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Mulheres no Islã e no Cristianismo

Segundo a doutora em filosofia Riffat Hassan, estudar a condição da


mulher, seja no cristianismo, islamismo ou em qualquer outra religião é uma tarefa
muito complexa. Comparar o que significa a mulher no contexto das duas religiões
universais mais importantes, o Islã e o Cristianismo, parece impossível, até pelo
espaço disponível em uma matéria jornalística. O fato de que as denominações
“islã” e “cristianismo” se refiram não somente a tradições religiosas, mas a culturas
multifacetadas (“o mundo do islã” e o “mundo do cristianismo”) tornam o tema
difícil de ser exposto em poucas palavras. Por isso a abordagem aqui se resume em
apenas três pontos, que repercutem sobre ideias e atitudes com respeito às
mulheres cristã e muçulmana.
Todas as religiões universais, incluindo o cristianismo e o islamismo, se
caracterizam pela ideia de que os varões (homens) são superiores às mulheres. No
caso do cristianismo e do islã essa ideia se sustenta em três pressupostos
fundamentais, que são:
a) Deus criou primeiro o varão, e não a mulher, posto que se crê que a
mulher foi feita de uma costela do varão, pelo que ela seria uma
criatura ontologicamente (em grego ontos e logoi, "conhecimento do
ser") derivativa e secundária;
b) Que a mulher (e não o varão) foi o agente primário do que se descreve
habitualmente como: “a caída do homem”, ou expulsão do jardim do
Éden, de onde se segue que: “todas as filhas de Eva” são dignas de
ódio, suspeita e desprezo;
c) Que a mulher foi criada não somente a partir do varão, senão também
para o varão, de onde se deduz que: possui uma existência meramente
instrumental, carente de importância fundamental.

Há três questões teológicas que dariam respostas aos pressupostos


anteriores: a) como foi criada a mulher? b) foi responsável a mulher pela caída do
homem? c) Por que foi criada a mulher?

Cristianismo e islamismo respondem de maneiras diferentes a essas


questões, mas as duas correntes religiosas adotam a mentalidade patriarcal e
criaram sociedades nas quais os varões representam o padrão normativo, ao
mesmo tempo em que as mulheres são consideradas inferiores aos varões.
Eis um breve paralelo entre as concepções islâmica e cristã.

Como foi criada a mulher?

O relato bíblico da criação do primeiro par humano, ou casal, baseia-se em


duas fontes distintas, a sacerdotal (datada do século V a.C.) e a Javista ou Yahvista
(do século X a.C.), que dão origem a duas tradições distintas, objeto de discussões
inacabáveis entre os investigadores cristãos. A crença de que a mulher teria sido
criada a partir de uma costela de Adão é do autor Yahvista (ou Javista, séc x a.C.),
resgatado em Gn 2: 18-24.
Hassan defende a ideia de que Jesus adotou uma postura positiva em
relação à mulher, em Marcos: 10:06, demonstrando a igualdade entre esta e o
varão, na criação. Porém os responsáveis pela elaboração da tradição cristã,
historicamente têm entendido, geralmente, que a tradição Javista da criação afirma
a inferioridade natural da mulher em relação ao varão. O apóstolo Paulo é um dos
grandes, se não for o principal elaborador da tradição cristã. Sua atitude em
relação à mulher se converteu em motivo de um acalorado debate na época
moderna. Suas afirmações entre a relação homem X mulher estão marcadas por
certa ambivalência. Por exemplo: utiliza o relato Javista da criação para defender a
subordinação da mulher ao varão em 1 Cor. 11: 03-09, onde diz que o varão é o
cabeça da mulher, que o homem não deve cobrir a cabeça quando ora, mas a
mulher deve sempre cobrir a cabeça, devendo ela sempre usar o véu, e que o
varão é a glória de Deus e a mulher a glória do varão. Finaliza o trecho dizendo que
a mulher é procedente do homem e que a mulher foi criada por causa do varão e
não o varão por causa da mulher.
A professora Hassan argumenta, entretanto, que este postulado estaria em
desacordo com o que diz a mensagem resgatada em Gálatas 3: 27-28: “Porque
todos quantos fostes batizados em Cristo, já vos revestistes em Cristo. Nisto não há
judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos
vós sois um em Cristo Jesus”. Segundo ela, esta afirmação coloca todos os crentes
em posição de igualdade perante Cristo e Deus.
Ocorre que nos primeiros sete concílios, quando o cristianismo passava de
sua fase primitiva, o fato de a criação da mulher ter sido secundária, teria lhe dado
uma posição inferior à do varão, de acordo com uma tradição baseada nas palavras
de Paulo. De especial impacto também foram os escritos de Tomaz de Aquino,
influenciados por Paulo, e também por ideias que colocam o homem como o centro
de tudo (ideias androcêntricas), derivadas da civilização grega.
A crença de que a mulher foi feita de uma “costela curva” com “muitas
abominações carnais” teria sido manejada pelos inquisidores misóginos (que tinham
menosprezo pelas mulheres), para condenar como bruxas mais de 50.000 mulheres
entre os séculos XV e XIX.
Todos os grandes escritores que participaram do processo de elaboração da
tradição cristã, como Martinho Lutero e João Calvino, dizem que o fio condutor da
ideia de que a mulher é inferior ao homem é o fato de ter sido, ela, criada de uma
costela deste, ou pelo seu papel na “queda” do homem, ou por estar destinada a
ser ajudada pelo varão.
Estas ideias patriarcais teriam sido mantidas até a entrada do século XX e
permanecido presentes em discursos de influentes pensadores protestantes, como
Karl Barth. Até a aparição da “Teologia Feminista” em época recente, não havia
sido lançado um desafio às interpretações negativas dos textos do Gênesis
referentes à mulher, que têm dominado a tradição cristã durante quase dois mil
anos.
Prossegue ela em seus argumentos, dizendo que o muçulmano ou o cristão
comum crê que Adão foi a criação primordial de Deus e que Eva foi feita de uma
costela de Adão, embora tal mito não faça parte do livro do Alcorão que, no texto
sobre a criação do homem, fala sempre em termos igualitários.
Hassan sustenta que nenhuma das aproximadamente trinta passagens em
que se descreve a criação da humanidade (conhecida em termos genéricos como
an-nas, al-insan ou bashar) por Deus (de modos variados), há uma só sugestão de
que o varão foi criado antes da mulher e de que esta fora feita a partir do varão.
Portanto o Alcorão não colocaria o homem como o primeiro ser humano a ser criado
por Deus.
Apesar da descrição do Alcorão, os muçulmanos creem que Hawwa (o
equivalente hebreu e árabe de “Eva”) - que nunca é mencionada no Alcorão, teria
sido criada da costela “torcida” de Adão (que se supõe ter sido o primeiro ser
humano criado por Deus). “Adão” não é uma palavra árabe, mas Hebreia; é um
nome coletivo, referente à espécie humana, mais que ao ser masculino. Dos vinte e
cinco casos em que o termo “Adão” aparece no Alcorão, vinte e um se referem à
humanidade. Portanto a criação de Adão teria sido a criação do ser humano, sem
mencionar o seu gênero sexual.
Se o Alcorão não estabelece diferença alguma entre a criação do homem e
da mulher, então por que os muçulmanos acreditam que Hawwa (Eva) foi criada a
partir da costela de Adão? Poderíamos dizer que, de um modo que ainda está para
ser investigado, o relato Yahvista da criação da mulher, terminou por incorporar-se
aos textos da Tradição (Hadiz), que é a segunda fonte de revelação islâmica (a
primeira é o Alcorão, que os muçulmanos têm por palavra de Deus). Existem seis
Ahadiz (tradições atribuídas ao profeta Maomé), e, no meio dessas tradições vê-se
a afirmação de que a mulher foi criada de uma costela, ou que é semelhante a uma
costela (torcida) e que jamais poderá ser endireitada. Embora teoricamente nunca
possa prevalecer a tradição (Hadiz), se diria que isso é, precisamente, o que
ocorreu na criação da mulher.

A mulher foi responsável pela queda do homem?

Muçulmanos e cristãos responderiam, em geral, afirmativamente a esta


pergunta, apesar de que no Alcorão nada há que valide esta resposta. Note-se que
em Gênesis 3:6, o diálogo que precede ao momento em que Eva come o fruto
proibido, se desenvolve entre esta e a serpente, embora se insinue também a
presença de Adão, como ressaltam as teólogas feministas. De todo modo este
pormenor tem sido desviado pelos responsáveis pela formulação da tradicional
postura cristã, para conferir a Eva a fama de tentadora, sedutora e enganadora de
Adão. No Alcorão, o Shaitán (Satan) não mantem nenhum diálogo exclusivo com a
companheira (Zauj) de Adão, nem se sugere que Hawwa (Eva), tentada e
enganada por Shaitan, tentara e enganara Adão, conduzindo-o à sua queda.
A interpretação tradicional do relato da “caída” teve um impacto negativo
para as mulheres cristãs. Isso ajudou a perpetuar o mito da malícia feminina.
Durante os séculos, as mulheres cristãs têm sentido em maior grau a carga da
“condição caída”, que tem associado a sexualidade à ideia de pecado original. No
marco da teologia Alcorânica, posto que o destino de Adão consistiu sempre em ser
regente de Deus sobre a terra, como se afirma na sura 2: AI Bagarah, 30, não há
nada parecido a uma “caído” do céu à terra, e nem se menciona o pecado original.
Mesmo assim, tanto muçulmanos quanto cristãos, segundo Hassan, têm
considerado as mulheres como “porta do diabo” e têm encontrado apoio para as
suas ideias misóginas na Ahadiz que, mesmo carente de autenticidade, mantém a
sua popularidade.

Por que foi criada a mulher?

O cristianismo tradicional insiste na ideia de que a mulher foi criada não só


do varão, mas também para o varão. Por outro lado, o Alcorão sublinha que a
criação em conjunto é “para fins justos”. A humanidade, “fundida no melhor dos
moldes”, compreende tanto varões quanto mulheres. Uns e outras são chamados
na mesma medida por Deus para serem justos, sendo-lhes assegurado que serão
premiados por igual, conforme sua retidão.
Apesar da afirmação Alcorânica de igualdade entre homens e mulheres, as
sociedades muçulmanas em geral nunca consideraram iguais varões e mulheres,
especialmente no contexto do matrimônio.
Talvez seja essa a diferença que Paulo quis estabelecer entre a relação da
mulher com o marido e da mulher com Deus, quando, em uma de suas epístolas
diz que a mulher está submissa ao marido (1 Cor. 11: 03-09), mas é considerada
igual ao varão quando se trata de uma relação com Deus (Gálatas 3: 27-28).
A suposta superioridade dos varões com respeito às mulheres, que
impregna as tradições muçulmana e cristã se funda não somente nos textos da
tradição (Hadiz) como também em crenças populares, e em algumas passagens
alcorânicas, como na sura 4: An-Nisan, 34.

Conclusão:

Segundo a autora, Riffat Hassan, doutora em filosofia pela Universidade de


Durham, Inglaterra, não cabe dúvida a respeito de que, tanto o cristianismo quanto
o islamismo têm discriminado as mulheres. Todavia, a revisão e interpretação dos
textos bíblicos e alcorânicos mais significativos em relação à mulher, por obra das
teologias feministas, têm demonstrado que é possível interpretar esses textos de
várias maneiras e que, entende-los em sentido igualitário, ao invés de hierárquico,
resulta mais consoante com a crença, fundamental nas tradições religiosas, de que
Deus, criador e sustentador universal, é justo com toda a sua criação.

Fonte:
Riffat Hassan.
http://www.webislam.com/articulos/32546-
las_mujeres_en_el_islam_y_en_el_cristianismo.html
Bráulio Antônio Calvoso Silva é professor de literatura portuguesa e língua
japonesa, membro colaborador da Universidade do Cerrado e escritor.
brauliocalvoso@hotmail.com

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