Tese de Doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor pelo Programa de Pós-
Graduação em Teologia da PUC-Rio.
Resumo
Palavras-chave
Salvação, Mortificação, Discípulo.
8
Sumário
Introdução geral 15
Abreviaturas e Siglas
LG Lumen Gentium
RH Redemptor Hominis
RMi Redemptoris Missio
SD Salvifici Doloris
SOTER Sociedade de Teologia e Ciências da Religião
TE Tempo e Eternidade
15
Introdução geral
A mortificação, tanto o termo como a sua práxis, parece que foi banida do
universo cristão; não é mais um vetor da formação cristã como no passado. De
imediato, o termo mortificação suscita lembranças negativas, como jejuns e
penitências exageradas. Recorda também episódios de violência ao corpo. Por isso
é uma palavra que prontamente provoca fortíssima rejeição e aversão, devido a
uma prática, no passado, inconteste de excessos e abusos. Dificilmente é
encontrada entre os verbetes dos mais recentes dicionários de teologia;
usualmente é apenas citada como uma dimensão da ascese. Portanto, termo e
práxis, atualmente parecem não gozar mais nem de pertinência teológica nem de
relevância pastoral, como se observa pela escassa literatura a respeito.
Esta constatação, no entanto, é superficial, é enganosa. A mortificação
continua existindo e desfrutando de amplo espaço no cotidiano de nosso povo.
Evidentemente, não o termo, mas a vida disciplinada, que se constitui no núcleo,
propriamente, da prática da mortificação. Uma vida regulada por dietas, exercícios
físicos e até jejuns é assunto relevante para a cultura contemporânea. Pessoas de
todas as idades ‘malham’, caminham ou correm diariamente e, quando podem,
submetem-se a privações alimentares de certas dietas e processos de purificação
em ‘spas’, para recuperar ou preservar a saúde. Homens e mulheres submetem-se
diariamente a exercícios físicos, e até mesmo a jejuns, para manter um corpo
esbelto, magérrimo, segundo os atuais padrões de beleza. Do mesmo modo, atletas
se sujeitam a exigentes programas de condicionamento físico, para serem
competitivos. Tudo isso objetivando bem estar pessoal, qualidade de vida e
vantagens financeiras.
Mesmo sem referência a valores religiosos, esta realidade é importantíssima
para a reflexão teológica, pois revela que a disciplina é um dado fundamental da
existência humana. É um imperativo antropológico, algo que não pode ser
simplesmente eliminado, sem graves prejuízos ao ser humano. Para se realizar
objetivos, independentemente da motivação originária, é indispensável o esforço
pessoal, uma vida pautada pela disciplina. A mortificação, em sentido amplo, é
16
isso: luta de morte a tudo aquilo que obstrui a obtenção de um ideal, que atrapalha
a consecução de uma meta. Por essa razão a mortificação é parte integrante da
educação humana.
Se falarmos em sentido cristão, é evidente que a mortificação continua não
somente atual, mas necessária à vida cristã. Ser cristão é revestir-se do homem
novo; e para que este viva, o velho homem tem de morrer em nós. A morte do
homem velho já é realizada e celebrada pelo batismo, mas necessita ser efetivada
historicamente. Embora no batismo nos seja concedida a semente da vida nova,
esta precisa ser atualizada e concretizada nas atitudes e ações do dia-a-dia, pois o
homem velho, o Adão pecador, ainda continua presente e ativo em nós, dividindo
espaço com o homem novo; e assim permanecerá durante nossa existência
terrestre. A força salvífica da mortificação consiste exatamente no esforço que
empreendemos cotidianamente para disciplinar e reduzir a negatividade do
homem velho; criando, ao longo do tempo, as condições necessárias para o
crescimento do homem novo.
No concreto da vida diária, matar o homem velho implica renunciar a tudo
que contradiz o evangelho. Significa lutar para viver segundo os mesmos valores
que nortearam a vida de Jesus, na relação consigo mesmo, com a comunidade,
com a natureza e com Deus. Isto sem dúvida exige que o cristão seja determinado
e disciplinado, pois luta contra: as próprias fragilidades, o individualismo, a
vontade de poder, o consumismo, o hedonismo, a religião de acomodação e de
fuga do compromisso com o excluído, a utilização depredatória da natureza, a
injustiça em todas as suas manifestações, a coisificação das pessoas e das relações
humanas, a imagem distorcida de Deus. Enfim, contra tudo aquilo que é típico do
homem velho, de uma existência humana pecaminosa.
Portanto, o objetivo geral desta tese doutoral é elaborar um renovado
discurso teológico que demonstre que a mortificação não está superada, mas
continua válida e necessária ao discipulado de Cristo. E para atingir esta
finalidade, utilizaremos a contribuição de Madre Maria Teresa de Jesus
Eucarístico. Religiosa, fundadora do ‘Instituto das Pequenas Missionárias de
Maria Imaculada’, falecida aos setenta e um anos de idade (1901-1972), na cidade
de São José dos Campos/SP. Ela deixou reflexões equilibradas sobre o assunto. E
o principal: viveu com coerência o que ensinou. Nela, vida e ensinamento se
identificam.
17
1
Mortificação: origem e história do termo
1
Cf. RUSCONI, C., Dicionário do grego do Novo Testamento, São Paulo, Paulus, 2003, p. 81;
PEREIRA, I., Dicionário grego-português e português-grego, Braga, Livraria Apostolado da
Imprensa, 1998, p. 86.
24
A experiência religiosa, no mundo grego, teve seu início por volta do século
XII a.C., com a consolidação progressiva de um conjunto de crenças míticas4.
Essas crenças começaram com os chamados ‘mitos teogônicos e cosmogônicos’,
que explicavam a origem dos deuses, do universo, do homem e dos fenômenos
2
Cf. GOZZELINO, G., Al cospetto di Dio – Elementi di teologia della vita spirituale, Torino, Elle
di Ci, 1999, p. 92.
3
Cf. Ibidem.
4
Cf. ARRUDA ARANHA, M. L.; PIRES MARTINS, M. H., Filosofando – Introdução à
filosofia, 2. ed., São Paulo, Moderna, 1997, p. 55; STEPHANIDES, M., Os deuses do Olimpo, 3.
ed., São Paulo, Odysseus, 2004, pp. 3-4: O mito explica a realidade a partir de uma verdade
intuída, isto é, percebida de maneira espontânea, sem exigência de comprovações. O critério de
adesão do mito é a crença, e não a evidência racional. O mito é portanto uma intuição (ação pré-
reflexiva) compreensiva da realidade vivida. E o povo grego criou os mitos mais fascinantes da
antiguidade, inspirado na beleza natural de seu país e na tentativa de explicar os fenômenos da
natureza, que, ao mesmo tempo em que, amedrontavam e provocavam desastres com suas forças
aterradoras, também fascinavam com seu poder e grandiosidade. Assim surgiram os heróis e os
deuses do Olimpo.
25
5
Para um estudo aprofundado da mitologia grega, sugiro as seguintes obras: BULFINCH, T., O
livro de ouro da mitologia – Histórias de deuses e heróis, 32. ed., Rio de Janeiro, Ediouro, 2005,
412 p.; CHAMOUX, F., Civilização grega, Edições 70, Lisboa, 2003, 343 p. (especialmente o
capítulo VI, pp. 143-204); FRIEDRICH OTTO, W., Os deuses da Grécia, Odysseus, São Paulo,
2005, 266 p.; MONTANELLI, I., História dos gregos, Edições 70, Lisboa, 2003, 255 p.; REALE,
G., História da filosofia antiga, Vol. I, 4. ed., São Paulo, Loyola, 2002, 415 p. (especialmente o
capítulo II, pp. 19-27); SCARPI, P., Politeísmos: as religiões do mundo antigo, Editora Hedra,
São Paulo, 2004, 245 p. (especialmente o capítulo V, pp. 91-108); SOUZA BRANDÃO, J.,
Mitologia grega, Vols. I, II, III, Vozes, Petrópolis, 2004; STEPHANIDES, M., Os deuses do
Olimpo, 3. ed., Odysseus, São Paulo, 2004, 204 p.; VERNANT, J. P. e NAQUET, P. V., Mito e
tragédia na Grécia antiga, Editora Perspectiva, São Paulo, 2002, 376 p.
6
BULFINCH, T., O livro de ouro da mitologia – História de deuses e heróis, 32. ed., Rio de
Janeiro, Ediouro, 2005, pp. 09-10.“A morada dos deuses era o cume do monte Olimpo, na
Tessália. Uma porta de nuvem, da qual tomavam conta as deusas chamadas Estações, abria-se a
fim de permitir a passagem dos imortais para a terra e para dar-lhes entrada em seu regresso (...).
Era também no grande palácio do rei do Olimpo que os deuses se regalavam, todos os dias, com
ambrósia e néctar, seu alimento e bebida, sendo o néctar servido pela linda deusa ‘Hebe’. Ali
discutiam os assuntos relativos ao céu e à terra; enquanto saboreavam o néctar, Apolo, deus da
música, deliciava-os com os sons de sua lira e as musas cantavam. Quando o sol se punha, os
deuses retiravam-se para as suas respectivas moradas, a fim de dormir”.
7
Cf. STACCONE, G., Filosofia da religião – O pensamento do homem ocidental e o problema de
Deus, 2. ed., Petrópolis, Vozes, 1991, pp. 13-15.
8
Cf. BULFINCH, T., op. cit., pp. 254-293: Os dois poemas épicos de Homero, ‘Ilíada’ e
‘Odisséia’, como é sabido, relatam os mitos que descrevem a destruição pelos gregos da cidade de
Tróia. Segundo a obra de Homero, a guerra de Tróia teria durado cerca de dez anos e seu início foi
marcado pelo rapto de Helena, a mais bela mulher do mundo, esposa do rei Menelau, de Esparta.
O autor do rapto foi Paris, filho de Príamo, rei de Tróia. Para defender sua honra, Menelau e seu
irmão, Agamenon, rei de Micenas, reúnem forças gregas de diversos reinos para resgatar Helena
em uma ação contra Tróia, que é chamada de Ilion no poema narrado por Homero, daí o nome
IlÍada. Já o poema Odisséia é posterior à Ilíada e narra as aventuras do herói Odisseu (Ulisses,
segundo a tradição latina), em seu retorno da guerra de Tróia para sua cidade, Ítaca.
9
Cf. REALE, G., História da filosofia antiga, Vol. I, 4. ed., São Paulo, Loyola, 2002, pp. 41-43: A
‘Teogonia’ de Hesíodo narra o nascimento de todos os deuses; e, dado que alguns deuses
26
coincidem com partes do universo e com fenômenos do cosmo, além de teogonia ela se torna
também cosmogonia, ou seja, explicação fantástica da gênese do universo e dos fenômenos
cósmicos. Hesíodo imagina, no proêmio, ter tido aos pés de Hélicon, na Boécia, uma visão de
Musas, e ter recebido delas a revelação da verdade da qual ele se faz, mediatamente, arauto. Em
primeiro lugar, diz ele, gerou-se o ‘Caos’, em seguida gerou-se ‘Gea’ (a terra), em cujo seio amplo
estão todas as coisas, e nas profundidades da Terra gerou-se o ‘Tártaro escuro’, e, por fim ‘Eros’
(o Amor) que, depois, deu origem a todas as outras coisas. Do caos nasceram Êrebo e Noite, dos
quais se geraram o Éter (o Céu superior) e Êmera (o Dia). E da Terra sozinha se geraram ‘Urano’
(o Céu estrelado), assim como o mar e os montes; depois, juntando-se ao Céu, a Terra gerou
Oceano e os rios. Procedendo no mesmo estilo, Hesíodo narra a origem dos vários deuses. Zeus
pertence à última geração: de fato, foi gerado de Crono e de Rea (que, por sua vez, tinham sido
gerados da Terra e de Urano); e, como Zeus, fazem parte da última geração todos os outros deuses
do Olimpo homérico, vale dizer, os deuses que o grego venerava.
10
Cf. BULFINCH, T., O livro de ouro da mitologia – História de deuses e heróis, 32. ed., Rio de
Janeiro, Ediouro, 2005, pp. 10-14.
11
Cf. Ibidem, p. 255.
12
Cf. Ibidem, p. 169.
13
Cf. SOUZA BRANDÃO, J., Esfinge. In: DME, Vol. I, pp. 384-388.
14
Cf. Idem, Sereia. In: DME, Vol. II, pp. 375-378.
27
15
Cf. Idem, Centauro. In: DME, Vol. I, pp. 199-200.
16
Cf. BULFINCH, T, O livro de ouro da mitologia – História de deuses e heróis, 32. ed., Rio de
Janeiro, Ediouro, 2005, pp. 150-158.
17
Cf. RIBEIRO JR., W.A., Introdução à religião grega. In: PORTAL GRAECIA ANTIQUA.
Disponível em: <http://www.greciantiga.org/fil/fil09.asp>. Acesso em: 01 de setembro de 2005.
18
Cf. REALE, G., História da filosofia antiga, Vol. I, 4. ed., São Paulo, Loyola, 2002, p. 23: Os
sacerdotes que ajudavam o povo a ofertar os sacrifícios não gozavam de uma posição de destaque
junto aos deuses; não eram mediadores. Apenas administravam os templos e os santuários, e na
comunidade eram tratados como simples cidadãos.
19
Cf. RIBEIRO JR., W.A., Mitologia e religião para iniciantes. In: PORTAL GRAECIA
ANTIQUA. Disponível em: <http://www.greciantiga.org/ini/ini08.asp>. Acesso em: 01 de
setembro de 2005.
28
mais divino é aquele que desenvolve de modo mais vigoroso suas forças humanas.
Por isso, o cumprimento religioso resumia-se tão somente a prestar uma
homenagem, fazer um ‘agrado’ aos deuses, e nada mais20. Era o que poderíamos
chamar de “religião natural”.
Por volta do século VI a.C., o pensamento grego sofreu uma verdadeira
revolução no modo de conceber a realidade divina e com ela relacionar-se. Tal
mutação consistiu em considerar o divino uma realidade não mais exclusivamente
externa, mas interna ao próprio homem. Por isso, em círculos restritos,
desenvolveram-se os “cultos mistéricos”; assim chamados porque suas doutrinas e
rituais podiam ser revelados somente aos ‘iniciados’, que juravam mantê-los em
segredo. Entre os cultos mistéricos, o que mais influenciou a cultura grega foi o
“orfismo”21.
A fé órfica introduziu na civilização grega um novo esquema de crenças e
uma nova interpretação da existência humana. Enquanto a concepção grega
tradicional, a partir de Homero, considerava o homem como mortal, colocando na
morte o fim total de sua existência, o orfismo proclama a imortalidade da alma e
concebe o homem segundo um esquema dualista que contrapõe a alma ao corpo.
Com esse novo esquema de crenças, o homem via pela primeira vez contraporem-
se em si dois princípios em contraste e luta: a alma e o corpo. Cai por terra a
concepção naturalista de religião; o homem grego, a partir de agora, compreende
20
Cf. ANTISERI, D.; REALE, G., História da filosofia – Antiguidade e Idade Média, Vol. I, 7.
ed., São Paulo, Paulus, 2002, pp. 21-22.
21
REALE, G., História da filosofia antiga, Vol. I, 4. ed., São Paulo, Loyola, 2002, pp. 23-24: “Os
órficos consideravam como fundador do seu movimento o mítico poeta da Trácia, Orfeu (que ao
contrário do tipo de vida encarnado pelos heróis homéricos, teria cantado um tipo mais interior e
espiritual de vida) e dele derivam o nome. Não sabemos a origem do movimento e como ele se
difundiu na Grécia. Heródoto o faz derivar do Egito (Heródoto, II, 123), o que é impossível,
porque os documentos egípcios não apresentam traços de doutrinas órficas e, ademais, o cuidado
dos corpos e o seu embalsamento contrasta nitidamente com o espírito do orfismo, que despreza o
corpo como cárcere e grilhão da alma. O movimento é posterior aos poemas homéricos (que não
apresentam nenhum traço dele) e a Hesíodo. É certo o seu florescimento ou reflorescimento no
século VI a.C. O núcleo fundamental das crenças ensinadas pelo orfismo, despojadas das várias
incrustações e amplificações que aos poucos se lhe acrescentaram, consiste nas seguintes
proposições: a) no homem vive um princípio divino, uma alma (demônio), caída num corpo por
causa de uma culpa originária; b) essa alma (demônio), preexiste ao corpo, é imortal e, portanto,
não morre com o corpo, mas é destinada a reencarnar-se sempre de novo em corpos sucessivos
através de uma série de renascimentos para expiar a sua culpa (metempsicose); c) a vida órfica,
com as suas práticas de purificações, é a única que pode por fim ao ciclo das reencarnações; d) por
conseqüência, quem vive a vida órfica (os iniciados) goza, depois da morte, do merecido prêmio
no além (a libertação); para os não iniciados há uma punição”. Para um melhor aprofundamento,
sugiro a leitura de SOUZA BRANDÃO, J., Mitologia grega, 15. ed., Petrópolis, Vozes, 2005, pp.
141-171 (Orfeu, Eurídice e o Orfismo).
29
que nem todas as tendências ligadas ao corpo são boas, que algumas, ao contrário,
devem ser disciplinadas, e que é necessário libertar a alma do corpo através de
cerimônias e ritos purificadores22.
Concomitante ao surgimento dos cultos mistéricos, ocorre o advento da
reflexão filosófica, que substitui o pensamento mítico. A filosofia nasce
basicamente da insatisfação com a explicação paradoxal da realidade oferecida
pela crença mítica, que ao recorrer ao mistério para explicar a realidade, esbarra e
pára no inexplicável, na impossibilidade racional do conhecimento. Por sua vez, o
pensamento filosófico busca a explicação da realidade nas próprias causas
naturais que a constituem, abrindo-a, desse modo, à compreensão racional, à
possibilidade de explicação23. O que vale em filosofia é o argumento da razão, a
motivação lógica. Não basta à filosofia constatar uma realidade, mas deve ir além,
para encontrar a causa ou as causas através da razão. É justamente essa qualidade
peculiar que garante ‘cientificidade’ à filosofia24.
No entanto, o surgimento da filosofia não levou ao desaparecimento, mas à
mudança de função do mito, que, a partir de então, passou a ser parte da tradição
cultural do povo grego e não mais critério único de explicação da realidade.
Certamente no mito há fantasia, algo irreal, mas há também uma mensagem, uma
idéia, que pretende responder às indagações mais inquietantes e profundas do
homem, a que muitas vezes a razão não pode responder. Mais que uma resposta
pré-filosófica, o mito supõe uma resposta supracientífica, enquanto transcende a
visão científica da realidade. O mito supõe um esforço para conhecer o
“incognoscível”25. Por isso, não desaparece, pelo contrário, continua presente na
reflexão filosófica, como expressão das verdades primordiais sobre o universo e a
humanidade, auxiliando a razão no processo de conhecimento da realidade.
Naturalmente, a nova realidade religiosa grega, marcada pela interioridade
dos cultos mistéricos, tornou-se objeto de reflexão da filosofia, já a partir do
século VI a.C. até, provavelmente, 529 d.C., ano em que o Imperador Justiniano
22
Cf. ANTISERI, D.; REALE, G., História da filosofia – Antiguidade e Idade Média, Vol. I, 7.
ed., São Paulo, Paulus, 2002, pp. 17-19.
23
Cf. MARCONDES, D., Iniciação à história da filosofia – Dos pré-Socráticos até Wittgenstein,
9. ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005, pp. 20-21.
24
Cf. ANTISERI, D.; REALE, G., op. cit., p. 22.
25
Cf. YARZA, I., História de la filosofia antigua, 3. ed., Pamplona, Ediciones Universidad de
Navarra, 1992, p. 20.
30
26
Cf. ANTISERI, D.; REALE, G., História da filosofia – Antiguidade e Idade Média, Vol. I, 7.
ed., São Paulo, Paulus, 2002, p. 25.
27
Cf. Ibidem, pp. 39-40.
31
28
Cf. MARCONDES, D., Iniciação à história da filosofia – Dos pré-socráticos até Wittgenstein,
9. ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005, p. 33.
29
Cf. VERGOTE, A., Modernidade e cristianismo – Interrogações e críticas recíprocas, São
Paulo, Loyola, 2002, p. 47.
30
Cf. Ibidem.
31
Cf. SOUZA BRANDÃO, J., Mitologia grega, Vol. II, 15. ed., Petrópolis, Vozes, 2005, pp. 160-
161: Os órficos praticavam penitências corporais rigorosas, como jejuns, abstenção de carne e de
ovos (princípios da vida), abstinência temporária ou perpétua da vida sexual. Ainda, no contexto
de ‘catarse’ (purificação) do corpo, faziam parte também os cantos, os hinos e as litanias.
32
32
Cf. ANTISERI, D.; REALE, G., História da filosofia – Antiguidade e Idade Média, Vol. I, 7.
ed., São Paulo, Paulus, 2002, pp. 45-46.
33
Cf. Ibidem, p. 46.
34
Cf. PIAZZA, W., Religiões da humanidade, 3. ed., São Paulo, Loyola, 1996, p. 145.
35
Cf. MARÍAS, J., História da filosofia, São Paulo, Martins Fontes, 2004, p. 19.
36
Cf. HADOT, P., O que é a filosofia antiga?, 2. ed., São Paulo, Loyola, 2004, pp. 92-93.
33
37
Cf. MIANO, F., Platão. In: DM, pp. 879-880.
38
MARÍAS, J., História da filosofia, São Paulo, Martins Fontes, 2004, pp. 54-55: “O conteúdo do
mito resume-se basicamente ao seguinte. Platão imagina alguns homens que desde pequenos se
encontram numa caverna provida de uma abertura por onde penetra a luz exterior; estão presos de
modo tal que não podem se mover nem olhar, a não ser para o fundo da caverna. Fora desta, nas
costas desses homens, brilha o resplendor de um fogo aceso sobre uma saliência do terreno, e entre
o fogo e os homens acorrentados há um caminho com um pequeno muro; por esse caminho
passam homens que levam todo tipo de objetos e estatuetas, mais altos que o muro, e os
acorrentados vêem as sombras dessas coisas, que se projetam sobre o fundo da caverna: quando os
transeuntes falam, os acorrentados ouvem suas vozes como se procedessem das sombras que
vêem, para eles a única realidade. Um dos acorrentados, livre de sua sujeição, contempla a
realidade exterior; a luz faz com que lhe doam os olhos, e ele quase não vê; o sol o deslumbra
dolorosamente e o cega. Pouco a pouco tenta habituar-se, primeiro consegue ver as sombras; em
seguida, as imagens das coisas, refletidas nas águas; depois, as próprias coisas. Veria o céu de
noite, as estrelas e a lua; e ao amanhecer, a imagem refletida do sol, e, por último, depois de um
longo esforço poderia contemplar o próprio sol. Então sentiria que o mundo em que tinha vivido
antes era irreal e desdenhável; e se falasse a seus companheiros desse mundo de sombras e
dissesse que não eram reais, eles ririam dele, e se tentasse salvá-los e arrastá-los para o mundo
real, o matariam. O que está simbolizado nesse mito? A caverna é o mundo sensível, com suas
sombras, que são as coisas. O mundo exterior é o mundo verdadeiro, o mundo inteligível ou das
idéias”.
34
Escola fundada por Epicuro de Samos (341-270 a.C.), por volta do ano 306
a.C., em Atenas. Segundo Epicuro, os deuses existiam, mas não se envolviam de
forma alguma com a vida dos homens, pois o curso dos acontecimentos naturais é
determinado tão somente pelas leis que derivam dos movimentos dos átomos e
não pela ação dos deuses. Portanto, não fazia sentido cultuar os deuses, era inútil
invocá-los nas dificuldades e improdutivo oferecer-lhes sacrifícios. A alma
também pertence ao mundo material; como o corpo, ela, apenas, é o resultado de
uma constelação acidental de átomos42. “Era, portanto, impossível a Epicuro
associar suas idéias de religião com qualquer poder transcendente”43.
Epicuro ensinava que para chegar à verdadeira felicidade era preciso viver
de acordo com a natureza. E como o conhecimento da natureza não poderia
39
Cf. Ibidem, pp. 52-53.
40
Cf. ANTISERI, D.; REALE, G., História da filosofia – Antiguidade e Idade Média, Vol. I, 7.
ed., São Paulo, Paulus, 2002, p. 156.
41
Cf. HADOT, P., O que é filosofia antiga?, 2. ed., São Paulo, Loyola, 2004, pp. 105-106.
42
Cf. KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento – História, cultura e religião do período
helenístico, Vol. 1, São Paulo, Paulus, 2005, p. 152.
35
A escola estóica tirou seu nome da “Stoá Poikile” (Pórtico das Pinturas),
sobre a ágora de Atenas; é aí que seu fundador, Zenão de Cítio (334-262 a.C.),
43
Ibidem.
44
Cf. Ibidem.
45
Cf. LAKS, A., Epicuro. In: DEFM, Vol. I, p. 530.
36
46
Cf. CHAVES CURVÊLO, L., O epicurismo. In: CULTURA BRASIL. Disponível em:
<http://www.culturabrasil.pro.br/oepicurismo.htm>. Acesso em: 05 de setembro de 2005.
47
Cf. BRUNSCHWIG, J., Estoicismo antigo. In: DEFM, Vol. I, p. 579.
48
Cf. KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento – História, cultura e religião do período
helenístico, Vol. I, São Paulo, Paulus, 2005, p. 154.
49
Cf. Ibidem, pp. 155-156.
37
mas ação; não é na complexidade do discurso que se realiza o bem, mas no ato
concreto. Trata-se, pois, de habituar o corpo a suportar os males, a fim de que ele
jamais seja um obstáculo às decisões morais da pessoa. Fora das virtudes não
existem bens, de modo que foi característica dos cínicos o desprezo pela
comodidade, pelas riquezas e pelos prazeres. Com isso adquire-se a força de alma
que permite à pessoa ser autônoma e indiferente diante das vicissitudes da
existência, e, deste modo, ser livre e feliz51. A infelicidade humana decorre da não
satisfação dos desejos, portanto, é preciso agir sobre si mesmo, isto é, selecionar
os desejos, a tal ponto que se disponha imediatamente dos meios para satisfazê-
los52. A ascese cínica é ainda concebida como um método preventivo, capaz,
simultaneamente, de extinguir o temor diante dos males vindouros e de dar força
para enfrentar os que se apresentam, inclusive a morte. Diógenes de Sinope,
expoente da filosofia cínica, preparando-se para enfrentar os sofrimentos inerentes
à morte, treinava abraçando estátuas cobertas de gelo e rolando sobre areia
quente53.
A ética estóica é uma variante mais evoluída da ética cínica. Pois guarda
suas vantagens e evita seus inconvenientes. Evita seus inconvenientes quando não
obriga o ser humano a tentar tornar-se indiferente àquilo que não pode possuir ou
evitar. Se não consegue evitar um acontecimento ou uma situação, suporta-os
estoicamente: sua felicidade não dependeria de evitá-los. Se não consegue obter
um objeto ou um estado de tranqüilidade, não sofre dolorosamente sua privação:
sua felicidade não dependeria de sua obtenção. Por outro lado, o estoicismo
guarda a vantagem de selecionar os desejos com os meios compatíveis para
realizá-los. Conseqüentemente, o estóico só escolherá aquilo que julgar útil e
conveniente para sua felicidade54.
A virtude estóica é a indiferença a todos os bens do mundo que não
dependem do esforço humano, e cujo curso é fatalmente determinado pela
natureza. Por conseguinte, a ascese estóica consiste na renúncia e indiferença a
tudo, exceto ao uso da razão. A indiferença permite ao ser humano ser feliz
mesmo nos sofrimentos, mesmo no que se chama de infelicidade, porque ele já se
50
Cf. GOULET CAZÉ, M. O., Cínicos. In: DEFM, Vol. I, pp. 261-265.
51
Cf. ABBAGNANO, N., Cínicos. In: DF, pp. 141-142.
52
Cf. BRUNSCHWIG, J., Estoicismo antigo. In: DEFM, Vol. I, p. 584.
53
Cf. GOULET CAZÉ, op. cit., p. 262.
54
Cf. BRUNSCHWIG, J., op. cit., pp. 584-585.
38
tornou indiferente a tudo o que não pode ser alterado e não depende da vontade
humana. O famoso adágio “suporta-te e abstém-te” resume o ensinamento
estóico55.
Para os estóicos, os homens são sábios ou loucos: sábios, se livres das
paixões; loucos, se dominados por elas. É preciso evitar as emoções, pois elas são
incompatíveis com o autodomínio racional. A paixão é sempre e substancialmente
má, pois é movimento irracional e doença da alma. A única atitude do sábio
estóico deve ser o aniquilamento da paixão, até a indiferença. O ideal da ascese
estóica não é o domínio racional da paixão, mas a sua destruição total, para dar
lugar unicamente à razão: ideal do homem sem paixão, que anda como um deus
entre os homens. Daí a luta do estoicismo contra o sentimento, a emoção, a
paixão, donde derivam o desejo, o vício e a dor, que devem ser aniquilados56.
O sábio é feliz, nada afeta seu verdadeiro ser, porque está em total harmonia
consigo mesmo; e, assim, permanece ‘imperturbável’, mesmo em meio aos mais
intensos e diferentes acontecimentos57.
1.1.1.5.
Neopitagorismo
55
Cf. RIBEIRO JR., W.A., O estoicismo. In: PORTAL GRAECIA ANTIQUA. Disponível em:
<http://www.greciantiga.org/txt/estoicos.asp>. Acesso em: 05 de setembro de 2005.
56
Cf. PORTAL MUNDO DOS FILÓSOFOS, O estoicismo. Disponível em:
<http://www.mundodosfilosofos.com.br/estoicismo.htm>. Acesso em: 05 de setembro de 2005.
57
Cf. KOESTER, H., Introdução ao Novo Testamento – História, cultura e religião do período
helenístico, Vol. I, São Paulo, Paulus, 2005, p. 157.
58
Cf. PAULI, E., Neopitagorismo. In: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA.
Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/Megahist-filos/Hel-Rom/2642y390.html>.
Acesso em: 05 de setembro de 2005.
39
59
Cf. Ibidem.
60
Cf. Ibidem.
61
Cf. RIBEIRO JR., W.A., O neoplatonismo. In: PORTAL GRAECIA ANTIQUA. Disponível
em: <http://www.greciantiga.org/fil/fil08.asp>. Acesso em: 05 de setembro de 2005.
62
Cf. Ibidem.
63
Cf. STEAD, C., Platonismo cristão. In: DCT, pp. 1402-1403.
40
64
MIANO, F., Plotino. In: DM, p. 880.
65
Cf. ABBAGNANO, N., Neoplatonismo. In: DF, pp. 710-711.
66
Cf. PORTAL MUNDO DOS FILÓSOFOS, O neoplatonismo. Disponível em:
<http://www.mundodosfilosofos.com.br/neoplatonismo.htm>. Acesso em: 05 de setembro de
2005.
67
Cf. PORTAL ENCICLOPÉDIA CATÓLICA, Neoplatonismo. Disponível em:
<http://enciclopediacatolica.com/neoplatonismo.htm>. Acesso em: 05 de setembro de 2005.
68
Cf. MIANO, F., loc. cit.
69
ANTISERI, D.; REALE, G., História da filosofia – Antiguidade e Idade Média, Vol. I, 7. ed.,
São Paulo, Paulus, 2002, p. 349.
41
70
Cf. Ibidem, p. 350.
71
Cf. Ibidem, p. 348.
72
Tradução da Septuaginta.
73
Cf. MASOLIVER, A., Ascese. In: DTVC, p. 42.
74
Cf. SCHNACKENBURG, R., Ascese. In: DBT, p. 34.
42
12), bem como no dia da ‘Expiação’ (cf. Lv 16, 29ss); mais tarde também na
‘festa de Purim’ (cf. Est 9, 31). Havia também o jejum espontâneo, individual,
praticado depois de falta grave (cf. 2Sm 12, 16ss; 1Rs 21, 27), cuja finalidade era
esconjurar a ira e o castigo de Deus. Somente no judaísmo pós-exílico, sofrido e
consciente da culpa dos antepassados e de sua própria culpa, cresceu no povo o
desejo de renúncia e de penitência. Ao mesmo tempo a piedade legalista, que se
baseava sobre um grande número de boas obras e méritos, exigia a prática de
exercícios religiosos, entre os quais estavam: rezar em determinadas horas do dia,
dar esmolas e jejuar (cf. Tb 12, 8)75.
Um dado importante é que toda essa prática penitencial exterior deveria ser
acompanhada por um comportamento interior de conversão, de repúdio ao pecado
e de ardente desejo de retornar a Deus (cf. 1Sm 7, 3)76. Por isso, os profetas
insistiram tanto no conteúdo espiritual das práticas exteriores de penitência; isto é,
para que tivessem valor e produzissem frutos, precisavam ser acompanhadas da
contrição interior, pois somente assim poderiam refrear os vícios e as paixões (cf.
Is 58, 1-9)77.
O povo de Israel conheceu também a prática do “Nazireado”, que alguns
escolhiam como forma de consagração temporária a Deus (cf. Nm 6, 1-8). Embora
no Antigo Testamento não se encontre determinado um número de dias para o
cumprimento de tal voto, a tradição judaica prescrevia trinta dias, podendo-se
duplicar ou até triplicar esse período. Sansão, Samuel e João Batista foram os
únicos nazireus vitalícios registrados na bíblia, sendo que já antes de seu
nascimento, seus pais fizeram os votos por eles (cf. Jz 13, 4-5.7; 1Sm 1, 11-21; Lc
1, 15). Eram deveres do nazireu: privar-se de todo tipo de bebida alcoólica; abster-
se de cortar os cabelos e a barba, sinal visível da consagração; fugir de todo
contato impuro, especialmente com os cadáveres, não lhes sendo permitido sequer
sepultar os próprios parentes. Ao término dos votos, o nazireu oferecia um
holocausto, um sacrifício expiatório e um agradecimento, pães ázimos, óleo e
libações. Durante o sacrifício de agradecimento, o nazireu tinha os cabelos
75
Cf. Ibidem, p. 35.
76
Cf. ANCILLI, E.; LAUDAZI, C., Ascesi. In: DES, p. 214.
77
Cf. Ibidem.
43
cortados e queimados no fogo; depois podia beber vinho, pois estava totalmente
liberado do voto78.
1.2.2.
Judaísmo palestinense
78
Cf. YOUNGBLOOD, R., Nazireu. In: DIB, p. 1013.
79
Cf. SCHNACKENBURG, R., Ascese. In: DBT, p. 35.
80
Cf. YOUNGBLOOD, R., Essênios. In: DIB, pp. 505-506.
81
Cf. TILLY, M., Assim viviam os contemporâneos de Jesus, São Paulo, Loyola, 2004, p. 78.
82
Cf. SCHNACKENBURG, R., loc. cit.
83
Cf. YOUNGBLOOD, R., Essênios. In: DIB, p. 506.
44
1.2.3.
Novo Testamento
84
Cf. SCHNACKENBURG, R., Ascese. In: DBT, p. 35.
85
Cf. Ibidem.
45
86
Cf. Ibidem.
87
Cf. MARIANI, B., L’ascesi cristiana. In: RIVISTA DI VITA SPIRITUALE, Roma, 1967, p.
497.
88
Cf. Ibidem.
46
pois ele age nas trevas, é invisível e capaz de toda maquinação. O cristão deve
estar equipado para uma guerra, portando armas de defesa89:
“Por isso, protegei-vos com a armadura de Deus, a fim de que possais resistir no
dia mau, e assim, empregando todos os meios, continueis firmes. Ficai, pois, de
prontidão, tendo a verdade como cinturão, a justiça como couraça e os pés calçados
com o zelo em anunciar a Boa-Nova da paz. Em todas as circunstâncias, empunhai
o escudo da fé, com o qual podeis apagar todas as flechas incendiadas pelo
maligno. Enfim, ponde o capacete da salvação e empunhai a espada do Espírito,
que é a Palavra de Deus” (Ef 6, 13-17).
89
Cf. Ibidem, p. 498.
90
Cf. Ibidem.
91
Cf. Ibidem, p. 499.
47
dessa forma uma tentação difícil de resistir. Obcecado pelas seduções do mundo,
o homem torna-se seu escravo (cf. Rm 6, 16-23). Daí a necessidade de um esforço
do cristão para libertar-se do influxo do mundo92.
Por fim, o último inimigo do cristão é o “dinheiro”. São Paulo não é
contrário ao dinheiro e ao seu uso honesto. Ele mesmo organiza coletas para
beneficiar os cristãos de Jerusalém (cf. Rm 15, 25-28; 1Cor 16, 1-4; 2Cor 8-9; Gl
2, 10). Trabalha dia e noite com as próprias mãos para garantir seu próprio
sustento, a fim de não ser peso para nenhuma comunidade cristã (cf. 1Cor 4, 12;
1Ts 2, 5-9; 2Ts 3, 8-10). Pede aos fiéis que trabalhem com as próprias mãos, não
só para fugir do ócio, mas também para que as comunidades cristãs não fiquem
dependente dos pagãos (cf. 1Ts 4, 11-12). Por isso adverte que aquele que não
trabalha, também não deve comer (cf. 2Ts 3, 10.12)93.
São Paulo se dá por satisfeito com o necessário para sobreviver com
dignidade, e não busca nada além disso: “Então, tendo com que nos sustentar e
nos vestir, fiquemos contentes” (1Tm 6, 8). Desta maneira, sente que tem mais
credibilidade para anunciar a Palavra de Deus. Ele sabia muito bem, por
experiência que tinha do mundo de então, que o amor ao dinheiro é insaciável, é a
origem de todos os males: “Na verdade, a raiz de todos os males é o amor ao
dinheiro. Por se terem entregue a ele, alguns se desviaram da fé e se afligem com
inúmeros sofrimentos” (1Tm 6, 10)94.
1.2.3.2.2.
A ascese em metáforas esportivas
São Paulo compara o cristão a um atleta: “Acaso não sabeis que, no estádio,
todos correm, mas só um ganha o prêmio? Correi de tal maneira que conquisteis o
prêmio” (1Cor 9, 24). O cristão não é, todavia, um simples atleta, mas é aquele
que corre para ganhar o prêmio. No seu modo de agir deve ser ágil, sempre
disposto a correr rumo à pátria celeste. A vida cristã é uma corrida para pessoas
fortes, determinadas a vencer sempre. Tudo o que impede a vitória na competição
deve ser eliminado. Como o corpo e a vontade através do treinamento tornam o
atleta o mais capacitado possível para a vitória, do mesmo modo a luta contra o
pecado e as tentações tornam o cristão também apto à vitória. Assim como o atleta
92
Cf. Ibidem, p. 501.
93
Cf. Ibidem, pp. 502-503.
48
94
Cf. Ibidem, p. 503.
95
Cf. Ibidem, pp. 508-509.
96
Cf. Ibidem, p. 510.
97
Cf. BORRIELLO, L., Ascese-ascética. In: DM, p. 113.
49
98
Cf. BORACCO, P., Ascese e disciplina. In: DTM, pp. 37-38.
99
Cf. MONDONI, D., Teologia da espiritualidade cristã, São Paulo, Loyola, 2000, pp. 31-32.
100
Cf. COGNET, L., Lês problèmes de la spiritualité, Paris, Éditions Du Cerf, 1967, pp. 59-60.
101
Cf. MONDONI, D., op. cit., p. 32.
50
102
Cf. AMATO, A., Montanismo. In: DM, pp. 761-762; PADOVESE, L., Montanismo. In: LDTE,
pp. 512-513: O montanismo foi um movimento apocalíptico surgido na Frigia, Ásia Menor, por
volta da segunda metade do século II, e deve seu nome a Montano. Antes da conversão ao
cristianismo, Montano fora sacerdote de Apolo e de Cibele e, depois do batismo, sentiu-se
chamado pelo alto a tornar-se porta-voz do Espírito Santo, profetizando a descida da Jerusalém
celeste (cf. Ap 21, 1.10) no vilarejo frígio de Pepuza, considerado a nova “cidade santa”. Montano
pressupunha ser a encarnação do próprio Espírito Santo e o iniciador de uma nova fase da
revelação divina, depois da neotestamentária. Com seu estilo profético pretendia promover o
antigo fervor da Igreja despertando o carisma da profecia e da glossolalia, pregando a iminência do
fim do mundo e propondo certo rigor moral e ascético, como a prática do jejum, o desprezo pelo
matrimônio e a condenação de segundas núpcias. A primeira fase do montanismo foi concluída ao
término do século II, quando, não se concretizando o fim do mundo, a expectativa crucial aos
poucos se extinguiu. No início do século III começou a segunda fase, de acentuado rigor moral,
que teve em Tertuliano excepcional intérprete. Indício desse rigor foi a firme proibição de fugir ao
martírio, pois a fuga era vista como indevida conivência com o mundo, em vias de ser destruído. A
iminência do fim do mundo também justificava o entusiasmo com que os montanistas falavam da
renúncia ao matrimônio e da proibição de segundas núpcias. Nessa fase o rigor montanista
assumiu postura herética, quando se opôs à atitude da Igreja de perdoar os cristãos que caiam em
pecado depois do batismo. Era a contestação do poder das chaves detido pela Igreja. Em “De
pudicitia”, Tertuliano não reconhecia mais esse poder dos bispos: a Igreja hierárquica não seria
mais depositária do poder de perdoar os pecadores, e sim a Igreja espiritual. O montanismo não se
limitou à Frigia, mas espalhou-se pelo mundo antigo encontrando adeptos por todas as partes.
Traços da prolongada persistência do montanismo são as reiteradas condenações a que é
submetido. Uma das últimas remonta ao VI Concílio Ecumênico, no final do século VII.
103
Cf. DIEGO SANCHEZ, M., Historia de la espiritualidad patrística, Madrid, Editorial de
Espiritualidad, 1992, p. 62.
104
Cf. BORACCO, P., Ascese e disciplina. In: DTM, p. 38.
105
JOSÉ MATOS, H. C., Introdução à história da Igreja, Vol. I, 5. ed., Belo Horizonte, O
Lutador, 1997, pp. 97-98. “Entre os atos de Constantino em favor da Igreja, podem ser citados: a
concessão de imunidades ou isenção de obrigações pessoais para com o Estado (impostos, etc.),
tanto para os sacerdotes pagãos, como para o clero católico; o reconhecimento jurídico das
decisões episcopais: os bispos podem arbitrar causas também de pagãos; abolição da crucifixão e
51
proibição das lutas de gladiadores (...); permissão à Igreja de receber heranças e grandes doações
(...); reconhecimento do domingo como feriado e progressiva redução das festas pagãs”.
106
Cf. ESTRADA DÍAZ, J. A., La espiritualidad de los laicos, México, Paulinas, 1994, p. 87.
107
Cf. BORACCO, P., loc. cit.
108
Cf. Ibidem.
109
Cf. DIEGO SANCHEZ, M., Historia de la espiritualidad patrística, Madrid, Editorial de
Espiritualidad, 1992, p. 72.
110
Cf. Ibidem.
52
111
Cf. AUMANN, J., Síntese histórica da experiência espiritual católica. In: GOFFI, T.,
SECONDIN, B. (Orgs.), Problemas e perspectivas de espiritualidade, São Paulo, Loyola, 1992, p.
72.
112
PENCO, G., Abate. In: DES, p. 01: “Tarefa do abade é dirigir os monges no caminho da
perfeição sobretudo com o exemplo, corrigindo os negligentes mas sabendo adaptar-se à índole de
todos. Ele preside a celebração litúrgica (se bem que o seu ofício não requeira necessariamente o
sacerdócio) e imprime ao mosteiro a sua fisionomia particular. A tradição espiritual considera o
abade como pastor do rebanho, médico da alma, mestre e artífice da arte ascética, sábio
dispensador dos mistérios de Deus, anjo da comunidade; desde a Alta Idade Média foi lhe
conferida as insígnias pontificais além de considerar seu ofício como perpétuo”.
113
Cf. ESTRADA DÍAZ, J. A., La espiritualidad de los laicos, México, Paulinas, 1994, p. 88.
53
114
Cf. AUMANN, J., Síntese histórica da experiência espiritual católica. In: GOFFI, T.,
SECONDIN, B. (Orgs.), Problemas e perspectivas de espiritualidade, São Paulo, Loyola, 1992, p.
73.
115
Cf. GROSSI, V., Il “cor” nella spiritualità di sant’Agostino. In: BERNARD, C. A. (Org.),
L’antropologia dei maestri spirituali, Paoline, Cinisello Balsamo (Milano), 1991, pp. 132-133.
116
SANTO AGOSTINHO, Confissões, 5. ed., Edições Paulinas, São Paulo, 1984, p. 175 (Livro
VII, 10, 16).
117
Cf. GROSSI, V., op. cit., p. 133.
118
Cf. DATRINO, L.; SORSOLI, C.; TRAPÈ, A., Agostino (santo). In: DES, Vol. I, pp. 56-60;
MONDONI, D., Teologia da espiritualidade cristã, São Paulo, Loyola, 2000, p. 39: O ideal
monástico agostiniano inspira-se no ideal de vida da primeira comunidade cristã (cf. At 2, 44; 4,
34) e na perfeição da vida social dos santos no céu. Portanto, a vida monástica, segundo Agostinho
deve ser fundada sobre a pobreza individual absoluta, como renúncia total à propriedade e como
vida de comunhão perfeita. Vivendo essa pobreza radical, o monge será capaz de vencer a
concupiscência e crescer na caridade. Para Agostinho, caridade nunca é amor privado, isto é, amor
fechado em nosso interesse pessoal, amor por aquilo que é passageiro, amor desordenado de si,
que gera orgulho e está na raiz de toda frustração e agressividade. Caridade é sempre amor social,
amor que abraça o universo e toda criatura, que elimina progressivamente o egoísmo da alma
humana. Também, por isso, o monge movido pela caridade sente a necessidade de dedicar-se ao
trabalho missionário da Igreja. A regra de santo Agostinho permite aos monges o trabalho pastoral.
119
SPANNEUT, M., Os Padres da Igreja – Séculos IV-VIII, Vol. II, São Paulo, Loyola, 2002, p.
209: “(...) Depois de ter enumerado os preceitos, ele lembra, numa oração final, o espírito de
caridade e de liberdade que tudo deve animar. As prescrições concretas, pouco numerosas e
adaptáveis às circunstâncias, encontram seu sentido apenas nessa mesma caridade. É o amor que é
a razão de ser do mosteiro e que dá testemunho. (...) Os mosteiros são como que pontos de
ancoragem do amor, em que a ‘Cidade de Deus’ tende a se tornar visível entre os homens”.
54
120
Cf. GROSSI, V., Agostinho (santo). In: DM, pp. 25-27.
121
MONDONI, D., Teologia da espiritualidade cristã, São Paulo, Loyola, 2000, p. 39: “Todo ser
humano está envolvido na herança de Adão pecador: este provocou uma situação de morte
espiritual, um enfraquecimento da liberdade, e levou o ser humano a um estado beligerante entre
as aspirações da alma e o sentir corpóreo; o ser humano histórico é uma imagem deformada,
estimulado ao amor de si; sair deste estado significa dar novamente ao humano sua imagem
primigênia, criar nele um contínuo processo de assemelhar-se ao Deus uno e trino”.
122
Cf. DATRINO, L.; SORSOLI, C.; TRAPÈ, A., Agostino (santo). In: DES, p. 56.
123
SPANNEUT, M., Os Padres da Igreja – Séculos IV-VIII, Vol. II, São Paulo, Loyola, 2002, p.
315: “(Bento) Elabora para seu uso (...) ‘a mais famosa regra monástica do Ocidente latino’,
‘modelo deste gênero literário’. Ela é, sem dúvida, inspirada na anônima ‘Regra do Mestre’, que já
era conhecida na região de Roma desde o começo do século VI, mas também na ‘regra do nosso
santo pai Basílio’, de Agostinho e de Cassiano (...). A comunidade, organizadíssima, mas vivida
muito fraternalmente, está colocada sob a autoridade de um abade, eleito pela vida toda,
administrador e mestre espiritual, que exige total obediência, mas que sabe adaptar parcialmente,
com sabedoria e discernimento surpreendentes, as exigências ascéticas e espirituais às capacidades
e à personalidade de cada membro. O ofício divino ocupa o centro das atividades, ‘para que em
tudo Deus seja glorificado’. O restante do tempo é consagrado ao retiro silencioso, com a leitura
meditada da bíblia, e ao trabalho manual. O mosteiro deve ser auto-suficiente e estar aberto ao
exterior para a acolhida e a partilha, apesar da clausura. A estabilidade definitiva é exigida na
entrada. A virtude mais destacada é, sem dúvida, a humildade, dividida em doze graus; são Bento
é o primeiro a dar o exemplo disso: fala de sua ‘pequena regra para principiantes’ e recomenda
calorosamente as outras (...). A regra é para ‘a raça bastante corajosa’ dos cenobitas, mas visa
também, além deles, à solidão dos anacoretas. Aos poucos, essa regra se impôs a todo o Ocidente,
ao lado da regra de santo Agostinho, mais apreciada pelos clérigos. Ela tem pontos de contato com
a regra mais austera do monge irlandês Columbano, que encontrou adeptos também na Itália e na
Gália. Algumas vezes as duas Regras chegam a se amalgamar. O Papa Gregório Magno, que
enaltece longamente Bento em seus ‘Diálogos’, parece adotar sua Regra. Ele a enviou para a
Inglaterra, com os quarenta monges evangelizadores. Porque, mediante essas influências tão
diversas, ‘fez erguer-se sobre o nosso continente a aurora de uma nova era’, são Bento mereceu ser
reconhecido por Paulo VI como ‘patrono principal de toda a Europa’”.
124
Cf. MONDONI, D., Teologia da espiritualidade cristã, São Paulo, Loyola, 2000, pp. 41-42.
55
ascese beneditina concebe a humildade como uma escada com doze degraus, cuja
subida exige, sobretudo, obediência e paciência125. O primeiro degrau da
humildade é o temor de Deus e o medo do inferno; o décimo segundo, e último
degrau da humildade, objetivo principal da ascese beneditina, é a obediência sem
hesitação, o que é próprio daqueles que não amam nada nem ninguém acima de
Cristo. Portanto, a humildade se exercita pela obediência e pela paciência, bem
como pelo rebaixamento e pelo silêncio. Ser flexível aos irmãos, dobrar-se às suas
justas exigências, sem fazer das idéias próprias medidas absolutas, é sinal,
condição e conseqüência da humildade126.
Além da regra, para proteger o monge do assédio do mundo e também para
preveni-lo do envolvimento num trabalho pastoral, são Bento acrescentou à vida
dos beneditinos o voto de estabilidade, que fixou o monge física e juridicamente
no seu mosteiro127. Esse voto foi muito oportuno para pôr fim ao péssimo costume
de viver trocando de mosteiro, por parte de alguns monges, o que denotava,
muitas vezes, ausência de vocação à vida monástica.
Em suma, enquanto no oriente era acentuada a ascese corporal, no ocidente
se valorizava a ascese interior, pela influência direta de santo Agostinho e de são
Bento. Mas tanto no oriente, como no ocidente, todos os meios ascéticos – do
trabalho manual aos períodos de solidão e de oração; do trabalho pastoral até
mesmo às mais rudes penitências corporais –, todos visavam um único objetivo: a
santidade128.
Ao povo, a Igreja também recomendou as práticas ascéticas, motivando
abstinências, jejuns e orações. Todavia, a plena educação ascética realizava-se
individualmente, sob a orientação dos confessores e diretores espirituais, mediante
práticas e métodos adaptados à índole, exigências e capacidade de cada fiel129.
1.3.2.
Época medieval
125
Cf. DE VOGÜE, A., Bento de Núrsia (santo). In: DM, pp. 166-167.
126
Cf. MONDONI, D., op. cit., p. 42.
127
Cf. AUMANN, J., Síntese histórica da experiência espiritual católica. In: GOFFI, T.,
SECONDIN, B. (Orgs.), Problemas e perspectivas de espiritualidade, São Paulo, Loyola, 1992, p.
73.
128
Cf. ANCILLI, E.; LAUDAZI, C., Ascesi. In: DES, Vol. I, p. 216.
56
129
Cf. Ibidem.
130
LECLERCQ, J., La spiritualità del medioevo, Vol. IV/A, 2. ed., Bologna, Dehoniane Bologna,
1986, p. 82: “Pode-se dizer que na Irlanda a instituição monástica atingiu uma popularidade que
não teve nada semelhante em outro país, ou em outra época, de modo que a característica mais
notável deste período é um extremo entusiasmo pelo ideal monástico. Esta situação deixará uma
marca profunda na vida eclesiástica: no V e VI século, os bispos eram abades ou monges
nomeados pelos abades”.
131
Cf. ROUILLARD, P., História da penitência – Das origens aos nossos dias, São Paulo, Paulus,
1999, p. 36.
132
Cf. RUIZ, F., Penitenza (sacramento della). In: DES, Vol. III, pp. 1918-1919: O ingresso do
pecador na ordem dos penitentes era decisão do bispo, e em alguns casos dos sacerdotes. O
pecador submetia-se a um rito litúrgico que o agregava a outros penitentes. O rito compreendia
uma imposição de mãos por parte do bispo e a aceitação de uma determinada ‘prática penitencial’
por parte do penitente: em alguns lugares, usava-se o cilício; na França, raspava-se a cabeça; na
Espanha deixava-se o cabelo e a barba crescerem. Com o ingresso na ordem dos penitentes, o
pecador começava o seu período penitencial com as penitências que lhe foram impostas. A
duração do período penitencial variava de lugar para lugar. Ao término do período penitencial, o
pecador era reconciliado com a Igreja, mediante uma solene celebração presidida pelo bispo, e da
qual normalmente participava todo a comunidade. Depois da reconciliação ele podia adentrar a
Igreja e participar da comunhão eucarística. A penitência eclesiástica era permitida uma única vez
na vida, pois era como um ‘segundo batismo’, e por isso não podia ser repetido. Com o advento da
penitência tarifada, a confissão passou a ser privada e reiterável, não havia mais a admissão
pública à ‘ordem dos penitentes’; o que permaneceu da antiga prática penitencial era o rigor das
penitências a serem cumpridas, como forma de expiar os pecados cometidos.
133
MALASPINA, E., Columbano. In: DPAC, p. 314: “Monge irlandês, do mosteiro de Bangor,
partiu, com a permissão do abade S. Comgall, como peregrino e missionário através da França.
Fundou vários mosteiros até chegar à Burgúndia, onde se fixou, a convite do rei Gontrão, na região
dos Vosges. Aí, para viver seu intenso espírito de penitência, escolheu as ruínas da antiga
Luxovium (Luxeuil), fundando o célebre mosteiro. A regra por ele dada a seus monges dava
grande importância à obediência, à penitência e ao trabalho manual (...). Já que reprovava os
costumes dissolutos da corte burgúndia, foi preso e banido do reino (610). Visitou em Tours o
túmulo de são Martinho e, peregrinando através da França, suscitou numerosas vocações
monásticas e fundou outros mosteiros (...). Foi hóspede de Agilulfo em Milão, onde teve uma
disputa com os arianos; fundou o mosteiro de Bobbio (614), onde morreu no ano seguinte e onde
está sepultado”.
134
ROUILLARD, P., História da penitência – Das origens aos nossos dias, São Paulo, Paulus,
1999, pp. 36-37: “Nesses mosteiros (irlandeses), como no Oriente, os monges e, depois, os
clérigos e os leigos que viviam na órbita do mosteiro confessavam suas faltas a um monge
espiritual, sacerdote ou não, e recebiam dele uma penitência, cuja duração, que podia ir de alguns
dias a vários anos, era proporcional à gravidade das faltas; cumprida a penitência, o pecador se
apresentava de novo ao seu confessor e recebia dele o perdão, considerado mais como uma
absolvição pessoal do que como uma reconciliação eclesial (...). Os confessores, para exercerem
57
que, por sua vez, incentivarão a ‘prática penitencial privada’, isto é, fora do
sacramento da confissão135. Dentre essas práticas, as mais conhecidas foram: o
jejum, a vigília prolongada com os braços em cruz e as imersões em água gelada,
recitando preces136. Essas práticas ascéticas foram exercitadas por séculos, por
uma multidão de fiéis. Igualmente as peregrinações por amor de Cristo, uma
espécie de exílio voluntário assumido por muitos como meio de santificação, que
consistia na separação voluntária dos próprios parentes, distanciando-se da terra
natal, à semelhança de Abraão, que deixou sua pátria137.
No século XI, são Pedro Damião (1007-1072) contribui para acirrar ainda
mais a ascese corporal, incentivando toda uma espiritualidade centrada nos
sofrimentos de Cristo durante sua paixão. A partir de então, a espiritualidade
cristã não mais concebeu a cruz como um instrumento de libertação, nem como
um testemunho de amor, mas como um exemplo particularmente impressionante
de sofrimento, não apenas voluntariamente aceito, como também procurado. O
importante é imitar, reproduzir na própria vida os sofrimentos de Cristo. Como
conseqüência, novas formas de penitência corporal são criadas, e outras, já
existentes, como a ‘disciplina’ (autoflagelação voluntária), são aperfeiçoadas138. O
grande promotor do uso da disciplina foi são Pedro Damião; porém, quem a
praticou de modo radical foi Maria d’Oignies (†1213), que uniu genuflexão e
autoflagelação: a cada genuflexão, ela infligia a si mesma trezentos golpes de
chicote. Pelo fim da Idade Média, a disciplina cotidiana foi levada ao fanatismo
bem seu ministério, dispunham de pequenos livros, chamados ‘penitenciais’, os quais indicavam,
de maneira precisa, a penitência a impor por cada falta: daí o nome de ‘penitência tarifada’ dado a
esse sistema”. Para um maior aprofundamento a respeito dos ‘livros penitenciais’, sugiro: RAMOS
REGIDOR, J., Teologia do sacramento da penitência, São Paulo, Paulinas, 1989, 507 p.;
especialmente o capítulo II, pp. 193-205.
135
Cf. ANCILLI, E.; LAUDAZI, C., Ascesi. In: DES, Vol. I, p. 216.
136
Ibidem: “São célebres os banhos gelados de são Patrício, de santa Brígida de Kildare, que toda
noite de inverno mergulhava nas águas geladas de uma lagoa, rezando e derramando santas
lágrimas. Assim também o célebre abade de Bobbio, são Columbano († 615), recitava
freqüentemente um saltério inteiro na água gelada”.
137
Cf. LECLERCQ, J., La spiritualità del medioevo, Vol. IV/A, 2. ed., Bologna, Dehoniane
Bologna, 1986, p. 84-86.
138
Cf. BOUYER, L., Introduction a la vie spirituale, Paris, Desclée & Cie Éditeurs, 1960, p. 139;
ANCILLI, E.; LAUDAZI, C., loc. cit.: “A disciplina como instrumento de penitência era praticada
correntemente já desde os tempos de são Bento, porém, mais como penitência disciplinar do que
como voluntária autoflagelação. Neste sentido, é mais recente. São Pedro Damião foi o grande
promotor do uso da disciplina no século XI, com o opúsculo ‘De laude flagellorum’, com o
exemplo e com a pregação”.
58
139
Cf. PETROSILLO, P., Flagelantes. In: DFC, p. 112: Flagelantes eram os membros de
movimentos e confrarias medievais que praticavam a penitência com flagelações públicas. Esse
movimento teve seu ponto alto na segunda metade do século XIII, quando grupos de pessoas
percorriam as cidades e campos flagelando-se em público a si mesmos ou uns aos outros, enquanto
rezavam.
140
Cf. ANCILLI, E.; LAUDAZI, C., Ascesi. In: DES, Vol. I, p. 216.
141
Cf. PIGNA, A., La vita religiosa – Teologia e spiritualità, Roma, Edizioni OCD, 1991, pp. 22-
23.
142
Cf. Ibidem, p. 23.
143
Cf. GOZZELINO, G., Al cospetto di Dio – Elementi di teologia della vita spirituale, Torino,
Elle di Ci, 1999, p. 102.
144
Cf. Ibidem, p. 103.
59
“A beleza do corpo está toda na pele. Com efeito, se os homens fossem dotados,
como os linces da Beócia, de penetração visual interna e vissem aquilo que está
debaixo da pele, a simples visão das mulheres ser-lhes – ia nauseabunda: esta graça
feminina é apenas saburro, sangue, humor, fel. Observem aquilo que se esconde
nas narinas, na garganta, no ventre: impurezas por todo o lado (...) e nós que temos
repugnância em tocar, mesmo que seja com a ponta dos dedos, em vomitado ou
esterco, como poderíamos desejar ter nos braços um saco de excrementos?”147.
145
Cf. GIOVANNA DELLA CROCE, Henrique Suso. In: DM, p. 995: Henrique Suso nasceu em
21 de março de 1295, em Constança (em alemão, Überlingen). Ao treze anos entrou para a ordem
Dominicana. Terminado os estudos em Colônia, logo se tornou leitor e prior em Constança. Em
1330, acusado de ter defendido a doutrina heterodoxa de Eckhart, foi obrigado a se retirar do
ensino e se dedicou a obras pastorais, especialmente à direção espiritual das dominicanas. Ao
desencadear-se a luta de Ludovico, o ‘Bávaro’ († 1347), contra o papa, refugiou-se com a
comunidade dominicana em Diessenhofen (1339-1346/7). Voltando a Constança, tornou-se prior
novamente, mas, depois, de graves difamações, transferiu-se para Ulm, onde morreu, em 25 de
janeiro de 1366. Segundo Henrique Suso o ser humano para chegar à comunhão com Deus, tem
necessidade de ser deformado das criaturas, conformado segundo Cristo e transformado em Cristo.
Isso exige que passe pelas purificações passivas, para as quais é indispensável a aceitação plena
dos sofrimentos, com a firme vontade de participar da paixão de Cristo. Isso pressupõe o desapego
radical, o abandono perfeito e profunda interioridade. Exige também meditação assídua dos
sofrimentos de Cristo, até chegar a profunda compaixão e imitação existencial.
146
Cf. BOUYER, L., Introduction a la vie spirituale, Paris, Desclée & Cie Éditeurs, 1960, p. 139.
147
HUIZINGA, J., Le déclin du Moyen Age, Paris, Payot, p. 407. Apud CHAUNU, P., O tempo
das reformas (1250-1550). A crise da cristandade, Lisboa, Edições &0, 2002, p. 158.
60
uns aos outros e a dançar, lembrando que a morte afeta pessoas de qualquer idade
e condição148.
1.3.3.
Época moderna
148
Cf. CHAUNU, P., O tempo das reformas (1250-1550). A crise da cristandade, Lisboa, Edições
70, 2002, pp. 157-159.
149
Sobre o sentimento de culpa na espiritualidade cristã recomendo a obra de DELUMEAU, J., O
pecado e o medo. A culpabilização no Ocidente (séculos XIII-XVIII), 2 vol., Bauru, Editora da
Universidade do Sagrado Coração, 2003, 1061 p.
150
Cf. PACHO, E., Giansenismo. In: DES, Vol. II, p. 1113.
151
Cf. LOWERY, D., Jansenismo. In: DCB, p. 82.
61
152
Cf. PACHO, E., Giansenismo. In: DES, Vol. II, p. 1114.
153
Cf. JANSEN, T., Jansenismo. In: LDTE, pp. 407-408.
154
Cf. MONDONI, D., Teologia da espiritualidade cristã, São Paulo, Loyola, 2000, p. 64;
PACHO, E., op. cit., p. 1115: O jansenismo impunha a idéia de um Deus tão soberano, que o ser
humano não tinha acesso afetivo a ele: sempre o temor e a reverência deveriam ser os sentimentos
do cristão na presença de Deus. Como reação à espiritualidade do medo difundida pelo jansenismo
surgiu com reação a espiritualidade do afeto, difundida pela devoção ao ‘Sagrado Coração de
Jesus’.
155
Cf. BOUYER, L., Introduction a la vie spirituale, Paris, Desclée & Cie Éditeurs, 1960, p. 140.
156
Cf. BALDASSARRE, E., Margarida Maria Alacoque (santa). In: DM, p. 661.
62
157
Cf. TESSAROLO, A., Riparazione. In: DES, Vol. III, p. 2176.
158
Cf. COGNET, L., L’ascèse em France du XVI° au XVIII° siègle. In: L’ascèse chrétienne et
l’homme contemporain, Paris, Les Éditions Du Cerf, 1951, p. 89.
159
Cf. Ibidem, pp. 89-90.
160
Cf. Ibidem, p. 92.
161
PETROSILLO, P., Modernismo. In: DFC, p. 184: O modernismo foi um “movimento cultural e
religioso dos últimos anos do século XIX e primeiros do século XX, nascido no catolicismo
europeu, que procurava tornar possível uma reconciliação entre a doutrina cristã e as ciências
modernas, especialmente o método histórico-crítico, e, ao mesmo tempo, a realização das reformas
no âmbito da disciplina eclesiástica, para permitir à Igreja poder responder às novas exigências da
sociedade e às problemáticas levantadas pela cultura moderna. O aparecimento no modernismo de
posições extremistas de autores como A. Loisy († 1940) e G. Tyrrel (1861-1909) levaram a uma
condenação em bloco do modernismo em julho de 1907, pelo decreto Lamentabili, condenação
reafirmada em 08 de setembro de 1907 com a encíclica Pascendi de Pio X”.
162
Cf. PIO PP. X, Littera motu proprio Sacrorum antistitum, (01/09/1910). In: AAS 2 [1910], p.
668. Apud BELDA, M.; ILLANES, J. L., Introduzione alla teologia spirituale, Roma, [s.n.], 1994,
p. 21.
63
163
Hoje, “Congregação para a Educação Católica”.
164
Cf. PIO PP. XI, Deus scientiarum Dominus, (24/05/1931). In: AAS 23 [1931], pp. 271.281.
Apud BELDA. M.; ILLANES, J. L., op. cit., p. 22.
165
GUERRA, A., Introducción a la teologia espiritual, Santo Domingo, Editorial de
Espiritualidad del Caribe, p. 27: “A recomendação de Pio X se fez pronta realidade com a criação
das cátedras de ascética e mística no ‘Angélico’, em 1919 e na ‘Gregoriana’, em 1920. A primeira,
regida por Fr. Garrigou-Lagrange; a segunda, por Pe. Marchetti”.
166
Adolphe Tanquerey nasceu em Blainville, na França, em 1854. Foi sacerdote sulpiciano e
professor de teologia dogmática e direito canônico. Autor de um grande número de livros e de
publicações de caráter espiritual, Tanquerey adquiriu rapidamente a fama de mestre e suas obras se
converteram em ponto de referência para a teologia da época. Morreu em Aix-em-Provence,
França, em 1932. Publicou ‘Compêndio de teologia ascética e mística’, em 1924.
167
Reginald Garrigou-Lagrange nasceu em Auch, na França, em 1877, e morreu em Roma, em
1964. Frade dominicano, estudou nas universidades de Sorbone e Friburgo. Foi catedrático de
teologia no ‘Angelicum’, em Roma, durante décadas e um dos grandes teólogos de sua geração.
Sua principal obra literária é ‘As três idades da vida interior’, em dois volumes, publicada na
cidade de Paris, em 1938.
168
Cf. SHELDRAKE, P., Espiritualidade e teologia – Vida cristã e fé trinitária, São Paulo,
Paulinas, 2005, p. 74.
169
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, R., Les trois ages vie intérieure, Tome I, Paris, Les Éditions
Du Cerf, 1938, pp. 10-11.
170
Cf. Ibidem.
64
Esta sumária análise histórica que realizamos desde a filosofia grega até o
surgimento dos clássicos manuais de teologia ascética e mística, no século
passado, ajudou-nos a compreender melhor a “metamorfose” pela qual passou o
termo ascese. A compreensão que nós cristãos atualmente temos de ascese é bem
diversa da concepção inicial grega, como vimos no transcorrer dessa pesquisa.
Vários são os fatores que contribuíram para essa mudança. O marco inicial
foi, sem dúvida, o advento da filosofia, que determinou o fim da religião
naturalista, do pensamento mítico, e o início da sistematização racional da
experiência religiosa. Dessa forma surgiram as escolas filosóficas que procuraram
explicar e ensinar a melhor forma de o homem se autoconhecer e de relacionar-se
171
Cf. TANQUEREY, A., Compêndio de teologia ascética e mística, 3. ed., Porto, Livraria
Apostolado da Imprensa, 1940, pp. 228-229; 608-615; 805-972: O que caracteriza a condição dos
principiantes (via purgativa) é a chamada ‘purificação da alma’, cujo objetivo é conseguir a
comunhão com Deus. Os meios utilizados para alcançar a comunhão teologal são: oração e
mortificação. Porém a mortificação recebe diferentes nomes, segundo os aspectos sob os quais
pondera: chama-se ‘penitência’, quando leva a expiar as faltas passadas; ‘mortificação’
propriamente dita, quando se opõe ao prazer, para diminuir o número de faltas no presente e no
futuro; ‘luta contra os pecados capitais’, quando combate as tendências profundas que levam o
homem a pecar; e, por fim, chama-se ‘luta contra as tentações’, quando resiste ao assalto dos
inimigos espirituais. Purificada a alma das faltas passadas, por meio das penitências; confirmada
na virtude pelo exercício da meditação, é o momento de progredir para a ‘via iluminativa’, assim
chamada por consistir principalmente na imitação de Jesus Cristo, através da oração afetiva, e pela
prática constante das virtudes morais e teologais. E quando totalmente purificada e adornada pelo
exercício positivo das virtudes, a alma está apta para a união habitual com Deus, ou, em outras
palavras, está pronta para a ‘via unitiva’, capacitada para atingir a perfeição cristã. Nesta última
etapa, a alma aperfeiçoa os sete dons do Espírito Santo, a oração se torna simples, convertendo-se,
primeiramente, numa espécie de contemplação ativa, para, em seguida, atingir a contemplação
infusa, podendo, até mesmo, chegar à manifestação de fenômenos místicos extraordinários.
65
172
Cf. VANDENBROUCKE, F., Le divorce entre théologie et mystique. Ses origines. In:
NOUVELLE REVUE THÉOLOGIQUE, n. 82, 1950/4, pp. 372-389. Apud BELDA, M.;
ILLANES, J. L.; Introduzione alla teologia spirituale, Roma, [s.n.], 1994, pp. 10-11.
66
173
Cf. Ibidem, p. 11.
174
Cf. Ibidem.
175
Cf. PACHO, E., Storia della spiritualità moderna, Roma, [s.n.], 1984, p. 247.
67
caracterizada pela dor e pelas austeras penitências. Sinal de que a graça de Deus
supera as limitações culturais e humanas.
Os manuais de teologia ascética e mística, do início do século XX, marcam
o retorno da reflexão teológica à prática ascética. Constituem um marco na
história da espiritualidade. Por isso, vamos analisá-los no próximo capítulo.
68
2
Mortificação: teologia e prática
176
Cf. ROYO MARIN, A., Teologia da perfeição cristã, 4. ed., Madrid, BAC, 1962, pp. 48-49.
339.
177
Cf. Ibidem, pp. 342-346: Existem cinco graus de amor ao sofrimento. São eles, por ordem
ascendente de perfeição: 1°) Não omitir nenhum dever desagradável; 2°) Aceitar com resignação
69
as cruzes que Deus envia; 3°) Praticar a mortificação voluntária; 4°) Preferir a dor ao prazer; 5°)
Oferecer-se a Deus como vítima de expiação.
178
Cf. Ibidem, p. 340.
179
Cf. DS 1548: Assim como o pecado gera uma dívida com Deus, a obra meritória tem direito a
uma recompensa, que pode quitar totalmente ou parcialmente as penas devidas pelos pecados
cometidos. O mérito não tem sua origem no simples esforço humano, mas na graça divina; é
conseqüência da filiação divina, da ação de Deus na vida humana. A graça, unindo o homem a
Cristo, assegura a qualidade sobrenatural de seus atos e, conseqüentemente seu mérito diante de
Deus. Os méritos das boas obras são sempre dons da bondade divina.
180
Cf. TANQUEREY, A., Compêndio de teologia ascética e mística, 5. ed., Porto, Livraria
Apostolado da Imprensa, p. 492-493.
70
181
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, R., Les trois ages de la vie intérieure, Tome I, Paris, Les
Éditions Du Cerf, 1938, p. 389.
182
Ibidem, p. 391: “A justiça original era uma harmonia perfeita entre Deus e a alma criada para
amá-lo, conhecê-lo e servi-lo, e entre a alma e o corpo; a alma guardava essa submissão a Deus, as
paixões da sensibilidade permaneciam também submetidas à reta razão iluminada pela fé, e a
vontade era vivificada pela caridade; o corpo participava por privilégio desta harmonia, e não
estava sujeito nem à enfermidade, nem à morte”.
183
Cf. DS 1512.
184
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, I, II, q. 85, a. 3. Apud GARRIGOU-
LAGRANGE, R., op. cit., p. 391.
185
GARRIGOU-LAGRANGE, R., op. cit., p. 393: “Segundo os Padres, em particular o venerável
Beda, em seu comentário à parábola do bom Samaritano, o homem caído está, não somente
despojado da graça e dos privilégios do estado de justiça original, mas também está ferido em sua
natureza, ‘per peccatum primi parentis, homo fuit spoliatus gratuitis et vulneratus in naturalibus’”.
186
Cf. Ibidem, pp. 393-394.
187
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, I, II, q. 109, a. 3. Apud GARRIGOU-
LAGRANGE, R., op. cit., p. 393
188
Cf. Idem, Summa contra gentiles, I. IV, c. LII, n. 3. Apud: GARRIGOU-LAGRANGE, R., op.
cit., p. 394.
71
“Compreendamos bem isto: o nosso homem velho foi crucificado com ele, para
que seja destruído esse corpo de pecado e, assim, não sejamos mais escravos do
pecado. Pois aquele que está morto está libertado do pecado (...). Portanto, que o
pecado não mais reine em vosso corpo mortal para vos fazer obedecer as suas
concupiscências. Não ponhais mais os vossos membros a serviço do pecado como
armas da injustiça; mas como vivos saídos dentre os mortos, fazendo dos vossos
membros armas da justiça, ponde-vos a serviço de Deus” (Rm 6, 6-13).
189
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, R., Les trois ages de la vie intérieure, Tome I, Paris, Les
Éditions Du Cerf, 1938, p. 393-394.
190
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, III, q. 69, a. 3, ad 3; DS 1520. Apud
GARRIGOU-LAGRANGE, R., op. cit., pp. 394-395.
191
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, R., op. cit., pp. 395-396.
72
192
Cf. Ibidem.
193
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, III, q. 86, a. 5. Apud GARRIGOU-
LAGRANGE, R., Les trois ages de la vie intérieure, Tome I, Paris, Les Éditions du Cerf, 1938, p.
397.
194
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, R., op. cit., pp. 395-397.
195
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, III, q. 86, a. 4, ad 2. Apud
GARRIGOU-LAGRANGE, R., Les trois ages de la vie intérieure, Tome I, Paris, Les Éditions Du
Cerf, 1938, p. 398.
73
196
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, R., Les trois ages de la vie intérieure, Tome I, Paris, Les
Éditions Du Cerf, pp. 397-398.
197
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, III, q. 85, a. 3; I, II, q. 87, a. 1, 3, 4, 5.
Apud GARRIGOU-LAGRANGE, R., op. cit., p. 398.
198
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, R., op. cit., p. 399.
199
Cf. ROYO MARIN, A., Teologia de la perfeccion cristiana, Madrid, BAC, 1962, p. 304.
74
reservando tempo para outras atividades prementes ao bem estar humano, como,
por exemplo, o descanso. Por fim, completa Royo Marin, os escândalos e maus
exemplos são usados pelo mundo como incitação ao pecado, em algumas de suas
formas200.
Ainda segundo Royo Marin, o remédio mais eficaz contra o mundo seria
ausentar-se, refugiando-se num mosteiro. Mas como nem todos os cristãos têm
vocação à vida eremítica ou monástica, e a maioria necessita viver imersa no
mundo sem, contudo, renunciar à perfeição cristã, é preciso adquirir a mentalidade
de Jesus Cristo, que é diametralmente oposta à mentalidade do mundo. Isso se dá
de muitas maneiras: fugindo das ocasiões perigosas; evitando espetáculos que
excitam as mais baixas paixões; avivando a fé; desmascarando as máximas do
mundo com as máximas do evangelho; meditando a fugacidade do mundo e a
eternidade de Deus; e, por fim, não sendo covarde, negando o evangelho de Cristo
para simplesmente agradar o mundo, mesmo que isso custe inimizades e
perseguições (cf. Jo 15, 18-20), finaliza Royo Marin201.
2.1.4.
A luta contra as tentações do demônio
200
Cf. Ibidem, pp. 304-305.
201
Cf. Ibidem, pp. 305-307.
202
Cf. TANQUEREY, A., Compêndio de teologia ascética e mística, Porto, Livraria Apostolado
da Imprensa, 1955, pp. 130-131.
75
mover nossa vontade sem fazer violência. Mas o demônio, ainda segundo
Tanquerey, pode agir diretamente sobre o nosso corpo, sobre os nossos sentidos
externos e internos, especialmente sobre nossa memória e nossa imaginação,
assim como sobre as paixões que têm origem em nosso apetite sensitivo; e, desta
maneira, consegue agir ‘indiretamente’ sobre nossa vontade, cujo consentimento
solicita através dos diversos movimentos da sensualidade. Mas ainda que o poder
do demônio se estenda às faculdades sensíveis e ao corpo, Tanquerey,
fundamentado na teologia paulina, assevera que Deus estabelece um limite a esse
poder, para não sermos tentados além de nossas forças (cf. 1Cor 10, 13)203.
E para não ser vítima das astúcias do demônio, que inicialmente nos
estimula a praticar faltas leves para depois levar-nos a outras mais graves, Jesus
Cristo mesmo nos exortou a recorrer à oração, ao jejum e à esmola (cf. Mt 17, 21).
Agindo dessa maneira, conforme Tanquerey, a tentação, não apenas será
derrotada, mas, citando São Tomás de Aquino, se converterá em ocasião de atos
meritórios204.
2.1.5.
Desapego para alcançar a perfeição
203
Cf. Ibidem, pp. 131-132.
204
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, III, supl. q. 15, a. 5. Apud
GARRIGOU-LAGRANGE, R., Les trois ages de la vie intérieure, Tome I, Paris, Les Éditions Du
Cerf, 1938, p. 400.
76
procurai o que está no alto, lá onde se encontra Cristo, sentado à direita de Deus; é
no alto que está a vossa meta, não na terra” (Cl 3, 1-2) 205.
Ainda para reforçar que o cultivo do espírito de desapego é um dos grandes
preceitos cristão, mais uma vez Garrigou-Lagrange cita São Paulo: “Doravante,
aqueles que têm mulher sejam como se não a tivessem (...), os que compram como
se não possuíssem, os que tiram proveito deste mundo, como se não
aproveitassem realmente. Pois a figura deste mundo passa” (1Cor 7, 29-31). É
preciso evitar o apego às coisas e às pessoas, para chegar até Deus. A infinita
dignidade de nosso fim sobrenatural requer total abnegação às coisas humanas,
por legítimas que sejam, pois poderíamos nos deixar absorver por elas,
prejudicando, dessa maneira, a vida da graça, finaliza Garrigou-Lagrange206.
Para enriquecer o tema, finalizamos acrescentando o pensamento de
Antônio Royo Marin a respeito da busca da perfeição. Segundo esse autor, Jesus
crucificado é o modelo, por excelência, de desapego e abnegação às coisas do
mundo. Nossa incorporação a Cristo, pelo batismo, obriga-nos à experiência
purificadora da dor, pois somente a cruz nos configura com Cristo de uma
maneira perfeitíssima, libertando-nos dos apegos desordenados. Antônio Royo
Marin é incisivo, para ele quem almeja a perfeição deve alimentar amor pelo
sofrimento, e cita como fundamentação bíblica São Paulo, que nutre verdadeira
paixão pelo sofrimento ao declarar que vive crucificado com Cristo (cf. Gl 2, 19)
e não quer gloriar-se senão na cruz de Jesus Cristo, pelo qual vive crucificado para
o mundo (cf. Gl 6, 14)207.
2.2.
A prática da mortificação
205
Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, R., Les trois ages de la vie intérieure, Paris, Les Éditions Du
Cerf, 1938, p. 401.
206
Cf. Ibidem.
207
Cf. ROYO MARIN, A., Teologia de la perfeccion cristiana, Madrid, BAC, 1962, p. 341.
77
208
Cf. TANQUEREY, A., Compêndio de teologia ascética e mística, Porto, Livraria Apostolado
da Imprensa, 1955, pp. 424-426.
209
Cf. Ibidem, p. 426.
78
210
Cf. Ibidem, pp. 426-427.
211
Cf. Ibidem, pp. 427-428.
212
Cf. Idem, pp. 428-429.
213
Cf. Idem, p. 429.
79
214
Cf. Idem, pp. 429-430.
215
Cf. Idem, p. 430.
80
216
Cf. Idem.
217
Cf. Ibidem, p. 431.
218
Ibidem, p. 432: “Na base da paixão, há, pois, um certo conhecimento ao menos sensível, dum
bem esperado ou adquirido ou dum mal contrário a este bem; deste conhecimento é que brotam os
movimentos do apetite sensitivo. Estes movimentos são impetuosos e distinguem-se assim dos
estados afetivos agradáveis ou desagradáveis que são calmos, tranqüilos, sem aquele ardor, aquela
veemência que há nas paixões. Precisamente porque são impetuosos e atuam fortemente sobre o
apetite sensitivo, é que se tem repercussão até no organismo físico, por causa da estreita união
entre o corpo e a alma. Assim, a cólera faz afluir o sangue ao cérebro e distende os nervos, o medo
faz empalidecer, o amor dilata o coração, o temor contrai-o. Nem em todos, porém, se apresentam
no mesmo grau estes efeitos fisiológicos, que dependem do temperamento de cada um e da
intensidade da paixão, bem como do domínio que cada qual adquire sobre si mesmo. Diferem,
pois, as paixões dos sentimentos, que são movimentos da vontade, e, por conseguinte, supõem
conhecimento da inteligência e não têm a violência das paixões. Assim é que há amor paixão e
amor sentimento, temor passional e temor intelectual. Acrescentemos que no homem, animal
racional, as paixões e os sentimentos se combinam muitas vezes, quase sempre, em doses
variadíssimas, e que é pela vontade, auxiliada pela graça, que chegamos a transformar em nobres
sentimentos as paixões mais ardentes, subordinando estas àqueles”.
219
Cf. Ibidem, pp. 432-433.
220
Cf. Ibidem, pp. 433.
81
2.2.3.1.
Paixões desordenadas
221
Cf. Ibidem, p. 434.
222
Ibidem, p. 434-435: “Solicitada em sentidos diversos por essas paixões rebeldes, vê-se forçada
a vontade a dispersar as próprias forças, que por isso mesmo vão enfraquecendo. Tudo o que cede
às paixões, aumenta nela as exigências e diminui em si as energias. Semelhante às gomeleiras
inúteis e vorazes que brotam do tronco de uma árvore, os apetites que não são dominados, vão se
desenvolvendo e roubando força à alma, como os rebentos parasitas à árvore. E não tardará o
momento em que a alma enfraquecida caia no relacionamento e na tibieza, disposta a todas as
capitulações”.
223
Ibidem, p. 435: “Quando esta (a alma) cedendo às paixões, se une às criaturas, abate-se ao nível
delas e contrai a sua malícia e as suas manchas; em vez de ser imagem fiel de Deus, torna-se
imagem das coisas a que se apega; grãos de pó; manchas de lodo vêm embaciar-lhe a beleza e
opor-se à união perfeita com Deus”.
82
coisas honestas (estudo, jogo, passeio etc), que produzem uma sadia distração;
bem como refletir sobre as conseqüências naturais e sobrenaturais da paixão
desordenada: escândalo, impossibilidade de avançar na perfeição e salvação em
perigo225.
Também recomenda a realização de atos positivos contrários à paixão,
como, por exemplo: quem experimenta antipatia por alguém deve esforçar-se para
ganhar a simpatia dessa pessoa, prestando-lhe um serviço, sendo amável e,
sobretudo, rezando por ela226.
2.2.3.2.
Paixões ordenadas
Quando as paixões, por outro lado, estão bem ordenadas, isto é, submetidas
à vontade, são muito úteis, segundo Tanquerey, à nossa inteligência e vontade
pois estimulam-nas a buscar a comunhão com Deus227.
Para Tanquerey, quando bem direcionadas, as paixões agem sobre a
inteligência, excitando-a a buscar a verdade com ardor. Se algo nos apaixona,
direcionamos toda nossa atenção para conhecê-lo bem; e, neste processo, a
inteligência apreende mais facilmente a verdade, e a memória é mais persistente
para reter o aprendizado. Por isso, reforça Tanquerey, quem ama
apaixonadamente Jesus Cristo estuda o evangelho com maior entusiasmo e
compreende-o mais prontamente228.
Igualmente quando agem sobre a vontade, as paixões ordenadas levam-na a
utilizar todas as suas energias. O que se faz com amor se faz melhor, com maior
aplicação, constância e êxito. Quando alguém está apaixonado por Deus, não
recua diante de nenhum esforço, sacrifício ou humilhação para fazer o bem,
finaliza Tanquerey229.
224
SÃO JOÃO DA CRUZ, Subida do monte Carmelo, 1, I, c. XI. Apud TANQUEREY, A.,
Compêndio de Teologia ascética e mística, Porto, Livraria Apostolado da Imprensa, 1955, p. 435.
225
Cf. TANQUEREY, A., Compêndio de teologia ascética e mística, Porto, Livraria Apostolado
da Imprensa, 1955, pp. 438-439.
226
Cf. Ibidem, p. 439.
227
Cf. Ibidem, p. 436.
228
Cf. Ibidem.
229
Cf. Ibidem.
83
2.2.4.
Mortificação das potências da alma
230
Cf. Ibidem, p. 442.
231
Cf. Ibidem.
232
Cf. Ibidem, pp. 442-445.
84
faculdades inferiores e dócil para obedecer a Deus. Para se atingir esse fim,
Tanquerey coloca como prioridade eliminar a imprudência, a afobação, a
indecisão, a desconfiança, o medo da crítica e os maus exemplos233. Além da
eliminação desses obstáculos, segundo ele, é também indispensável combinar
harmoniosamente o trabalho da inteligência, da vontade e da graça234.
À inteligência compete fornecer as convicções que serão, ao mesmo tempo,
guia e estímulo para a vontade. Essas convicções têm a função de fortalecer a
vontade humana para esta sempre escolher aquilo que é conforme à vontade
divina. Segundo Tanquerey resumem-se nisto: Deus é o meu fim, e Jesus é o
caminho para se chegar a Deus; devo fazer tudo por Deus em comunhão com
Jesus Cristo; o pecado é o obstáculo que se opõe ao meu fim, portanto devo evitá-
lo; se por infelicidade pecar, reparar o mal cometido imediatamente; fazer
constantemente a vontade de Deus é o único meio para se evitar o pecado; enfim,
procurar conhecer a vontade de Deus, repetindo muitas vezes a palavra de são
Paulo, no momento da sua conversão: “Senhor, que quereis que eu faça?” (At 9,
6). E, à noite, durante o exame de consciência, fazer penitência pelas faltas
cometidas, especialmente as menores235.
A vontade, por sua vez, fortemente influenciada pela inteligência, deve agir
com decisão, firmeza e constância. É necessária a decisão. Depois de refletir e
rezar, reforça Tanquerey a importância de se decidir imediatamente, sem
hesitações, pois a vida é curta, e não há tempo a perder. A decisão deve ser firme,
motivando o agir sem esperar o dia seguinte. A firmeza nas pequenas ações é que
assegura a fidelidade nas grandes. E essa firmeza precisa tornar-se constante, para
o que se renovarão muitas vezes os esforços, sem jamais desanimar pelas
233
Cf. Ibidem, p. 446: a) A imprudência ocorre quando não refletimos para praticar uma ação,
antes seguimos o impulso do momento, a paixão, o capricho; por conseguinte, é necessário refletir
bem antes de passar ao ato; b) A afobação é o entusiasmo passageiro, o fogo de palha. A norma é
sempre agir com moderação e constância; c) A indecisão atrofia as forças da vontade. Decidir e
agir sempre com convicção; d) A desconfiança também prejudica a vontade. Em toda ação, sempre
contar com o auxílio divino para chegar a bons resultados; e) O medo da crítica nos torna escravos
da opinião alheia. O que tem valor é o juízo de Deus, sempre sábio, e não os dos homens, sempre
falível; f) Os maus exemplos nos arrastam, quanto mais correspondem a uma propensão de nossa
natureza. Lembremo-nos, então, de que o único modelo a ser imitado é Jesus; e que o cristão deve
fazer o contrário do que o mundo faz.
234
Cf. Ibidem.
235
Cf. Ibidem, pp. 446-447.
85
236
Cf. Ibidem, p. 447-448.
237
Cf. Ibidem.
86
3
Mortificação: dolorismo e descrédito
238
Cf. Capítulo I, pp. 30-41.
239
GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 276: “A alma não
é divina nem emanação do divino. Não é preexistente nem se encontra em situação de castigo,
prisioneira do corpo (Sínodo de Constantinolpla, DS 403). Concomitantemente, é afirmado que o
corpo não é criado pelo demônio nem é princípio do mal; reafirma-se que o corpo é bom bem
como a realidade da sua ressurreição (Concílio de Braga, DS 455-464). Quer dizer, a dualidade
alma-corpo não deve levar a um dualismo de oposição-exclusão que coloque a alma na esfera do
divino e o corpo no mundo do mal e do demoníaco. Alma e corpo formam parte das realidades
criadas pelo único Deus criador-salvador”.
89
240
Cf. RUIZ DE LA PEÑA, J. L., Dualismo. In: DTDC, p. 233.
241
RUGGERI, F., Gnosticismo. In: DM, pp. 461-462: “Segundo a interpretação gnóstica, Jesus
Cristo seria um dos éons, descido a este mundo para comunicar ao homem o conhecimento do
próprio ser e do próprio destino, a fim de permitir-lhe consumar a própria redenção e salvação,
libertando-se do cárcere do mundo material e da luta entre as inclinações boas e más que o agitam
(conceitos estes que foram levados ao extremo pelo maniqueísmo). Cristo, porém, não assumiu um
verdadeiro corpo humano, isto é, não se contaminou com a matéria, mas revestiu-se somente de
uma aparência humana, como aparentes foram também a sua paixão e a sua morte (conceitos
próprios da heresia docetista) (...). Considerando que a natureza humana é constituída por três
elementos, o espiritual, o psíquico e o material, os homens foram divididos em três categorias,
isoladas entre si e sem possibilidade de contaminação recíproca (como as castas do povo na
civilização oriental): os espirituais, os psíquicos e os hílicos. Somente aos primeiros, constituídos
unicamente pelos gnósticos, o conhecimento tornava possível a redenção do cárcere da condição
terrena. O chefe de escola Valentino († 161) reconhecia somente neles a função de reveladores da
gnose, e por isso, de redentores. Entre os segundos podiam ser enumerados os cristãos, que eram
destinados a uma felicidade intermédia em uma espécie de limbo. Os da terceira classe eram
dependentes da matéria e, por isso, condenados a se consumirem com ela. O destino estava inscrito
na origem destas três castas e não era conseqüência do comportamento dos seus membros. Os
chefes de escola da gnose cristã herética foram Valentino e o seu discípulo Tolomeu († 150),
Basílides († 140), Marcião († depois de 135), ativos no ambiente de Alexandria e enquadrados na
gnose considerada douta. Justamente em Alexandria, em contraposição à gnose herética, Orígenes
e Clemente de Alexandria elaboraram um sistema de definições racionais sobre as verdades de fé,
uma espécie de gnose cristã, que constituiu o primeiro esboço da teologia. Por isso se atribui à
gnose o mérito de ter suscitado questionamentos e estimulado as relativas respostas por parte dos
cristãos, favorecendo a sistematização das verdades da fé, de tal modo que se pudesse responder às
objeções da cultura pagã. A posição gnóstica perdurou em algumas seitas heréticas da primeira
cristandade (encratismo) e, na época medieval, sobretudo nos cátaros”.
242
Cf. SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, I, q. 76, a. 1 e 3.
90
Esta luta contra as idéias gnósticas, contou ainda com a valiosa colaboração
de santo Agostinho, particularmente em seu empenho contra o maniqueísmo247. É
inegável o mérito de santo Agostinho, que soube inserir e harmonizar os
fundamentos da fé aos postulados do dualismo neoplatônico, para utilizá-los como
instrumento de diálogo com a cultura helênica. Santo Agostinho faz uso do
chamado “dualismo moderado”, que influenciou decisivamente o cristianismo no
243
DUSSEL, E., El dualismo en la antropologia de la cristianidad, Buenos Aires, 1974, pp. 257.
Apud GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 273.
244
SANTO TOMÁS DE AQUINO, Livro das sentenças, III Sent., d. 31 q. 2a. 4c. Apud GARCIA
RUBIO, A., loc.cit.
245
Cf. RUIZ DE LA PEÑA, J. L., Dualismo. In: DTDC, p. 233.
246
DS 902.
247
BOVE, G., Maniqueísmo. In: LDTE, pp. 461-462: “Designa a religião de Mani ou Maniqueu
(216-274/77), filho de um príncipe parta descendende da dinastia arsácida, casado com Miriam,
provavelmente uma judeu-cristã da mesma estirpe, em um distrito do norte da Babilônia. Morreu
com cerca de 60 anos, decapitado e desmembrado. Justamente pela proveniência de seu fundador,
o maniqueísmo é um sincretismo de doutrinas judeu-cristãs e indo-iranianas. Sua principal
referência teológica diz respeito à salvação, que é arquitetada de modo complexo e difícil de
acompanhar, com uma sucessão de imagens e personagens que, no fim, reduzem-se ao mesmo
‘Salvador e Salvo’, mediante uma luta imune entre Bem e Mal, que representa a contraposição
essencial da concepção maniqueísta, iluminada pela revelação de Mani. Essa iluminação é
transmitida por meio do apelo à justiça proclamado pelos Eleitos maniqueus a todo o povo
remanescente, que se integra aos primeiros mediante o exercício da ‘esmola’. E, juntamente com a
esmola, a oração e o jejum sintetizam a ética maniqueísta. A esmola assegura o repouso na Igreja e
o perdão dos pecados, a oração é uma antecipação luminosa da viagem definitiva rumo à luz, o
jejum é uma expiação penitencial, enquanto os pecados, relativos à boca, às mãos e ao ventre, são
perdoados na confissão. A principal solenidade dos maniqueístas era a celebração de ‘Bema’, nos
últimos dias de fevereiro ou em março, em memória da paixão de Mani; cuja imagem e escritos
eram expostos sobre um dossel recoberto de véus, e cujo meio de acesso eram cinco degraus, que
evocam os cinco graus da hierarquia maniqueísta. A oração e os cantos dos maniqueus são um
emocionante apelo a toda condição de dificuldade, mas sobretudo uma imersão na Luz, mediante a
invocação do próprio Mani”.
91
248
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 272.
249
Cf. Ibidem.
250
Cf. GARCIA RUBIO, A., Elementos de antropologia teológica, Petrópolis, Vozes, 2004, p. 28-
29.
251
FRANÇA MIRANDA, M., A salvação de Jesus Cristo. A doutrina da graça, São Paulo,
Loyola, 2004, pp. 22-23: “Para os primeiros cristãos a morte prematura de Jesus constituía um
forte choque e um enigma a ser resolvido. Pois Jesus era alguém que não pecou, e Deus, contudo,
permitiu sua morte. Assim abre-se a perspectiva de uma morte para os outros, ganhando o texto de
Isaías sobre o ‘servo de Javé’ (cf. Is 52, 13-53, 12) enorme importância. Nele se afirma que o justo
sofre ‘por todos’ (Is 53, 11ss), expressão que Paulo faz sua: ‘E ele morreu por todos (...)’ (2Cor 5,
15). Daí a perda de sentido dos sacrifícios veterotestamentários no Templo de Jerusalém, já que a
morte de Cristo ‘de uma vez por todas’ satisfez pelos pecados do mundo (cf. Rm 6, 10; 1Pd 3, 18;
Hb 7, 27; 9, 12, 10, 10). Tais textos remontam também à tradição da última ceia, na qual se institui
a Nova Aliança com a entrega da vida de Jesus por muitos (cf. Mc 14, 22-25). Naturalmente, essa
compreensão teológica da morte de Jesus estava em estreita continuidade com sua vida terrena
voltada para os outros, de modo especial para os mais pobres e sofridos da sociedade. Mesmo
Paulo, ao exclamar que só quer saber de Cristo e de Cristo crucificado, inclui nesta afirmação toda
a existência histórica de Jesus. Contudo, o crescente afastamento do tempo de Jesus e, sobretudo, o
contexto mental do Ocidente, dominado por categorias morais e jurídicas, vão reduzir o sentido da
expressão paulina. De fato, a mentalidade dos latinos estava mais voltada para a organização
92
de Deus, aquele que tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29b), numa clara apropriação
do “Tamid” relido como chave interpretativa do sacrifício de Cristo253.
Porém, mais importante que o “Tamid” era a liturgia sacrifical do “Yom
Kippur” (“Dia da Expiação”), que acontecia uma única vez ao ano (cf. Lv 16, 1-
34; Nm 29, 7-11) 254. Neste dia, o sumo sacerdote, fazia uma espécie de procissão,
trazendo sobre os ombros um grande manto, formado de muitíssimos pedaços de
pano. Cada um desses pedaços representava um tipo de pecado em particular.
Desse modo, o sumo sacerdote levava simbolicamente todos os pecados do
povo255.
Chegando ao pátio dos sacerdotes, o sumo sacerdote, e somente ele, oferecia
um novilho em sacrifício, sobre o altar, por seus pecados e pelos pecados dos
sacerdotes. Em seguida, oferecia um bode pelo pecado do povo. Depois adentrava
o santuário, levando consigo o sangue dos animais imolados, e penetrava até o
‘Santo dos Santos’, uma sala totalmente escura que guardava a ‘Arca da Aliança’
e onde estava a presença de Deus. Somente o sumo sacerdote podia entrar nessa
sala, e assim mesmo só uma vez por ano, no dia de ‘Kippur’. Lá dentro ele jogava,
por aspersão, o sangue dos animais imolados sobre o propiciatório e obtinha,
assim, o perdão para todo o povo256.
O rito do bode expiatório completava a celebração. Dois bodes eram
apresentados ao sumo sacerdote, que tinha em suas mãos duas pedras. Uma trazia
a inscrição: ‘para Deus’ e a outra: ‘para Azazel’. O bode sorteado para Deus era
sacrificado e seu sangue derramado sobre a ‘Arca da Aliança’, no ‘Santo dos
Santos’. O outro bode era levado para o deserto depois do sumo sacerdote ter
rezado sobre ele, impondo-lhe as mãos. Deste modo, carregado dos pecados do
povo, era destinado à morte no deserto, lugar do demônio257.
Ainda no AT, encontramos a misteriosa figura do ‘Servo de Iahweh’,
presente no livro do Deutero-Isaías, único texto do AT que utiliza a imagem de
uma vítima humana oferecida em sacrifício de expiação. À semelhança dos
253
DUARTE LOURENÇO, J., O mundo judaico em que Jesus viveu, Lisboa, Universidade
Católica Editora, 2005, pp. 122-123.
254
Cf. VANHOYE, A., Sacerdoti antichi e nuovo sacerdote, Torino, Elle Di Ci, 1990, p. 36.
255
Cf. DAHLER, E., Festas e símbolos, Aparecida, Santuário, 1999, pp. 32-33.
256
Cf. Ibidem, p. 33.
257
Cf. Ibidem.
94
258
Cf. IAMMARRONE, G., Expiação. In: DM, p. 410.
95
A teologia da satisfação tem sua origem na Idade Média com santo Anselmo
de Cantuária (1033-1109), e por muito tempo permaneceu o conceito chave, isto
é, o conceito capaz de resumir em si todos os aspectos da redenção.
A intenção de santo Anselmo de Cantuária (1033-1109) tinha sido a de
provar que a obra de Cristo foi conseqüência de causas necessárias, para
demonstrar que essa obra tinha de acontecer justamente da maneira como
aconteceu. Em linhas gerais, o seu raciocínio dizia o seguinte: pelo pecado do
homem, dirigido contra Deus, a ordem da justiça foi infringida de uma maneira
infinita, e Deus foi infinitamente ofendido. Na base dessa conclusão está a idéia
que a gravidade da ofensa se orienta no ofendido, ou seja, o peso da ofensa varia
de acordo com o objeto da ofensa. Como Deus é infinito, também a ofensa
cometida contra ele pelo pecado da humanidade tem um peso infinito. O direito
violado precisa ser restabelecido, porque Deus é um Deus da ordem e da justiça,
ou melhor, ele é a própria justiça. Como a medida da ofensa é infinita, exige-se
também uma reparação infinita. Ora, o ser humano não é capaz de oferecer uma
259
SCHWAGER, R., Salvação. In: DCT, p. 1599: “A idéia da luta de Cristo contra Satã
desempenhou um papel importante na época dos Padres da Igreja. Irineu já falava da justa vitória
sobre o inimigo; a essa noção se acrescentou, depois de Origines, a idéia de que o diabo teria
possuído um direito sobre os homens, já que eles se tinham entregado voluntariamente a ele, Nesta
abordagem, a alma de Jesus constituía o ‘preço/prêmio’ (cf. 1Cor 6, 20; 7, 23; 1Cor 2, 14) ou o
‘resgate’ (cf. Mt 20, 28; Mc 10, 45; 1Tm 2, 6) pago ao diabo. Mas o Inimigo se viu ludibriado,
pois não pôde conservar este ‘prêmio’ e perdeu ao mesmo tempo os homens que mantinha em seu
poder. Embora Gregório de Nazianzo se opusesse vigorosamente a tais concepções, a idéia de um
direito do diabo encontrou ecos em diversos Padres: Basílio, Gregório de Nissa, João Crisóstomo,
Ambrósio, Leão Magno e Gregório Magno”.
96
reparação infinita, porque como ser finito, ele sempre só pode oferecer algo que
será finito. A sua força destruidora ultrapassa sua capacidade de construir. Por
isso haverá sempre uma distância infinita entre todas as reparações tentadas pelo
ser humano e o tamanho de sua culpa, ou seja, um abismo que ele nunca será
capaz de superar. Qualquer gesto de desagravo só há de provar-lhe a sua
incapacidade de fechar o abismo que ele mesmo abriu260.
Isso significa que a ordem permaneceria destruída para sempre e que o ser
humano continuaria eternamente preso ao abismo de sua culpa? Nesse ponto,
santo Anselmo aponta para a figura de Cristo. A sua resposta afirma, então: Deus
mesmo corrige a injustiça; mas ele não recorre simplesmente à decretação de uma
anistia (apesar de ter essa possibilidade), porque esta não superaria
intrinsecamente o acontecido. Então o Deus infinito se torna ele próprio ser
humano, e como ser humano que faz parte dos ofensores, mas que possui também
o poder de reparação infinita que é negada ao ser humano comum, ele presta o
desagravo exigido. Dessa maneira, a salvação se realiza totalmente pela graça e
restabelece, ao mesmo tempo, toda a ordem de direito. Com esse raciocínio, santo
Anselmo pensa ter dado uma resposta definitiva àquela pergunta difícil formulada
em “Cur Deus homo?”261, ou seja, a pergunta do porquê da encarnação e da cruz.
A sua reflexão marcou profundamente o segundo milênio da cristandade ocidental
que estava convencida de que Cristo precisou morrer na cruz para reparar a ofensa
infinita que tinha sido cometida pelos homens, e para restabelecer a ordem
violada262.
A redenção tornou-se, assim, sinônimo de ‘satisfação’ da justiça divina, no
sentido de que a morte de Jesus na cruz foi o preço do ‘resgate’ da humanidade,
pago, não ao diabo, como se dizia, em certas orientações, na teologia patrística,
mas a Deus, para satisfazer a sua justiça e torná-lo propício aos homens.
3.2.3.
Interpretação moral: a teologia do mérito
260
Cf. RATZINGER, J., Introdução ao cristianismo, São Paulo, Loyola, 2005, pp. 172-173.
261
Tratado teológico concluído em 1098, no qual santo Anselmo elabora e explica a teologia da
satisfação.
262
Cf. RATZINGER, J., op. cit., p. 173.
97
“Para obter determinado fim, algo é necessário de duas maneiras: ou porque sem
ele algo não pode existir, por exemplo, o alimento é necessário para a conservação
da vida humana; ou porque com ele se chega ao fim de modo melhor e mais
conveniente, por exemplo, o cavalo é necessário para viajar. Do primeiro modo, a
encarnação de Deus não foi necessária para a restauração da natureza humana; por
sua virtude onipotente Deus poderia restaurar a natureza humana de muitas outras
maneiras. Mas, do segundo modo, era necessário que Deus se encarnasse para a
restauração da natureza humana. Por isso diz santo Agostinho: ‘Mostremos que a
Deus, a cujo poder tudo está submetido, não faltou outro modo possível, mas que
não havia outro modo mais conveniente para curar nossa miséria”264.
“Um simples homem não poderia satisfazer por todo o gênero humano; portanto
era necessário que Jesus Cristo fosse Deus e homem (...) o pecado cometido contra
Deus tem algo de infinito em razão da infinitude de sua majestade divina: a ofensa
é tanto maior quanto maior é aquele contra o qual é dirigida. Era preciso pois, para
uma satisfação condigna, que a ação do que satisfaz tivesse uma eficácia infinita,
como a que procede do homem Deus”265.
“(...) foi conveniente tanto à misericórdia como à justiça divina ser o homem
libertado pela paixão de Cristo. À justiça porque, por sua paixão, Cristo deu
satisfação pelo pecado do gênero humano e assim o homem, pela justiça de Cristo,
foi libertado. À misericórdia porque, não podendo o homem, com suas forças, dar
satisfação pelo pecado de toda natureza humana (...) Deus lhe deu seu Filho para
cumprir essa satisfação (...). O que se tornou uma misericórdia mais abundante do
que se tivesse perdoado os pecados sem satisfação”266.
263
Cf. GALVIN, J., Jesus Cristo. In: GALVIN, J.; SCHUSSLER FIORENZA, F.; (Orgs.),
Teologia sistemática – Perspectivas católico-romanas, Vol. I, São Paulo, Paulus, 1997, p. 364.
264
SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, IIIa, q. 1, a. 2, rep.
265
Ibidem.
266
Ibidem, IIIa, q. 46, a. 1, rep.
98
267
Cf. DUQUOC, C., Cristologia – Ensaio dogmático: O Messias, Vol. II, 2. ed., São Paulo,
Loyola, 1996, pp. 195-198.
268
Cf. GARCIA RUBIO, A., Evangelização e maturidade afetiva, São Paulo, Paulinas, 2006, pp.
94-95.
99
269
SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, I, q. 98, a. 2, rep. Apud LÓPEZ
AZPITARTE, E., Ética da sexualidade e do matrimônio, São Paulo, Paulus, 1997, p. 18.
270
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 379.
271
LORIOT, J., Sermons sur les plus importantes matières de morale chrétiene á l’usage de ceux
qui s’appliquent aux missions et de ceux qui travaillent dans les paroisses, Nova ed. 1725, IV, pp.
290-291 (Sermão n. 9. Dos deveres das pessoas que se casam). Apud DELAMEAU, J., O pecado e
o medo. A culpabilização no Ocidente (séculos 13-18), Vol. II, Bauru, Editora da Universidade do
Sagrado Coração, 2003, pp. 207-208: “Há os que se casam para ter um socorro nas necessidades
comuns desta vida, um alívio nas penas e uma consolação mútua nas aflições (...) essa finalidade é
boa e podemos propô-la legitimamente. Existe outra, que na verdade não é má, mas que é menos
perfeita, é quando alguém reconhece sua fraqueza e, não se sentindo bastante forte para guardar a
continência, serve-se do casamento como um remédio para sua fraqueza. São Paulo diz que se
permite esse remédio por condescendência, mas que não se recomenda. Na verdade, é permitido
usar remédios nas doenças, mas é bem desagradável não poder passar sem ele; e nesses encontros
deve-se pelo menos lembrar-se que não se toma remédio sem necessidade, sem repugnância e sem
asco, e só com precaução, com medida, com circunspecção, e por amor à saúde. Mas a verdadeira
finalidade do casamento, e que alguém deveria ter diante dos olhos quando se casa, é para ter
filhos”.
272
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 379.
100
Siena, ataca quem abusa do olho no momento das relações conjugais. O texto é
chocante:
“Olha para mim, vês este olho? Ele não é feito para o casamento. O que tem o olho
a ver com o casamento? Toda vez que ele quiser ver orgias, será um pecado mortal,
e muito grave. Porque aquilo que é lícito tocar, não é lícito olhar. Para saciar teus
olhos desonestos, tu cometes um grande pecado já que queres olhar o que é
proibido. Agora me dize, confessaste isso? Então vai confessar-te!”273.
O corpo é um objeto perigoso que não se deve olhar nem mostrar. O horror
da nudez levou as congregações a proibir aos religiosos os banhos não motivados
por estritas recomendações médicas274. As danças também eram condenadas. São
Luís Grignion de Monfort afirmava que o diabo se insinuava no corpo das
dançarinas e dos dançarinos para induzir os incautos a pecar contra a castidade. O
mesmo Grignion de Monfort condenava os contos, os romances e as canções de
amor275.
O pecado da impureza era o mais grave de todos. E era visto em todas as
partes. Havia uma verdadeira psicose em relação aos pecados contra a castidade.
Nesse sentido, por exemplo, são João Eudes exortava os confessores a interrogar a
esse respeito os rapazes e homens não casados, perguntando-lhes se eles não se
tocaram a si mesmos para conseguir um prazer sensual; se não tiveram ejaculação
voluntária; se tiveram ejaculação dormindo à qual deram motivo antes, ou na qual
sentiram prazer acordados276.
273
BERNARDINO DE SIENA, Prediche volgari, II, p. 168 (sermão n. 21). Apud DELAMEAU,
J., O pecado e o medo. A culpabilização no Ocidente (séculos 13-18), Vol. II, Bauru, Editora
Universidade do Sagrado Coração, 2003, p. 209.
274
DELAMEAU, J., op. cit., pp. 210-211: “Em 1734, o superior dos Lazaristas, Padre Bonnet,
interrogou a esse respeito (proibição de banhos) jesuítas, trinitários, sulpicianos, etc. Do lado
jesuíta, responderam-lhe: não há entre nós nenhuma lei escrita que proíba de banhar-se. ‘Julgou-se
que o pudor religioso já bastava para proibi-lo. O perigo a que se exporiam os jovens que estariam
sujeitos a essa tentação mais do que às outras seria uma razão para se fazer uma regra para isso;
mas ela não foi julgada necessária, porque não há entre nós nenhuma desordem sobre esse artigo, e
os superiores puniriam severamente aqueles que o pudor e a modéstia não refreassem. Um jovem
que ousou banhar-se no banheiro de uma de nossas casas de campo afogou-se, talvez por um
julgamento misericordioso de Deus, que quis que esse triste exemplo tivesse função de lei’. O
superior de são Sulpício respondeu por sua vez ao Padre Bonnet: ‘Jamais permitimos aos nossos
cavalheiros, nem mesmo aos nossos seminaristas, que se banhem, nem em público, nem em
particular, nos rios, lagos, lagoas e tanques, e por conseguinte, com maior razão, que tampouco
nadem; quando se receitam aos doentes, por razões de saúde, banhos quentes ou frios, eles são
tomados em casa e, nesse caso, colocamos um lençol sobre as tinas, e não se cria nenhuma
dificuldade para deixar um criado no quarto daquele que se banha, para evitar os acidentes que
podem ocorrer e que temeis tão sensatamente’. O Padre Bonnet decidiu no mesmo sentido para a
sua congregação”.
275
Cf. Ibidem.
276
Cf. Ibidem, p. 222.
101
O resultado disso tudo foi que o sexo não foi afastado, ao contrário, ficou
muito presente, perturbando a vida das pessoas, uma vez que foi recalcado e não
integrado de maneira personalizante. É totalmente fora da realidade o ideal de
pureza que não leva em consideração que a sexualidade é uma dimensão básica do
ser humano a ser integrada, não recalcada277. E ainda hoje, em pleno século XXI,
ainda existem resquícios desta espiritualidade repressora calcada numa visão
reducionista da pessoa humana.
3.3.2.
A cruz desvinculada da história
“Pensai, pois, cristãos que tudo o que ouvistes não é mais que uma débil
preparação: o grande golpe do sacrifício de Jesus Cristo, que abate esta vítima
pública aos pés da justiça divina, devia ser propiciado na cruz e vir de um poder
maior que o das criaturas. Só a Deus cabe vingar as injúrias; e enquanto sua mão
não intervém, os pecados só são castigados debilmente. Só a ele toca fazer justiça
aos pecadores como é devido; só ele tem o braço bastante poderoso para tratá-los
como merecem. (...) Por isso era necessário, meus irmãos, que ele mesmo caísse
277
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 380.
278
Cf. VARONE, F., Esse Deus que dizem amar o sofrimento, Aparecida, Santuário, 2001, pp. 96-
97.
102
sobre seu Filho com todas as suas forças; e como havia colocado sobre ele os
nossos pecados, devia fazer recair também sobre ele a sua justa vingança. E assim
o fez, cristãos, não o duvidemos”279.
A morte de Jesus é vista como a condição prévia para que Deus voltasse a
amar a humanidade. Sem sofrimento não há perdão. Essa é a idéia de fundo que
inspira toda uma espiritualidade centrada tão somente na dor. Além disso, a dor
provocada pelos sofrimentos é vista equivocadamente como méritos adquiridos
diante de Deus; méritos que compensam os pecados cometidos. Isso explica
porque tantos santos na história da Igreja usaram a criatividade para inventar
instrumentos e ocasiões para sofrer. Era preciso buscar a cruz, o sofrimento
diariamente, para compensar os pecados cometidos.
Por exemplo, são Pedro de Alcântara revelou a santa Teresa D’Ávila, sua
dirigida espiritual, que durante quarenta anos só tinha dormido uma hora e meia
por noite, e que jamais tinha conhecido penitência mais dura; no início, para
vencer o sono, ele permanecia sentado, com a cabeça apoiada num pedaço de
madeira fixado na parede. Habitualmente, ele só comia um dia em cada três.
Outro exemplo: quando são Carlos Borromeu foi despido para sua toalete fúnebre
(tinha apenas 46 anos), descobrem que seus ombros estavam escalavrados pela
disciplina, seu corpo dilacerado pelas pontas dos cilícios280. A dor era o caminho
real da salvação.
3.3.3.
Medo de Deus e sentimento de culpa
279
BOSSUET, J. B., Carême des Minimes, pour lê vendredi saint, 26 mars 1660, em Oeuvres
oratoires III, DDB, Paris, 1916, p. 385. Apud SESBOÜE, B., Creer. Invitación a la fé católica
para las mujeres y los hombres del siglo XXI, Madrid, San Pablo, 2000, pp. 339-340.
280
Cf. DELAMEAU, J., O pecado e o medo. A culpabilização no Ocidente (séculos 13-18), Vol. I,
Bauru, Editora da Universidade do Sagrado Coração, 2003, pp. 584-585.
103
“Que prodígio! Um fogo que queima sempre sem jamais consumir o indivíduo ao
qual está ligado e sem jamais se consumir ele próprio (...). É o que se julgaria
impossível, se não soubéssemos que tudo é possível a um Deus que se vinga”281.
281
GIROUST, J., Sermons pour le caréme, II, p. 27 (sermão sobre o inferno). Apud
DELAMEAU, J., O pecado e o medo. A culpabilização no Ocidente (séculos 13-18), Vol. II,
Bauru, Editora da Universidade do Sagrado Coração, 2003, p. 144.
104
6
O consumismo: desafio contemporâneo à mortificação
431
Cf. CNBB, DGAE (1999-2002), n. 138.
152
sempre além do alcançado. O resultado dessa procura sem fim do prazer não é o
amadurecimento da pessoa, mas sua escravização pelo desejo insaciável432.
Em conexão com o consumismo, impera hoje um ‘individualismo’ sem
precedentes na história. Em tudo, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto
de vista afetivo, o homem contemporâneo busca primeiramente a si próprio, sua
felicidade433. Estar bem, sentir-se feliz, evitar tensões, produzir e ganhar muito,
poder consumir à vontade são algumas palavras de ordem que explicam o modo
de viver de muitos em nossos dias434. Além disso, o individualismo, na busca
desenfreada pelo bem-estar do indivíduo, questiona tradições e instituições, leva
ao desinteresse pelo bem comum e pelas grandes causas, tende a relegar a religião
à esfera do privado, a utilizá-la numa deformada ótica terapêutica e a selecionar
dela o que não atrapalha seu ideal de felicidade435.
Felicidade é a palavra de ordem. Aliás, a principal mensagem veiculada
pelos meios de comunicação é precisamente a associação entre consumo e
felicidade. A idéia de que através da aquisição de determinados produtos as
pessoas conseguirão ser felizes é bastante incentivada e adotada pela sociedade de
consumo. Quem tem poder aquisitivo para consumir é feliz. No entanto, na prática
cotidiana, outros sentimentos também são produzidos pelo consumismo, como os
de frustração e decepção por não ter; de tédio por ter em demasia; de inveja,
ressentimento e rancor por nada ter e ainda faltar a perspectiva de inclusão no
mercado consumidor. De acordo com este sistema, o fato de uma determinada
432
Cf. Ibidem.
433
BARREIRO, A., A eclesialidade da fé cristã nos novos contextos sócio-culturais. In:
KONINGS, J. (Org.), Teologia e pastoral, São Paulo, 2002, p.131-132: “Submergido no mare
magnum de ideologias, utopias, sonhos, promessas de felicidade e toda sorte de mercadorias, que
lhe são oferecidas por meio das mais variadas formas de propaganda, o consumidor moderno e
pós-moderno é, na verdade, incapaz de escolher. Sua liberdade de escolha é ilusória. Ele não pode
escolher livremente porque outros já escolheram por ele. Literalmente subjugado pelas modas e
pelos modismos, pelos produtos e subprodutos descartáveis, isto é, artificialmente criados para
serem usados e jogados fora a fim de poderem ser substituídos por outros com o mesmo destino, o
indivíduo moderno e pós-moderno vive correndo sem parar para consumir sempre mais. E está
sempre insatisfeito. As referências sociais e morais para a escolha foram substituídas por duas
formas de individualismo: o ‘individualismo utilitário’, pelo qual cada um escolhe aquilo que julga
que mais lhe convém, e o ‘individualismo sentimental’, pelo qual cada um escolhe aquilo de que
mais gosta. Falta de critérios éticos, o indivíduo moderno torna-se inseguro, está sempre
insatisfeito e, por isso mesmo, sempre à cata de novos objetos de consumo. Nada é permanente.
Tudo é provisório”.
434
Cf. FRANÇA MIRANDA, M., Existência cristã hoje, São Paulo, Loyola, 2005, p. 98.
435
Cf. Ibidem, p. 18.
153
436
Cf. MALDONADO DA SILVA LYRA, R., Consumo, comunicação e cidadania. In:
CIBERLEGENDA, n. 06, 2001. Disponível em: <http://www.uff.br/mestcii/renata2.htm>. Acesso
em: 13 set. 2006.
437
Cf. Ibidem.
438
Cf. Ibidem.
154
439
Cf. NATALE TERRIN, A., Antropologia e horizonte do sagrado – Cultura e religiões, São
Paulo, Paulus, 2004, p. 139.
440
Cf. Ibidem, pp. 139-140.
441
Cf. Ibidem, p. 140.
155
442
Cf. Ibidem, p. 141.
443
Cf. Ibidem, p. 142.
444
Cf. Ibidem.
445
FREUD, S., Introduzione al narcisismo, Torino, Boringhieri, 1976, p. 40. Apud NATALE
TERRIN, A., Antropologia e horizonte do sagrado – Cultura e religiões, São Paulo, Paulus, 2004,
p. 144: “Intervém nelas (as mulheres) uma espécie de auto-suficiência que as compensa dos
sacrifícios que a sociedade impõe à liberdade delas de se escolherem o próprio objeto. A rigor,
essas mulheres amam com intensidade comparável àquela com que são amadas pelos homens,
somente a si mesmas. Na verdade, as suas necessidades não as induzem a amar, mas a ser amadas;
e se comprazem com os homens que lhes satisfazem essa exigência (...). Elas exercem um enorme
fascínio sobre os homens não só por razões estéticas (em geral são as mais belas), mas também em
virtude de algumas constelações psicológicas interessantes”.
446
Cf. Ibidem, pp. 144-145.
447
NATALE TERRIN, A., op. cit., p. 145: “Mas atrás dessa lógica está à espreita a morte. O apelo
aqui é para Georges Bataille e principalmente ao seu último livro, Lê lacrime di Eros, que marca a
parábola da concepção moderna do sexo e do erotismo. Mas por que o sexo e Eros devem dizer-se
destinados à morte? Por que contemplam já a morte na sua performance? A tese é esta: no ato
sexual narcisista recusa-se toda reconciliação com o outro. Diz-se: ‘Não deves ser diferente de
mim. Quero-te meu, quero entrar no teu ser, quero fazê-lo meu. Por isso te possuo. Mas ao
156
se, então, condenação para o ser humano, para o seu corpo considerado objeto,
para a sua personalidade rebaixada a instrumento de prazer e nada mais que isso.
Trata-se de um fracasso do ser humano numa das suas finalidades mais elevadas e
sublimes: o fracasso do amor. A invocação do sexo como substituto do amor só
revela a própria impotência e desespero448.
6.1.3.
Saúde ou culto ao corpo? Onde está o limite?
possuir-te violento-te, sacrifico-te no teu tu’. E depois, porém, faltando o ‘tu’, também o eu se
perde. Portanto, o ato sexual, não referido ao telos de um amor que se doa, se torna um dispêndio
sem fundo, não tanto a banalização da vida erótica, quanto a extrema experiência da perda, do ato
sacrifical, da morte”.
448
Cf. Ibidem, p. 147.
449
Cf. MOURÃO VASCONCELOS, E., A saúde e o corpo. In: JORNAL DE OPINIÃO, ano 16,
n. 797, 6-12 set. 2004, p. 07.
450
Cf. Ibidem.
157
Esta preocupação exagerada com o corpo criou nas pessoas uma visão
superficial e individualista do que seja saúde. Essa busca desenfreada pela saúde
está gerando uma ‘hipocondria social’, aumentando a insatisfação e tornando as
pessoas ansiosas, pois nunca são capazes de consumir os diversos produtos
anunciados, implementar os intermináveis comportamentos saudáveis e se
submeter às variadas técnicas terapêuticas. Seus corpos estão sempre devendo
diante do padrão estabelecido451.
O ser humano é limitado, precário. No entanto, essas limitações são
‘humanizadoras’, pois nos salvam da tentação da presunção de sermos completos.
Nossas fragilidades e precariedades nos abrem para os outros, impedindo o
fechamento egocêntrico em nós mesmos. Nossas particularidades marcam a forma
própria como podemos contribuir para a sociedade e nos fazem dependentes dos
outros. O ser humano só se realiza na relação com os outros. Por isso é impossível
pensar em saúde de forma individualista. Envolvidos com a busca exagerada da
saúde, não aceitamos os nossos limites. Passamos a lutar contra o que é intrínseco
ao nosso ser ao invés de procurar nos harmonizar com ele. Isso produz uma
existência fragmentada e superficial452.
A ‘corpolatria’ nos impede de encarar a realidade da vida humana, que é
sempre limitada e marcada pela morte. Mesmo com o consumo de todos os
produtos de saúde, a implementação de todas as técnicas médicas e o seguimento
de todos os bons hábitos de vida, nós um dia vamos morrer. Portanto, saúde é
também uma adaptação equilibrada ao sofrimento, à deficiência, à doença, ao
envelhecimento e à morte, fatores que atingem a vida de todos. Nesse sentido,
essa preocupação exagerada e individualista com a saúde tem aumentado o
sofrimento das pessoas, pois as impede de aceitarem a dor e os defeitos que todos
têm. É uma verdadeira idolatria que insinua a promessa de saúde e juventude
eternas, mas que está gerando insatisfação e angústia, terreno fértil para o
surgimento de novas formas de consumo e de novos lucros para a indústria da
saúde453.
451
Cf. Ibidem.
452
Cf. Ibidem.
453
Cf. Ibidem.
158
454
Cf. Ibidem.
455
Cf. LE BRETON, D., Antropología del dolor, Barcelona, Editorial Seix Barral, 1999, p. 200.
159
integra mais a dor e a morte como ocorrências naturais da vida. A dor já não é
mais tolerada como inerente à própria condição humana. Não existem mais os
valores que levavam as pessoas a tolerar as dores com valentia sem ceder em sua
vida pessoal457.
Hoje o problema da dor está delimitado à cultura médica, isto é, converteu-
se em assunto de especialistas que tratam a dor a partir do prisma puramente
técnico; não acreditam nas “virtudes da dor”, não lhe atribuem nenhum valor
moral. O significado que o enfermo atribui à sua dor é uma ‘fantasia’ que não
deve interferir na ação médica. A prioridade é dada ao orgânico, não ao ser
humano sofredor; e o corpo é visto como uma máquina, cujas disfunções devem
ser suprimidas. O enfermo separa-se de seu corpo, entrega-o aos cuidados de
especialistas, de quem espera uma solução rápida e eficiente para suas dores.
Raramente se considera também parte responsável pelo processo de cura, capaz de
enfrentar as dores, utilizando seus recursos próprios. De antemão, renuncia a
qualquer tentativa pessoal de buscar suas próprias soluções ou de somar seus
esforços aos dos médicos e aos tratamentos terapêuticos que recebe458.
Não sofrer é a palavra de ordem. Considerada inútil, estéril, a dor é uma
escória que o progresso científico deve dissolver, um anacronismo cruel que deve
desaparecer. Converteu-se em um escândalo à semelhança da morte ou da
precariedade da condição humana459.
6.2.
Consumismo e felicidade
456
Cf. Ibidem.
457
Cf. Ibidem, pp. 202-203.
458
Cf. Ibidem, pp. 204-205.
459
Cf. Ibidem, pp. 206.
160
determinado produto alimentício prometendo que este irá tornar as famílias mais
felizes; no entanto; mostram-se na propaganda somente famílias felizes
consumindo o tal produto460.
A mágica associação entre prazer, felicidade e consumo busca transformar
novidades tecnológicas em algo indispensável para a vida das pessoas. Como
vender uma nova tecnologia para quem nunca a possuiu? Este é o desafio de
sedução da sociedade consumista, que arma estratégias para tirar do consumidor a
autonomia para definir o que é realmente necessário, ou não, para sua
sobrevivência. É a publicidade que define os produtos indispensáveis à vida461.
Antes de tomar qualquer decisão, seja para comprar bens ou utilizar
serviços, o consumidor terá absorvido alguma forma de propaganda, esteja ou não
consciente disso. Desde o vendedor ambulante até os intervalos comerciais no
rádio e na televisão, a indústria da publicidade utiliza todos os recursos para nos
levar a seu único objetivo: o consumo.
6.2.1.
Publicidade: utilizada como prevenção contra comportamentos
anticonsumo
460
Cf. CAPISTRANO COSTA FILHO, I., Propaganda, consumo, felicidade. In: BIBLIOTECA
ON-LINE DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO. Disponível em:
http://www.paginas.terra.com.br/educacao/comunicacaocultura>. Acesso em: 13 set. 2006.
461
Cf. Ibidem.
462
Como sugestão de leitura para aprofundamento das vantagens e desvantagens da publicidade
sugiro o documento “Ética da Publicidade”, do Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais.
161
463
Para aprofundar o assunto sugiro a obra LOPES PEREIRA, A., Consumidor e a mídia de
massa. In: MACEDO ZILIOTTO, D. (Org.), O consumidor – Objeto da cultura, Petrópolis,
Vozes, 2003, pp. 79-84.
162
464
Cf. DAGMANG, F., Gratificação instantânea e libertação. In: CONCILIUM/282 – 199, p. 63
[575].
465
Cf. Ibidem, p. 64 [576].
466
Cf. Ibidem, p. 65 [577].
163
tentam fabricar famosos como os reality shows. O fascínio exercido pela fama tem
sido uma das marcas características da sociedade consumista, que exige de seus
membros um envolvimento cada vez maior na tarefa de escalar degraus do
sucesso e da fama em todos os segmentos. Prova disso é a proliferação de novos
cantores, atores e esportistas nos últimos anos. Não importam horas insones, sem
repouso, despendidas neste afã. O que importa é o prazer de ser aplaudido e
reconhecido pelo público e conceder autógrafos. A fama é, portanto, a expressão
máxima da gratificação imediata468.
A fama não é uma invenção de hoje. Por exemplo, as divas de ópera no
século XIX eram tão idolatradas, que jovens poetas românticos carregavam-nas
nos ombros pelas ruas da cidade, em triunfo. Mas, sem dúvida, a comunicação de
massa deu outra dimensão à fama. Os meios de comunicação de massa tornaram-
se as indústrias de fabricação da fama, ingrediente fundamental na formação da
opinião pública e de um potente mercado consumidor. A mídia promove a
exposição de pessoas capazes de atrair a opinião pública. Se alguém aparece
poucos minutos na televisão, já se torna conhecido por uma multidão de pessoas.
A mídia converte uma pessoa desconhecida em famosa em poucos instantes, e
incute a idéia de que a fama é o único modo de se dar bem na vida e ser feliz. O
grau de importância de uma pessoa é definido pelo interesse dos fotógrafos. É a
mídia, enfim, que determina o valor das pessoas469.
6.4.
Crise ecológica: perigo do consumismo predatório
467
Cf. Ibidem.
468
Cf. LACERDA, M., A síndrome da fama. In: REVISTA MIRADA GLOBAL. Disponível em:
<http://www.miradaglobal.com/index.asp?id=temas&principal=070604&idioma=pt>. Acesso em:
18 set. 2006.
469
Cf. PIZA, D., Fama. In: OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, Cultura da fama. Disponível em:
<http:// www.observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/imprimir.asp?cosd=348ASP007>. Acesso em:
18 set. 2006.
164
470
Cf. ROQUETE PINTO, C. L., Não cobiçarás as coisas alheias. In: BINGEMER. M. C. e
YUNES, E. (Coord.), Os dez mandamentos, São Paulo, Loyola, 2003, p. 267.
471
Cf. Ibidem, p. 268.
472
Cf. Ibidem.
165
473
Cf. PORTAL AMBIENTE BRASIL, Chuva ácida. Disponível em:
<http://www.ambientebrasil.com.br/composer.php3?base=./natural/index.html&conteudo=./natura
l/arti>. Acesso em: 20 set. 2006.
474
Cf. PEREIRA DOS SANTOS, F., Poluição do solo. In: ECOL NEWS, Meio ambiente e
poluição. Disponível em: <http://www.ecolnews.com.br/artigo_01.htm>. Acesso em: 29 set. 2006.
166
475
Cf. Ibidem.
476
Cf. Ibidem.
477
Cf. UNIVERSO AMBIENTAL, Poluição sonora. Disponível em: <http://www.
universoambiental.com.br/Poluição\acustica/PoluiçãoAcustica.htm>. Acesso em: 20 set. 2006.
167
do tempo, a suspensão é trazida para o solo e para os oceanos, onde será absorvida
e incorporada pelos seres vivos. O resíduo radioativo pode causar sérios
problemas à saúde humana. Quando assimilado pela corrente sanguínea, é
confundido com o cálcio e absorvido pelo tecido ósseo, onde será fixado. Aí
inserido, ele emite sua radiação e acabará por provocar sérias mutações
cancerígenas nos tecidos formadores de sangue, encontrados na ‘medula óssea’.
Este processo pode levar a pessoa à morte479.
Além da liberação direta do material radioativo, existe o grave problema do
lixo atômico produzido pelas usinas nucleares, que apresenta uma série de
dificuldades relacionadas ao seu tratamento e armazenamento. Se não armazenado
segundo normas rígidas de segurança pode contaminar o meio ambiente480.
6.5.
A religião: objeto de consumo
478
Cf. AMBIENTE BRASIL, Poluição visual. Disponível em:
<http://www.ambientebrasil.com.br/composer.php3?base=./urbano/index.html&conteudo=./urban
o/arti>. Acesso em: 21 set. 2006.
479
Cf. PEREIRA DOS SANTOS, F., A poluição atômica. In: ECOL NEWS, Meio ambiente e
poluição. Disponível em: <http://www.ecolnews.com.br/artigo_01_2ahtm>. Acesso em: 21 set.
2006.
480
Cf. Ibidem.
481
SILVEIRA CAMPOS, L., Teatro, templo e mercado — Organização e marketing de um
empreendimento neopentecostal, Petrópolis, Vozes; Simpósio Editora, 1997, p. 204: “A
transformação do ‘campo religioso’ em ‘mercado religioso’ é uma conseqüência da força
homogeneizadora do mercado sobre o universo religioso. A crescente aplicação do marketing na
geração de atos e instituições religiosas está elevando o gosto do ‘comprador’, e transformando-o
na instância máxima de julgamento dos fenômenos religiosos. É o público ‘consumidor’, criado,
descoberto e organizado, segundo regras mercadológicas, que determina tanto as formas de
elaboração e de distribuição dos bens religiosos, como a própria estrutura assumida pela instância
produtora”.
482
Cf. LIBÂNIO, J. B., Qual o futuro do cristianismo?, São Paulo, Loyola, 2006, p. 131.
168
483
Cf. BARREIRO, A., A eclesialidade da fé cristã nos novos contextos sócio-culturais. In:
KONINGS, J. (Org.), Teologia e pastoral, São Paulo, Loyola, 2002, pp. 135-136.
484
Cf. PASSOS, J. D., Pentecostais – Origens e começo, São Paulo, Paulinas, 2005, pp. 68-69.
485
BARREIRO, A.., op. cit., pp. 138-139: “(...) é a ‘teologia da prosperidade’ de Paul Fretson,
segundo o qual o princípio básico da prosperidade é a doação financeira, entendida não como um
169
ato de gratidão ou devolução a Deus, mas como um investimento. Devemos dar a Deus para que
ele nos devolva com lucro”.
486
Cf. SILVEIRA CAMPOS, L., Teatro, templo e mercado – Organização e marketing de um
empreendimento pentecostal, Petrópolis, Vozes; Simpósio Editora, 1997, pp. 232-233.
487
PASSOS, J. D., Pentecostais – Origens e começo, São Paulo, Paulinas, 2005, p. 77: “O que
para a mentalidade lógico-racional é causa natural, para o pensamento mágico (...) é um
instrumento utilizado pelo demônio para fazer suas maldades. As coisas naturais têm sempre uma
causa sobrenatural que fornece a chave original de sua compreensão mais radical, de forma que a
origem das doenças está quase sempre associada à vida pecaminosa da pessoa, ou à religião falsa
que ela pratica, ou então a rituais malignos praticados por terceiros, feiticeiros ou bruxos. A
doença está, assim, associada à atração ou manipulação de forças sobrenaturais sobre a pessoa. Do
mesmo modo, os rituais de cura vão reverter essas forças. Vão ‘desamarrar em nome de Jesus’
aquilo que foi amarrado pelo poder do inimigo”.
488
Cf. Ibidem, p. 78.
170
mundo espiritual é que rege e produz o mundo material com todos os seus efeitos
visíveis, bons ou ruins489.
Em suma, o que as igrejas neopentecostais oferecem e o que as pessoas
buscam nelas não é a salvação revelada e oferecida em Jesus Cristo, mas melhorar
a vida nos níveis social e econômico, resolver seus problemas, serem “curadas”.
6.5.2.
A Nova Era
A Nova Era não pretende ser uma religião, pois entende esta como algo
estruturado, prescritivo e vinculante, o que não condiz com sua proposta. Seus
representantes preferem chamá-la ‘espiritualidade’, para evitar qualquer
associação com as concepções clássicas de religião490. Aliás, a Nova Era faz
questão de manter-se distante das várias tradições religiosas, as quais acusa de
cultivarem muita teologia e pouca espiritualidade, bem como de serem
disseminadoras de divisões e guerras religiosas491.
A busca da felicidade é a questão central da Nova Era. Por isso ela procura
atrelar progresso material a progresso espiritual, bem-estar material a bem-estar
espiritual. Almeja uma ‘felicidade holística’, isto é, uma felicidade que inclua
todas as dimensões do ser humano e do cosmo. A sociedade de consumo
desenvolveu apenas a dimensão material do ser humano, trouxe uma felicidade
somente parcial; a Nova Era quer plenificar tal felicidade humana acrescentando-
lhe a dimensão espiritual. O adepto da Nova Era tem de ser pluridimensional e
holístico, completo em todas as suas dimensões492.
A proposta da Nova Era consiste em alcançar a felicidade total através de
um processo de auto-salvação, que se desenvolve através da ajuda de mestres
espirituais (os gurus), do uso de técnicas orientais de meditação (zen, ioga, entre
outras)493, do esoterismo gnóstico494 e da astrologia495. Segundo a Nova Era, todas
489
Cf. Ibidem.
490
Cf. MARTÍNEZ DIEZ, F., A Nova Era e a fé cristã, São Paulo, Paulus, 1997, pp. 43-44.
491
Cf. DE FIORES, S., A nova espiritualidade, São Paulo, Cidade Nova; Paulus, 1999, pp.73-74.
492
Cf. MARTÍNEZ DIEZ, F., op. cit., pp. 37-38.
493
NATALE TERRIN, A., Nova Era. A religiosidade do pós-moderno, São Paulo, Loyola, 1996,
pp. 22-23: “(...) a técnica mais difundida em nosso mundo ocidental para meditar, para manter-se
em forma em nível físico, psicofísico e, somente às vezes, espiritual é a técnica da yoga, que já é
praticada nas quadras da cidade e da periferia. Essa yoga, que é sobretudo hatha yoga, isto é,
exercício de yoga nos quais se deseja compreender e experimentar a relação do próprio corpo com
a mente e com o cosmo (hatha = sol, lua), para entrar em harmonia com o universo, é um modo de
curar os próprios males físicos, mas também um grande método de meditação, de ampliação de
171
consciência, de descoberta da harmonia do micro com o macro, de Shiva com Sakti, da energia
própria com a energia universal, e nesse intercâmbio há algo de espiritual, de importante, de que os
ocidentais também começam a sentir os efeitos benéficos e a colher também, por vezes, os
significados espirituais. A yoga teria como escopo levar ao samādhi, à distensão, à iluminação
interior, a bem-aventurança do espírito. É preciso dizer que a yoga é a técnica psicossomática mais
difundida no ocidente e que também em nível histórico-religioso pode ser considerada o
paradigma de qualquer outra expressão da Nova Era; de fato, ela põe em movimento e em mútua
interação corpo, mente, espírito e o cosmo inteiro. Por isso, deve-se reservar uma atenção toda
especial à yoga”.
494
Combinando as experiências dos xamãs indígenas com o misticismo oriental, a Nova Era dá
grande importância ao channeling (canalismo), técnica recebida do espiritismo em que o médium
‘canaliza’ as mensagens vindas não tanto dos espíritos dos defuntos, mas sim de quaisquer
‘entidades superiores’, como os ‘extraterrestres’, ‘os espíritos’, ‘Cristo’, ‘as fadas’, ‘o inconsciente
coletivo’. As revelações feitas por essas entidades é que conduziriam o ‘iniciado’ à salvação, à
penetração nas esferas superiores.
495
DE FIORES, S., A nova espiritualidade, São Paulo, Cidade Nova; Paulus, 1999, pp. 75-76: “A
Nova Era não só ultrapassa o espaço do mundo físico, mas também quer superar o tempo presente,
projetando-se sobre os segredos do futuro. Para chegar ao conhecimento do futuro humano, os
simpatizantes da Nova Era acolhem a teosofia, segundo a qual existe uma correspondência entre o
corpo astral e o corpo físico: o nosso destino está escrito nas estrelas. Isso vale, em geral, para a
história da humanidade, que passou da influência da constelação de Touro (império da
Mesopotâmia) para o da constelação de Áries (religião judaica) e o da constelação de Peixes
(cristianismo). Por volta do início do século XXI entraremos na era de Aquárius, sinal materno
anunciador de uma nova ordem que, como um grande regaço acolhe a todos, convidando à
autocompreensão em sentido ecológico-místico”.
496
Cf. LIBÂNIO, J. B., A religião no início do milênio, São Paulo, Loyola, 2002, p. 39.
172
7
Os fundamentos para uma nova teologia da mortificação
497
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 259.
174
498
Cf. FIORENZA, F. P. e METZ, J. B., O homem como união de corpo e alma. In: FEINER, J. e
LÖHRER, M. (Orgs.), Mysterium salutis, 2. ed., Vol. II/3, Petrópolis, Vozes, 1980, p.32.
499
Cf. ROCCHETTA, C., Hacia uma teología de la corporeidad, Madrid, San Pablo, 1993, p. 33.
500
Cf. SATTLER, D. e SCHENEIDER, T., Doutrina da criação. In: SCHENEIDER, T. (Org.),
Manual de teologia dogmática, Vol. I, Petrópolis, Vozes, 2000, p. 150.
501
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 260.
502
ROCCHETTA, C., op. cit. p. 30: “O homem é basar frente a si mesmo, a comunidade e Deus.
Frente a si mesmo, basar recorda sua condição limitada, frágil, sujeita ao sofrimento e à morte.
Frente à comunidade, basar diz que todo ser humano participa da condição de todos, recordando
em particular os vínculos de sangue, de parentesco e de raça com o grupo ao qual pertence. Frente
175
basar designa sempre o ser humano em sua condição de corpo dotado de vida.
Jamais o termo basar é aplicado a um cadáver503. Portanto, da mesma forma que
nefesh não pode ser traduzido por alma, também o termo basar não pode ser
traduzido simplesmente por ‘corpo’.
Também rûah é um termo muito utilizado na antropologia
veterotestamentária. Primeiramente é utilizado para designar o vento,
normalmente vento forte a serviço do desígnio de Iahweh; quando aplicado ao ser
humano, significa a sua respiração, a sua força vital. Com bastante freqüência é
referido a Iahweh para significar a sua força vital criadora que, comunicada ao ser
humano, confere-lhe dons e talentos diversos, concedidos para que este possa
superar a impotência e a fraqueza próprias do basar, realizando, desse modo,
tarefas especiais a serviço do desígnio salvífico de Iahweh. Com o termo rûah,
descrevem-se também sentimentos, emoções e estados de ânimo do coração
humano e, mais especificamente, a força da vontade em conexão com a força que
vem de Iahweh504. Pouquíssimas vezes a palavra rûah corresponde ao que nós
entendemos por ‘espírito’505. Rûah designa, pois, o ser humano inteiro, na sua
capacidade de abertura-escuta em relação a Iahweh, destacando-se a força vital e
os dons concedidos por ele506.
No entanto, o termo mais importante para a antropologia
veterotestamentária é lēb, traduzido em português por ‘coração’. Ultrapassando a
significação anatômica e fisiológica, indicam-se com o termo lēb os sentimentos
(cf. 1Sm 16, 7b; Jó 12, 3) e as emoções humanas (cf. 1Sm 2, 1; Sl 13, 6; 28, 7); ao
mesmo são atribuídos os desejos do ser humano, as suas aspirações e anseios
concretos. Contudo, o mais próprio do termo lēb é a referência às funções
506
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, pp. 260-261.
507
Cf. Ibidem, p. 261.
508
Cf. SATTLER, D. e SCHENEIDER, T., Doutrina da criação. In: SCHENEIDER, T. (Org.),
Manual de teologia dogmática, Vol. I, Petrópolis, Vozes, 2000, p. 151.
509
Cf. GARCIA RUBIO, A., op. cit., pp. 261-262.
510
Para um estudo mais aprofundado a respeito da influência do pensamento grego nos livros
deuterocanônicos, sugerimos as seguintes obras: PAUL, A., O que é o Intertestamento, São Paulo,
Paulinas, 1981, pp. 45-60; BRIGHT, J., História de Israel, 3. ed., São Paulo, Paulinas, 1985, pp.
561-582.
511
Cf. ROCCHETTA, C., Hacia uma teología de la corporeidad, Madrid, San Pablo, 1993, p. 31.
177
512
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 262.
513
Cf. Ibidem.
514
Cf. Ibidem, p. 263.
515
Cf. WÉNIN, A., Alma (teologia bíblica). In: DCT, p. 95.
178
516
HERDER, G., Alma, Psyché. In: BEYREUTHE, E., BIETENHARD, H. e COENEN, L. (Eds.),
Diccionario Teológico del Nuovo Testamento, Vol. I, Salamanca, p. 100. Apud GARCIA RUBIO,
A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 264.
517
Cf. GARCIA RUBIO, A., loc.cit.
179
2Tm 4, 22; Fm 25) na sua intimidade secreta (1Cor 2, 11). O pnêuma se distingue
daquilo que no ser humano é visível, o corpo (1Cor 5, 3; 7, 34; 2Cor 7, 1; Cl 2, 5),
ou daquilo que nele é débil (cf. Mt 26, 41; Mc 14, 38). No entanto, o pnêuma deve
sua força a Deus: quando o ser humano morre, o pnêuma retorna a Deus (cf. Mt
27, 50; Jo 19, 30; At 7, 59; Tg 2, 26), a quem é confiado (cf. Lc 23, 46; Hb 12, 23;
Ap 11, 11). São Paulo utiliza o termo pnêuma para contrapô-lo a sarx, indicando,
assim, a pessoa humana aberta à vida divina e dócil à ação do Espírito Santo. O
espírito do ser humano é habitado pelo Espírito de Deus que se une ao homem
para suscitar nele a oração filial (cf. Rm 8, 16.26) e para uni-lo a Cristo, de modo
a formar com Jesus um só espírito (cf.1Cor 6, 17)519.
Sarx (carne) é o equivalente grego do basar hebraico. Significa a carne
animada e o ser humano integral. Tal qual basar, pode igualmente designar
parentesco, bem como a comunidade. São Paulo, o autor neotestamentário que
mais utiliza o termo sarx, aplica-o também para indicar tudo aquilo que é
puramente humano, frágil e mortal (cf. Rm 6, 19; 2Cor 4, 11). Sarx passa a
receber, por isso, uma significação teológica importante: designa o ser humano
fechado sobre si mesmo, na sua autonomia orgulhosa, que o leva a rejeitar as
possibilidades oferecidas por Deus (cf. Gl 2, 20; Fl 1, 22; 2Cor 10, 3). Porém, é
importantíssimo chamar a atenção para o fato de que é o ser humano
integralmente quem se fecha, não uma parte dele520.
A posição de são João é, em alguns aspectos, parecida com a de são Paulo.
A expressão “O que nasceu da carne é carne (...)” (Jo 3, 6a) evoca o lado frágil e
débil da existência humana. Se compreende, então, a afirmação de são João no
prólogo do quarto evangelho, no qual se proclama que o Logos eterno “se fez
carne e veio morar entre nós” (Jo 1, 14a). O evangelista poderia ter utilizado os
termos “corpo” ou “homem”; no entanto, o fato de ter empregado o termo sarx
não é casual: trata-se de colocar em relação a desproporção infinita entre o ser
divino do Filho de Deus e a condição humana caduca assumida por ele.
Considerações análogas servem para o sermão sobre o pão da vida, quando Jesus
518
Cf. ROCCHETTA, C., hacia uma teología de la corporeidad, Madrid, San Pablo, 1993, pp. 43-
44. Para maior aprofundamento deste assunto, indicamos a seguinte obra: DUNN, J.D.G., A
teologia do apóstolo Paulo, São Paulo, Paulus, 2003, pp. 80-112. Aqui pp. 109-112.
519
Cf. GOZZELINO, G., Il mistero dell’uomo in Cristo. Saggio di protologia, Leumann (Torino),
Elle Di Ci, 1991, p. 102.
520
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 264.
180
promete sua própria sarx como comida e seu sangue como bebida para a salvação
do mundo (cf. Jo 6, 51-56)521.
Em síntese, sarx significa o ser humano inteiro na sua vida meramente
humana, e recebe uma forte conotação negativa quando designa o ser humano que
se fecha à ação de Deus, na busca de uma autoconstrução orgulhosa522.
Com o termo soma, o Novo Testamento designa tanto o cadáver (cf. Mt 27,
52.58; Mc 15, 43; Lc 23, 52; Jo 19, 38; At 9, 40) quanto o ser humano nas suas
manifestações vitais visíveis (cf. Mt 5, 29; 6, 22; Lc 11, 34.36; 1Cor 5, 3; 7, 34; 9,
27; 13, 3; Rm 6, 12; 12, 1). Freqüentemente, soma é utilizado para indicar o ser
humano integralmente, sendo que, em são Paulo, designa a pessoa humana
enquanto circunscrita, na sua existência, a um determinado lugar a partir do qual
vive a sua relação com Deus523. Soma e sarx são usados comumente por são Paulo
como equivalentes. Todavia, ao tratar da ressurreição, são Paulo estabelece uma
clara distinção: a sarx, à medida que significa o “homem velho”, é chamada a
desaparecer (cf. Rm 6, 6); o corpo, pelo contrário, é chamado à ressurreição (cf.
Rm 8, 11; 1Cor 6, 14)524.
Kardia é outro importante termo antropológico usado no Novo Testamento.
Tal qual o equivalente hebraico lēb , indica o íntimo do ser humano, a sede da
inteligência, da consciência e da vontade. O coração, em oposição ao rosto e aos
lábios, indica algo escondido (cf. Mt 15, 8; Mc 7, 6; 2Cor 5, 12; 1Ts 1, 17; 1Pd 3,
4); é a fonte dos pensamentos (cf. Mc 2, 6.8; Lc 3, 15), da fé (cf. Mc 11, 23; Rm
10, 8), da compreensão (cf. Lc 24, 25; Ef 1, 18) e do endurecimento (cf. Mc 6,
52); é o centro das opções decisivas (cf. Mt 22, 37; Mc 12, 30; Lc 10, 27; 1Cor 7,
37; 2Cor 9, 7), da lei não escrita (cf. Mt 15, 18; Mc 7, 19.21; Rm 2, 15) e do
encontro com Deus (cf. Mt 13, 19; Lc 8, 12.15). O Espírito do Filho habita no
coração (cf. 2Cor 1, 22; Ef 3, 17) e revela-lhe o amor de Deus (cf. Rm 5, 5)525. O
521
Cf. ROCCHETTA, C., Hacia uma teología de la corporeidad, Madrid, San Pablo, 1993, p. 40.
522
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 264.
523
Cf. WIBBING, S., Corpo, soma. In: BEYREUTHE, E., BIETENHARD, H. e COENEN, L.
(Eds.), Dicionário Teológico del Nuevo Testamento, Vol. I, Salamanca, pp. 375-380. Aqui: pp.
377-378. Apud GARCIA RUBIO, A., loc. cit.
524
Cf. PESH, W., Corpo. In: BAUER, J. (Ed.), Dicionário de teologia bíblica, Vol. I, São Paulo,
Loyola, 1973, p. 240. Apud GARCIA RUBIO, A., loc.cit.
525
Cf. GOZZELINO, G., Il mistero dell’uomo in Cristo. Saggio di protologia, Leumann (Torino),
Elle Di Ci, 1991, p. 103.
181
pecado, por sua vez, afeta principalmente o coração, escravizando, a partir dele, o
ser humano por inteiro526.
A resumida apresentação do significado dos termos psyché, pnêuma, sarx,
soma e kardia , assim como são usados pelo Novo Testamento, leva-nos à mesma
conclusão que a análise dos termos correspondentes hebraicos utilizados no
Antigo Testamento: uns e outros indicam o ser humano como um todo, embora
considerado sob diversos aspectos. Estamos distantes da dicotomia alma-corpo,
própria da cultura grega. Os cristãos das comunidades primitivas estavam, pois,
enraizados na compreensão pré-filosófica de ser humano, própria da tradição
semita hebraica527.
É importante sublinhar que a Sagrada Escritura não está preocupada com a
constituição ontológica do ser humano, mas com a sua salvação. Por isso, o ser
humano é visto na sua situação de não salvação, e convidado a viver a salvação
oferecida gratuitamente pelo único Deus criador-salvador. Porém, a visão
antropológica que se depreende da Sagrada Escritura pressupõe uma salvação que
atinge o ser humano integralmente considerado, em todas as suas dimensões, e
não apenas em sua alma. Trata-se, pois, de uma antropologia histórico-salvífica528.
7.1.3.
O contributo da filosofia grega
526
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 265.
527
Cf. Ibidem.
528
Cf. Ibidem, p. 274.
529
Cf. Capítulo 3, pp. 85-88.
182
ser humano, mas simplesmente sua condição natural. E como imagem de Deus, é
capaz de escutar e responder à interpelação divina e dos outros seres humanos; é
capaz, ainda, de assumir a sua vocação de administrador responsável do mundo
criado530.
A dualidade alma-corpo é positiva e deve sempre ser mantida, pois deixa
muito claro que o ser humano pertence ao mundo material, embora não se reduza
à matéria; como também pertence ao mundo espiritual, sem reduzir-se à sua
espiritualidade. O ser humano não se define só pela matéria (materialismo) nem só
pelo espírito (espiritualismo)531. Por isso mesmo, uma visão antropológica correta,
que não sacrifica nada da complexidade do humano, deverá acentuar
decididamente a unidade fundamental do ser humano, respeitando, no entanto, as
diferenças existentes entre suas dimensões constitutivas. Nem dualismo, nem
monismo, mas unidade pessoal, na “dualidade” de aspectos constitutivos532.
7.1.4.
Unidade na dualidade
530
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 275.
531
Cf. Ibidem.
532
Cf. Ibidem, p. 286.
533
Cf. Ibidem, p. 283.
534
Atualmente Papa Bento XVI.
183
535
Cf. RATZINGER, J., Entre a morte e a ressurreição. In: COMMUNIO, ano 1, n. 1, jan/ fev.
1982, pp. 67-86.
536
Cf. Ibidem, p. 84.
537
Ibidem.
538
SCHMAUS, M., A fé da Igreja, Vol. VI, Petrópolis, Vozes, 1981, p. 212: “(...) é impossível
que a alma, mesmo depois de sua separação do corpo, perca sua ordenação essencial à matéria. Ela
não se converte por isso em espírito puro, no sentido de que já não signifique relação ao material.
Além disso, a alma continua sendo criatura, quer dizer, permanece incluída na rede de inter-
relações de todo o mundo material. Ela continua sendo terrena. Pela separação de seu conatural
corpo individual se dá uma profunda transformação. Pois a alma já não é capaz de exercer aquelas
funções que, segundo a fé da Igreja, lhe correspondem como forma, como lei informadora e
configuradora da essência do corpo. Para além da morte, sua relação à matéria não é a mesma que
durante a existência histórica. No novo estado, a vida da alma não diminui sua intensidade. Pois
precisamente a entrega plena a Deus confere ao espírito uma vida sumamente intensa. Pois bem,
nesta intensidade vital não pode faltar um elemento que lhe pertence essencialmente. Do mesmo
modo que a alma se ultrapassa em direção a Deus de uma forma sumamente ativa e, precisamente
assim, se realiza a si mesma como nunca pôde realizar-se durante a existência histórica, de
maneira parecida, ela se autotranscende em direção à criatura, quer dizer, em direção à matéria,
com uma intensidade que não era possível durante a vida histórica. Mas, em todo caso, a alma está
suportada e atualizada pelo dinamismo de Deus, pela atividade criadora do espírito divino (...).
Assim, pois, graças à ação divina, a alma, em sua auto-entrega a Deus, transcende em direção a
todo o mundo material (...). Enquanto Deus põe em marcha o movimento de transcendência da
alma para a matéria, esta a apreende e a une a si para constituir uma realidade unitária. Este ato
está além do materialismo e do espiritualismo. Neste ato, a alma espiritual se constitui em lei
informadora da matéria apreendida por ela. Isto significa que se expressa e se representa a matéria,
marcando nesta a fisionomia que sua união com Deus e o diálogo com ele lhe conferem. A auto-
representação do espírito na matéria torna esta transparente para o amor e a verdade de Deus
impressos na alma. Uma vez alcançado isso, deu-se a glorificação psicossomática do homem”.
Para aprofundamento deste tema sugiro a leitura da seguinte obra: CTI, A esperança cristã na
ressurreição. Algumas questões atuais de escatologia, Petrópolis, Vozes, 1994, pp. 33-39.
184
539
RATZINGER, J., Entre a morte e a ressurreição. In: COMMUNIO, ano 1, n. 1, jan./ fev. 1982,
p. 84: “Além do mais, um cristão (e, com mais forte razão um pensador) não deveria considerar o
monismo como algo de menos perigoso e menos fatal que o dualismo. A partir da fórmula
antropológica de Tomás de Aquino, não posso deixar de aprovar (com a condição de que seja bem
compreendida) a declaração de Greshake: ‘Para mim, o conceito de alma libertada do corpo não é
absolutamente um conceito’. Que o homem, durante toda a sua vida, integre a si a matéria e que,
por conseguinte, mesmo na morte, não rejeite este laço que tem com ela, mas o leve consigo,
constitui, dentro da perspectiva supra citada, algo de absolutamente claro. Somente assim a relação
com a Ressurreição assume todo o seu sentido. No entanto, justamente por este fato, não há
necessidade de se negar o conceito de alma, nem de substituir a alma por um novo corpo”.
540
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 286.
541
Cf. Ibidem, p. 292.
542
Dentre eles: Karl Rahner, Christian Duquoc e Edward Schillebeeckx.
185
ceia eucarística e na paixão até a morte de cruz. Assim se concilia sua mensagem
do reino de Deus com o sentido salvífico de sua morte543.
Contudo, é preciso deixar bem claro que a solidariedade de Cristo com a
humanidade tem algo específico e singular que a diferencia de qualquer outro
gesto de solidariedade realizado na história, por outros homens e mulheres: Jesus
vive o significado do ‘Servo de Iahweh’, que sofre pelos outros (cf. Is 52,13-
53,12)544. Ele morre “em nosso lugar”545. Há, sem dúvida, como vimos, uma
continuidade entre a vida histórica de Jesus e sua morte violenta; porém o sentido
pleno desta morte não se explica somente como efeito histórico de sua ‘existência
para os outros’, mas também por sua obediência ao Pai. Antes de ser homem para
os outros, Jesus foi homem para Deus; isto é, em sua história, posteriormente
reinterpretada pelas primeiras tradições cristãs à luz da ressurreição, já estava
presente e atuante, de modo escondido, o ‘Filho de Deus’. As palavras e ações de
Jesus aparecem como as do Filho preexistente, que se sabe enviado ao mundo
para dar sua vida por nós. Portanto, enquanto Jesus era obediente ao Pai e aceitava
sua história concreta, incluída sua morte iminente e violenta, não só como
perseguição de seus inimigos mas como desígnio de Deus, atuava num sentido
mais profundo o Filho de Deus nele escondido que, por obediência ao Pai, se
oferecia para a salvação da humanidade546.
Entre nós, seres humanos, a solidariedade nasce do amor; em Deus,
solidariedade e amor se identificam. Assim, podemos dizer que a solidariedade de
Jesus Cristo pelos seres humanos é a prova histórica de seu amor por nós. É a
543
Cf. FRANÇA MIRANDA, M., A salvação de Jesus Cristo. A doutrina da graça, São Paulo,
Loyola, 2004, p. 76.
544
Cf. Capítulo 3, pp. 93-94.
545
Cf. KESSLER, H., Redenção/Soteriologia. In: DCFT, p. 749: Jesus salva a humanidade ao
experimentar e superar na condição humana o distanciamento que o pecado produziu entre a
humanidade e Deus. Ele faz com que o amor de Deus exista e se torne ativo justamente no “lugar
dos pecadores”, no lugar do “ser que está distante de Deus”. Na cruz, Jesus toma sobre si todos os
efeitos de uma humanidade distante de Deus e a carrega como o verdadeiro “Servo de Iahweh”,
em solidariedade com Deus e conosco. Aquele que está absolutamente associado a Deus padece,
até ao extremo das tensões, o mais radical abandono de Deus (cf. Mc 15, 34; Gl 3, 13ss); a miséria
e a ruptura, que representa a distância de Deus, é assumida no seio da relação divina do Pai e do
Filho, transformadas e superadas na vitória da ressurreição. Assim acontece, na morte e
ressurreição de Jesus Cristo o máximo do amor redentor de Deus e do homem e com isso a
mudança decisiva de status da humanidade. Jesus Cristo mantém o lugar aberto: junto dos homens
para Deus, e junto de Deus para os homens. Nele, pelo amor descendente de Deus para com o
mundo e pelo amor ascendente do mundo para com Deus anula-se uma vez para sempre a
separação da humanidade de Deus. É a reconciliação da humanidade com Deus.
546
Cf. FRANCA MIRANDA, M., A salvação de Jesus Cristo. A doutrina da graça, São Paulo,
Loyola, 2004, pp. 76-79.
186
547
Cf. Ibidem, p. 79.
548
CARVAJAL, L. G., Nossa fé. Teologia para universitários, São Paulo, Loyola, 2002, pp. 56-
57: “Uma redenção que se esgotasse no bom exemplo que o amor de Cristo nos deu a partir de fora
equivaleria a uma espécie de pelagianismo. O homem se salvaria por seu próprio esforço, imitando
a Jesus, sim, mas por essa lógica também poderia prescindir de Jesus e imitar qualquer outra
pessoa que lhe desse bom exemplo. Não. A salvação de Cristo age a partir de dentro de nós
mesmos porque seu Espírito foi derramado em nossos corações (cf. Rm 5, 5). É como uma
incorporação da vida do cristão à de Cristo, que Paulo expressa com a imagem do enxerto (cf. Rm
11, 17-24) e com abundância de preposições: vivemos ‘em’ Cristo (cf. Cl 2, 11), ‘com’ Cristo (cf.
Cl 2, 12-20; Ef 2, 6; Rm 6, 4-6), ‘por’ Cristo (cf. Gl 6, 14; Rm 7, 4), ‘de’ Cristo (cf. Gl 5, 24)”.
549
Cf. QUEIRUGA, A. T., Recuperar a salvação. Por uma interpretação libertadora da
experiência cristã, São Paulo, Paulus, 1999, pp. 171-178.
550
Cf. Capítulo 3, pp. 92-95.
187
A crucifixão de Jesus não foi querida por Deus. Não se deve atribuir a Deus
aquilo que o pecado humano causou a Jesus. Não era da vontade do Pai que seu
Filho fosse morto de modo cruel553. A morte de Jesus foi conseqüência histórica
do tipo de vida assumido por ele, em conformidade com a vontade do Pai554. Jesus
assumiu e viveu a atitude de “servidor”. Na verdade, a rejeição desse tipo de vida
é da responsabilidade de seres humanos concretos. Foi, portanto, a “não
aceitação” da proposta do reino de Deus a causa histórica da morte de Jesus555.
Ainda a este respeito, é muito importante destacar quem é o Deus revelado
por Jesus. Não é um Deus violento, mas um Deus de amor gratuito, que não se
impõe pela força, que, ao contrário, respeita a decisão humana. Se Jesus tivesse
assumido o caminho do poder dominador teria deturpado a revelação do Deus
Ágape556. Uma vez assumido o caminho do serviço, abrem-se diante de Jesus duas
551
CTI, Teologia da redenção, São Paulo, Loyola, 1997, n. 2, p. 09.
552
QUEIRUGA, A. T., Recuperar a salvação. Por uma interpretação libertadora da experiência
cristã. São Paulo, Paulus, 1999, p. 173.
553
Cf. KESSLER, H., Cristologia. In: SCHNEIDER, T. (Org.), Manual de dogmática, Vol. I,
Petrópolis, Vozes, 2000, p. 372.
554
CARVAJAL, L. G., Nossa fé. Teologia para universitários, São Paulo, Loyola, 1992, p. 55:
“Se nenhum pai deseja que seu filho seja morto, muito menos o Pai do céu! (cf. Lc 11, 13). Outra
coisa é negar-se a evitar a morte, ainda que seja com o coração arrebentado, para a defesa de algo
que se considera um valor superior. No caso do Calvário, esse valor superior seria a seriedade e
autonomia da história, respeitada por Deus mesmo quando a liberdade humana se volta contra ele
mesmo. O que Deus realmente queria era que seu Filho fosse fiel à sua missão até as últimas
conseqüências. Assim deve ser entendida a afirmação de que Deus ‘não poupou’ sequer a seu
próprio Filho por nós (cf. Rm 8, 32)”.
555
Cf. GARCIA RUBIO, A., O encontro com Jesus Cristo vivo. Um ensaio de cristologia para
nossos dias, 8. ed., São Paulo, Paulinas, 2001, p. 94.
556
BOFF, L., A cruz nossa de cada dia. Fonte de vida e de ressurreição, Campinas, Verus Editora,
2003, pp. 60-61: “Que pode Deus? Pode abaixar-se tanto a ponto de se tornar um escravo e último
dos homens. Mais ainda: aceita morrer como malfeitor e bandido, em solidariedade para com
todos os inocentes da história. Estamos de tal maneira habituados à narração de tais fatos que
perdemos o sentido do escândalo que objetivamente possuem. Se as Escrituras não no-los
testemunhassem, certamente duvidaríamos da veracidade de tais eventos cujo sujeito é o próprio
Deus. Em Jesus, Deus se fez sofredor, sedento de justiça; um Deus de bondade que corre atrás da
ovelha tresmalhada, que fica esperando a volta do filho pródigo e que se alegra mais com um
pecador que se converte do que com noventa e nove justos que não precisam de penitência. (...)
Em Jesus, Deus emerge fraco e sem defesa; é, sim, uma potência de serviço, mas sempre
afirmando e potenciando a liberdade das pessoas, jamais a cerceando em função de fins religiosos.
O senso comum, mas também a teologia clássica, não sabe combinar Deus com a impotência e a
morte maldita. Tal coexistência pareceria absurda, pois supõe um Deus impassível e incapaz de
sofrer. Mas Deus é amor. E todo amor é vulnerável. Vive da liberdade e da gratuidade. Há sempre
188
a possibilidade da traição e da defecção. Por isso o apóstolo Paulo – que bem captou a lógica da
encarnação – bem observou que Deus escolheu a loucura para confundir a sabedoria, aquilo que
não é para destruir o que é (cf. 1Cor 1, 27-29)”.
557
Cf. GARCIA RUBIO, A., O encontro com Jesus Cristo vivo. Um ensaio de cristologia para
nossos dias. 8 ed., São Paulo, Paulinas, 2001, p. 94.
558
Cf. Ibidem, pp. 94-95.
559
Cf. Ibidem, p. 95.
560
Cf. BOFF, L., A cruz nossa de cada dia. Fonte de vida e de ressurreição, Campinas, Verus
Editora, 2003, p. 39.
561
Cf. Idem., Paixão de Cristo, paixão do mundo. Os fatos, as interpretações e o significado
ontem e hoje, 5. ed., Petrópolis, Vozes, 2003, p. 158.
189
Jesus não buscou o sofrimento, ele foi-lhe imposto. Sua vontade não foi
sofrer, mas amar. A salvação foi realizada pelo amor, apesar de ter sido
concretizada ‘através do sofrimento’, e, nesse sentido, podemos dizer que “com os
seus ferimentos veio a cura para nós” (Is 53, 5b). O que faltava ao mundo não era
dor, mas amor. É isso que Cristo nos trouxe563. Por isso, não é necessário para o
seguimento de Cristo causar dor e sofrimento a si mesmo; não é necessário buscar
um sofrimento fora do comum para tornar-se discípulo de Cristo, pois basta
aceitar a cruz de cada dia (cf. Lc 9, 23); ou seja, ser fiel a Cristo a qualquer custo,
aceitando todo risco, esquecendo-se de si mesmo por ele, colocando o evangelho
no centro dos próprios interesses efetivos e dos próprios projetos pessoais564.
Num mundo marcado pelo pecado, presente não só na cultura, mas também
nas instituições da sociedade, que pressionam constantemente o indivíduo a aderir
a elas, não pode o compromisso cristão pelo próximo deixar de ser marcado pelo
conflito. De fato, a atitude cristã é “contracultural”, pois questiona seriamente a
desordem estabelecida, subverte padrões aceitos, estimula novas iniciativas, sendo
interpretada, então, como uma ameaça. Daí a reação dos detentores do poder, que
recorrem a calúnias (cf. Lc 23, 2), falsas informações, interpretações deformadas,
562
CF. SESBÖUE, B., Creer. Invitación a la fe católica para las mujeres y los hombres del siglo
XXI, Madrid, San Pablo, 1999, pp. 228-229.
563
Cf. CARVAJAL, L. G., Nossa fé. Teologia para universitários, São Paulo, Loyola, 1992, p. 56.
564
Cf. VINCENZO, B., Cruz. In: DIPS, p. 252.
190
565
Cf. FRANÇA MIRANDA, M., A salvação de Jesus Cristo. A doutrina da graça, São Paulo,
Loyola, 2004, p. 160.
566
Cf. LE BRETON, D., Antropología del dolor, Barcelona, Editorial Seix Barral, 1999, p. 243: A
tortura é a prática do horror, pois inflige uma dor que tem apenas como limite a imaginação do
torturador. Seu objetivo é destruir o sentimento de identidade da vítima para levá-la a revelar
segredos importantes, provocar a admissão de uma culpa, de um compromisso político ou moral,
ou simplesmente dobrá-la à vontade dos verdugos. Por vezes, a tortura traduz uma pura vontade de
aniquilação do outro, martirizando-o, reduzindo-o a um objeto. A imposição da dor e da
humilhação segue uma lógica de destruição da vítima. A pessoa torturada vive seu corpo como
forma permanente de dor. O sofrimento mental agudo que a violência física produz, prolonga seus
efeitos na existência durante longo tempo, e, geralmente, impede a pessoa de recuperar seu lugar
na sociedade.
567
Cito, como exemplo bastante recente, o testemunho dado pelo cardeal François-Xavier Nguyen
Van Thuan (1928-2002). O cardeal Van Thuan foi submetido ao cárcere por treze anos, no Vietnã,
sua terra natal (1975-1988). Neste período, passou nove anos na solitária, no isolamento completo,
no vazio absoluto, sem trabalho, caminhando dentro da cela de manhã à noite para não ser
destruído pela artrose, no limite da loucura. Saiu dessa terrível experiência transformado para
melhor: muito mais maduro como pessoa humana e com uma fé mais consistente. Para aqueles que
desejarem conhecer mais profundamente a experiência do cardeal Van Thuan, sugiro a seguinte
191
obra: VAN THUAN, F. X. N., Testemunhas da esperança. Quando o amor irrompe em situações
de heroísmo no dia-a-dia, São Paulo, Cidade Nova, 2002, 239 p.
568
FRANKL. V. E., El hombre doliente. Fundamentos antropológicos de la psicoterapia,
Barcelona, Herder, 1987, p. 258.
569
Cf. SD, nn. 19-27.
570
SD n. 24.
192
“O sofrimento foi inserido de um modo singular naquela vitória sobre o mundo que
se manifestou na ressurreição. Cristo conserva no seu corpo ressuscitado os sinais
das feridas causadas pelo suplício da cruz: nas suas mãos, nos seus pés e no seu
lado. Pela ressurreição, ele manifesta a força vitoriosa do sofrimento; e quer incutir
a convicção desta força no coração daqueles que escolheu como seus apóstolos e
daqueles que ele continua a escolher e enviar”571.
571
Ibidem, n. 25.
572
Cf. Ibidem, n. 26.
573
Ibidem, n. 25.
193
7.3.
Resgatar o valor positivo da disciplina
574
Cf. Ibidem, n. 31.
575
Cf. GARCIA RUBIO, A., Evangelização e maturidade afetiva, 3. ed., São Paulo, Paulinas,
2006, p. 122.
576
Ibidem.
194
577
Cf. Ibidem.
578
Cf. RUIZ SALVADOR, F., Compêndio de teologia espiritual, São Paulo, Loyola, 1996, p. 390.
579
Cf. GARCIA RUBIO, A., Evangelização e maturidade afetiva, 3. ed., São Paulo, Paulinas,
2006, pp. 136-137.
580
Cf. Ibidem.
195
7.4.
Conclusão
8
A força salvífica da mortificação
581
Cf. POSADA, M. E., Mortificação. In: DM, p. 766-767.
582
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 166.
197
São Paulo, em Rm 6, 1-11, afirma que, pelo batismo, o cristão fica unido à
morte de Cristo e participa, desse modo, da vida do “homem novo”. Estar unido à
morte de Jesus Cristo tem como objetivo segui-lo na vida nova inaugurada pela
ressurreição. Esta comunhão com a morte de Cristo, porém, leva consigo um
determinado comportamento ético que se resume na luta contra o pecado e na
abertura à vontade de Deus. No batismo, o cristão já está morto para o pecado e
renascido para Deus, em Cristo Jesus. E porque já está morto, ele deve continuar
morrendo cada dia ao pecado em cada situação de sua vida cotidiana586.
Como alguém que já está morto pode continuar morrendo? Não há aqui
contradição alguma. Acontece que a ressurreição é ainda futura para o cristão. Na
situação atual, este dá os primeiros passos na caminhada rumo à vida nova, em
583
CIC n. 1263.
584
CIC n. 1265.
585
Cf. KERTELGE, K., A epístola aos Romanos, Petrópolis, Vozes, 1982, p. 120.
586
Cf. GARCIA RUBIO, A., Unidade na pluralidade, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 166.
198
587
Cf. Ibidem.
588
Cf. Ibidem.
589
Cf. Ibidem, pp. 166-167.
199
590
CASTELLANO CERVERA. J., O caminho da ascese cristã. In: OMNIS TERRA, n. 89, ano X,
Roma, Pontifícia União Missionária, abril de 2004, p. 116: “A ascese cristã não é senão o processo
ativo de viver a existência batismal e a capacidade de secundar as moções do Espírito que realiza
em nós, até ao fundo, o processo iniciado no batismo. Os Padres na Igreja viram a ascese cristã
nesta perspectiva batismal de cumprimento e dinamismo da primeira graça. Valha para todos este
texto de Leão Magno: ‘Aqueles que a fonte recebeu pela sua vetustez, a água do batismo insere-os
no mundo renovados. E todavia é necessário realizar nas obras aquilo que se celebrou no
sacramento. Aqueles que nasceram do Espírito Santo não podem eliminar o que neles subsiste do
corpo deste mundo, sem carregar a cruz nos ombros’. Poder-se-ia afirmar, resumindo a doutrina
dos Padres da Igreja com as seguintes expressões: ‘Em última análise, toda a ascese cristã consiste
nisto: realizar progressivamente a graça batismal no seu duplo aspecto de purificação e de
iluminação ou, se quiser, de despojamento do homem velho e do revestimento do novo’”.
591
Cf. Idem, Viver o batismo como fonte de vocação e de missão. In: ABBA – Revista de cultura,
Vol. V, n. 03, Vargem Grande Paulista, Cidade Nova, 2002, p. 68.
592
Cf. AG n. 11; LG n. 10.
593
GOEDERT, V., Teologia do batismo, 2. ed., São Paulo, Paulinas, 1988, p. 67.
200
longa luta, que se prolonga até o amanhecer. O misterioso homem fere Jacó na
articulação da coxa, mas Jacó resiste. Eles se aproximam, familiarizam-se,
dirigem a palavra um ao outro. Jacó pede ao misterioso homem uma benção, pois
sente que tem necessidade da força deste homem, para ir ao encontro de seu irmão
Esaú. Justamente em sua mais extrema aflição, Jacó tem uma experiência de
Deus, uma experiência verdadeira de fé. Neste homem sombrio que o ataca e o
fere, Deus o abençoa e lhe dá um nome novo. Ele deixa de chamar-se Jacó, pois já
não é mais alguém que engana. Passa a chamar-se “Israel”, quer dizer, “o que luta
com Deus”. E Jacó sai desta luta noturna transformado. A experiência de fé faz
dele uma benção para muitos, o patriarca de muitos povos. Ele agora coxeia, anda
mais devagar, caminha com mais cuidado. Renuncia a querer saber tudo de Deus.
A fé é, pois, sempre luta contra o próprio Deus. Esta é a prova da fé: lutar com
Deus, sabendo que ele é o “Outro”, o “Mistério”, que escapa às nossas certezas e
não se deixa domesticar pelas nossas pretensões595.
A própria luta cotidiana do cristão para manter e fortalecer a fé já é, por si
só, mortificação. Sem luta, isto é, sem mortificação, não há desenvolvimento da
fé. Por isso mesmo, uma prática atualizada da mortificação da fé inclui como
obstáculos ao seu desenvolvimento os desafios da sociedade consumista. Dentre
estes, podemos citar alguns: a aceitação e integração dos próprios limites; a
aceitação da finitude e contingência da história; a superação das falsas imagens de
Deus e a perseverança na prática da oração.
8.2.1.1.
Aceitar e integrar os próprios limites
594
Cf. GRÜN, A., Se quiser experimentar Deus, Petrópolis, Vozes, 2001, p. 60.
595
Cf. FORTE, B., A essência do cristianismo, Petrópolis, Vozes, 2003, p. 124.
596
Cf. MARTÍNEZ LOZANO, E., O gozo de ser pessoa. Plenitude humana, transparência de
Deus, São Paulo, Loyola, 2006, p. 28.
597
GRÜN, A., Para que tua vida respire liberdade. Rituais de purificação para o corpo e a alma,
São Paulo, Paulus, 2005, pp. 76-77: “Nossa imagem de nós mesmos é freqüentemente obscurecida
201
por ilusões que alimentamos a respeito de nós mesmos. Há a ilusão de que temos o domínio da
nossa vida, que podemos tudo o que queremos, que nossa vida está bem. Ou a ilusão de que nós só
queremos o bem, que somos pessoas amigas, autocontroladas, disciplinadas, de elevado nível
ético, que somos psiquicamente sadios e espiritualmente honestos e esforçados. A purificação na
relação comigo mesmo consiste, em primeiro lugar, em que eu abandone as ilusões que fiz de mim
mesmo. E isso não é fácil. Muitas vezes é doloroso. É exatamente isso o que são Bento quer dizer
com a ‘humilitas’, a coragem de descer ao próprio corpo, à própria humanidade terrena, para
aceitá-la. Mas, nesse caminho de purificação encontramos numerosas armadilhas. Há, por
exemplo, a tendência de não aceitarmos o nosso nível médio. Sempre queremos ser um caso
especial, diferente. Ou somos especiais quanto à espiritualidade. Ou, se isso não tiver sucesso,
consideramo-nos os piores pecadores. E com isso nos recusamos a aceitar nossa condição
mediana. Não somos nem os maiores santos nem os piores pecadores, mas algo intermediário. E
isso incomoda a imagem que temos de nós mesmos”.
598
Cf. MARTÍNEZ LOZANO, E., O gozo de ser pessoa. Plenitude humana, transparência de
Deus, São Paulo, Loyola, 2006, p. 29.
599
Cf. PACOT, S., A evangelização das profundezas. Nas dimensões psicológica e espiritual,
Aparecida, Santuário, 2006, pp. 44-45.
202
procura viver apenas com os melhores fragmentos de si mesmo, aqueles que estão
conformes ao ideal buscado, com o que os outros pensam e esperam dele. O
restante, as fraquezas, as tendências obscuras, ficam recalcadas no porão da
consciência. Elas são recusadas e negadas. E ainda pior, o que é recusado torna-se
uma ferida não cuidada que, aos poucos, acaba infeccionando, supurando e
contaminando toda a vida, pois não é devidamente reconhecida e tratada600.
Outra conseqüência da recusa dos próprios limites é o chamado
“comportamento de onipotência”, isto é, quando não aceitamos que algo escape ao
nosso controle, quando recusamos ser confrontados com nossos limites; quando
não aceitamos nem fracassos, nem erros, nem hesitações, nem retrocessos, nem
quedas, nem recaídas. Quando, ainda, pensamos ser donos da verdade e
recusamos qualquer revisão acerca de um assunto. A onipotência pode insinuar-
se, por exemplo, na nossa maneira de querer ajudar o outro, quando exigimos que
ele mude, segundo nossos pontos de vista. Ou então, quando tentamos manipular
Deus, fazê-lo servir aos nossos interesses. Enfim, o comportamento de
onipotência leva-nos a não aceitar a nossa condição de seres limitados e frágeis601.
Até mesmo a prática das virtudes pode estar impregnada com segundas
intenções. Nosso amor pode estar penetrado de pretensões de posse, de impulsos
agressivos, de ciúmes, de desejos infantis. A prática da justiça pode misturar-se
com farisaísmo ou com um sentido muito agressivo de direito, que pretende fazer
valer a justiça à força. Dessa maneira, a virtude pode tornar-se vício e em vez de
nos capacitar para a vida, acaba prejudicando-nos. A prudência pode virar astúcia
ou modo tático de agir, isto é, de não querer se expor. A coragem pode degenerar
em temeridade e a própria moderação pode ser falsificada em agir medíocre, uma
busca de comodidade apenas. Enfim, todas as nossas virtudes precisam ser
analisadas criticamente, para vermos em que estão turvadas e necessitadas de um
novo direcionamento602.
Portanto, o processo de autoconhecimento e de integração dos próprios
limites é uma necessidade básica de todo ser humano. E justamente nessa tarefa
600
Cf. NETTO DE OLIVEIRA, J. A., Perfeição ou santidade e outros textos espirituais, São
Paulo, Loyola, 2000, p. 15.
601
Cf. PACOT, S., A evangelização das profundezas. Nas dimensões psicológica e espiritual,
Aparecida, Santuário, 2006, p. 50.
602
Cf. GRÜN, A., Para que tua vida respire liberdade. Rituais de purificação para o corpo e a
alma, São Paulo, Paulus, 2005, p. 81.
203
603
Cf. PACOT, S., A evangelização das profundezas, Aparecida, Santuário, 2006, p. 36.
204
constante renúncia não está entendendo Deus corretamente. É evidente que sem
renúncias não podemos desenvolver uma personalidade forte, capaz de enfrentar e
superar as dificuldades do dia-a-dia. Mas o objetivo da renúncia não é a negação
em si, mas a afirmação da vida. Devemos, portanto, renunciar sempre em vista da
comunhão com Deus e não por considerar os bens criados como coisas
negativas604.
Outros tomam Jesus por Elias, o profeta que enfrenta com violência os
inimigos de Deus, que elimina todos os sacerdotes de “Baal”. Elias representa
uma imagem de Deus marcada, por um lado, pela pureza e transparência e, por
outro, pela violência e pela ira. Elias é o combatente da fé, mas seu agir é marcado
pela rigidez que lhe perturba a visão, a ponto de não perceber o que está fazendo
aos sacerdotes de “Baal”. O Deus de Jesus Cristo, ao contrário, faz o sol nascer
sobre bons e maus. É um Deus magnânimo, misericordioso, que pacientemente
espera que o ser humano se converta. Elias é dominado por fortes emoções, sabe
levar as pessoas ao entusiasmo, mas, pouco depois, cai em depressão e deseja
morrer. Jesus não incita os sentimentos dos ouvintes, mas fala de Deus com
sobriedade, dando a eles a possibilidade para acolher ou não o Deus que ele
apresenta em suas parábolas e imagens. Quem identifica Deus com os seus
sentimentos, há de oscilar sempre entre o céu e a terra, como o profeta Elias. O
Deus que Jesus anuncia ultrapassa os sentimentos. Embora possa provocar em nós
emoções profundas, Deus se manifesta na sobriedade da vida cotidiana605.
Outros confundem Jesus com Jeremias, que é o profeta castigado pelos
sofrimentos. É fato notório que o sofrimento é algo inerente à vida humana. Mas,
como já foi dito anteriormente, devemos, sim, aceitar o sofrimento, mas jamais
procurá-lo; pois, do contrário, corremos o risco de glorificá-lo, de construir uma
religião masoquista, na qual o sofrimento é idealizado como sendo sempre a
vontade de Deus, à qual temos que nos submeter. Elaboramos, dessa forma, mais
uma imagem deturpada de Deus606.
Jesus como João Batista, como Elias ou como Jeremias representa imagens
unilaterais de Deus. Na verdade, o Deus que Jesus revela não se limita a nenhuma
destas imagens. Mas, por outro lado, cada uma delas têm alguns aspectos
604
Cf. GRÜN, A., Se quiser experimentar Deus, Petrópolis, Vozes, 2001, pp. 157-158.
605
Cf. Ibidem, pp. 158-160.
606
Cf. Ibidem, p. 160.
205
607
Cf. Ibidem, pp. 160-161.
608
Cf. ESTRADA DÍAZ, J. A., La espiritualidad de los laicos, México, San Pablo, 1994, p. 186.
206
Deus que nos abre e nos possibilita um futuro, a partir do presente que é
construído pelo esforço humano609.
No âmbito da fragmentação histórica, mortificação da fé significa lutar
contra a falsa idéia de que salvação é sinônimo de vida feliz, sem doenças, sem
misérias, sem desavenças e sofrimentos; é lutar contra as “religiões de mercado”,
que oferecem soluções mágicas para todos os problemas; é lutar contra a
publicidade enganosa que oferece a felicidade à custa do consumismo
desenfreado; é lutar contra a falsa idéia de progresso que destrói a natureza;
enfim, é lutar contra o mito da eterna juventude, criado pela sociedade de
consumo, que nos impede de integrar o envelhecimento e a morte como fases de
nossa existência.
8.2.1.4.
A perseverança na prática da oração
609
Cf. Ibidem.
610
GUARDINI, R., Introdução à oração, Lisboa, Editorial Aster, 1961, p. 17: “É preciso que o
homem deixe de enganar a Deus e de se iludir a si mesmo. É muito melhor confessar claramente:
‘eu não quero orar’, do que se iludir com tais artimanhas. É preferível declarar francamente: ‘não
quero orar’, do que argumentar com desculpas do gênero de ‘estou muito cansado’. Esta atitude
não será muito correta e é uma manifestação de fraqueza, mas é a verdade, e o que começa na
verdade progride muito mais facilmente do que o que se assenta na insinceridade”.
611
Cf. ESPEJA, J., Espiritualidade cristã, Petrópolis, Vozes, 1995, p. 341.
612
Cf. GUTIÉRREZ, G., teología de la liberación, Salamanca, Sígueme, 1984, p. 270. Apud
CASALDÁLIGA, P.; VIGIL, J. M., Espiritualidade da libertação, 4. ed., Petrópolis, Vozes, 1996,
p. 153.
613
Cf. GUARDINI, R., op. cit., Lisboa, Editorial Aster, 1961, p. 20.
207
Justamente por não ser instintiva, a oração exige disciplina, ou seja, requer
seu tempo, seu lugar, e até um método. Definitivamente, oração não condiz com
improvisação. Portanto, a mortificação da fé exige que o cristão, não apenas crie,
mas, principalmente, preserve as condições indispensáveis à prática cotidiana da
oração, de acordo com suas circunstâncias de vida. Não existe uma recomendação
geral sobre o tempo necessário à oração; porém, este conselho de Dom Pedro
Casaldáliga, aos agentes de pastoral, não deve ser desprezado, mas estendido a
todos os cristãos: “um agente de pastoral que não fizer pelo menos meia hora de
oração diária, além da que faz em equipe, não atingiu a estatura de agente de
pastoral”614.
8.2.2.
Mortificação da esperança
614
Cf. CASALDÁLIGA, P., El vuelo Del Quetzal, Panamá, Maíz Nuestro, 1988, p. 56. Apud
CASALDÁLIGA, P.; VIGIL, J. M., loc. cit.
615
Cf. FORTE, B., A essência do cristianismo, Petrópolis, Vozes, 2003, p. 115.
616
ESPEJA, J., Espiritualidade cristã, Petrópolis, Vozes, 1995, pp. 262-263: “A condição
histórica do ser humano, que a teologia chamava ‘estado de vida’, ‘estar em caminho’, implica
direção para uma meta, porém ainda não alcançada. Cabem aqui diferentes posturas: resignação
com o que já se possui, ou mais um passo para frente. Embora pretendamos nos instalar numa
etapa da caminhada, nossa vida continua e, com ela, também nossas exigências cada vez maiores.
A resignação é sempre um mal menor para os homens quando já nada conseguem. Só a esperança
– confiança, paciência, criatividade e audácia – pode ser meio satisfatório para as pessoas humanas
que trazem inscrita em seu ânimo a tensão antropológica entre o que são e o que desejam ser.
Nessa tensão entre o que se tem e o que ainda se deseja, inscreve-se a esperança cristã que é uma
virtude teologal. Por essa virtude experimentamos a densidade teológica do tempo e abrimos o
coração para além do aparente, certos de que nosso esforço não será inútil. Brota de uma promessa
sobre o futuro feita no passado e realizada pelo Espírito nos fiéis”.
208
617
Cf. FORTE, B., op. cit., pp. 115-116.
618
Cf. Ibidem, p. 117.
209
619
Cf. ESPEJA, J., Espiritualidade cristã, Petrópolis, Vozes, 1995, p. 268.
620
Cf. Ibidem, pp. 267.269.
621
Cf. FORTE, B., A essência do cristianismo, Petrópolis, Vozes, 2003, p. 117.
622
Cf. Ibidem, pp. 117-118.
210
quando de seu regresso ao Pai. Pois apesar das provas e contradições enfrentadas
aqui na terra, o cristão é chamado a exultar na esperança, dando testemunho da
alegria pascal; sempre convicto de que na comunidade em que peregrina rumo à
“Jerusalém Celeste”, realiza-se a palavra do salmista: “Que alegria, quando me
disseram: Vamos à casa do Senhor!” (Sl 122, 1)623.
A alegria do cristão, portanto, tem seu fundamento teológico na ressurreição
de Cristo, que lhe assegura a vida verdadeira no tempo e além do tempo; como
também na certeza de que o Espírito, por Cristo derramado sobre a humanidade,
está agindo, ou seja, edificando já na história o futuro prometido por Deus624.
Uma forma de mortificação da esperança ocorre justamente quando o
cristão, impulsionado pela alegria pascal, se esforça para superar o pessimismo e o
desânimo em sua vida, tornando-se, assim, sinal e voz do mistério da “Parusia” na
história.
8.2.3.
Mortificação da caridade
O amor que Jesus exige do cristão deve ser dirigido a todos os seres
humanos, independentemente de sua religião, cultura, nacionalidade e raça. Para
enfatizar esse ensinamento, Jesus narra a parábola do bom samaritano (cf. Lc 10,
25-37), na qual responde à pergunta do legista sobre quem merece ser destinatário
de nosso amor. A explicação de Jesus não é uma definição sobre o próximo, caso
o fosse, seria uma resposta abstrata. Jesus conta uma parábola, um fato. Nela, tudo
é significativo.
Para Jesus, o nosso próximo é qualquer pessoa necessitada; não importando
sua religião, sua cultura ou classe social. O sacerdote e o levita não foram
próximos do homem ferido caído à beira do caminho, apesar de serem, como ele,
623
Cf. Ibidem, p. 118.
624
Cf. Ibidem, pp. 118-119.
211
625
Cf. Capítulo 5, pp. 131-133.
626
ESPEJA, J. Espiritualidade cristã, Petrópolis, Vozes, 1995, p. 236.
627
Cf. GRÜN, A., Jesus porta para a vida – O evangelho de João, São Paulo, Loyola, 2006, pp.
80-82.
212
E ao levantar-se, Jesus pronuncia uma frase que cala fundo no coração dos
escribas: “Aquele dentre vós que nunca pecou atire-lhe a primeira pedra” (Jo 8,
7b). Frase esta que exprime a misericórdia e a clemência de Jesus. Ditas essas
palavras, ele se inclina novamente, deixando cada um às voltas com a sua própria
consciência. Um por um de seus interlocutores se afastam. Os mais velhos são os
primeiros, pois sabem que, em sua longa vida, não ficaram sem pecado.
Permanecem apenas Jesus e a pecadora. Agora, sim, Jesus se dirige à mulher e,
sem mencionar a questão da culpa ou da acusação, tira-a de seu embaraço e de sua
insegurança, não fazendo que ela se confesse culpada, apenas questionando diante
dela o comportamento de seus acusadores: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te
condenou?” (Jo 8, 10). Jesus, então, lhe promete o perdão e encoraja-a a não pecar
mais; enfim, oferece-lhe a oportunidade de começar uma vida nova, mais digna628.
O exigente exercício cotidiano do perdão sem limites é uma forma perene de
mortificação da caridade.
8.2.3.3.
Preservar a natureza
628
Cf. Ibidem, pp. 82-84.
629
Cf. ESPEJA, J., Espiritualidade cristã, Petrópolis, Vozes, 1995, p. 237.
630
Cf. Capítulo 6, pp. 163-167.
213
uma sensação de lar, de estar em casa. Prova disso temos no evangelho de Lucas,
mais precisamente na perícope que narra a conversão de Zaqueu (cf. Lc 19, 1-10).
Ao ver Zaqueu, Jesus tomou a iniciativa e se convidou a si mesmo como
hóspede em sua casa para comer com ele. Alojar-se na casa de alguém, sentar-se a
sua mesa são sinais de comunhão. Jesus não fez nenhuma censura a Zaqueu,
apenas se ofereceu para comer com ele; não exigiu mudanças, apenas respeitou-o
como ser humano. E ao ser valorizado por Jesus, Zaqueu mudou de
comportamento, passou a ser outra pessoa; pois já não precisava mais do dinheiro
como substituto de sua carência de valor, devolvendo, por isso, por isso tudo o
que ganhara desonestamente631.
Portanto, acolher bem, acreditar e investir na valorização da pessoa humana
é uma forma também sempre atual de mortificação da caridade, dada, sobretudo, a
premência de se resgatar a sua dignidade, tão esfacelada em nossa sociedade.
8.3.
Espiritualidade batismal: alicerce para uma nova evangelização
“Vós todos que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo” (Cf. Gl
3, 27). Estas palavras de são Paulo evidenciam que Cristo não é apenas alguém
que professamos como modelo e mestre da humanidade. Nossa relação com ele
não é somente aquela de uma adesão intelectual de fé à sua pessoa e à sua
doutrina; ser cristão não consiste somente em ser fiel à sua Palavra e imitador de
sua vida. Ser cristão significa, sim, estar em comunhão com a sua pessoa e o seu
mistério: viver em Cristo, ou melhor, deixar que ele viva em nós a sua filiação
divina, a consagração e a missão no Espírito, a sua paixão pelo reino do Pai632.
O cristão é, certamente, um discípulo que segue e imita o Mestre, um fiel
que acolhe a sua pessoa e a sua doutrina, um apóstolo que dá testemunho de seu
evangelho, mas é também algo a mais: é uma pessoa que vive em Cristo, que vive
dele, que está unida a ele como o ramo à videira (cf. Jo 15, 4-5). Entre Cristo e o
cristão estabelece-se uma comunhão de vida que tem como ligação mais íntima a
própria vida do Pai, derramada em nós pelo Espírito Santo. É a mesma vida que
631
Cf. GRÜN, A., Descobrir a riqueza da vida, São Paulo, Loyola, 2003, pp. 58-59.
632
Cf. CASTELLANO CERVERA, J., Viver o batismo como fonte de vocação e de missão. In:
ABBA – Revista de Cultura, Vol. V, n. 03, Vargem Grande Paulista, Cidade Nova, 2002, p. 60.
214
escorre, como uma linfa, em todos aqueles que estão unidos pelo mesmo batismo
no corpo da Igreja633.
Infelizmente, o batismo ainda é uma realidade não bem compreendida por
muitos cristãos. Sob o prisma teológico, devemos afirmar que a experiência
batismal, isto é, a urgência de viver as riquezas e o dinamismo próprio do batismo,
está ainda longe de constituir o programa de vida de muitos cristãos. Algumas
espiritualidades menos teológicas, inclusive, além das práticas devocionais,
muitas vezes impedem que o cristão concentre a própria experiência de fé naquilo
que é essencial: a vida em comunhão com Cristo634.
8.4.
Conclusão
633
Cf. Ibidem, pp. 60-61.
634
Cf. Ibidem, p. 68.