida na economia da troca e da sedução, o auto-
erotismo442.
6.1.2.
Corpo objeto: prazer e frustração

O discurso da beleza e do culto ao corpo da mulher levam imediatamente à


exaltação funcional do prazer sexual como momento de apropriação do objeto de
desejo. A tática de sedução termina no prazer sexual. Para a sociedade consumista

439
Cf. NATALE TERRIN, A., Antropologia e horizonte do sagrado – Cultura e religiões, São
Paulo, Paulus, 2004, p. 139.
440
Cf. Ibidem, pp. 139-140.
441
Cf. Ibidem, p. 140.
155

de hoje, o prazer sexual é fim em si mesmo, é o prazer da ocasião, a embriaguez


psicológica do momento. O prazer sexual é oferecido facilmente no contexto de
um comércio do sexo e segundo regras precisas de mercado443. O sexo não passa
de uma simples brincadeira, passatempo, entretenimento.
A pornografia desenfreada que hoje impera em nossa sociedade tem a sua
fase preparatória e condescendente nos filmes pornográficos e nos stripteases das
grandes cidades; e tem a sua expressão de mercado nos eroscenters e nas casas de
prostituição. Mas não é preciso ir longe para falar de sexo; basta prestar atenção a
uma certa linguagem informal da vida cotidiana, que se apropriou de um
vocabulário obsceno e vulgar. À medida que o sexo se tornou autônomo, ou seja,
não está mais unicamente vinculado à função de reprodução e expressão do amor
esponsal, transformou-se aos poucos em ‘valor de uso’ e em ‘valor de troca’: o
prazer sexual é a contrapartida do jogo de sedução444.
Quando o corpo é objeto, o prazer sexual só pode ser físico, desvinculado do
amor. Nesta condição, o sexo é tão somente expressão do próprio narcisismo e o
corpo puro instrumento utilizado para o prazer. A erótica moderna é acima de
tudo auto-erotismo e narcisismo445. E esse narcisismo básico é reflexo do egoísmo
e da incapacidade de se relacionar com o outro; revela tão somente o fechamento
em si mesmo e a busca de vantagens próprias. Deste modo, o corpo e o sexo, em
vez de se abrirem para a diferença de que são portadores, se fecham na ‘lógica
destrutiva do egocentrismo sexual446’, tornando-se, assim, fonte de morte, de
frustração447. O sexo desvinculado do amor verdadeiro, de doação, só pode tornar-

442
Cf. Ibidem, p. 141.
443
Cf. Ibidem, p. 142.
444
Cf. Ibidem.
445
FREUD, S., Introduzione al narcisismo, Torino, Boringhieri, 1976, p. 40. Apud NATALE
TERRIN, A., Antropologia e horizonte do sagrado – Cultura e religiões, São Paulo, Paulus, 2004,
p. 144: “Intervém nelas (as mulheres) uma espécie de auto-suficiência que as compensa dos
sacrifícios que a sociedade impõe à liberdade delas de se escolherem o próprio objeto. A rigor,
essas mulheres amam com intensidade comparável àquela com que são amadas pelos homens,
somente a si mesmas. Na verdade, as suas necessidades não as induzem a amar, mas a ser amadas;
e se comprazem com os homens que lhes satisfazem essa exigência (...). Elas exercem um enorme
fascínio sobre os homens não só por razões estéticas (em geral são as mais belas), mas também em
virtude de algumas constelações psicológicas interessantes”.
446
Cf. Ibidem, pp. 144-145.
447
NATALE TERRIN, A., op. cit., p. 145: “Mas atrás dessa lógica está à espreita a morte. O apelo
aqui é para Georges Bataille e principalmente ao seu último livro, Lê lacrime di Eros, que marca a
parábola da concepção moderna do sexo e do erotismo. Mas por que o sexo e Eros devem dizer-se
destinados à morte? Por que contemplam já a morte na sua performance? A tese é esta: no ato
sexual narcisista recusa-se toda reconciliação com o outro. Diz-se: ‘Não deves ser diferente de
mim. Quero-te meu, quero entrar no teu ser, quero fazê-lo meu. Por isso te possuo. Mas ao
156

se, então, condenação para o ser humano, para o seu corpo considerado objeto,
para a sua personalidade rebaixada a instrumento de prazer e nada mais que isso.
Trata-se de um fracasso do ser humano numa das suas finalidades mais elevadas e
sublimes: o fracasso do amor. A invocação do sexo como substituto do amor só
revela a própria impotência e desespero448.
6.1.3.
Saúde ou culto ao corpo? Onde está o limite?

A preocupação com a saúde é uma outra constante na sociedade de


consumo. Essa preocupação vem transformando modos antigos de viver que a
ciência mostrou serem prejudiciais. É bonito ver pessoas, das mais diferentes
idades e origens sociais, cultivando o vigor físico, a beleza e o prolongamento da
vida. Contudo, essa valorização da saúde está se transformando também em fonte
de doença449.
A produção da saúde passou a ser fator de crescimento de uma rica e
complexa rede de empresas. Clínicas estéticas, revistas, academias, programas de
televisão, aparelhos de exercício, cursos de novas técnicas de cuidado do corpo e
da mente, alimentos dietéticos, clínicas das mais diversas medicinas alternativas,
produtos de beleza, novas profissões e especialidades médicas, endereços na
Internet: tudo isso sustenta um amplo conjunto de profissionais e de empresas que
precisam aumentar o consumo de seus produtos para aumentar seus lucros. As
pessoas estão sendo bombardeadas por propagandas de intermináveis produtos e
serviços de saúde. Os meios de comunicação vão impondo uma referência de
pessoa saudável inspirada em jovens atores e modelos profissionais, que só
aparecem maquiados e sob ângulos selecionados. A saúde é, cada vez mais,
entendida como ‘formosura do corpo’, comportamento juvenil e bom preparo
físico. Diante desse parâmetro fabricado de pessoa saudável, ninguém tem saúde
plena. Para tanto, é preciso consumir mais e melhores produtos e serviços de
saúde450.

possuir-te violento-te, sacrifico-te no teu tu’. E depois, porém, faltando o ‘tu’, também o eu se
perde. Portanto, o ato sexual, não referido ao telos de um amor que se doa, se torna um dispêndio
sem fundo, não tanto a banalização da vida erótica, quanto a extrema experiência da perda, do ato
sacrifical, da morte”.
448
Cf. Ibidem, p. 147.
449
Cf. MOURÃO VASCONCELOS, E., A saúde e o corpo. In: JORNAL DE OPINIÃO, ano 16,
n. 797, 6-12 set. 2004, p. 07.
450
Cf. Ibidem.
157

Esta preocupação exagerada com o corpo criou nas pessoas uma visão
superficial e individualista do que seja saúde. Essa busca desenfreada pela saúde
está gerando uma ‘hipocondria social’, aumentando a insatisfação e tornando as
pessoas ansiosas, pois nunca são capazes de consumir os diversos produtos
anunciados, implementar os intermináveis comportamentos saudáveis e se
submeter às variadas técnicas terapêuticas. Seus corpos estão sempre devendo
diante do padrão estabelecido451.
O ser humano é limitado, precário. No entanto, essas limitações são
‘humanizadoras’, pois nos salvam da tentação da presunção de sermos completos.
Nossas fragilidades e precariedades nos abrem para os outros, impedindo o
fechamento egocêntrico em nós mesmos. Nossas particularidades marcam a forma
própria como podemos contribuir para a sociedade e nos fazem dependentes dos
outros. O ser humano só se realiza na relação com os outros. Por isso é impossível
pensar em saúde de forma individualista. Envolvidos com a busca exagerada da
saúde, não aceitamos os nossos limites. Passamos a lutar contra o que é intrínseco
ao nosso ser ao invés de procurar nos harmonizar com ele. Isso produz uma
existência fragmentada e superficial452.
A ‘corpolatria’ nos impede de encarar a realidade da vida humana, que é
sempre limitada e marcada pela morte. Mesmo com o consumo de todos os
produtos de saúde, a implementação de todas as técnicas médicas e o seguimento
de todos os bons hábitos de vida, nós um dia vamos morrer. Portanto, saúde é
também uma adaptação equilibrada ao sofrimento, à deficiência, à doença, ao
envelhecimento e à morte, fatores que atingem a vida de todos. Nesse sentido,
essa preocupação exagerada e individualista com a saúde tem aumentado o
sofrimento das pessoas, pois as impede de aceitarem a dor e os defeitos que todos
têm. É uma verdadeira idolatria que insinua a promessa de saúde e juventude
eternas, mas que está gerando insatisfação e angústia, terreno fértil para o
surgimento de novas formas de consumo e de novos lucros para a indústria da
saúde453.

451
Cf. Ibidem.
452
Cf. Ibidem.
453
Cf. Ibidem.
158

Somos incapazes de nos entregar com alegria à vida, se estamos apegados à


preservação de detalhes do nosso corpo e ao medo da dor e da morte; ou, ainda,
fixados no conserto dos nossos inúmeros pequenos defeitos454.
6.1.4.
A negação da dor

A negação da dor é uma das características mais fortes da sociedade de


consumo. Todavia, num passado não tão distante, a dor era vista e tratada de uma
maneira diametralmente diferente. Do século XIX até as primeiras décadas do
século XX, as difíceis condições de vida levavam as pessoas a ver como
inevitáveis numerosas dores. As exigências do trabalho não permitiam tempo livre
para queixar-se ou ficar de cama. E quando a dor se instalava de maneira
permanente, não havia outra saída senão aceitá-la como companheira durante toda
a vida. As pessoas seguiam trabalhando apesar das cáries e das feridas. A morte
era o último alívio, o grande remédio que acabava com todos os males455.
A dor de dente não se curava; arrancavam-se os dentes de uma só vez e sem
anestesia, quando o dentista itinerante passava pelo povoado ou cidade. O
barbeiro arrancava os abscessos com a lâmina de uma navalha. Os remédios da
época, ainda que por vezes trouxessem alívio, também provocavam sua cota de
dor. Os procedimentos terapêuticos dos médicos também não eram os mais
suaves: utilizava-se, por exemplo, ‘ferro em brasa’ para cauterizar feridas
infectadas ou mordidas de animais peçonhentos; e sobre as verrugas, hemorróidas,
cancros, aplicavam-se substâncias cáusticas. A ‘flagelação com urtigas’ e a
utilização de ‘queimaduras de primeiro grau’ eram procedimentos terapêuticos
corriqueiros para estimular a reação de um órgão, isto é, criar através de irritações
cutâneas excreções para os tumores infeccionados e, desse modo, atrair o mal para
fora do corpo456.
O nível de tolerância à dor era bastante elevado no passado, como acabamos
de ver. Hoje, depois que os “analgésicos” se tornaram populares e acessíveis, o
nível de tolerância à dor caiu drasticamente. Antigamente a dor estava integrada
ao ritmo de vida da população; agora não faz parte do horizonte das pessoas. Na
atualidade a dor é algo desprovido de sentido; a sociedade contemporânea não

454
Cf. Ibidem.
455
Cf. LE BRETON, D., Antropología del dolor, Barcelona, Editorial Seix Barral, 1999, p. 200.
159

integra mais a dor e a morte como ocorrências naturais da vida. A dor já não é
mais tolerada como inerente à própria condição humana. Não existem mais os
valores que levavam as pessoas a tolerar as dores com valentia sem ceder em sua
vida pessoal457.
Hoje o problema da dor está delimitado à cultura médica, isto é, converteu-
se em assunto de especialistas que tratam a dor a partir do prisma puramente
técnico; não acreditam nas “virtudes da dor”, não lhe atribuem nenhum valor
moral. O significado que o enfermo atribui à sua dor é uma ‘fantasia’ que não
deve interferir na ação médica. A prioridade é dada ao orgânico, não ao ser
humano sofredor; e o corpo é visto como uma máquina, cujas disfunções devem
ser suprimidas. O enfermo separa-se de seu corpo, entrega-o aos cuidados de
especialistas, de quem espera uma solução rápida e eficiente para suas dores.
Raramente se considera também parte responsável pelo processo de cura, capaz de
enfrentar as dores, utilizando seus recursos próprios. De antemão, renuncia a
qualquer tentativa pessoal de buscar suas próprias soluções ou de somar seus
esforços aos dos médicos e aos tratamentos terapêuticos que recebe458.
Não sofrer é a palavra de ordem. Considerada inútil, estéril, a dor é uma
escória que o progresso científico deve dissolver, um anacronismo cruel que deve
desaparecer. Converteu-se em um escândalo à semelhança da morte ou da
precariedade da condição humana459.
6.2.
Consumismo e felicidade

A publicidade, através das propagandas e das peças publicitárias, realiza


uma relação sutil e indireta entre o consumo, o prazer e a felicidade. Não se
promete alcançar coisa alguma através dos produtos, até mesmo porque a
propaganda poderia se caracterizar como enganosa; mas mostram-se pessoas que
alcançam a realização e satisfação total justamente no momento em que estão
consumindo. Não se produz um anúncio de determinado carro prometendo que,
com este, se conquistarão belas mulheres; contudo, na propaganda mostra-se
alguém que lota o referido veículo de lindas mulheres. Não se vende um

456
Cf. Ibidem.
457
Cf. Ibidem, pp. 202-203.
458
Cf. Ibidem, pp. 204-205.
459
Cf. Ibidem, pp. 206.
160

determinado produto alimentício prometendo que este irá tornar as famílias mais
felizes; no entanto; mostram-se na propaganda somente famílias felizes
consumindo o tal produto460.
A mágica associação entre prazer, felicidade e consumo busca transformar
novidades tecnológicas em algo indispensável para a vida das pessoas. Como
vender uma nova tecnologia para quem nunca a possuiu? Este é o desafio de
sedução da sociedade consumista, que arma estratégias para tirar do consumidor a
autonomia para definir o que é realmente necessário, ou não, para sua
sobrevivência. É a publicidade que define os produtos indispensáveis à vida461.
Antes de tomar qualquer decisão, seja para comprar bens ou utilizar
serviços, o consumidor terá absorvido alguma forma de propaganda, esteja ou não
consciente disso. Desde o vendedor ambulante até os intervalos comerciais no
rádio e na televisão, a indústria da publicidade utiliza todos os recursos para nos
levar a seu único objetivo: o consumo.
6.2.1.
Publicidade: utilizada como prevenção contra comportamentos
anticonsumo

O campo da publicidade é extremamente amplo e variado. Além de


persuadir, a publicidade tem a função de informar. E apesar de serem objetivos
diferentes, com muita freqüência, ambos estão presentes numa mensagem
publicitária. Enquanto instrumento de comunicação, a publicidade pode ser usada
de maneira positiva ou negativa. Pode informar e persuadir positiva ou
negativamente uma sociedade. Se a serviço do bem, é um instrumento de grande
utilidade para proporcionar uma concorrência honesta e responsável entre as
empresas, contribuindo para a melhor qualidade dos produtos e diminuição dos
preços; mas, se a serviço de um consumismo ilimitado, pode de igual modo ter
uma influência negativa e nociva nas pessoas e na sociedade. Para não ferir a
ética, toda peça publicitária deve observar três princípios: a veracidade, a
dignidade da pessoa humana e a responsabilidade social462. Quando estes critérios

460
Cf. CAPISTRANO COSTA FILHO, I., Propaganda, consumo, felicidade. In: BIBLIOTECA
ON-LINE DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO. Disponível em:
http://www.paginas.terra.com.br/educacao/comunicacaocultura>. Acesso em: 13 set. 2006.
461
Cf. Ibidem.
462
Como sugestão de leitura para aprofundamento das vantagens e desvantagens da publicidade
sugiro o documento “Ética da Publicidade”, do Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais.
161

não são respeitados, a publicidade se presta a interesses escusos. E dentre estes


está a promoção do consumismo desenfreado, quando a propaganda é utilizada
ostensivamente com o objetivo de prevenir-se contra comportamentos anti-
consumo.
É lei para a publicidade a serviço do consumismo suscitar necessidades
novas e falsas nas pessoas, para que produtos já lançados no mercado, ou em fase
de lançamento, encontrem demanda. Por isso a propaganda cobre cada esquina de
rua, praças, jardins públicos, pontos de ônibus, metrô, aeroportos, estações de
trem, jornais, bares, restaurantes, os cartões magnéticos e de telefone. Interrompe
filmes e novelas na televisão, invade o rádio, as revistas, a Internet, as praias, o
esporte, as roupas, acha-se impressa até na sola dos sapatos, enfim, procura
ocupar todos os espaços possíveis. É impossível ligar um rádio, ler um jornal sem
se deparar com a publicidade. Ela tem notoriamente um papel preventivo: evitar a
todo custo o comportamento anticonsumo463.
6.3.
Gratificação imediata e juízo crítico

Segundo a lógica do consumismo, os bens são vendidos aos consumidores


como ‘objetos gratificantes’. A oferta de gratificação imediata ocorre de duas
maneiras: primeiro, na disponibilidade de produtos; segundo, em sua
funcionalidade ou eficácia464.
A gratificação é anunciada pelos produtores e sentida pelos consumidores já
com a promessa de disponibilidade de artigos que podem ser consumidos
imediatamente: comida, sexo, esporte, vestuário, informação, entre outros. Muitos
produtos já são embalados e oferecidos como gratificantes antes mesmo de serem
provados e testados pelo público. Sua aceitabilidade já repousa sobre índices de
aprovação muito bem divulgados por representantes selecionados do público
consumidor. Ou seja, as pessoas que adquirem tais produtos não têm liberdade
para fazer uma escolha crítica, pois um juízo amplamente favorável já foi
estabelecido publicamente, antes mesmo de elas terem contato com os produtos. O
que as pessoas devem consumir, o que é julgado bom para elas, é determinado

463
Para aprofundar o assunto sugiro a obra LOPES PEREIRA, A., Consumidor e a mídia de
massa. In: MACEDO ZILIOTTO, D. (Org.), O consumidor – Objeto da cultura, Petrópolis,
Vozes, 2003, pp. 79-84.
162

pelo mercado, pelo potencial público consumidor. Há pessoas que ficam


frustradas porque o que elas, de fato, precisam consumir não está mais à venda no
mercado, pois os produtores deixaram de produzi-lo justamente pela falta de um
número mínimo de consumidores. O que determina a qualidade e a necessidade
de um determinado produto é a demanda do mercado consumidor. Desse modo,
muitos produtos são embalados com garantias de satisfação e opções dadas ao
consumidor, do tipo ‘três dias para teste’ ou ‘satisfação garantida ou devolvemos
seu dinheiro’465.
Alguns produtos ou bens são oferecidos para satisfazer as necessidades
básicas das pessoas, ao passo que outros pretendem satisfazer a busca por coisas
mais elevadas. A melhor forma de designá-los é dizer que os primeiros trazem
‘gratificação’ e os segundos ‘auto-realização’. Ambos os tipos de bens, porém,
são hoje artigos à venda. O melhor detergente e o melhor aconselhamento para a
auto-realização estão à disposição dos que têm dinheiro para adquiri-los. Todos
esses bens possuem algo em comum: uma etiqueta com o preço466.
Em sua constante busca por produtos que possam ser comercializados, as
indústrias antecipam-se às necessidades dos consumidores, introduzindo produtos
que substituem o que é real. Por exemplo, em algumas “megalópoles”
supercongestionadas e poluídas já estão à venda embalagens de oxigênio, isto é,
‘ar fresco’467.
Em alguns casos, ainda, gratificação e auto-realização se tornam sinônimo
de ‘excitação’. Muitos consumidores utilizam precisamente a capacidade de
excitação como critério para julgar a qualidade de um bem, inclusive daqueles que
são elevados, como a amizade e o amor. Este é um sinal característico de que os
valores do mercado podem desvirtuar a capacidade crítica ou o bom senso das
pessoas.
6.3.1.
A obsessão pela fama

Entre os bens de gratificação imediata encontra-se a ‘fama’. Não por acaso a


mídia televisiva tem cada vez mais programas sobre famosos e programas que

464
Cf. DAGMANG, F., Gratificação instantânea e libertação. In: CONCILIUM/282 – 199, p. 63
[575].
465
Cf. Ibidem, p. 64 [576].
466
Cf. Ibidem, p. 65 [577].
163

tentam fabricar famosos como os reality shows. O fascínio exercido pela fama tem
sido uma das marcas características da sociedade consumista, que exige de seus
membros um envolvimento cada vez maior na tarefa de escalar degraus do
sucesso e da fama em todos os segmentos. Prova disso é a proliferação de novos
cantores, atores e esportistas nos últimos anos. Não importam horas insones, sem
repouso, despendidas neste afã. O que importa é o prazer de ser aplaudido e
reconhecido pelo público e conceder autógrafos. A fama é, portanto, a expressão
máxima da gratificação imediata468.
A fama não é uma invenção de hoje. Por exemplo, as divas de ópera no
século XIX eram tão idolatradas, que jovens poetas românticos carregavam-nas
nos ombros pelas ruas da cidade, em triunfo. Mas, sem dúvida, a comunicação de
massa deu outra dimensão à fama. Os meios de comunicação de massa tornaram-
se as indústrias de fabricação da fama, ingrediente fundamental na formação da
opinião pública e de um potente mercado consumidor. A mídia promove a
exposição de pessoas capazes de atrair a opinião pública. Se alguém aparece
poucos minutos na televisão, já se torna conhecido por uma multidão de pessoas.
A mídia converte uma pessoa desconhecida em famosa em poucos instantes, e
incute a idéia de que a fama é o único modo de se dar bem na vida e ser feliz. O
grau de importância de uma pessoa é definido pelo interesse dos fotógrafos. É a
mídia, enfim, que determina o valor das pessoas469.
6.4.
Crise ecológica: perigo do consumismo predatório

Para implantar empreendimentos que geram lucros exorbitantes, grandes


grupos econômicos não hesitam em drenar pântanos, cortar montanhas, aterrar
enseadas, lagos, desviar o curso de rios, derrubar florestas inteiras, destruindo e
devastando toda a vida ali existente. É a lógica da sociedade de consumo que só
visa o lucro imediato, não levando em conta o mal que suas ações trazem ao
ecossistema. A depredação dos bens naturais leva à poluição do ar, da água e do

467
Cf. Ibidem.
468
Cf. LACERDA, M., A síndrome da fama. In: REVISTA MIRADA GLOBAL. Disponível em:
<http://www.miradaglobal.com/index.asp?id=temas&principal=070604&idioma=pt>. Acesso em:
18 set. 2006.
469
Cf. PIZA, D., Fama. In: OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, Cultura da fama. Disponível em:
<http:// www.observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/imprimir.asp?cosd=348ASP007>. Acesso em:
18 set. 2006.
164

solo, atingindo as populações em geral, comprometendo todo o meio ambiente e,


em conseqüência, a qualidade de vida do planeta470.
O modelo atual de consumismo é extremamente predador, tendo como
resultado a utilização irracional e irresponsável dos recursos naturais, gerando
desperdícios e produzindo cada vez mais lixo, seja este doméstico, industrial ou
hospitalar. Esse lixo consome cada vez mais recursos para ser devidamente
tratado, o que não ocorre justamente por isso, causando uma grande poluição
ambiental, que prejudica a todos471.
Além da poluição do ar, da água e do solo, outras formas de poluição
agravam, dia a dia, a crise ecológica causada pelo consumismo predatório; entre
elas estão a poluição sonora e visual, que atinge as grandes metrópoles, bem como
a poluição atômica, que tem alcance planetário.
6.4.1.
Poluição do ar, da água e do solo

A poluição do ar é causada pela fumaça das fábricas, pelos detritos


industriais e sobretudo pelos veículos de propulsão que retiram da atmosfera
grandes quantidades de oxigênio, expelindo ao mesmo tempo gases tóxicos
nocivos não apenas para a vida humana, mas também para a sobrevivência das
plantas e animais. A poluição do ar produz também o chamado ‘efeito estufa’,
provocado por gases tóxicos (o dióxido e o monóxido de carbono) que ficam
concentrados em determinadas regiões da atmosfera, formando uma camada que
bloqueia a dissipação do calor. Esta camada de poluentes funciona como um
isolante térmico do planeta Terra. O calor fica retido nas camadas mais baixas da
atmosfera ocasionando graves problemas de saúde à população. Além das
doenças, o efeito estufa produz um aquecimento global, o que pode tornar a Terra
muito quente para a manutenção da vida472.
A chuva ácida é uma das principais conseqüências da poluição do ar. As
queimas de carvão ou de derivados de petróleo liberam resíduos gasosos, cuja
reação com a água forma o ácido nítrico e o ácido sulfúrico. Ao caírem na
superfície, as águas da chuva ácida alteram a composição química do solo e das

470
Cf. ROQUETE PINTO, C. L., Não cobiçarás as coisas alheias. In: BINGEMER. M. C. e
YUNES, E. (Coord.), Os dez mandamentos, São Paulo, Loyola, 2003, p. 267.
471
Cf. Ibidem, p. 268.
472
Cf. Ibidem.
165

águas, atingem as cadeias alimentares, destroem florestas e lavouras, atacam


estruturas metálicas, monumentos e edificações473.
Quanto à poluição da água, esta resulta sobretudo dos esgotos domésticos,
dos despejos industriais, do escoamento da chuva das área urbanas e das águas de
retorno de irrigação, bem como do inadequado armazenamento do lixo. No caso
dos rios, os danos mais graves relacionam-se à contaminação das águas pelo
lançamento de substâncias tóxicas, tais como os compostos de metais pesados
(mercúrio e chumbo), os resíduos das indústrias de papel e celulose, os detritos
das indústrias petroquímicas, entre outros. Já o mar vem sendo constantemente
poluído pelo derramamento de petróleo, tanto de navios petroleiros, como de
plataformas de extração de petróleo e oleodutos litorâneos. O vazamento de
petróleo no mar produz a chamada “maré negra”, que mata os peixes de toda a
região poluída, contamina as areias, a vegetação de mangue, bem como o espelho
d’água, com sérios danos para o ecossistema. Além do petróleo, algumas
indústrias químicas localizadas no litoral costumam despejar seus detritos no mar,
poluindo as praias e causando grande mortalidade da fauna marinha474.
Os processos degradativos do solo, por sua vez, estão ligados ao uso
indiscriminado de adubos e componentes químicos na lavoura, à falta de práticas
de conservação de água no solo, à inadequada disposição do lixo, à destruição de
espécies vegetais, à contaminação do solo devido ao derramamento de petróleo e
de seus derivados.
Também corrobora para a poluição do solo a devastação das florestas, cuja
principal conseqüência é a destruição da biodiversidade, com a extinção de
espécies vegetais e animais. Um outro efeito poluente do desmatamento é o
agravamento dos processos erosivos. A retirada da cobertura vegetal expõe o solo
ao impacto das chuvas, tendo como conseqüências: o assoreamento de rios e
lagos; a extinção de nascentes; a diminuição dos índices pluviométricos; a
elevação das temperaturas locais e regionais, como conseqüência da maior
irradiação do calor para a atmosfera; o agravamento dos processos de

473
Cf. PORTAL AMBIENTE BRASIL, Chuva ácida. Disponível em:
<http://www.ambientebrasil.com.br/composer.php3?base=./natural/index.html&conteudo=./natura
l/arti>. Acesso em: 20 set. 2006.
474
Cf. PEREIRA DOS SANTOS, F., Poluição do solo. In: ECOL NEWS, Meio ambiente e
poluição. Disponível em: <http://www.ecolnews.com.br/artigo_01.htm>. Acesso em: 29 set. 2006.
166

desertificação; a proliferação de pragas e doenças, como resultado de


desequilíbrios nas cadeias alimentares475.
Além desses impactos locais da devastação das florestas, existe também um
impacto em escala global. A queima das florestas tem colaborado para aumentar a
concentração de gás carbônico na atmosfera, potencializando ainda mais o efeito
estufa476.
6.4.2.
Poluição sonora, visual e atômica

A poluição sonora se dá através do ruído, que é o som indesejado, sendo


considerada uma das formas mais graves de agressão ao homem e ao meio
ambiente. O ruído de trânsito de veículos é o que mais contribui para a poluição
sonora. Os efeitos produzidos pelo ruído podem ser fisiológicos, como a perda da
audição, ou psicológicos, como a irritabilidade exagerada. A poluição sonora pode
impedir também a concentração e a aprendizagem477.
Outro tipo de agressão, dessa vez para os olhos da população, é aquela
causada pela poluição visual. Esta engloba o lixo espalhado pelas ruas, as
pichações em muros, o excesso de outdoors, placas publicitárias e fios elétricos.
Haveria muitas razões para se controlar a publicidade de rua: o fato de alguns
anúncios serem inconvenientes e, portanto, contrários ao bem-estar da população;
invadirem os espaços públicos fazendo com que os habitantes não tenham outra
opção a não ser reparar neles; banalizarem o ambiente, degradando o gosto
popular, além de distraírem os motoristas nas ruas. Juntamente com a poluição
sonora, a poluição visual causa graves males à saúde, agredindo a sensibilidade
humana, afetando mais psicologicamente que fisicamente478.
Finalmente, emerge no cenário da crise ecológica um outro tipo de poluição
de risco e capacidade de destruição avassaladora: a poluição atômica. Desde a
descoberta e início da exploração da energia nuclear, enorme quantidade de
resíduos radioativos tem sido lançada na atmosfera, e as correntes de ar se
encarregam de espalhar este material para todas as regiões da Terra. Com o passar

475
Cf. Ibidem.
476
Cf. Ibidem.
477
Cf. UNIVERSO AMBIENTAL, Poluição sonora. Disponível em: <http://www.
universoambiental.com.br/Poluição\acustica/PoluiçãoAcustica.htm>. Acesso em: 20 set. 2006.
167

do tempo, a suspensão é trazida para o solo e para os oceanos, onde será absorvida
e incorporada pelos seres vivos. O resíduo radioativo pode causar sérios
problemas à saúde humana. Quando assimilado pela corrente sanguínea, é
confundido com o cálcio e absorvido pelo tecido ósseo, onde será fixado. Aí
inserido, ele emite sua radiação e acabará por provocar sérias mutações
cancerígenas nos tecidos formadores de sangue, encontrados na ‘medula óssea’.
Este processo pode levar a pessoa à morte479.
Além da liberação direta do material radioativo, existe o grave problema do
lixo atômico produzido pelas usinas nucleares, que apresenta uma série de
dificuldades relacionadas ao seu tratamento e armazenamento. Se não armazenado
segundo normas rígidas de segurança pode contaminar o meio ambiente480.
6.5.
A religião: objeto de consumo

Hoje as religiões só têm ‘mercado’ à medida que respondem aos anseios,


demandas e expectativas dos consumidores. É o consumidor, segundo suas
preferências e necessidades, quem determina como deve ser a religião, na qual
procura respostas pragmáticas e imediatas. O produto, isto é, a religião, deve
adequar-se às exigências do consumidor: é a ‘lei de mercado’481. Por isso mesmo
a sociedade consumista oferece uma pluralidade de ofertas religiosas e a disputa
pelos fiéis se dá através do marketing religioso: o fiel escolhe sua religião a partir
das vantagens individuais que lhes são oferecidas482. Esse fenômeno proporcionou
o surgimento do chamado “neopentecostalismo”, aqui, no Brasil.

478
Cf. AMBIENTE BRASIL, Poluição visual. Disponível em:
<http://www.ambientebrasil.com.br/composer.php3?base=./urbano/index.html&conteudo=./urban
o/arti>. Acesso em: 21 set. 2006.
479
Cf. PEREIRA DOS SANTOS, F., A poluição atômica. In: ECOL NEWS, Meio ambiente e
poluição. Disponível em: <http://www.ecolnews.com.br/artigo_01_2ahtm>. Acesso em: 21 set.
2006.
480
Cf. Ibidem.
481
SILVEIRA CAMPOS, L., Teatro, templo e mercado — Organização e marketing de um
empreendimento neopentecostal, Petrópolis, Vozes; Simpósio Editora, 1997, p. 204: “A
transformação do ‘campo religioso’ em ‘mercado religioso’ é uma conseqüência da força
homogeneizadora do mercado sobre o universo religioso. A crescente aplicação do marketing na
geração de atos e instituições religiosas está elevando o gosto do ‘comprador’, e transformando-o
na instância máxima de julgamento dos fenômenos religiosos. É o público ‘consumidor’, criado,
descoberto e organizado, segundo regras mercadológicas, que determina tanto as formas de
elaboração e de distribuição dos bens religiosos, como a própria estrutura assumida pela instância
produtora”.
482
Cf. LIBÂNIO, J. B., Qual o futuro do cristianismo?, São Paulo, Loyola, 2006, p. 131.
168

Além da pluralidade de instituições religiosas, a sociedade consumista


também oferece ao consumidor a oportunidade de criar sua própria religião. É a
chamada religião de ‘shopping center’, na qual cada um escolhe de maneira
individualista e utilitarista os bens religiosos que julga serem os melhores para si,
segundo as necessidades e gostos naquele momento. O resultado dessa
compreensão da religião é um sincretismo subjetivo, no qual coexistem as crenças
e as práticas mais diferentes e até contraditórias entre si: Jesus Cristo, orixás,
astros, entre outros483. A “Nova Era” é a melhor exemplificação deste fenômeno
que ocorre em âmbito mundial.
6.5.1
O neopentecostalismo

A oferta em profusão de bens salvíficos é a marca do neopentecostalismo


como tal, estando presente nos sermões e nas práticas das diversas igrejas que o
compõem. A salvação é sinônimo de vida feliz, sem doenças, sem misérias, sem
desavenças e sofrimentos. As ofertas de salvação neopentecostais excluem,
indiretamente, dois aspectos presentes na tradição clássica cristã: o sofrimento e a
espera escatológica da salvação. O sofrimento é visto como ausência de salvação,
e deve ser superado pelo poder de Jesus, vencedor de todos os males que afligem
os fiéis. A obtenção da felicidade, ainda que não ocorra imediatamente, é algo
certo e pode acontecer a qualquer momento. Não há o que esperar para um futuro
pós-histórico; espera-se, a qualquer momento, a manifestação de Deus. A cada
culto, o fiel renova essa esperança inabalável no poder de Jesus484.
Para o neopentecostalismo a ‘posse da salvação’ se dá através da
prosperidade econômica. Deus é o Deus do ouro e da prata, contra todo tipo de
sofrimento e pobreza. Quanto maior é a oferta e o dízimo do fiel, maior também
será sua prosperidade, pois a fé se mede pela generosidade nas doações. É o preço
a ser pago pela “cura” 485. É a “monetarização do sacrifício”: não mais penitências
rigorosas, mas agora o sacrifício do próprio bolso. Nesta prática há uma espécie
de ‘transação comercial’ entre o fiel, que é o consumidor, e Deus, que é o

483
Cf. BARREIRO, A., A eclesialidade da fé cristã nos novos contextos sócio-culturais. In:
KONINGS, J. (Org.), Teologia e pastoral, São Paulo, Loyola, 2002, pp. 135-136.
484
Cf. PASSOS, J. D., Pentecostais – Origens e começo, São Paulo, Paulinas, 2005, pp. 68-69.
485
BARREIRO, A.., op. cit., pp. 138-139: “(...) é a ‘teologia da prosperidade’ de Paul Fretson,
segundo o qual o princípio básico da prosperidade é a doação financeira, entendida não como um
169

vendedor de um bem, no caso, a salvação. É uma espécie de contrato de sociedade


com Deus: o fiel coloca à disposição da igreja tudo o que tem e em contrapartida,
começa a participar de tudo o que Deus oferece. O dinheiro, que é uma realidade
humana, deve ser a forma de participação do fiel; enquanto que o poder espiritual
e os milagres, que são divinos, representam a participação de Deus. Quando o fiel
paga o dízimo, Deus fica na obrigação de cumprir sua palavra486.
Se o fiel está impedido de viver a prosperidade, isto é, de tomar posse da
salvação, entram em cena as curas e exorcismos para desamarrar-lhe os males. O
exorcismo é considerado um tipo de cura radical, que liberta do demônio, o pai de
todos os males, das doenças inclusive. Rege essa postura uma mentalidade
mágica487. Pelos rituais de cura e exorcismo, os pastores buscam desamarrar os
males pelo poder de Jesus: manuseiam a força que possuem, enquanto
especialistas autorizados expulsam os males e levam o seu autor, o demônio, a
humilhar-se, apresentando-se como tal e descrevendo suas maldades. Encena-se,
nestes rituais, uma batalha dos poderes opostos, travada na vida das pessoas, e a
vitória do poder de Jesus como um grande espetáculo sagrado, que provoca
fascinação e medo. Esses rituais são também oferecidos pelos programas de
televisão, que, utilizando-se dos recursos da imagem, aprimoram e virtualizam o
espetáculo para o grande público488.
Na lógica da mentalidade mágica não há separação entre o mundo
sobrenatural e o natural; aliás, o pressuposto da intervenção mágica é a
possibilidade de relação entre essas ordens, de forma que uma altere o curso da
outra. Os rituais neopentecostais trabalham com as duas ordens de modo
misturado. A conquista espiritual é conquista material e vice-versa, uma vez que o

ato de gratidão ou devolução a Deus, mas como um investimento. Devemos dar a Deus para que
ele nos devolva com lucro”.
486
Cf. SILVEIRA CAMPOS, L., Teatro, templo e mercado – Organização e marketing de um
empreendimento pentecostal, Petrópolis, Vozes; Simpósio Editora, 1997, pp. 232-233.
487
PASSOS, J. D., Pentecostais – Origens e começo, São Paulo, Paulinas, 2005, p. 77: “O que
para a mentalidade lógico-racional é causa natural, para o pensamento mágico (...) é um
instrumento utilizado pelo demônio para fazer suas maldades. As coisas naturais têm sempre uma
causa sobrenatural que fornece a chave original de sua compreensão mais radical, de forma que a
origem das doenças está quase sempre associada à vida pecaminosa da pessoa, ou à religião falsa
que ela pratica, ou então a rituais malignos praticados por terceiros, feiticeiros ou bruxos. A
doença está, assim, associada à atração ou manipulação de forças sobrenaturais sobre a pessoa. Do
mesmo modo, os rituais de cura vão reverter essas forças. Vão ‘desamarrar em nome de Jesus’
aquilo que foi amarrado pelo poder do inimigo”.
488
Cf. Ibidem, p. 78.
170

mundo espiritual é que rege e produz o mundo material com todos os seus efeitos
visíveis, bons ou ruins489.
Em suma, o que as igrejas neopentecostais oferecem e o que as pessoas
buscam nelas não é a salvação revelada e oferecida em Jesus Cristo, mas melhorar
a vida nos níveis social e econômico, resolver seus problemas, serem “curadas”.
6.5.2.
A Nova Era

A Nova Era não pretende ser uma religião, pois entende esta como algo
estruturado, prescritivo e vinculante, o que não condiz com sua proposta. Seus
representantes preferem chamá-la ‘espiritualidade’, para evitar qualquer
associação com as concepções clássicas de religião490. Aliás, a Nova Era faz
questão de manter-se distante das várias tradições religiosas, as quais acusa de
cultivarem muita teologia e pouca espiritualidade, bem como de serem
disseminadoras de divisões e guerras religiosas491.
A busca da felicidade é a questão central da Nova Era. Por isso ela procura
atrelar progresso material a progresso espiritual, bem-estar material a bem-estar
espiritual. Almeja uma ‘felicidade holística’, isto é, uma felicidade que inclua
todas as dimensões do ser humano e do cosmo. A sociedade de consumo
desenvolveu apenas a dimensão material do ser humano, trouxe uma felicidade
somente parcial; a Nova Era quer plenificar tal felicidade humana acrescentando-
lhe a dimensão espiritual. O adepto da Nova Era tem de ser pluridimensional e
holístico, completo em todas as suas dimensões492.
A proposta da Nova Era consiste em alcançar a felicidade total através de
um processo de auto-salvação, que se desenvolve através da ajuda de mestres
espirituais (os gurus), do uso de técnicas orientais de meditação (zen, ioga, entre
outras)493, do esoterismo gnóstico494 e da astrologia495. Segundo a Nova Era, todas

489
Cf. Ibidem.
490
Cf. MARTÍNEZ DIEZ, F., A Nova Era e a fé cristã, São Paulo, Paulus, 1997, pp. 43-44.
491
Cf. DE FIORES, S., A nova espiritualidade, São Paulo, Cidade Nova; Paulus, 1999, pp.73-74.
492
Cf. MARTÍNEZ DIEZ, F., op. cit., pp. 37-38.
493
NATALE TERRIN, A., Nova Era. A religiosidade do pós-moderno, São Paulo, Loyola, 1996,
pp. 22-23: “(...) a técnica mais difundida em nosso mundo ocidental para meditar, para manter-se
em forma em nível físico, psicofísico e, somente às vezes, espiritual é a técnica da yoga, que já é
praticada nas quadras da cidade e da periferia. Essa yoga, que é sobretudo hatha yoga, isto é,
exercício de yoga nos quais se deseja compreender e experimentar a relação do próprio corpo com
a mente e com o cosmo (hatha = sol, lua), para entrar em harmonia com o universo, é um modo de
curar os próprios males físicos, mas também um grande método de meditação, de ampliação de
171

essas práticas e conhecimentos possibilitam ao ser humano alcançar uma sintonia


profunda consigo mesmo, além de um relacionamento harmônico com a natureza.
A Nova Era proporciona ao fiel consumidor escolher, ele mesmo, suas
práticas religiosas com elementos tirados das mais diversas tradições religiosas. É
a religião invisível no sentido institucional, mas que responde aos interesses
pessoais. Feita sob medida para uma sociedade de consumo496.
6.6.
Conclusão

Neste capítulo realizamos uma análise sumária, mas criteriosa, dos


principais problemas que afligem a sociedade contemporânea. São problemas
novos, mas que têm no ‘pecado’ a origem comum com tantos outros problemas
que a humanidade já enfrentou no passado. Portanto, sem luta contra o ‘homem
velho’ não é possível combater os grandes dilemas que hoje assolam a
humanidade, como o consumismo e o individualismo. Sem ‘mortificação’, isto é,
sem morte ao homem velho, ou seja, aos obstáculos que impedem o crescimento
do ‘homem novo’, não será possível combater na raiz o mal que afeta nossa
sociedade contemporânea.

consciência, de descoberta da harmonia do micro com o macro, de Shiva com Sakti, da energia
própria com a energia universal, e nesse intercâmbio há algo de espiritual, de importante, de que os
ocidentais também começam a sentir os efeitos benéficos e a colher também, por vezes, os
significados espirituais. A yoga teria como escopo levar ao samādhi, à distensão, à iluminação
interior, a bem-aventurança do espírito. É preciso dizer que a yoga é a técnica psicossomática mais
difundida no ocidente e que também em nível histórico-religioso pode ser considerada o
paradigma de qualquer outra expressão da Nova Era; de fato, ela põe em movimento e em mútua
interação corpo, mente, espírito e o cosmo inteiro. Por isso, deve-se reservar uma atenção toda
especial à yoga”.
494
Combinando as experiências dos xamãs indígenas com o misticismo oriental, a Nova Era dá
grande importância ao channeling (canalismo), técnica recebida do espiritismo em que o médium
‘canaliza’ as mensagens vindas não tanto dos espíritos dos defuntos, mas sim de quaisquer
‘entidades superiores’, como os ‘extraterrestres’, ‘os espíritos’, ‘Cristo’, ‘as fadas’, ‘o inconsciente
coletivo’. As revelações feitas por essas entidades é que conduziriam o ‘iniciado’ à salvação, à
penetração nas esferas superiores.
495
DE FIORES, S., A nova espiritualidade, São Paulo, Cidade Nova; Paulus, 1999, pp. 75-76: “A
Nova Era não só ultrapassa o espaço do mundo físico, mas também quer superar o tempo presente,
projetando-se sobre os segredos do futuro. Para chegar ao conhecimento do futuro humano, os
simpatizantes da Nova Era acolhem a teosofia, segundo a qual existe uma correspondência entre o
corpo astral e o corpo físico: o nosso destino está escrito nas estrelas. Isso vale, em geral, para a
história da humanidade, que passou da influência da constelação de Touro (império da
Mesopotâmia) para o da constelação de Áries (religião judaica) e o da constelação de Peixes
(cristianismo). Por volta do início do século XXI entraremos na era de Aquárius, sinal materno
anunciador de uma nova ordem que, como um grande regaço acolhe a todos, convidando à
autocompreensão em sentido ecológico-místico”.
496
Cf. LIBÂNIO, J. B., A religião no início do milênio, São Paulo, Loyola, 2002, p. 39.
172

A mortificação nada mais é que uma existência em conversão contínua. É a


disciplina necessária para não desperdiçar a graça batismal. Neste sentido, ela não
é algo passageiro, fruto de uma época, mas um imperativo da vida cristã em todos
os tempos. Somente a mortificação capacita-nos a discernir, através de um espírito
crítico e de uma vida sóbria, as diversas e sutis formas de tentação, que, se não
identificadas e neutralizadas, fatalmente nos conduzirão a alguma forma de
escravidão. Igualmente capacita-nos a dar um sentido salvífico à dor e à morte.
Enfim, capacita-nos a viver cotidianamente a dinâmica do ‘Mistério Pascal’, isto
é, de morte em morte até a morte definitiva.
O próprio termo ‘mortificação’ é muito sugestivo, pois lembra-nos da luta
de morte que diariamente temos que travar com o homem velho que ainda nos
habita. Luta que vai perdurar até nossa morte. Assim sendo, não só a prática da
mortificação, mas também o nome mortificação deve ser preservado.
No próximo capítulo estabeleceremos os fundamentos antropológicos e
soteriológicos sobre os quais procuraremos construir uma nova e atualizada
teologia da mortificação.
173

7
Os fundamentos para uma nova teologia da mortificação

É necessária uma nova teologia da mortificação para enfrentar os desafios


da sociedade consumista. Um novo discurso teológico, embasado numa moderna
antropologia de integração; bem como uma soteriologia otimista, que supere os
erros e abusos do passado. Uma teologia que resgate, enfim, a mortificação como
caminho para a maturidade integral e santidade pessoal, como meio indispensável
para vencer os apelos sedutores da publicidade mercantil. É o que procuraremos
desenvolver neste capítulo.
7.1.
Uma antropologia integrada

Como ponto de partida para a elaboração de uma renovada teologia da


mortificação é imprescindível superar o dualismo antropológico presente em
muitas reflexões teológicas do passado, bem como na sociedade contemporânea,
como assinalamos anteriormente. E para esta tarefa é mister recuperar a visão
bíblica de ser humano. Na Sagrada Escritura não encontramos uma elaboração
sistemática da mesma, seja esta unitária ou dualista. No entanto, globalmente
considerada, a Sagrada Escritura pressupõe uma visão unitária de ser humano497.
É o que veremos a partir de agora.
7.1.1.
A unidade do ser humano no Antigo Testamento

O pensamento hebraico é predominantemente sintético e global. Embora


reconheça no ser humano várias dimensões, estas são consideradas dentro de uma
unidade básica. Parece certo que a tradição semita teve sempre como pressuposto
antropológico, certamente pré-filosófico, a unidade fundamental do ser humano.
Uma análise dos conceitos antropológicos mais importantes mostra que a língua
hebraica não separa as funções espirituais das funções vitais do corpo, de modo

497
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 259.
174

que não é possível uma diferenciação essencial entre atividades do corpo e


atividades da alma, ou entre corpo e alma498.
Os exegetas chamam a atenção para a prudência necessária na tradução e
interpretação dos termos hebraicos utilizados para designar o ser humano ou
aspectos dele. Por exemplo, a palavra nefesh, de grande importância na
antropologia do Antigo Testamento, foi mal traduzida, dando ocasião a que se
originasse o equívoco de que esta palavra significava o mesmo que a palavra
‘alma’, que sugere o dualismo grego. Originariamente, a palavra nefesh significa
‘garganta’ ou ‘pescoço’. Nestas duas significações está presente não apenas uma
parte, mas o homem todo, pois, quando a ‘garganta’ sente fome, é o próprio
homem que tem fome; ou, quando necessita de ar, é o homem todo que dele
necessita para sobreviver. Não se pode dizer que o homem possui uma nefesh,
mas, sim, que ele é nefesh, isto é, um ser necessitado de vida. Nefesh, portanto,
tem também um sentido figurado, pois expressa a vitalidade interior, a vontade
que o ser humano tem de viver. Nefesh tem um conteúdo tão totalizante que pode
ser substituído por um pronome pessoal, pois remete ao “eu” da pessoa499. Por
isso mesmo, não pode simplesmente ser traduzido por alma, pois não significa um
‘princípio espiritual’ em delimitação à realidade física do homem500.
Outro termo básico é basar. Designa freqüentemente a ‘carne’, enquanto
substância material, quer dos animais, quer do homem (cf. Gn 2, 21); outras vezes
passa a significar o corpo do homem, ou ainda o parentesco que une os seres
humanos entre si. Num nível antropológico mais profundo, designa o homem
como carente de força, frágil, no qual não se deve colocar a confiança. Em
contraposição, só Iahweh é apresentado como merecedor de toda confiança. Por
isso Iahweh não é basar501. Como se vê, o termo basar também indica o homem
todo, mas sempre destacando a sua condição de precariedade e de dependência em
relação aos outros e especialmente em relação a Deus502. Detalhe importante:

498
Cf. FIORENZA, F. P. e METZ, J. B., O homem como união de corpo e alma. In: FEINER, J. e
LÖHRER, M. (Orgs.), Mysterium salutis, 2. ed., Vol. II/3, Petrópolis, Vozes, 1980, p.32.
499
Cf. ROCCHETTA, C., Hacia uma teología de la corporeidad, Madrid, San Pablo, 1993, p. 33.
500
Cf. SATTLER, D. e SCHENEIDER, T., Doutrina da criação. In: SCHENEIDER, T. (Org.),
Manual de teologia dogmática, Vol. I, Petrópolis, Vozes, 2000, p. 150.
501
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 260.
502
ROCCHETTA, C., op. cit. p. 30: “O homem é basar frente a si mesmo, a comunidade e Deus.
Frente a si mesmo, basar recorda sua condição limitada, frágil, sujeita ao sofrimento e à morte.
Frente à comunidade, basar diz que todo ser humano participa da condição de todos, recordando
em particular os vínculos de sangue, de parentesco e de raça com o grupo ao qual pertence. Frente
175

basar designa sempre o ser humano em sua condição de corpo dotado de vida.
Jamais o termo basar é aplicado a um cadáver503. Portanto, da mesma forma que
nefesh não pode ser traduzido por alma, também o termo basar não pode ser
traduzido simplesmente por ‘corpo’.
Também rûah é um termo muito utilizado na antropologia
veterotestamentária. Primeiramente é utilizado para designar o vento,
normalmente vento forte a serviço do desígnio de Iahweh; quando aplicado ao ser
humano, significa a sua respiração, a sua força vital. Com bastante freqüência é
referido a Iahweh para significar a sua força vital criadora que, comunicada ao ser
humano, confere-lhe dons e talentos diversos, concedidos para que este possa
superar a impotência e a fraqueza próprias do basar, realizando, desse modo,
tarefas especiais a serviço do desígnio salvífico de Iahweh. Com o termo rûah,
descrevem-se também sentimentos, emoções e estados de ânimo do coração
humano e, mais especificamente, a força da vontade em conexão com a força que
vem de Iahweh504. Pouquíssimas vezes a palavra rûah corresponde ao que nós
entendemos por ‘espírito’505. Rûah designa, pois, o ser humano inteiro, na sua
capacidade de abertura-escuta em relação a Iahweh, destacando-se a força vital e
os dons concedidos por ele506.
No entanto, o termo mais importante para a antropologia
veterotestamentária é lēb, traduzido em português por ‘coração’. Ultrapassando a
significação anatômica e fisiológica, indicam-se com o termo lēb os sentimentos
(cf. 1Sm 16, 7b; Jó 12, 3) e as emoções humanas (cf. 1Sm 2, 1; Sl 13, 6; 28, 7); ao
mesmo são atribuídos os desejos do ser humano, as suas aspirações e anseios
concretos. Contudo, o mais próprio do termo lēb é a referência às funções

a Deus, basar evidencia a dependência do homem em relação ao Criador, de quem recebe o


‘alento’ vital que o faz existir: ‘Se ele (Deus) pensasse apenas em si, concentrando em si mesmo o
espírito e o sopro, toda carne a um só tempo definharia, e o ser humano voltaria ao pó’ (Jó 34, 14-
15; cf. também Sl 78, 39; Is 40, 6). Em todos os níveis basar não é somente uma condição visível,
porém a forma e a realidade mesma da existência do ser humano. O homem, na antropologia
bíblica, não só ‘tem’ um corpo, ‘é’ seu corpo. Toda relação consigo e com o mundo e toda relação
com Deus e com os demais, tudo está entrelaçado, manifestado e constituído pela existência
corpórea”.
503
Cf. Ibidem.
504
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, pp. 260-261.
505
ROCCHETTA, C., Hacia uma teología de la corporeidad, Madrid, San Pablo, 1993, p. 34:
“Referido ao homem, o termo (rûah) indica seu ser espiritual, porém sempre em seu sentido pleno
e nunca somente com relação a uma parte oposta a outra. Assim se fala de ‘(...) toda a carne com
sopro de vida (...)’ (Gn 6, 17b), enquanto que em Jó 33, 4 se proclama: ‘Foi o espírito de Deus
(rûah Iahweh) que me fez e o sopro (neshamah) do Poderoso me deu a vida (nefesh)’”.
176

racionais, tais como a compreensão da realidade, o saber, a inteligência, a sede da


memória e da reflexão, a capacidade de julgar e de se orientar na vida
convenientemente; ou seja, o termo lēb significa o que nós denominamos ‘razão’.
Da mesma maneira que nefesh, basar e rûah, também lēb designa o ser humano
inteiro507.
Com cada um destes termos centrais da antropologia veterotestamentária
designa-se sempre o ser humano inteiro, não uma dimensão apenas de sua
realidade de vida508. Não apontam para uma divisão no ser humano, tal como
apresentada nos esquemas dualistas neoplatônicos. O israelita, certamente numa
perspectiva pré-filosófica, concebe o ser humano como uma unidade, como um
todo vital, embora reconhecendo nele uma pluralidade de funções e aspectos. A
unidade é tão forte, que o israelita não distingue atividades sensíveis que
dependeriam só do corpo de outras atividades referidas somente à alma. Por isso
nefesh, basar, rûah e lēb apontam tanto para aspectos do ser humano quanto para
o ser humano considerado como um todo509.
Esta visão unitária de ser humano, contudo, encontra exceções no Antigo
Testamento, quando se trata de livros escritos em grego, no âmbito do judaísmo
alexandrino510, especialmente o livro da Sabedoria, no qual a influência da
antropologia helênica está presente, separando nitidamente a alma do corpo, em
relação ao qual há uma nota de negatividade: “Porque o corpo corruptível torna
pesada a alma e a morada terrena oprime a mente que pensa em tantas coisas” (Sb
9, 15)511.
Neste texto, e em mais alguns outros igualmente do livro da Sabedoria (cf.
Sb 3, 4; 4, 1; 8, 17; 15, 3; 2, 23; 6, 18-19), parece ser inegável a prioridade da
alma, imortal e incorruptível, sobre o corpo; porém, nem todos os especialistas do
Antigo Testamento são unânimes nesta interpretação. Há os que defendem a tese
de que, no livro da Sabedoria, o termo grego psyché (alma), em sintonia com o

506
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, pp. 260-261.
507
Cf. Ibidem, p. 261.
508
Cf. SATTLER, D. e SCHENEIDER, T., Doutrina da criação. In: SCHENEIDER, T. (Org.),
Manual de teologia dogmática, Vol. I, Petrópolis, Vozes, 2000, p. 151.
509
Cf. GARCIA RUBIO, A., op. cit., pp. 261-262.
510
Para um estudo mais aprofundado a respeito da influência do pensamento grego nos livros
deuterocanônicos, sugerimos as seguintes obras: PAUL, A., O que é o Intertestamento, São Paulo,
Paulinas, 1981, pp. 45-60; BRIGHT, J., História de Israel, 3. ed., São Paulo, Paulinas, 1985, pp.
561-582.
511
Cf. ROCCHETTA, C., Hacia uma teología de la corporeidad, Madrid, San Pablo, 1993, p. 31.
177

uso de nefesh na tradição veterotestamentária, significaria o homem todo, a pessoa


humana. Igualmente, a imortalidade e a incorruptibilidade estariam referidas ao
homem todo, e não a uma alma separada do corpo512.
No entanto, o que nos interessa é que, mesmo com a ‘possível’ penetração
do dualismo grego em alguns textos de livros do Antigo Testamento, não está
invalidada a afirmação fundamental de que, globalmente considerado, este
pressupõe uma visão fortemente unitária de ser humano513.
7.1.2.
A unidade do ser humano no Novo Testamento

No seu conjunto, também o Novo Testamento se mantém fiel à visão


unitária de ser humano, entendido como totalidade indivisível. Os termos gregos
psyché, pnêuma, sarx, soma e kardia podem significar tanto um aspecto do
homem quanto o homem completo; seguramente não apontam para um dualismo
alma-corpo, próprio do pensamento grego. Por isso é importante conhecer o
significado de cada um destes termos514.
Psyché é a versão em língua grega do hebraico nefesh. É empregado para
expressar a vida física individual dos homens (cf. Mt 6, 25; At 20, 10) e dos
animais (cf. Ap 8, 9), vida que se pode dar (cf. Jo 10, 11; 13, 37), matar ou salvar
(cf. Mc 3, 4). Psyché também designa a pessoa (cf. At 2, 41; Rm 2, 9) e tem o
sentido de pronome pessoal (cf. Mt 11, 29; 2Cor 1, 23). É ainda a sede dos
sentimentos humanos (cf. Mc 14, 34; Jo 12, 27; At 14, 2) e parece descrever, às
vezes, a vida autêntica e plena que o ser humano vive na presença de Deus (cf.
3Jo 2). Igualmente psyché evoca a restauração da vida depois da morte (cf. Jo 12,
25): a vida não se limita à que é vivida como corpo terrestre (cf. Lc 21, 19; 23, 43;
Hb 10, 39), o que não exclui um certo estado corporal depois da morte (cf. Lc 16,
22; 24, 39). A psyché parece assim distinta do corpo (cf. Mt 10, 28), mesmo que
essa distinção não reflita exatamente o dualismo alma imortal-corpo mortal, tanto
que essa concepção não se opõe à fé na ressurreição da pessoa (cf. Ap 6, 9; 20,
4)515. O que precisa ficar bastante claro é que o Novo Testamento não apresenta a
alma como o elemento que define a condição humana, mas “aquela dimensão

512
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 262.
513
Cf. Ibidem.
514
Cf. Ibidem, p. 263.
515
Cf. WÉNIN, A., Alma (teologia bíblica). In: DCT, p. 95.
178

dentro da qual se decidem a morte e a vida, a ruína e a felicidade”516. Isto não


deve ser transladado à dimensão da constituição metafísica do ser humano, algo
alheio às preocupações do Novo Testamento517.
No corpus Paulino, o termo psyché é pouco utilizado. E, quando empregado,
geralmente, mantém o significado de nefesh (cf. 1Cor 15, 45 com Gn 2, 7).
Algumas vezes é utilizado em sua forma adjetivada de psychikos, para contrapor o
homem psíquico ao outro, chamado de espiritual. O homem psíquico é aquele
entregue somente às suas forças vitais, sem o dom do Espírito de Deus. Já o
homem espiritual dispõe de uma capacidade, concedida pelo Espírito de Deus, que
lhe permite perceber as coisas divinas e acolhê-las com ânimo generoso (cf. 1Cor
2, 14-15). Há uma discussão se são Paulo utilizou uma concepção dicotômica,
alma-corpo; ou, inclusive, tricotômica, espírito-alma-corpo. Os que respondem
afirmativamente citam os textos de 1Cor 5, 3; 7, 34 ou 2Cor 12, 2; mas,
sobretudo, 1Ts 5, 23, em que aparece essa divisão tripartida do homem. Na
opinião do teólogo italiano Carlo Rocchetta, no entanto, essa discussão representa
um falso problema, pois são Paulo, ao usar esta linguagem, não quer certamente
dar uma descrição metafísica do ser humano, mas somente indicar alguns aspectos
funcionais. É sintomático, neste sentido, o texto de 1Ts 5, 23: além de ser um
texto isolado, já que não tem paralelo em nenhuma outra carta, deve-se levar em
conta que se trata de uma enumeração utilizada apenas para caracterizar a
plenitude do ser e do agir do ser humano, não tem a intenção de descrever a sua
estrutura metafísica, pois, neste caso, faltariam outros componentes fundamentais
como nous e kardia. O texto está também em sintonia com outras passagens
veterotestamentárias (cf. Sl 16, 9; Jó 34, 14-16) e neotestamentárias (cf. Hb 4, 12),
nas quais se fazem enumerações do mesmo tipo518.
Pnêuma é a tradução da rûah hebraica. Significa o sopro da respiração
humana (cf. Mt 27, 50; Lc 23, 46; Jo 19, 30; At 7, 59; Tg 2, 26); a sede das
emoções (cf. Mc 8, 12; Jo 11, 33; 13, 21; At 17, 16), do conhecimento (cf. Mc 2,
8) e das disposições mais íntimas (cf. 1Pd 3, 4); a pessoa humana (cf. Fl 4, 23;

516
HERDER, G., Alma, Psyché. In: BEYREUTHE, E., BIETENHARD, H. e COENEN, L. (Eds.),
Diccionario Teológico del Nuovo Testamento, Vol. I, Salamanca, p. 100. Apud GARCIA RUBIO,
A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 264.
517
Cf. GARCIA RUBIO, A., loc.cit.
179

2Tm 4, 22; Fm 25) na sua intimidade secreta (1Cor 2, 11). O pnêuma se distingue
daquilo que no ser humano é visível, o corpo (1Cor 5, 3; 7, 34; 2Cor 7, 1; Cl 2, 5),
ou daquilo que nele é débil (cf. Mt 26, 41; Mc 14, 38). No entanto, o pnêuma deve
sua força a Deus: quando o ser humano morre, o pnêuma retorna a Deus (cf. Mt
27, 50; Jo 19, 30; At 7, 59; Tg 2, 26), a quem é confiado (cf. Lc 23, 46; Hb 12, 23;
Ap 11, 11). São Paulo utiliza o termo pnêuma para contrapô-lo a sarx, indicando,
assim, a pessoa humana aberta à vida divina e dócil à ação do Espírito Santo. O
espírito do ser humano é habitado pelo Espírito de Deus que se une ao homem
para suscitar nele a oração filial (cf. Rm 8, 16.26) e para uni-lo a Cristo, de modo
a formar com Jesus um só espírito (cf.1Cor 6, 17)519.
Sarx (carne) é o equivalente grego do basar hebraico. Significa a carne
animada e o ser humano integral. Tal qual basar, pode igualmente designar
parentesco, bem como a comunidade. São Paulo, o autor neotestamentário que
mais utiliza o termo sarx, aplica-o também para indicar tudo aquilo que é
puramente humano, frágil e mortal (cf. Rm 6, 19; 2Cor 4, 11). Sarx passa a
receber, por isso, uma significação teológica importante: designa o ser humano
fechado sobre si mesmo, na sua autonomia orgulhosa, que o leva a rejeitar as
possibilidades oferecidas por Deus (cf. Gl 2, 20; Fl 1, 22; 2Cor 10, 3). Porém, é
importantíssimo chamar a atenção para o fato de que é o ser humano
integralmente quem se fecha, não uma parte dele520.
A posição de são João é, em alguns aspectos, parecida com a de são Paulo.
A expressão “O que nasceu da carne é carne (...)” (Jo 3, 6a) evoca o lado frágil e
débil da existência humana. Se compreende, então, a afirmação de são João no
prólogo do quarto evangelho, no qual se proclama que o Logos eterno “se fez
carne e veio morar entre nós” (Jo 1, 14a). O evangelista poderia ter utilizado os
termos “corpo” ou “homem”; no entanto, o fato de ter empregado o termo sarx
não é casual: trata-se de colocar em relação a desproporção infinita entre o ser
divino do Filho de Deus e a condição humana caduca assumida por ele.
Considerações análogas servem para o sermão sobre o pão da vida, quando Jesus

518
Cf. ROCCHETTA, C., hacia uma teología de la corporeidad, Madrid, San Pablo, 1993, pp. 43-
44. Para maior aprofundamento deste assunto, indicamos a seguinte obra: DUNN, J.D.G., A
teologia do apóstolo Paulo, São Paulo, Paulus, 2003, pp. 80-112. Aqui pp. 109-112.
519
Cf. GOZZELINO, G., Il mistero dell’uomo in Cristo. Saggio di protologia, Leumann (Torino),
Elle Di Ci, 1991, p. 102.
520
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 264.
180

promete sua própria sarx como comida e seu sangue como bebida para a salvação
do mundo (cf. Jo 6, 51-56)521.
Em síntese, sarx significa o ser humano inteiro na sua vida meramente
humana, e recebe uma forte conotação negativa quando designa o ser humano que
se fecha à ação de Deus, na busca de uma autoconstrução orgulhosa522.
Com o termo soma, o Novo Testamento designa tanto o cadáver (cf. Mt 27,
52.58; Mc 15, 43; Lc 23, 52; Jo 19, 38; At 9, 40) quanto o ser humano nas suas
manifestações vitais visíveis (cf. Mt 5, 29; 6, 22; Lc 11, 34.36; 1Cor 5, 3; 7, 34; 9,
27; 13, 3; Rm 6, 12; 12, 1). Freqüentemente, soma é utilizado para indicar o ser
humano integralmente, sendo que, em são Paulo, designa a pessoa humana
enquanto circunscrita, na sua existência, a um determinado lugar a partir do qual
vive a sua relação com Deus523. Soma e sarx são usados comumente por são Paulo
como equivalentes. Todavia, ao tratar da ressurreição, são Paulo estabelece uma
clara distinção: a sarx, à medida que significa o “homem velho”, é chamada a
desaparecer (cf. Rm 6, 6); o corpo, pelo contrário, é chamado à ressurreição (cf.
Rm 8, 11; 1Cor 6, 14)524.
Kardia é outro importante termo antropológico usado no Novo Testamento.
Tal qual o equivalente hebraico lēb , indica o íntimo do ser humano, a sede da
inteligência, da consciência e da vontade. O coração, em oposição ao rosto e aos
lábios, indica algo escondido (cf. Mt 15, 8; Mc 7, 6; 2Cor 5, 12; 1Ts 1, 17; 1Pd 3,
4); é a fonte dos pensamentos (cf. Mc 2, 6.8; Lc 3, 15), da fé (cf. Mc 11, 23; Rm
10, 8), da compreensão (cf. Lc 24, 25; Ef 1, 18) e do endurecimento (cf. Mc 6,
52); é o centro das opções decisivas (cf. Mt 22, 37; Mc 12, 30; Lc 10, 27; 1Cor 7,
37; 2Cor 9, 7), da lei não escrita (cf. Mt 15, 18; Mc 7, 19.21; Rm 2, 15) e do
encontro com Deus (cf. Mt 13, 19; Lc 8, 12.15). O Espírito do Filho habita no
coração (cf. 2Cor 1, 22; Ef 3, 17) e revela-lhe o amor de Deus (cf. Rm 5, 5)525. O

521
Cf. ROCCHETTA, C., Hacia uma teología de la corporeidad, Madrid, San Pablo, 1993, p. 40.
522
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 264.
523
Cf. WIBBING, S., Corpo, soma. In: BEYREUTHE, E., BIETENHARD, H. e COENEN, L.
(Eds.), Dicionário Teológico del Nuevo Testamento, Vol. I, Salamanca, pp. 375-380. Aqui: pp.
377-378. Apud GARCIA RUBIO, A., loc. cit.
524
Cf. PESH, W., Corpo. In: BAUER, J. (Ed.), Dicionário de teologia bíblica, Vol. I, São Paulo,
Loyola, 1973, p. 240. Apud GARCIA RUBIO, A., loc.cit.
525
Cf. GOZZELINO, G., Il mistero dell’uomo in Cristo. Saggio di protologia, Leumann (Torino),
Elle Di Ci, 1991, p. 103.
181

pecado, por sua vez, afeta principalmente o coração, escravizando, a partir dele, o
ser humano por inteiro526.
A resumida apresentação do significado dos termos psyché, pnêuma, sarx,
soma e kardia , assim como são usados pelo Novo Testamento, leva-nos à mesma
conclusão que a análise dos termos correspondentes hebraicos utilizados no
Antigo Testamento: uns e outros indicam o ser humano como um todo, embora
considerado sob diversos aspectos. Estamos distantes da dicotomia alma-corpo,
própria da cultura grega. Os cristãos das comunidades primitivas estavam, pois,
enraizados na compreensão pré-filosófica de ser humano, própria da tradição
semita hebraica527.
É importante sublinhar que a Sagrada Escritura não está preocupada com a
constituição ontológica do ser humano, mas com a sua salvação. Por isso, o ser
humano é visto na sua situação de não salvação, e convidado a viver a salvação
oferecida gratuitamente pelo único Deus criador-salvador. Porém, a visão
antropológica que se depreende da Sagrada Escritura pressupõe uma salvação que
atinge o ser humano integralmente considerado, em todas as suas dimensões, e
não apenas em sua alma. Trata-se, pois, de uma antropologia histórico-salvífica528.
7.1.3.
O contributo da filosofia grega

No terceiro capítulo desta pesquisa, analisamos resumidamente a influência


negativa das várias correntes da filosofia grega na teologia e espiritualidade
cristãs, assim como a reação do magistério eclesiástico e de grandes teólogos,
como santo Agostinho e santo Tomás de Aquino529. Agora, veremos a
contribuição positiva dada pelo pensamento grego à antropologia cristã.
A antropologia grega pôs em evidência a dualidade real entre alma e corpo
no ser humano. Esta dualidade de dimensões já é suposta na antropologia bíblica;
evidentemente de maneira sempre pré-filosófica. Na teologia veterotestamentária
da criação, o ser humano é apresentado, por um lado formando parte do mundo
material, enquanto, por outro, transcendendo essa realidade, pois é criado à
imagem de Deus. O fato de pertencer ao mundo material não é um castigo para o

526
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 265.
527
Cf. Ibidem.
528
Cf. Ibidem, p. 274.
529
Cf. Capítulo 3, pp. 85-88.
182

ser humano, mas simplesmente sua condição natural. E como imagem de Deus, é
capaz de escutar e responder à interpelação divina e dos outros seres humanos; é
capaz, ainda, de assumir a sua vocação de administrador responsável do mundo
criado530.
A dualidade alma-corpo é positiva e deve sempre ser mantida, pois deixa
muito claro que o ser humano pertence ao mundo material, embora não se reduza
à matéria; como também pertence ao mundo espiritual, sem reduzir-se à sua
espiritualidade. O ser humano não se define só pela matéria (materialismo) nem só
pelo espírito (espiritualismo)531. Por isso mesmo, uma visão antropológica correta,
que não sacrifica nada da complexidade do humano, deverá acentuar
decididamente a unidade fundamental do ser humano, respeitando, no entanto, as
diferenças existentes entre suas dimensões constitutivas. Nem dualismo, nem
monismo, mas unidade pessoal, na “dualidade” de aspectos constitutivos532.
7.1.4.
Unidade na dualidade

Portanto, é necessário um retorno à antropologia bíblica, acrescida da


contribuição positiva da antropologia grega, para constituirmos uma nova
antropologia, que, de fato, acolha a constituição dual do ser humano (alma-corpo).
Dito com outras palavras, que aceite e respeite a dualidade de dimensões próprias
do ser humano, porém, sendo capaz de integrá-las harmoniosamente na unidade,
que é a pessoa humana concreta.
É preciso sempre enfatizar que o ser humano é uma realidade única, um
único ser pessoal, um único sujeito. Tanto a dimensão espiritual quanto a corpórea
designam a realidade e o ser total do ser humano. Alma e corpo não são dois entes
que se sobrepõem; antes, devem ser considerados como dois princípios
fundamentais da estrutura ontológica unitária que é o ser humano533.
Atualmente há uma certa aversão ao termo “alma”, por parte de alguns
teólogos, em função do risco que se corre de incidir no dualismo antropológico.
Em 1982, o então Cardeal Joseph Ratzinger534, em artigo da revista

530
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 275.
531
Cf. Ibidem.
532
Cf. Ibidem, p. 286.
533
Cf. Ibidem, p. 283.
534
Atualmente Papa Bento XVI.
183

“Communio”535, abordou a importância de se preservar o termo alma, pois este


está diretamente vinculado à noção de “escatologia intermediária”, doutrina
defendida pela Igreja. Segundo Ratzinger, após a morte, continua a existir de
modo autônomo o elemento espiritual do ser humano, elemento este dotado de
consciência e vontade; enfim, aquilo que é o próprio “eu” da pessoa humana. Para
designar este elemento a Igreja utiliza o termo “alma”. Este aparece, assim, como
portador de um aspecto fundamental da fé cristã, passando, portanto, a ser
considerado elemento integrante da linguagem da fé536. E, ainda, acrescenta
Ratzinger que o abandono do termo alma não é necessário para evitar o dualismo
antropológico, pois a alma continua a existir após a morte, mas retém em si
mesma, interiorizada, a matéria de sua vida, “esperando impacientemente o Cristo
ressuscitado, para uma nova união entre espírito e matéria, união que se abre
nele”537. De modo que, mesmo no chamado ‘estado intermediário’, a alma
mantém sua vinculação com o corpo. Continua a unidade ‘alma-corpo’, só que
transformada538.

535
Cf. RATZINGER, J., Entre a morte e a ressurreição. In: COMMUNIO, ano 1, n. 1, jan/ fev.
1982, pp. 67-86.
536
Cf. Ibidem, p. 84.
537
Ibidem.
538
SCHMAUS, M., A fé da Igreja, Vol. VI, Petrópolis, Vozes, 1981, p. 212: “(...) é impossível
que a alma, mesmo depois de sua separação do corpo, perca sua ordenação essencial à matéria. Ela
não se converte por isso em espírito puro, no sentido de que já não signifique relação ao material.
Além disso, a alma continua sendo criatura, quer dizer, permanece incluída na rede de inter-
relações de todo o mundo material. Ela continua sendo terrena. Pela separação de seu conatural
corpo individual se dá uma profunda transformação. Pois a alma já não é capaz de exercer aquelas
funções que, segundo a fé da Igreja, lhe correspondem como forma, como lei informadora e
configuradora da essência do corpo. Para além da morte, sua relação à matéria não é a mesma que
durante a existência histórica. No novo estado, a vida da alma não diminui sua intensidade. Pois
precisamente a entrega plena a Deus confere ao espírito uma vida sumamente intensa. Pois bem,
nesta intensidade vital não pode faltar um elemento que lhe pertence essencialmente. Do mesmo
modo que a alma se ultrapassa em direção a Deus de uma forma sumamente ativa e, precisamente
assim, se realiza a si mesma como nunca pôde realizar-se durante a existência histórica, de
maneira parecida, ela se autotranscende em direção à criatura, quer dizer, em direção à matéria,
com uma intensidade que não era possível durante a vida histórica. Mas, em todo caso, a alma está
suportada e atualizada pelo dinamismo de Deus, pela atividade criadora do espírito divino (...).
Assim, pois, graças à ação divina, a alma, em sua auto-entrega a Deus, transcende em direção a
todo o mundo material (...). Enquanto Deus põe em marcha o movimento de transcendência da
alma para a matéria, esta a apreende e a une a si para constituir uma realidade unitária. Este ato
está além do materialismo e do espiritualismo. Neste ato, a alma espiritual se constitui em lei
informadora da matéria apreendida por ela. Isto significa que se expressa e se representa a matéria,
marcando nesta a fisionomia que sua união com Deus e o diálogo com ele lhe conferem. A auto-
representação do espírito na matéria torna esta transparente para o amor e a verdade de Deus
impressos na alma. Uma vez alcançado isso, deu-se a glorificação psicossomática do homem”.
Para aprofundamento deste tema sugiro a leitura da seguinte obra: CTI, A esperança cristã na
ressurreição. Algumas questões atuais de escatologia, Petrópolis, Vozes, 1994, pp. 33-39.
184

Não entrando na discussão com teólogos que defendem interpretações


diferentes referentes à escatologia cristã, a explicação de Ratzinger é importante e
oportuna, pois chama a atenção para o perigo do reducionismo539 da visão dual do
ser humano, o que ratifica a necessidade de se recuperar uma antropologia que
enfatize a unidade do ser na pluralidade de suas dimensões540.
Portanto, uma renovada teologia da mortificação deve necessariamente
evitar qualquer tendência reducionista, seja o espiritualismo ou o materialismo,
para preservar a unidade básica do ser humano, valorizando positivamente tanto a
dimensão espiritual quanto a corporeidade541.
7.2.
Uma soteriologia otimista

Não há dúvida de que as noções de “sacrifício-expiatório”, “satisfação” e


“mérito” não mais se encontram no horizonte de compreensão da sociedade
contemporânea. Atualmente alguns teólogos542 buscam na expressão
“solidariedade” uma formulação mais acessível para a ação salvífica de Jesus.
Encontramos no Novo Testamento a expressão “por nós” (cf. 1Cor 15, 3; 2Cor 5,
14; Rm 8, 32; Gl 1, 4; 2, 20), originada certamente das primeiras tradições cristãs
e apresentada como eixo central das expressões soteriológicas. Desse modo,
podemos caracterizar a vida de Jesus Cristo como uma “existência para os
outros”, estabelecida em sua doação constante aos pobres, marginalizados e
pecadores. Essa entrega de si perdura continuamente até sua morte: “Isto é o meu
corpo entregue por vós” (1Cor 11, 24b). “Este é o sangue da nova Aliança, que é
derramado por muitos” (Mc 14, 24). Nestes textos, há uma cristologia implícita,
que associa a doação irrestrita de Jesus aos pobres e pecadores à sua entrega na

539
RATZINGER, J., Entre a morte e a ressurreição. In: COMMUNIO, ano 1, n. 1, jan./ fev. 1982,
p. 84: “Além do mais, um cristão (e, com mais forte razão um pensador) não deveria considerar o
monismo como algo de menos perigoso e menos fatal que o dualismo. A partir da fórmula
antropológica de Tomás de Aquino, não posso deixar de aprovar (com a condição de que seja bem
compreendida) a declaração de Greshake: ‘Para mim, o conceito de alma libertada do corpo não é
absolutamente um conceito’. Que o homem, durante toda a sua vida, integre a si a matéria e que,
por conseguinte, mesmo na morte, não rejeite este laço que tem com ela, mas o leve consigo,
constitui, dentro da perspectiva supra citada, algo de absolutamente claro. Somente assim a relação
com a Ressurreição assume todo o seu sentido. No entanto, justamente por este fato, não há
necessidade de se negar o conceito de alma, nem de substituir a alma por um novo corpo”.
540
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 286.
541
Cf. Ibidem, p. 292.
542
Dentre eles: Karl Rahner, Christian Duquoc e Edward Schillebeeckx.
185

ceia eucarística e na paixão até a morte de cruz. Assim se concilia sua mensagem
do reino de Deus com o sentido salvífico de sua morte543.
Contudo, é preciso deixar bem claro que a solidariedade de Cristo com a
humanidade tem algo específico e singular que a diferencia de qualquer outro
gesto de solidariedade realizado na história, por outros homens e mulheres: Jesus
vive o significado do ‘Servo de Iahweh’, que sofre pelos outros (cf. Is 52,13-
53,12)544. Ele morre “em nosso lugar”545. Há, sem dúvida, como vimos, uma
continuidade entre a vida histórica de Jesus e sua morte violenta; porém o sentido
pleno desta morte não se explica somente como efeito histórico de sua ‘existência
para os outros’, mas também por sua obediência ao Pai. Antes de ser homem para
os outros, Jesus foi homem para Deus; isto é, em sua história, posteriormente
reinterpretada pelas primeiras tradições cristãs à luz da ressurreição, já estava
presente e atuante, de modo escondido, o ‘Filho de Deus’. As palavras e ações de
Jesus aparecem como as do Filho preexistente, que se sabe enviado ao mundo
para dar sua vida por nós. Portanto, enquanto Jesus era obediente ao Pai e aceitava
sua história concreta, incluída sua morte iminente e violenta, não só como
perseguição de seus inimigos mas como desígnio de Deus, atuava num sentido
mais profundo o Filho de Deus nele escondido que, por obediência ao Pai, se
oferecia para a salvação da humanidade546.
Entre nós, seres humanos, a solidariedade nasce do amor; em Deus,
solidariedade e amor se identificam. Assim, podemos dizer que a solidariedade de
Jesus Cristo pelos seres humanos é a prova histórica de seu amor por nós. É a

543
Cf. FRANÇA MIRANDA, M., A salvação de Jesus Cristo. A doutrina da graça, São Paulo,
Loyola, 2004, p. 76.
544
Cf. Capítulo 3, pp. 93-94.
545
Cf. KESSLER, H., Redenção/Soteriologia. In: DCFT, p. 749: Jesus salva a humanidade ao
experimentar e superar na condição humana o distanciamento que o pecado produziu entre a
humanidade e Deus. Ele faz com que o amor de Deus exista e se torne ativo justamente no “lugar
dos pecadores”, no lugar do “ser que está distante de Deus”. Na cruz, Jesus toma sobre si todos os
efeitos de uma humanidade distante de Deus e a carrega como o verdadeiro “Servo de Iahweh”,
em solidariedade com Deus e conosco. Aquele que está absolutamente associado a Deus padece,
até ao extremo das tensões, o mais radical abandono de Deus (cf. Mc 15, 34; Gl 3, 13ss); a miséria
e a ruptura, que representa a distância de Deus, é assumida no seio da relação divina do Pai e do
Filho, transformadas e superadas na vitória da ressurreição. Assim acontece, na morte e
ressurreição de Jesus Cristo o máximo do amor redentor de Deus e do homem e com isso a
mudança decisiva de status da humanidade. Jesus Cristo mantém o lugar aberto: junto dos homens
para Deus, e junto de Deus para os homens. Nele, pelo amor descendente de Deus para com o
mundo e pelo amor ascendente do mundo para com Deus anula-se uma vez para sempre a
separação da humanidade de Deus. É a reconciliação da humanidade com Deus.
546
Cf. FRANCA MIRANDA, M., A salvação de Jesus Cristo. A doutrina da graça, São Paulo,
Loyola, 2004, pp. 76-79.
186

realização histórica do amor incondicionado de Deus para com a humanidade.


Essa realização implicou não somente solidarizar-se com os pecadores, mas ainda
a entrega da própria vida por nós, pecadores. A incondicionada solidariedade
divina não hesita em assumir o lugar do pecador condenado à morte e a um
afastamento radical de Deus. Na pessoa do Crucificado aparece o compromisso
incondicionado de Deus conosco547.
Ainda mais: ao ser solidário com a humanidade, Cristo, através do Espírito
Santo derramado em nossos corações (cf. Rm 5, 5), associa-nos ao seu destino;
isto é, tudo o que ele vive e tudo o que sucede nele não vale somente para si, mas
também para nós, seres humanos548. Deste modo, assim como Jesus Cristo foi
capaz de vencer a tentação (cf. Mt 4, 1-11; Hb 4, 15), em comunhão com ele,
também não existe mais nenhuma situação na qual somos forçosamente vencidos
pelo mal. Ao assumir nossa condição humana, Jesus Cristo foi capaz de levar uma
vida de plena abertura a Deus e ao próximo, uma vida fraternal para além do ódio
e do egoísmo. Em comunhão com ele, somos também capazes de viver uma vida
não mais submetida ao poder do pecado. Com sua ressurreição, Jesus Cristo vive
para sempre em Deus; também nós, seres humanos, em comunhão com Cristo,
participamos, já aqui, na história, da vida divina, cuja plenitude dar-se-á após a
morte549.
Por tudo isso, a salvação não é um pleito jurídico, não é dívida a ser paga,
nem castigo a ser suprimido550. Salvação é tudo aquilo que Deus gratuitamente
realizou para nós na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo; ou seja, a remoção
dos obstáculos que existiam entre ele e nós, e a oferta que nos é feita de

547
Cf. Ibidem, p. 79.
548
CARVAJAL, L. G., Nossa fé. Teologia para universitários, São Paulo, Loyola, 2002, pp. 56-
57: “Uma redenção que se esgotasse no bom exemplo que o amor de Cristo nos deu a partir de fora
equivaleria a uma espécie de pelagianismo. O homem se salvaria por seu próprio esforço, imitando
a Jesus, sim, mas por essa lógica também poderia prescindir de Jesus e imitar qualquer outra
pessoa que lhe desse bom exemplo. Não. A salvação de Cristo age a partir de dentro de nós
mesmos porque seu Espírito foi derramado em nossos corações (cf. Rm 5, 5). É como uma
incorporação da vida do cristão à de Cristo, que Paulo expressa com a imagem do enxerto (cf. Rm
11, 17-24) e com abundância de preposições: vivemos ‘em’ Cristo (cf. Cl 2, 11), ‘com’ Cristo (cf.
Cl 2, 12-20; Ef 2, 6; Rm 6, 4-6), ‘por’ Cristo (cf. Gl 6, 14; Rm 7, 4), ‘de’ Cristo (cf. Gl 5, 24)”.
549
Cf. QUEIRUGA, A. T., Recuperar a salvação. Por uma interpretação libertadora da
experiência cristã, São Paulo, Paulus, 1999, pp. 171-178.
550
Cf. Capítulo 3, pp. 92-95.
187

participação na vida divina551. “A dimensão positiva é, definitivamente, a que


marca a direção primária e fundamental da salvação”552.
7.2.1.
Cruz: do excesso de ódio ao excesso de amor

A crucifixão de Jesus não foi querida por Deus. Não se deve atribuir a Deus
aquilo que o pecado humano causou a Jesus. Não era da vontade do Pai que seu
Filho fosse morto de modo cruel553. A morte de Jesus foi conseqüência histórica
do tipo de vida assumido por ele, em conformidade com a vontade do Pai554. Jesus
assumiu e viveu a atitude de “servidor”. Na verdade, a rejeição desse tipo de vida
é da responsabilidade de seres humanos concretos. Foi, portanto, a “não
aceitação” da proposta do reino de Deus a causa histórica da morte de Jesus555.
Ainda a este respeito, é muito importante destacar quem é o Deus revelado
por Jesus. Não é um Deus violento, mas um Deus de amor gratuito, que não se
impõe pela força, que, ao contrário, respeita a decisão humana. Se Jesus tivesse
assumido o caminho do poder dominador teria deturpado a revelação do Deus
Ágape556. Uma vez assumido o caminho do serviço, abrem-se diante de Jesus duas

551
CTI, Teologia da redenção, São Paulo, Loyola, 1997, n. 2, p. 09.
552
QUEIRUGA, A. T., Recuperar a salvação. Por uma interpretação libertadora da experiência
cristã. São Paulo, Paulus, 1999, p. 173.
553
Cf. KESSLER, H., Cristologia. In: SCHNEIDER, T. (Org.), Manual de dogmática, Vol. I,
Petrópolis, Vozes, 2000, p. 372.
554
CARVAJAL, L. G., Nossa fé. Teologia para universitários, São Paulo, Loyola, 1992, p. 55:
“Se nenhum pai deseja que seu filho seja morto, muito menos o Pai do céu! (cf. Lc 11, 13). Outra
coisa é negar-se a evitar a morte, ainda que seja com o coração arrebentado, para a defesa de algo
que se considera um valor superior. No caso do Calvário, esse valor superior seria a seriedade e
autonomia da história, respeitada por Deus mesmo quando a liberdade humana se volta contra ele
mesmo. O que Deus realmente queria era que seu Filho fosse fiel à sua missão até as últimas
conseqüências. Assim deve ser entendida a afirmação de que Deus ‘não poupou’ sequer a seu
próprio Filho por nós (cf. Rm 8, 32)”.
555
Cf. GARCIA RUBIO, A., O encontro com Jesus Cristo vivo. Um ensaio de cristologia para
nossos dias, 8. ed., São Paulo, Paulinas, 2001, p. 94.
556
BOFF, L., A cruz nossa de cada dia. Fonte de vida e de ressurreição, Campinas, Verus Editora,
2003, pp. 60-61: “Que pode Deus? Pode abaixar-se tanto a ponto de se tornar um escravo e último
dos homens. Mais ainda: aceita morrer como malfeitor e bandido, em solidariedade para com
todos os inocentes da história. Estamos de tal maneira habituados à narração de tais fatos que
perdemos o sentido do escândalo que objetivamente possuem. Se as Escrituras não no-los
testemunhassem, certamente duvidaríamos da veracidade de tais eventos cujo sujeito é o próprio
Deus. Em Jesus, Deus se fez sofredor, sedento de justiça; um Deus de bondade que corre atrás da
ovelha tresmalhada, que fica esperando a volta do filho pródigo e que se alegra mais com um
pecador que se converte do que com noventa e nove justos que não precisam de penitência. (...)
Em Jesus, Deus emerge fraco e sem defesa; é, sim, uma potência de serviço, mas sempre
afirmando e potenciando a liberdade das pessoas, jamais a cerceando em função de fins religiosos.
O senso comum, mas também a teologia clássica, não sabe combinar Deus com a impotência e a
morte maldita. Tal coexistência pareceria absurda, pois supõe um Deus impassível e incapaz de
sofrer. Mas Deus é amor. E todo amor é vulnerável. Vive da liberdade e da gratuidade. Há sempre
188

possibilidades: uma, a do povo, com seus dirigentes, aceitar a proposta do reino de


Deus, vivendo a conversão; outra, a do povo, com seus dirigentes, rejeitar Jesus e
sua mensagem557.
Sabemos que, historicamente, foi a segunda possibilidade que, de fato, se
concretizou. Em cima deste acontecimento, os teólogos afirmam que Deus,
“diretamente”, só podia querer que Jesus fosse aceito com a mensagem do reino.
Entretanto, “indiretamente”, a rejeição e a cruz estão incluídas na vontade de Deus
como uma possibilidade real. E como Deus não se impõe pela força que violenta,
a rejeição de Jesus por parte do ser humano é absolutamente possível558.
E como a rejeição a Jesus foi a alternativa que se concretizou, os cristãos
procuraram, após o Mistério Pascal, reinterpretar os textos do Antigo Testamento
que falam do “Servo de Iahweh”, aplicando-os a Jesus. A fé cristã encontrou então
na figura do servo sofredor a compreensão para o escândalo da cruz. Uma vez que
Jesus não tinha sido aceito, só restava a segunda possibilidade: a rejeição e a
cruz559. Conseqüentemente, as expressões neotestamentárias que falam da
“necessidade” dos sofrimentos de Cristo (cf. Mc 9, 31; Lc 24, 26; At 3, 18) devem
ser entendidas dentro das causalidades históricas e do conflito que se instaurou
devido às exigências que a mensagem e a prática de Jesus comportavam560.
A cruz de Jesus não é apenas o madeiro, mas principalmente o símbolo da
concretização do ódio e da violência. Jesus não buscou a cruz, apenas pregou e
viveu o amor. O mundo, sim, se fechou a ele, criou-lhe cruzes em seu caminho e,
por fim, levantou-o no madeiro. A cruz foi, assim, a resposta da rejeição, do ódio
à sua práxis de amor ao próximo. Ele não fugiu, não contemporizou, não deixou
de anunciar e testemunhar o Reino de Deus, mesmo com o risco iminente de ser
morto. Continuou a amar, apesar do ódio. Assumiu a cruz em sinal de fidelidade
para com Deus e para com a humanidade561.

a possibilidade da traição e da defecção. Por isso o apóstolo Paulo – que bem captou a lógica da
encarnação – bem observou que Deus escolheu a loucura para confundir a sabedoria, aquilo que
não é para destruir o que é (cf. 1Cor 1, 27-29)”.
557
Cf. GARCIA RUBIO, A., O encontro com Jesus Cristo vivo. Um ensaio de cristologia para
nossos dias. 8 ed., São Paulo, Paulinas, 2001, p. 94.
558
Cf. Ibidem, pp. 94-95.
559
Cf. Ibidem, p. 95.
560
Cf. BOFF, L., A cruz nossa de cada dia. Fonte de vida e de ressurreição, Campinas, Verus
Editora, 2003, p. 39.
561
Cf. Idem., Paixão de Cristo, paixão do mundo. Os fatos, as interpretações e o significado
ontem e hoje, 5. ed., Petrópolis, Vozes, 2003, p. 158.
189

“Do excesso de ódio ao excesso de amor”. Este é o paradoxo simbólico da


cruz: o que era obra do ódio e do pecado, Jesus transformou em fonte de amor.
Pregado à cruz, vítima do ódio, Jesus perdoa e, ao fazê-lo, inverte o movimento
do ódio que o mata. O ódio é homicida, porém, o perdão é sempre perseverança
da vida. Jesus não responde à provocação do ódio usando uma outra forma de
ódio; ao contrário, em Jesus crucificado o amor triunfou, verdadeiramente e para
sempre, sobre o ódio: “(...) tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os
até o fim” (Jo 13, 1). Este amor que vai até o extremo, isto é, até a morte violenta,
revela que na luta que se travou na cruz entre o ódio e o perdão, este saiu
vitorioso. A vida venceu definitivamente a morte, e a cruz é o símbolo, por
excelência, desta vitória562.
7.2.2.
Sofrimento: acolhido, mas não procurado

Jesus não buscou o sofrimento, ele foi-lhe imposto. Sua vontade não foi
sofrer, mas amar. A salvação foi realizada pelo amor, apesar de ter sido
concretizada ‘através do sofrimento’, e, nesse sentido, podemos dizer que “com os
seus ferimentos veio a cura para nós” (Is 53, 5b). O que faltava ao mundo não era
dor, mas amor. É isso que Cristo nos trouxe563. Por isso, não é necessário para o
seguimento de Cristo causar dor e sofrimento a si mesmo; não é necessário buscar
um sofrimento fora do comum para tornar-se discípulo de Cristo, pois basta
aceitar a cruz de cada dia (cf. Lc 9, 23); ou seja, ser fiel a Cristo a qualquer custo,
aceitando todo risco, esquecendo-se de si mesmo por ele, colocando o evangelho
no centro dos próprios interesses efetivos e dos próprios projetos pessoais564.
Num mundo marcado pelo pecado, presente não só na cultura, mas também
nas instituições da sociedade, que pressionam constantemente o indivíduo a aderir
a elas, não pode o compromisso cristão pelo próximo deixar de ser marcado pelo
conflito. De fato, a atitude cristã é “contracultural”, pois questiona seriamente a
desordem estabelecida, subverte padrões aceitos, estimula novas iniciativas, sendo
interpretada, então, como uma ameaça. Daí a reação dos detentores do poder, que
recorrem a calúnias (cf. Lc 23, 2), falsas informações, interpretações deformadas,

562
CF. SESBÖUE, B., Creer. Invitación a la fe católica para las mujeres y los hombres del siglo
XXI, Madrid, San Pablo, 1999, pp. 228-229.
563
Cf. CARVAJAL, L. G., Nossa fé. Teologia para universitários, São Paulo, Loyola, 1992, p. 56.
564
Cf. VINCENZO, B., Cruz. In: DIPS, p. 252.
190

procurando, desse modo, confundir e dividir os cristãos. Finalmente, apelam para


a perseguição física (prisão, interrogatórios, torturas, morte), sempre defendida e
legitimada à luz de alguma ideologia565.
7.2.3.
Ambivalência do sofrimento

Podemos, sem dúvida, dar um sentido positivo ao que vivemos de árduo e


doloroso. No entanto, o sofrimento também pode causar danos e estragos tão
destrutivos, que a pessoa não consegue dele extrair um sentido positivo. Há dores
físicas e morais tão intensas que podem destruir o psiquismo humano, como, por
exemplo, a tortura566. Enquanto algumas pessoas saem mais amadurecidas e
integradas de um período de sofrimento567, muitas outras saem definitivamente
esfaceladas. A dor em si é sempre ambivalente: pode ajudar a pessoa a crescer
como também pode destruí-la, fechando-a na amargura e solidão.
7.2.4.
Sofrimento salvífico

Não nos cabe, contudo, a opção de evitar o sofrimento. A única alternativa


que nos resta é optar entre a cruz absurda da ausência de sentido e a cruz de
Cristo; isto é, entre a dor a que nos rendemos, por ser uma contingência natural da
vida ou por nos ser infligida, e a dor que abraçamos como participação na Paixão
de Cristo, a partir de uma perspectiva de fé. Por si só, o sofrimento não tem
sentido; é a fé que lhe atribui um valor positivo.

565
Cf. FRANÇA MIRANDA, M., A salvação de Jesus Cristo. A doutrina da graça, São Paulo,
Loyola, 2004, p. 160.
566
Cf. LE BRETON, D., Antropología del dolor, Barcelona, Editorial Seix Barral, 1999, p. 243: A
tortura é a prática do horror, pois inflige uma dor que tem apenas como limite a imaginação do
torturador. Seu objetivo é destruir o sentimento de identidade da vítima para levá-la a revelar
segredos importantes, provocar a admissão de uma culpa, de um compromisso político ou moral,
ou simplesmente dobrá-la à vontade dos verdugos. Por vezes, a tortura traduz uma pura vontade de
aniquilação do outro, martirizando-o, reduzindo-o a um objeto. A imposição da dor e da
humilhação segue uma lógica de destruição da vítima. A pessoa torturada vive seu corpo como
forma permanente de dor. O sofrimento mental agudo que a violência física produz, prolonga seus
efeitos na existência durante longo tempo, e, geralmente, impede a pessoa de recuperar seu lugar
na sociedade.
567
Cito, como exemplo bastante recente, o testemunho dado pelo cardeal François-Xavier Nguyen
Van Thuan (1928-2002). O cardeal Van Thuan foi submetido ao cárcere por treze anos, no Vietnã,
sua terra natal (1975-1988). Neste período, passou nove anos na solitária, no isolamento completo,
no vazio absoluto, sem trabalho, caminhando dentro da cela de manhã à noite para não ser
destruído pela artrose, no limite da loucura. Saiu dessa terrível experiência transformado para
melhor: muito mais maduro como pessoa humana e com uma fé mais consistente. Para aqueles que
desejarem conhecer mais profundamente a experiência do cardeal Van Thuan, sugiro a seguinte
191

É interessante, neste ponto de nossa reflexão, enriquecê-la com a


contribuição de um pequeno texto do psiquiatra austríaco Viktor Frankl, a respeito
da interpretação clínica do sofrimento. É um texto bastante elucidativo, que
oferece elementos para aplicarmos à experiência cristã de fé. Vejamos o texto:

“Para pode afrontar o sofrimento, devo transcendê-lo. Com outras palavras: eu só


posso afrontar o sofrimento, só posso sofrer com sentido, se sofro por algo ou
alguém. De modo que o sofrimento, para ter sentido, não pode ser um fim em si
mesmo. A disposição ao sofrimento, a disposição ao sacrifício, pode degenerar em
masoquismo. O sofrimento só tem sentido quando se padece por ‘causa de’. Ao
aceitá-lo, não só o afrontamos, mas que através do sofrimento buscamos algo que
não se identifica com ele: transcendemos o sofrimento. O sofrimento dotado de
sentido aponta sempre mais além de si mesmo. O sofrimento dotado de sentido
remete a uma ‘causa’ pela qual padecemos. Em suma: o sofrimento com plenitude
de sentido é o sacrifício”568.

Aproveitando as palavras de Frankl, a “causa”, digamos assim, por


excelência, que dá sentido ao sofrimento cristão é a fé, que nos assegura a
possibilidade de participação na força salvífica dos sofrimentos de Cristo. Sobre
esse tema, o Papa João Paulo II abordou na carta apostólica, “Salvifici Doloris”, a
fundamentação teológica da participação humana nos sofrimentos de Cristo569.
Nela, basicamente, afirma que todo ser humano tem uma participação no mistério
da Redenção e é também chamado a participar no sofrimento de Cristo, por meio
do qual foi redimido todo sofrimento humano. Realizando a Redenção através do
sofrimento, Cristo elevou o sofrimento humano ao nível de Redenção. Por isso,
todas as pessoas, com o seu sofrimento, podem tornar-se também participantes do
sofrimento de Cristo. Isso é possível porque Cristo abriu o seu sofrimento
redentor ao ser humano, uma vez que ele próprio se tornou, num certo sentido,
participante de todos os sofrimentos humanos:

“Cristo operou a Redenção completa e cabalmente; ao mesmo tempo, porém, não a


fechou: no sofrimento redentor, mediante o qual operou a Redenção do mundo,
Cristo abriu-se desde o princípio, e continua a abrir-se constantemente, a todo
sofrimento humano”570.

obra: VAN THUAN, F. X. N., Testemunhas da esperança. Quando o amor irrompe em situações
de heroísmo no dia-a-dia, São Paulo, Cidade Nova, 2002, 239 p.
568
FRANKL. V. E., El hombre doliente. Fundamentos antropológicos de la psicoterapia,
Barcelona, Herder, 1987, p. 258.
569
Cf. SD, nn. 19-27.
570
SD n. 24.
192

Ao descobrir, pela fé, o sofrimento redentor de Cristo, o ser humano


descobre nele, ao mesmo tempo, os próprios sofrimentos, enriquecidos de um
novo conteúdo e com um novo significado. Ainda segundo João Paulo II, as
testemunhas da cruz e da ressurreição de Cristo transmitiram à Igreja e à
humanidade um “evangelho específico do sofrimento”. Este não significa apenas a
presença do sofrimento nos relatos evangélicos, mas notadamente a revelação da
“força salvífica” e do “significado salvífico do sofrimento” na missão messiânica
de Cristo e, em seguida, na missão da Igreja:

“O sofrimento foi inserido de um modo singular naquela vitória sobre o mundo que
se manifestou na ressurreição. Cristo conserva no seu corpo ressuscitado os sinais
das feridas causadas pelo suplício da cruz: nas suas mãos, nos seus pés e no seu
lado. Pela ressurreição, ele manifesta a força vitoriosa do sofrimento; e quer incutir
a convicção desta força no coração daqueles que escolheu como seus apóstolos e
daqueles que ele continua a escolher e enviar”571.

Em todos aqueles que sofrem com Cristo, se realiza o “evangelho do


sofrimento”; e, ao mesmo tempo, cada um deles continua, de certo modo, a
escrevê-lo em sua história pessoal572.
É necessário, no entanto, explicar que o Papa João Paulo II, ao falar de
“sofrimento salvífico”, não entra em contradição com tudo o que afirmamos até
agora neste trabalho em relação ao sofrimento: algo que em si é absurdo, sem
nenhum valor. Na carta Salvifici Doloris, o Papa João Paulo II afirma
textualmente: “O próprio Redentor escreveu este evangelho (do sofrimento); em
primeiro lugar, com o seu sofrimento assumido por amor (...)573”. Sofrimento
assumido por amor. Esta frase é fundamental para não deturpar o conjunto do
pensamento de João Paulo II. Ele não fez a apologia do “dolorismo”. Para ele,
Cristo permeia o sofrimento com amor, tornando-o, assim, salvífico. Ainda, na
conclusão da carta, reafirma que somente no amor de Cristo crucificado os
homens encontrarão o sentido salvífico dos próprios sofrimentos574.
Portanto, o Papa João Paulo II corrobora a teologia do sofrimento salvífico,
mas salvaguardando a integridade do amor como força motriz da redenção. O
sofrimento é salvífico sim, mas somente quando permeado pelo amor redentor de
Cristo.

571
Ibidem, n. 25.
572
Cf. Ibidem, n. 26.
573
Ibidem, n. 25.
193

7.3.
Resgatar o valor positivo da disciplina

Outro desafio contemporâneo a uma nova teologia da mortificação diz


respeito ao resgate do valor positivo da disciplina pessoal para educar a vontade.
Na nossa sociedade contemporânea, falar de uma educação da vontade pode soar
como uma volta ao rudes métodos ascéticos do passado, quando os sentimentos e
as emoções ficavam abafados. Há atualmente uma grande rejeição a tudo aquilo
que é contrário à espontaneidade. Contudo, a disciplina é fundamental para a
formação da pessoa humana, pois dela nasce o controle da vontade, essencial para
o desenvolvimento humano em todos os seus aspectos. A disciplina pessoal é
condição indispensável ao crescimento humano.
7.3.1.
Autodomínio

É tarefa premente desvincular o termo disciplina da idéia de repressão. A


revalorização da disciplina parte de uma visão de ser humano, cujo objetivo é
gradualmente integrar todas as tendências que constituem a pessoa humana. Só
que este processo de integração dos sentimentos e das emoções não é
simplesmente espontâneo, pois existem em cada ser humano impulsos
involuntários, determinismos biológicos, impulsos destrutivos, tendências para
sínteses mais fáceis, tendências para o conformismo, para fugir das
responsabilidades, etc. Como conseqüência, é indispensável uma vontade
disciplinada para levar adiante o processo de integração dos sentimentos e das
emoções575.
“Deve-se aceitar o peso dos determinismos, mas isso não significa que deva
ser desvalorizada a capacidade de decisão e da opção voluntária. Elas são
indispensáveis para que a vida seja autenticamente humana”576. O ser humano não
é totalmente determinado pelas leis da natureza e pelos impulsos do inconsciente,
pelos condicionamentos hereditários, culturais, econômicos e sóciopolíticos; por

574
Cf. Ibidem, n. 31.
575
Cf. GARCIA RUBIO, A., Evangelização e maturidade afetiva, 3. ed., São Paulo, Paulinas,
2006, p. 122.
576
Ibidem.
194

isso tem a possibilidade de decidir seu próprio destino. A realidade dos


determinismos não é empecilho à tomada de uma decisão livre577.
Sem disciplina, pois, não é possível a nenhuma pessoa realizar este trabalho
de autoconstrução da própria personalidade. Na realidade, muitos esforços se
perdem pela carência de disciplina pessoal. Para enfrentar alguns
condicionamentos será necessário lutar a vida toda, para evitar que eles sempre
influenciem nossas decisões e atitudes. Por isso só uma vontade determinada é
capaz de ordenar e canalizar as pulsões, impulsos e desejos, que buscam sua
satisfação parcial, a uma unidade, a uma integração. E só uma pessoa integrada é
capaz, não apenas de idealizar, mas de concretizar efetivamente um projeto de
vida578.
7.3.2.
Autoconhecimento

Ainda faz parte da autodisciplina o processo de autoconhecimento. O


conhecimento de si próprio é necessário para evitar a armadilha das auto-ilusões.
Devido a ambigüidade da existência humana, é necessário um trabalho de
discernimento das motivações presentes em nosso interior e que nos levam a agir.
Este trabalho leva-nos a substituir os afetos desordenados por outros que estejam
em conformidade com nosso projeto pessoal de vida579.
Além de detectar a negatividade que existe em nosso interior, de
desmascarar a mentira e o auto-engano, o autoconhecimento está igualmente a
serviço do descobrimento e da valorização da riqueza que também existe em cada
um de nós, para perceber e assumir as potencialidades e as qualidades latentes ou
pouco desenvolvidas580.
Destarte, sem autodisciplina é impossível percorrer o caminho para a
maturidade. Sem luta consigo mesmo não há crescimento pessoal. A ausência de
disciplina cria pessoas dotadas de uma vontade extremamente frágil, incapazes de
perseverar na consecução de um ideal, dominadas por impulsos e paixões, e
facilmente manipuladas e iludidas pela mídia que está a serviço do consumismo.

577
Cf. Ibidem.
578
Cf. RUIZ SALVADOR, F., Compêndio de teologia espiritual, São Paulo, Loyola, 1996, p. 390.
579
Cf. GARCIA RUBIO, A., Evangelização e maturidade afetiva, 3. ed., São Paulo, Paulinas,
2006, pp. 136-137.
580
Cf. Ibidem.
195

7.4.
Conclusão

Já dispomos dos elementos necessários à elaboração de uma nova reflexão


acerca da mortificação, pois para isto já relacionamos os desafios pastorais
contemporâneos e estabelecemos uma nova fundamentação teológica. Agora, na
terceira e última etapa deste processo, que será o capítulo conclusivo desta
pesquisa, todos esses elementos serão inseridos no contexto da dinâmica batismal,
uma vez que o sacramento do batismo é a origem da mortificação cristã. Não tem
sentido falar de mortificação fora do contexto batismal. E como nossa proposta é
renovar e colocar no justo binário o discurso teológico acerca da mortificação,
nada mais lógico que iniciá-lo e desenvolvê-lo a partir do batismo, que é sua
fonte. A mortificação se configura como a espiritualidade básica de todo cristão,
pois é a própria espiritualidade batismal. Portanto, no oitavo e último capítulo
desta tese apresentaremos a força salvífica da mortificação.
196

8
A força salvífica da mortificação

O batismo é a fonte da mortificação cristã. No esforço cotidiano para


conservar e desenvolver a graça santificante fundamenta-se a legitimidade
antropológica da mortificação. É dinamismo de fidelidade crescente à graça. Pelo
batismo, o cristão faz de sua existência comunhão de vida com Cristo crucificado
e ressuscitado. É capacitado pela graça a transformar toda situação de morte em
situação de ressurreição. Capaz de passar da dilaceração do pecado para a
comunhão com Deus, com o próximo, com a natureza e consigo mesmo. Deste
modo, a vida cristã pressupõe, a cada instante, uma “Páscoa parcial”, uma
passagem de nosso ser de uma situação de morte parcial para uma situação de
vida crescente; até a última passagem, a “Páscoa derradeira”, quando acontecerá a
passagem definitiva: da morte parcial para a ressurreição plena. A mortificação é,
portanto, o processo ativo de viver a existência batismal.
8.1.
Batismo: fonte da mortificação

O termo “mortificação” tem sua origem em Cl 3, 5. Logo no início desta


perícope (v. 5), o autor conjuga o verbo “mortificar” no modo imperativo aoristo,
em grego “necrósate” (necrsate), que significa literalmente “mortificai-vos”, ou
seja, “dai morte”, “fazei morrer”581. E este verbo está inserido no contexto integral
da perícope, que retoma o argumento principal da teologia paulina de Rm 6, 1-11,
cujo tema é a morte do “homem velho”582. Deste modo, o verbo mortificar,
interpretado à luz desta catequese batismal, assume a significação de morte, não
ao corpo, mas, a uma existência pecaminosa. Portanto, literalmente, o termo
mortificação significa morte ao pecado, ao “homem velho”. É um termo derivado
da própria dinâmica batismal.

581
Cf. POSADA, M. E., Mortificação. In: DM, p. 766-767.
582
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 166.
197

O batismo, como bem sabemos, além da remissão dos pecados583, confere


ao cristão a “graça santificante”, tornando-o um “homem novo” (cf. Ef 2, 15; 4,
24; Cl 3, 10), participante da natureza divina (cf. 2Pd 1, 4), templo do Espírito
Santo (cf. 1Cor 6, 19), unido a Cristo e a seu Corpo que é a Igreja (cf. 1Cor 6, 15;
12, 27), e capacitado a caminhar numa existência nova (cf. Rm 6, 4)584, libertada
do poder do pecado. Porém, existe um detalhe de suma importância na dinâmica
batismal: a graça santificante cria o “homem novo”, mas seu desenvolvimento não
ocorre automaticamente, pois é imperativa a colaboração humana. Desse modo,
como bem alerta são Paulo, existe o risco real da graça ser desperdiçada (cf. 2Cor
6, 1). O “quietismo”, embora seja uma heresia há muito tempo condenada pela
Igreja, infelizmente ainda continua presente na vida de muitos cristãos que
recebem o batismo, mas acabam retornando à antiga vida do “homem velho”,
prisioneiro do pecado585. Falta para esses cristãos a colaboração com a graça.
Falta-lhes a prática da mortificação.
Analisaremos mais detalhadamente no próximo ítem o dinamismo salvífico
da mortificação, embasados na catequese batismal presente em Rm 6, 1-11 e Cl 3,
5-15.
8.1.1.
Dinamismo salvífico da mortificação

São Paulo, em Rm 6, 1-11, afirma que, pelo batismo, o cristão fica unido à
morte de Cristo e participa, desse modo, da vida do “homem novo”. Estar unido à
morte de Jesus Cristo tem como objetivo segui-lo na vida nova inaugurada pela
ressurreição. Esta comunhão com a morte de Cristo, porém, leva consigo um
determinado comportamento ético que se resume na luta contra o pecado e na
abertura à vontade de Deus. No batismo, o cristão já está morto para o pecado e
renascido para Deus, em Cristo Jesus. E porque já está morto, ele deve continuar
morrendo cada dia ao pecado em cada situação de sua vida cotidiana586.
Como alguém que já está morto pode continuar morrendo? Não há aqui
contradição alguma. Acontece que a ressurreição é ainda futura para o cristão. Na
situação atual, este dá os primeiros passos na caminhada rumo à vida nova, em

583
CIC n. 1263.
584
CIC n. 1265.
585
Cf. KERTELGE, K., A epístola aos Romanos, Petrópolis, Vozes, 1982, p. 120.
586
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 166.
198

direção à plenitude que é própria da ressurreição. Parafraseando Jesus quando


trata das parábolas do reino, o cristão já possui a semente da vida nova enquanto
espera ativamente o tempo da colheita, isto é, da plenitude (cf. Mt 13). Por isso já
está morto e deve ainda morrer. O comportamento ético deve ser manifestação do
que aconteceu e foi celebrado no batismo. Dito de outro modo, a “santidade
ontológica” deve se transformar em “santidade moral”587.
Sem a morte do “homem velho” não é possível viver a nova existência,
própria do “homem novo”, pois a morte ao pecado é o único caminho para o
objetivo que realmente interessa: a vida nova da ressurreição. O “homem velho” é
o “Adão pecador”. É preciso morrer a si mesmo para participar da existência do
“homem novo”, do “Novo Adão”, Jesus Cristo. A necessidade desta morte é o que
são Paulo focaliza prioritariamente em Rm 6, 1-11, embora trate também da vida
nova588.
Igualmente em conexão com o batismo e numa ótica em que é ressaltada a
necessidade do adequado comportamento moral, o texto de Cl 3, 5-15 continua a
desenvolver o tema da passagem do “homem velho” para o “homem novo”,
iniciado em Rm 6, 1-11. Retorna a recomendação paulina: o “homem novo”
recebido no batismo deve ser atualizado e concretizado nas atitudes do dia-a-dia.
O cristão, a partir do batismo, participa já da ressurreição de Jesus Cristo, pois
esta não é uma realidade meramente futura na sua eficácia salvífica. A vida nova
própria do ressuscitado já está semeada e agindo no presente; continua, porém, a
existir o “homem velho”, que não é vencido definitivamente durante a vida
terrestre. É, pois, necessário prestar atenção para controlar, disciplinar e diminuir
a negatividade do “homem velho”. É igualmente necessário saber direcionar a
energia para o crescimento do “homem novo”. Conforme cresce o “homem novo”,
diminui o velho; e quanto mais permitimos que o “homem velho” tome conta da
nossa vida, tanto mais enfraquece a vida nova em nós589.
A partir do que foi exposto, fica muito patente que o caminho batismal da
santidade passa necessariamente pela mortificação, cuja finalidade é justamente
levar o cristão a passar da consciência de ser batizado à vivência da força do

587
Cf. Ibidem.
588
Cf. Ibidem.
589
Cf. Ibidem, pp. 166-167.
199

batismo590, à vivência daquilo que já se é na graça de Deus; levar à realização


histórica aquilo que se recebeu como dom: a vida nova em Cristo591.
8.2.
A mortificação hoje

Como nossa reflexão é teológico-pastoral, apresentamos, a seguir, algumas


sugestões práticas e atualizadas de mortificação. Para alcançar esse objetivo,
abordaremos alguns dos principais desafios da cultura contemporânea à luz do
exercício das virtudes teologais, pois essas, quando realmente praticadas, se
constituem no testemunho cristão, por excelência, da visível adesão a Cristo.
Aliás, ainda dentro desse contexto de testemunho, é importante lembrar que o
Concílio Vaticano II enfatiza que todos os cristãos, onde quer que vivam,
“devem” manifestar, com o exemplo da própria vida, o homem novo do qual
foram “revestidos” no batismo592. Uma vida cristã, portanto, que não corresponda
ao sinal sacramental, é uma mentira593!
8.2.1.
Mortificação da fé

A fé é dom de Deus, como vimos ao abordar a teologia do batismo, mas é


também esforço. Quem pensa ter fé sem lutar corre o risco de não acreditar em
nada. Assim, a dúvida necessariamente faz parte da fé. Ela nos incita a sempre
mais libertar-nos das próprias projeções e a ir em busca do Deus verdadeiro594.
A experiência de fé tem seu arquétipo naquela de Jacó no vau de Jaboc (cf.
Gn 32, 23-33). Na escuridão de sua noite, Jacó se encontra só. Então lhe vem ao
encontro um homem sombrio e luta com ele. É uma luta de vida ou morte, uma

590
CASTELLANO CERVERA. J., O caminho da ascese cristã. In: OMNIS TERRA, n. 89, ano X,
Roma, Pontifícia União Missionária, abril de 2004, p. 116: “A ascese cristã não é senão o processo
ativo de viver a existência batismal e a capacidade de secundar as moções do Espírito que realiza
em nós, até ao fundo, o processo iniciado no batismo. Os Padres na Igreja viram a ascese cristã
nesta perspectiva batismal de cumprimento e dinamismo da primeira graça. Valha para todos este
texto de Leão Magno: ‘Aqueles que a fonte recebeu pela sua vetustez, a água do batismo insere-os
no mundo renovados. E todavia é necessário realizar nas obras aquilo que se celebrou no
sacramento. Aqueles que nasceram do Espírito Santo não podem eliminar o que neles subsiste do
corpo deste mundo, sem carregar a cruz nos ombros’. Poder-se-ia afirmar, resumindo a doutrina
dos Padres da Igreja com as seguintes expressões: ‘Em última análise, toda a ascese cristã consiste
nisto: realizar progressivamente a graça batismal no seu duplo aspecto de purificação e de
iluminação ou, se quiser, de despojamento do homem velho e do revestimento do novo’”.
591
Cf. Idem, Viver o batismo como fonte de vocação e de missão. In: ABBA – Revista de cultura,
Vol. V, n. 03, Vargem Grande Paulista, Cidade Nova, 2002, p. 68.
592
Cf. AG n. 11; LG n. 10.
593
GOEDERT, V., Teologia do batismo, 2. ed., São Paulo, Paulinas, 1988, p. 67.
200

longa luta, que se prolonga até o amanhecer. O misterioso homem fere Jacó na
articulação da coxa, mas Jacó resiste. Eles se aproximam, familiarizam-se,
dirigem a palavra um ao outro. Jacó pede ao misterioso homem uma benção, pois
sente que tem necessidade da força deste homem, para ir ao encontro de seu irmão
Esaú. Justamente em sua mais extrema aflição, Jacó tem uma experiência de
Deus, uma experiência verdadeira de fé. Neste homem sombrio que o ataca e o
fere, Deus o abençoa e lhe dá um nome novo. Ele deixa de chamar-se Jacó, pois já
não é mais alguém que engana. Passa a chamar-se “Israel”, quer dizer, “o que luta
com Deus”. E Jacó sai desta luta noturna transformado. A experiência de fé faz
dele uma benção para muitos, o patriarca de muitos povos. Ele agora coxeia, anda
mais devagar, caminha com mais cuidado. Renuncia a querer saber tudo de Deus.
A fé é, pois, sempre luta contra o próprio Deus. Esta é a prova da fé: lutar com
Deus, sabendo que ele é o “Outro”, o “Mistério”, que escapa às nossas certezas e
não se deixa domesticar pelas nossas pretensões595.
A própria luta cotidiana do cristão para manter e fortalecer a fé já é, por si
só, mortificação. Sem luta, isto é, sem mortificação, não há desenvolvimento da
fé. Por isso mesmo, uma prática atualizada da mortificação da fé inclui como
obstáculos ao seu desenvolvimento os desafios da sociedade consumista. Dentre
estes, podemos citar alguns: a aceitação e integração dos próprios limites; a
aceitação da finitude e contingência da história; a superação das falsas imagens de
Deus e a perseverança na prática da oração.
8.2.1.1.
Aceitar e integrar os próprios limites

A relação sadia da pessoa consigo mesma é formada basicamente pela


aceitação e valorização de si. Aceitar é render-se à verdade e acolhê-la.
Logicamente, aceitação não significa resignação passiva, muito pelo contrário, é
justamente a aceitação da realidade que nos conscientiza da necessidade de
modificá-la naquilo que é possível596. Isso supõe fé, coragem para encarar os
próprios limites sem disfarces, sem recorrer a mecanismos de defesa597.

594
Cf. GRÜN, A., Se quiser experimentar Deus, Petrópolis, Vozes, 2001, p. 60.
595
Cf. FORTE, B., A essência do cristianismo, Petrópolis, Vozes, 2003, p. 124.
596
Cf. MARTÍNEZ LOZANO, E., O gozo de ser pessoa. Plenitude humana, transparência de
Deus, São Paulo, Loyola, 2006, p. 28.
597
GRÜN, A., Para que tua vida respire liberdade. Rituais de purificação para o corpo e a alma,
São Paulo, Paulus, 2005, pp. 76-77: “Nossa imagem de nós mesmos é freqüentemente obscurecida
201

A rejeição de si acarreta conseqüências nefastas e grandes sofrimentos. Com


efeito, não se aceitar equivale a estar em permanente guerra consigo mesmo. É
impossível que a pessoa que não se aceita, que não gosta de si mesma, possa ser
feliz e se relacionar bem com Deus, com os outros e com a natureza. A sadia
relação da pessoa consigo mesma é fundamental, pois influencia
598
determinantemente todas as demais formas de relações humanas . Assim como é
a base para a construção de uma personalidade equilibrada.
É absolutamente normal que, como todo ser humano, tenhamos limites. O
erro é querer recusá-los, como Adão e Eva o fizeram(cf. Gn 3, 1-24). Esta
tentação fundamental de recusa dos próprios limites, que se encontra no mais
profundo do coração humano, foi superada por Jesus, quando passou pelas
tentações no deserto (cf. Lc 4, 1-13). É significativo que as tentações de Jesus
digam respeito, precisamente, à aceitação dos limites do ser humano, à recusa da
onipotência. Por medo de ver-nos tais como somos, escondemo-nos de nós
mesmos, o que nos leva ao receio de sermos vistos: “Fiquei com medo, porque
estava nu, e escondi-me”, responde Adão a Deus, que lhe interrogara: “Onde
estás”? (Gn 3, 9-10). A pergunta de Deus refere-se não a um lugar geográfico,
mas a um lugar dentro do ser: Onde estás em ti mesmo?599 A aceitação dos
próprios limites implica uma conversão profunda, uma verdadeira mortificação da
fé.
É difícil confrontar-se com as próprias imperfeições, erros e fracassos. É
difícil ser simplesmente o que se é. Queremos ser perfeitos, isto é, sem falhas e
sem limites, o que, via de regra, nos leva ao “perfeccionismo”. E o perfeccionista

por ilusões que alimentamos a respeito de nós mesmos. Há a ilusão de que temos o domínio da
nossa vida, que podemos tudo o que queremos, que nossa vida está bem. Ou a ilusão de que nós só
queremos o bem, que somos pessoas amigas, autocontroladas, disciplinadas, de elevado nível
ético, que somos psiquicamente sadios e espiritualmente honestos e esforçados. A purificação na
relação comigo mesmo consiste, em primeiro lugar, em que eu abandone as ilusões que fiz de mim
mesmo. E isso não é fácil. Muitas vezes é doloroso. É exatamente isso o que são Bento quer dizer
com a ‘humilitas’, a coragem de descer ao próprio corpo, à própria humanidade terrena, para
aceitá-la. Mas, nesse caminho de purificação encontramos numerosas armadilhas. Há, por
exemplo, a tendência de não aceitarmos o nosso nível médio. Sempre queremos ser um caso
especial, diferente. Ou somos especiais quanto à espiritualidade. Ou, se isso não tiver sucesso,
consideramo-nos os piores pecadores. E com isso nos recusamos a aceitar nossa condição
mediana. Não somos nem os maiores santos nem os piores pecadores, mas algo intermediário. E
isso incomoda a imagem que temos de nós mesmos”.
598
Cf. MARTÍNEZ LOZANO, E., O gozo de ser pessoa. Plenitude humana, transparência de
Deus, São Paulo, Loyola, 2006, p. 29.
599
Cf. PACOT, S., A evangelização das profundezas. Nas dimensões psicológica e espiritual,
Aparecida, Santuário, 2006, pp. 44-45.
202

procura viver apenas com os melhores fragmentos de si mesmo, aqueles que estão
conformes ao ideal buscado, com o que os outros pensam e esperam dele. O
restante, as fraquezas, as tendências obscuras, ficam recalcadas no porão da
consciência. Elas são recusadas e negadas. E ainda pior, o que é recusado torna-se
uma ferida não cuidada que, aos poucos, acaba infeccionando, supurando e
contaminando toda a vida, pois não é devidamente reconhecida e tratada600.
Outra conseqüência da recusa dos próprios limites é o chamado
“comportamento de onipotência”, isto é, quando não aceitamos que algo escape ao
nosso controle, quando recusamos ser confrontados com nossos limites; quando
não aceitamos nem fracassos, nem erros, nem hesitações, nem retrocessos, nem
quedas, nem recaídas. Quando, ainda, pensamos ser donos da verdade e
recusamos qualquer revisão acerca de um assunto. A onipotência pode insinuar-
se, por exemplo, na nossa maneira de querer ajudar o outro, quando exigimos que
ele mude, segundo nossos pontos de vista. Ou então, quando tentamos manipular
Deus, fazê-lo servir aos nossos interesses. Enfim, o comportamento de
onipotência leva-nos a não aceitar a nossa condição de seres limitados e frágeis601.
Até mesmo a prática das virtudes pode estar impregnada com segundas
intenções. Nosso amor pode estar penetrado de pretensões de posse, de impulsos
agressivos, de ciúmes, de desejos infantis. A prática da justiça pode misturar-se
com farisaísmo ou com um sentido muito agressivo de direito, que pretende fazer
valer a justiça à força. Dessa maneira, a virtude pode tornar-se vício e em vez de
nos capacitar para a vida, acaba prejudicando-nos. A prudência pode virar astúcia
ou modo tático de agir, isto é, de não querer se expor. A coragem pode degenerar
em temeridade e a própria moderação pode ser falsificada em agir medíocre, uma
busca de comodidade apenas. Enfim, todas as nossas virtudes precisam ser
analisadas criticamente, para vermos em que estão turvadas e necessitadas de um
novo direcionamento602.
Portanto, o processo de autoconhecimento e de integração dos próprios
limites é uma necessidade básica de todo ser humano. E justamente nessa tarefa

600
Cf. NETTO DE OLIVEIRA, J. A., Perfeição ou santidade e outros textos espirituais, São
Paulo, Loyola, 2000, p. 15.
601
Cf. PACOT, S., A evangelização das profundezas. Nas dimensões psicológica e espiritual,
Aparecida, Santuário, 2006, p. 50.
602
Cf. GRÜN, A., Para que tua vida respire liberdade. Rituais de purificação para o corpo e a
alma, São Paulo, Paulus, 2005, p. 81.
203

de tornar-se uma pessoa madura, integrada, situa-se a mortificação da fé, pois,


sem esforço, sem luta, é muito difícil perseverar no doloroso processo de
autoconhecimento. Processo que, antes mesmo do esforço humano, solicita
sempre a ação da graça divina, ou seja, exige um ato de fé. Somente sob a luz da
fé é possível ao cristão reconhecer nas próprias fraquezas pessoais uma
oportunidade para abrir-se a Deus; uma oportunidade para crescer, amadurecer.
Numa sociedade que vive de aparência, falsidade e autopromoção, somente à luz
da fé é possível aceitar a dura verdade sobre si mesmo como o caminho que
seguramente conduz à felicidade verdadeira.
8.2.1.2.
Superar as falsas imagens de Deus

Muitas vezes construímos a imagem de Deus da qual necessitamos, seja


para preencher uma carência afetiva, seja para assegurar-nos proteção. Seria
conveniente se Deus eliminasse todo tipo de sofrimento em nossas vidas, se nos
tornasse invulneráveis, se nos poupasse de correr riscos. Igualmente, seria de
nosso gosto se Deus nos curasse de qualquer doença ou nos livrasse de qualquer
embaraço, imediatamente. Resumindo: seria tudo muito mais fácil se Deus
estivesse ao nosso dispor603. O fato é que Deus não é assim. Daí a necessidade da
mortificação da fé para purificar as falsas imagens que temos dele.
No evangelho de Mateus, Jesus faz a seguinte pergunta aos seus discípulos:
“Quem é que as pessoas dizem ser o Filho do Homem?” (Mt 16, 13). Eles
responderam que algumas pessoas do povo consideravam Jesus como sendo João
Batista; outros, Elias; e outros, ainda, como sendo Jeremias ou algum dos profetas
(cf. Mt 16, 14). Vamos, então, analisar criticamente a imagem de Deus revelada
por cada um desses três profetas. João é um homem de penitências rigorosas.
Renuncia à comida abundante, vai para o deserto e alimenta-se de mel e
gafanhotos. A capacidade de abnegação tem seu valor no âmbito cristão, faz parte
de nossa fé podermos renunciar a muitas coisas, pois, do contrário, haveríamos de
identificar Deus com nosso bem-estar e o consumo passaria a ser nosso Deus. No
entanto, quando esta visão é unilateral, a imagem de Deus fica adulterada. Jesus
não viveu somente para as renúncias, pelo contrário, as pessoas chamavam-no,
inclusive, de “glutão e bebedor de vinho”. Quem acha que a vida deve ser uma

603
Cf. PACOT, S., A evangelização das profundezas, Aparecida, Santuário, 2006, p. 36.
204

constante renúncia não está entendendo Deus corretamente. É evidente que sem
renúncias não podemos desenvolver uma personalidade forte, capaz de enfrentar e
superar as dificuldades do dia-a-dia. Mas o objetivo da renúncia não é a negação
em si, mas a afirmação da vida. Devemos, portanto, renunciar sempre em vista da
comunhão com Deus e não por considerar os bens criados como coisas
negativas604.
Outros tomam Jesus por Elias, o profeta que enfrenta com violência os
inimigos de Deus, que elimina todos os sacerdotes de “Baal”. Elias representa
uma imagem de Deus marcada, por um lado, pela pureza e transparência e, por
outro, pela violência e pela ira. Elias é o combatente da fé, mas seu agir é marcado
pela rigidez que lhe perturba a visão, a ponto de não perceber o que está fazendo
aos sacerdotes de “Baal”. O Deus de Jesus Cristo, ao contrário, faz o sol nascer
sobre bons e maus. É um Deus magnânimo, misericordioso, que pacientemente
espera que o ser humano se converta. Elias é dominado por fortes emoções, sabe
levar as pessoas ao entusiasmo, mas, pouco depois, cai em depressão e deseja
morrer. Jesus não incita os sentimentos dos ouvintes, mas fala de Deus com
sobriedade, dando a eles a possibilidade para acolher ou não o Deus que ele
apresenta em suas parábolas e imagens. Quem identifica Deus com os seus
sentimentos, há de oscilar sempre entre o céu e a terra, como o profeta Elias. O
Deus que Jesus anuncia ultrapassa os sentimentos. Embora possa provocar em nós
emoções profundas, Deus se manifesta na sobriedade da vida cotidiana605.
Outros confundem Jesus com Jeremias, que é o profeta castigado pelos
sofrimentos. É fato notório que o sofrimento é algo inerente à vida humana. Mas,
como já foi dito anteriormente, devemos, sim, aceitar o sofrimento, mas jamais
procurá-lo; pois, do contrário, corremos o risco de glorificá-lo, de construir uma
religião masoquista, na qual o sofrimento é idealizado como sendo sempre a
vontade de Deus, à qual temos que nos submeter. Elaboramos, dessa forma, mais
uma imagem deturpada de Deus606.
Jesus como João Batista, como Elias ou como Jeremias representa imagens
unilaterais de Deus. Na verdade, o Deus que Jesus revela não se limita a nenhuma
destas imagens. Mas, por outro lado, cada uma delas têm alguns aspectos

604
Cf. GRÜN, A., Se quiser experimentar Deus, Petrópolis, Vozes, 2001, pp. 157-158.
605
Cf. Ibidem, pp. 158-160.
606
Cf. Ibidem, p. 160.
205

essenciais de Deus. O problema é que sempre que um determinado aspecto é


absolutizado, ele adultera a verdadeira imagem de Deus. Esta deixa de ser a
imagem do Deus de Jesus Cristo e passa a ser apenas a imagem idealizada por
uma pessoa607. Portanto, cabe à mortificação da fé sempre purificar as imagens
que construímos de Deus, para evitar que caiamos na tentação de absolutizar
apenas um ou outro aspecto do mistério divino. A verdadeira fé implica acolher
Deus como ele é, de fato, novidade inesgotável, mistério insondável (cf. Is 45,
15).
8.2.1.3.
Assumir a fragmentariedade da história

A história é fragmentada, pois é uma realidade marcada pela morte, pelo


mal, pela injustiça; enfim, realidade constituída pela finitude e pela contingência.
Não se deve negar este fato. No entanto, a grande tentação hoje é fugir para um
“espiritualismo evasivo”, ou seja, utilizar a fé em Deus como uma “droga” que
aliena dos problemas cotidianos. Muitos cristãos acham que não precisam mais do
que rezar e praticar determinados exercícios religiosos para terem tudo sob
controle, e não precisarem se confrontar com a dura realidade histórica. Desse
modo não aceitam a dúvida, têm respostas prontas para tudo. A finitude e a
contingência da história é algo inaceitável para eles608.
Assumir a fragmentariedade da história implica assumir com realismo que é
o mal que triunfa em muitas ocasiões. Da mesma forma, implica aceitar o
escândalo da cruz, isto é, o silêncio de Deus diante do sofrimento humano e da
injustiça, sua não intervenção na história. Daí a reserva que uma fé adulta deve ter
diante de todas as soluções fáceis. É preciso renunciar a certeza de um final
sempre feliz para abrir-se à opção de fé, que dá um sentido à história, mas que não
pode ser uma fixação para fugir da caducidade humana. O homem de fé deve
compartilhar as perguntas e dúvidas de toda a humanidade; somente a partir desta
partilha da condição humana é possível o testemunho de fé. É a fé que postula este
sentido, que se compromete na luta contra o mal e o sofrimento, que acredita num

607
Cf. Ibidem, pp. 160-161.
608
Cf. ESTRADA DÍAZ, J. A., La espiritualidad de los laicos, México, San Pablo, 1994, p. 186.
206

Deus que nos abre e nos possibilita um futuro, a partir do presente que é
construído pelo esforço humano609.
No âmbito da fragmentação histórica, mortificação da fé significa lutar
contra a falsa idéia de que salvação é sinônimo de vida feliz, sem doenças, sem
misérias, sem desavenças e sofrimentos; é lutar contra as “religiões de mercado”,
que oferecem soluções mágicas para todos os problemas; é lutar contra a
publicidade enganosa que oferece a felicidade à custa do consumismo
desenfreado; é lutar contra a falsa idéia de progresso que destrói a natureza;
enfim, é lutar contra o mito da eterna juventude, criado pela sociedade de
consumo, que nos impede de integrar o envelhecimento e a morte como fases de
nossa existência.
8.2.1.4.
A perseverança na prática da oração

Comumente, o ser humano não gosta de rezar. Diante da oração, muitas


vezes, chega a sentir tédio. Nesse momento, tudo lhe parece mais importante e
agradável, por isso cria desculpas para não rezar610. Além dessa dificuldade
inerente à condição do ser humano, ferido pelo pecado, também concorre para
desestimular a prática da oração o ritmo acelerado da vida moderna, pois se nesse
frenesi em que vivemos já é difícil manter uma conversa com pessoas visíveis, a
dificuldade se torna maior ainda quando o interlocutor é o ‘Invisível’611.
Acrescente-se, ainda, que a oração é um exercício de gratuidade. É um ‘tempo
desperdiçado’, que nos lembra que o Senhor está para além das categorias do útil
e do inútil612. Contudo, apesar de todas essas dificuldades, o cristão ‘necessita’ da
oração para conservar e fortalecer sua fé; o abandono da mesma inevitavelmente
conduz à crise de fé613.

609
Cf. Ibidem.
610
GUARDINI, R., Introdução à oração, Lisboa, Editorial Aster, 1961, p. 17: “É preciso que o
homem deixe de enganar a Deus e de se iludir a si mesmo. É muito melhor confessar claramente:
‘eu não quero orar’, do que se iludir com tais artimanhas. É preferível declarar francamente: ‘não
quero orar’, do que argumentar com desculpas do gênero de ‘estou muito cansado’. Esta atitude
não será muito correta e é uma manifestação de fraqueza, mas é a verdade, e o que começa na
verdade progride muito mais facilmente do que o que se assenta na insinceridade”.
611
Cf. ESPEJA, J., Espiritualidade cristã, Petrópolis, Vozes, 1995, p. 341.
612
Cf. GUTIÉRREZ, G., teología de la liberación, Salamanca, Sígueme, 1984, p. 270. Apud
CASALDÁLIGA, P.; VIGIL, J. M., Espiritualidade da libertação, 4. ed., Petrópolis, Vozes, 1996,
p. 153.
613
Cf. GUARDINI, R., op. cit., Lisboa, Editorial Aster, 1961, p. 20.
207

Justamente por não ser instintiva, a oração exige disciplina, ou seja, requer
seu tempo, seu lugar, e até um método. Definitivamente, oração não condiz com
improvisação. Portanto, a mortificação da fé exige que o cristão, não apenas crie,
mas, principalmente, preserve as condições indispensáveis à prática cotidiana da
oração, de acordo com suas circunstâncias de vida. Não existe uma recomendação
geral sobre o tempo necessário à oração; porém, este conselho de Dom Pedro
Casaldáliga, aos agentes de pastoral, não deve ser desprezado, mas estendido a
todos os cristãos: “um agente de pastoral que não fizer pelo menos meia hora de
oração diária, além da que faz em equipe, não atingiu a estatura de agente de
pastoral”614.
8.2.2.
Mortificação da esperança

Discípulo daquele que viveu a total doação de si até se entregar à morte na


cruz, o cristão, diante da falta de esperança e de paixão pela verdade, que marcam
a cultura contemporânea, é chamado a ser ‘testemunha’ do sentido da vida e da
história. O que se lhe pede é que ame a ‘Pátria’ vislumbrada com a ressurreição de
Cristo e esteja pronto a pagar o preço da fidelidade a ela nas tarefas cotidianas,
pois só desse modo poderá ser testemunha de esperança para os outros615.
É necessário que o cristão resgate a paixão pela verdade revelada em Cristo,
na qual se fundamenta o seu testemunho de peregrino rumo à Pátria definitiva616.
Pois amar a verdade significa ter os olhos sempre fixos no cumprimento das
promessas de Deus realizadas em Cristo, que deu sua vida e ressuscitou ‘por nós’;
significa também estar sempre pronto para assumir todas as conseqüências
decorrentes desse testemunho de fé. Naturalmente, isso exige pessoas adultas,

614
Cf. CASALDÁLIGA, P., El vuelo Del Quetzal, Panamá, Maíz Nuestro, 1988, p. 56. Apud
CASALDÁLIGA, P.; VIGIL, J. M., loc. cit.
615
Cf. FORTE, B., A essência do cristianismo, Petrópolis, Vozes, 2003, p. 115.
616
ESPEJA, J., Espiritualidade cristã, Petrópolis, Vozes, 1995, pp. 262-263: “A condição
histórica do ser humano, que a teologia chamava ‘estado de vida’, ‘estar em caminho’, implica
direção para uma meta, porém ainda não alcançada. Cabem aqui diferentes posturas: resignação
com o que já se possui, ou mais um passo para frente. Embora pretendamos nos instalar numa
etapa da caminhada, nossa vida continua e, com ela, também nossas exigências cada vez maiores.
A resignação é sempre um mal menor para os homens quando já nada conseguem. Só a esperança
– confiança, paciência, criatividade e audácia – pode ser meio satisfatório para as pessoas humanas
que trazem inscrita em seu ânimo a tensão antropológica entre o que são e o que desejam ser.
Nessa tensão entre o que se tem e o que ainda se deseja, inscreve-se a esperança cristã que é uma
virtude teologal. Por essa virtude experimentamos a densidade teológica do tempo e abrimos o
coração para além do aparente, certos de que nosso esforço não será inútil. Brota de uma promessa
sobre o futuro feita no passado e realizada pelo Espírito nos fiéis”.
208

maduras, desejosas de agradar a Deus em tudo, prontas para demonstrar, em


qualquer circunstância, que em Cristo ressuscitado encontra-se o sentido último da
vida e da história 617.
Dentre as tantas formas de mortificação da esperança, analisaremos as
seguintes: o compromisso com a justiça; a pobreza evangélica e o testemunho da
alegria pascal.
8.2.2.1
O compromisso com a justiça

Embora não identifique sua fé com nenhuma ideologia ou força político-


partidária, o cristão, estimulado pela esperança, deve estar sempre disponível a
colaborar ativamente em todas as forças vivas da sociedade, que trabalham pela
promoção integral do ser humano. Pois a esperança da ressurreição, enquanto faz
do cristão estrangeiro e peregrino neste mundo, não é sonho que aliena da
realidade, mas força estimulante do compromisso com a justiça, com a paz e com
a defesa e preservação do ecossistema no mundo atual618.
O objeto da esperança cristã não é a “minha salvação”, mas a “nossa
salvação”, isto é, a salvação de todos e de tudo (cf. 1Cor 15, 28). O evangelho de
Mateus a respeito do juízo final (cf. Mt 25, 31-45) – quando na consumação
escatológica da história – ressalta que os bons serão colocados de um lado e os
maus de outro. Esse juízo final tem profundo significado teológico: revela que
nossa salvação, nossa felicidade, assim como nosso fracasso, não acontece
independentemente das outras pessoas. Pelo contrário, nossa bem-aventurança
eterna inclui, de algum modo, a felicidade universal; assim como nosso egoísmo
contribui também para a degradação do mundo619.
Além disso, a esperança cristã supõe a salvação integral do ser humano; e,
como tal, inclui também as salvações parciais que ao longo da história vão
acontecendo na economia, na política e na organização social. Não fosse assim,
aos que são vítimas das injustiças, aos excluídos do bem-estar social e econômico,
negar-se-ia, de certo modo, sua participação numa salvação parcial, que deveria
beneficiar a todos. Seria como privá-los de uma felicidade, certamente parcial,
mas à qual eles têm direito. Portanto, somente o compromisso eficaz com os mais

617
Cf. FORTE, B., op. cit., pp. 115-116.
618
Cf. Ibidem, p. 117.
209

abandonados garante ao cristão a certeza de caminhar para a felicidade completa;


meta, por excelência, da esperança cristã620.
O empenho concreto pela prática da justiça e da solidariedade é, sem
dúvida, uma forma, não apenas hodierna, mas válida para todos os tempos, de
mortificação da esperança.
8.2.2.2.
A pobreza evangélica

A vida nova, que nasce do encontro com o Deus da esperança, ganha


visibilidade, sobretudo, na opção pela ‘pobreza evangélica’, não como sinônimo
de carência ou de miséria, mas como a condição própria dos “pobres do Senhor”,
daqueles que colocam totalmente em Deus a sua confiança. Pobreza evangélica é,
pois, viver o futuro projetado e edificado na perspectiva do primado absoluto de
Deus621.
Ansiamos por nos sentir seguros. O problema é que sempre desejamos
construir essa segurança sobre algo que podemos controlar com as mãos: o poder,
o dinheiro, a bebida, a roupa, o seguro de vida, etc. Contudo, no fundo, sabemos
que não somos senhores da terra, e por isso não temos o poder sobre nenhuma
dessas coisas, o que nos deixa inquietos e angustiados. Viver, portanto, o espírito
de pobreza evangélica significa permanecer aberto ao Senhor, isto é, livre de si
mesmo para pertencer a ele; disponível para abandonar toda segurança já
conquistada, aceitando, assim, colocar toda sua confiança na providência divina,
que veste os lírios do campo e dá alimento às aves do céu (cf. Mt 6, 25-34; Lc 12,
22-31)622.
Exercitar a pobreza evangélica é uma ótima forma de mortificação da
esperança, pois leva-nos a crescer na confiança em Deus e a libertar-nos das falsas
seguranças, que, na verdade, não passam de uma forma de escravidão.
8.2.2.3.
O testemunho da alegria pascal

A existência do cristão deve ser uma antecipação da alegria pascal, vitoriosa


sobre o sofrimento, sobre o mal e sobre a morte; alegria prometida por Cristo,

619
Cf. ESPEJA, J., Espiritualidade cristã, Petrópolis, Vozes, 1995, p. 268.
620
Cf. Ibidem, pp. 267.269.
621
Cf. FORTE, B., A essência do cristianismo, Petrópolis, Vozes, 2003, p. 117.
622
Cf. Ibidem, pp. 117-118.
210

quando de seu regresso ao Pai. Pois apesar das provas e contradições enfrentadas
aqui na terra, o cristão é chamado a exultar na esperança, dando testemunho da
alegria pascal; sempre convicto de que na comunidade em que peregrina rumo à
“Jerusalém Celeste”, realiza-se a palavra do salmista: “Que alegria, quando me
disseram: Vamos à casa do Senhor!” (Sl 122, 1)623.
A alegria do cristão, portanto, tem seu fundamento teológico na ressurreição
de Cristo, que lhe assegura a vida verdadeira no tempo e além do tempo; como
também na certeza de que o Espírito, por Cristo derramado sobre a humanidade,
está agindo, ou seja, edificando já na história o futuro prometido por Deus624.
Uma forma de mortificação da esperança ocorre justamente quando o
cristão, impulsionado pela alegria pascal, se esforça para superar o pessimismo e o
desânimo em sua vida, tornando-se, assim, sinal e voz do mistério da “Parusia” na
história.
8.2.3.
Mortificação da caridade

Como a teologia da caridade já foi abordada e desenvolvida no quinto


capítulo625 dessa pesquisa, neste ítem apenas trataremos das seguintes sugestões
para a prática da mortificação da caridade: amor sem discriminação; perdoar
sempre; preservar a natureza e praticar a hospitalidade.
8.2.3.1.
Amar sem discriminação

O amor que Jesus exige do cristão deve ser dirigido a todos os seres
humanos, independentemente de sua religião, cultura, nacionalidade e raça. Para
enfatizar esse ensinamento, Jesus narra a parábola do bom samaritano (cf. Lc 10,
25-37), na qual responde à pergunta do legista sobre quem merece ser destinatário
de nosso amor. A explicação de Jesus não é uma definição sobre o próximo, caso
o fosse, seria uma resposta abstrata. Jesus conta uma parábola, um fato. Nela, tudo
é significativo.
Para Jesus, o nosso próximo é qualquer pessoa necessitada; não importando
sua religião, sua cultura ou classe social. O sacerdote e o levita não foram
próximos do homem ferido caído à beira do caminho, apesar de serem, como ele,

623
Cf. Ibidem, p. 118.
624
Cf. Ibidem, pp. 118-119.
211

judeus; encontravam-se unidos pelos laços de nacionalidade, mas não saíram de


dentro de si para ir ao encontro do “outro” necessitado. O samaritano, ao
contrário, alguém separado do ferido por todo tipo de preconceitos ideológicos,
raciais e religiosos, foi o seu próximo, pois viu nele o “outro” necessitado; foi
capaz de “amar sem discriminação”.
Além disso, o compromisso do samaritano com o ferido foi eficaz, pois ele
não o transferiu para outras pessoas. Pelo contrário, ele mesmo cuidou de suas
feridas, depois o colocou em sua própria montaria, conduzindo-o, em seguida, a
uma hospedaria, onde lhe dispensou cuidados, além de gastar o próprio dinheiro
para que fosse bem tratado. Nessa parábola, Jesus ensina-nos de modo eloqüente
que partilhar com o necessitado o que temos é a concretização histórica de um
amor universal626.
Lutar para amar sem discriminações as pessoas que estão próximas de nós é
uma excelente forma de se praticar a mortificação da caridade.
8.2.3.2.
Perdoar sempre

O perdão sem medidas tem sua fonte e seu verdadeiro sentido na


misericórdia de Deus, que faz nascer o sol para bons e maus, justos e pecadores.
Segundo 1Cor 13, o amor autêntico sempre “desculpa e perdoa”. Caracterizando
bem esse perdão sem limites, no evangelho de João encontramos a perícope da
mulher adúltera perdoada por Jesus (cf. Jo 8, 1-11).
Os escribas e fariseus trazem à presença de Jesus uma mulher apanhada em
adultério. A lei judaica estabelece para esses casos a pena de morte. Jesus, porém,
nada responde, apenas se inclina e escreve com o dedo no chão. Existem várias
tentativas de explicação para esse inaudito comportamento de Jesus, sobre o qual
ainda não se chegou a um consenso. Certo é que Jesus consegue deixar inseguros
os escribas, pois ao escrever com o dedo no pó do chão, ele lembra a eles que
também são feitos de terra, possuindo também os mesmos impulsos e apetites da
mulher adúltera627.

625
Cf. Capítulo 5, pp. 131-133.
626
ESPEJA, J. Espiritualidade cristã, Petrópolis, Vozes, 1995, p. 236.
627
Cf. GRÜN, A., Jesus porta para a vida – O evangelho de João, São Paulo, Loyola, 2006, pp.
80-82.
212

E ao levantar-se, Jesus pronuncia uma frase que cala fundo no coração dos
escribas: “Aquele dentre vós que nunca pecou atire-lhe a primeira pedra” (Jo 8,
7b). Frase esta que exprime a misericórdia e a clemência de Jesus. Ditas essas
palavras, ele se inclina novamente, deixando cada um às voltas com a sua própria
consciência. Um por um de seus interlocutores se afastam. Os mais velhos são os
primeiros, pois sabem que, em sua longa vida, não ficaram sem pecado.
Permanecem apenas Jesus e a pecadora. Agora, sim, Jesus se dirige à mulher e,
sem mencionar a questão da culpa ou da acusação, tira-a de seu embaraço e de sua
insegurança, não fazendo que ela se confesse culpada, apenas questionando diante
dela o comportamento de seus acusadores: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te
condenou?” (Jo 8, 10). Jesus, então, lhe promete o perdão e encoraja-a a não pecar
mais; enfim, oferece-lhe a oportunidade de começar uma vida nova, mais digna628.
O exigente exercício cotidiano do perdão sem limites é uma forma perene de
mortificação da caridade.
8.2.3.3.
Preservar a natureza

A natureza deve também ser respeitada e amada. Numa visão sapiencial,


Jesus celebra o cuidado e a solicitude que o Criador manifesta ao vestir os lírios
do campo e alimentar as aves do céu (cf. Mt 6, 26-29). Em sintonia profunda com
toda a criação, são Francisco de Assis, por exemplo, manifestou sua “caridade
cósmica”, ao declarar seu amor ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão lobo. Enfim,
são Francisco contemplava a natureza como obra de Deus, por isso mesmo, a
respeitava e a amava629.
Diante da crise ecológica que hoje vivemos, conforme analisamos no
capítulo seis630, preservar a natureza é, sem sombra de dúvida, uma maneira
atualizada e eficaz de se praticar a mortificação da caridade.
8.2.3.4.
Hospitalidade

Acolher bem, já é uma forma de evangelizar. A hospitalidade propicia uma


oportunidade de encontro com Deus, uma vez que o acolhimento afetuoso cria

628
Cf. Ibidem, pp. 82-84.
629
Cf. ESPEJA, J., Espiritualidade cristã, Petrópolis, Vozes, 1995, p. 237.
630
Cf. Capítulo 6, pp. 163-167.
213

uma sensação de lar, de estar em casa. Prova disso temos no evangelho de Lucas,
mais precisamente na perícope que narra a conversão de Zaqueu (cf. Lc 19, 1-10).
Ao ver Zaqueu, Jesus tomou a iniciativa e se convidou a si mesmo como
hóspede em sua casa para comer com ele. Alojar-se na casa de alguém, sentar-se a
sua mesa são sinais de comunhão. Jesus não fez nenhuma censura a Zaqueu,
apenas se ofereceu para comer com ele; não exigiu mudanças, apenas respeitou-o
como ser humano. E ao ser valorizado por Jesus, Zaqueu mudou de
comportamento, passou a ser outra pessoa; pois já não precisava mais do dinheiro
como substituto de sua carência de valor, devolvendo, por isso, por isso tudo o
que ganhara desonestamente631.
Portanto, acolher bem, acreditar e investir na valorização da pessoa humana
é uma forma também sempre atual de mortificação da caridade, dada, sobretudo, a
premência de se resgatar a sua dignidade, tão esfacelada em nossa sociedade.
8.3.
Espiritualidade batismal: alicerce para uma nova evangelização

“Vós todos que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo” (Cf. Gl
3, 27). Estas palavras de são Paulo evidenciam que Cristo não é apenas alguém
que professamos como modelo e mestre da humanidade. Nossa relação com ele
não é somente aquela de uma adesão intelectual de fé à sua pessoa e à sua
doutrina; ser cristão não consiste somente em ser fiel à sua Palavra e imitador de
sua vida. Ser cristão significa, sim, estar em comunhão com a sua pessoa e o seu
mistério: viver em Cristo, ou melhor, deixar que ele viva em nós a sua filiação
divina, a consagração e a missão no Espírito, a sua paixão pelo reino do Pai632.
O cristão é, certamente, um discípulo que segue e imita o Mestre, um fiel
que acolhe a sua pessoa e a sua doutrina, um apóstolo que dá testemunho de seu
evangelho, mas é também algo a mais: é uma pessoa que vive em Cristo, que vive
dele, que está unida a ele como o ramo à videira (cf. Jo 15, 4-5). Entre Cristo e o
cristão estabelece-se uma comunhão de vida que tem como ligação mais íntima a
própria vida do Pai, derramada em nós pelo Espírito Santo. É a mesma vida que

631
Cf. GRÜN, A., Descobrir a riqueza da vida, São Paulo, Loyola, 2003, pp. 58-59.
632
Cf. CASTELLANO CERVERA, J., Viver o batismo como fonte de vocação e de missão. In:
ABBA – Revista de Cultura, Vol. V, n. 03, Vargem Grande Paulista, Cidade Nova, 2002, p. 60.
214

escorre, como uma linfa, em todos aqueles que estão unidos pelo mesmo batismo
no corpo da Igreja633.
Infelizmente, o batismo ainda é uma realidade não bem compreendida por
muitos cristãos. Sob o prisma teológico, devemos afirmar que a experiência
batismal, isto é, a urgência de viver as riquezas e o dinamismo próprio do batismo,
está ainda longe de constituir o programa de vida de muitos cristãos. Algumas
espiritualidades menos teológicas, inclusive, além das práticas devocionais,
muitas vezes impedem que o cristão concentre a própria experiência de fé naquilo
que é essencial: a vida em comunhão com Cristo634.
8.4.
Conclusão

Sem dúvida alguma, o cristão unido e configurado com Cristo é o anúncio


mais convincente do evangelho; por exemplo, a vida e o testemunho de Madre
Teresa de Calcutá mostra melhor do que qualquer palavra o amor de Deus pela
humanidade. O cristão transfigurado pelo amor de Cristo é o melhor anunciador
de sua mensagem salvífica, pois como afirma o Papa João Paulo II, na carta
encíclica Redemptoris Missio, o melhor evangelizador é o ‘santo’635.
Portanto, a santidade precisa definitivamente ser apresentada como o grande
ideal da vida cristã; como o objetivo último de qualquer plano de evangelização.
Mas só isso não basta. Também é de fundamental importância elaborar e
apresentar às comunidades eclesiais uma boa catequese acerca da espiritualidade
batismal, eliminando, desse modo, os preconceitos que ainda perduram contra a
práxis da mortificação.
Resgatar, portanto, o valor e a importância da mortificação para o
desenvolvimento da espiritualidade batismal não é algo supérfluo, mas necessário
e útil como contribuição positiva para o bom êxito da nova evangelização.

633
Cf. Ibidem, pp. 60-61.
634
Cf. Ibidem, p. 68.

Você também pode gostar