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Nas últimas décadas anteriores ao Concílio Vati- que exigia conversão, simbolizada pelo batismo. João
cano II, a exegese e a teologia bíblica já vinham va- saiu logo de cena, degolado por ordem de Herodes.
lorizando a categoria do Reino de Deus.1 O Concílio Entrou Jesus. Repetiu a mesma pregação: “Com-
Vaticano II consagra-a, relacionando-a com a Igreja. pletou-se o tempo. Chegou o Reino de Deus. Con-
Ousa dizer que Jesus deu início à Igreja “pregando vertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15). Bons
a Boa-Nova, isto é, a vinda do Reino de Deus... Este exegetas interpretam os versículos de Marcos como
Reino manifesta-se claramente aos seres humanos nas verdadeiro resumo da missão de Jesus: apontar para
palavras, nas obras e na presença de Cristo”. Depois a presença do Reino pela ação de Deus. E esta se
da ressurreição de Jesus, a Igreja, enriquecida pelos manifesta na sua pessoa, mensagem, ações. E ele, por
dons que ele lhe deu, recebeu a missão de anunciar a sua vez, não se autocompreende fora de tal relação
e instaurar em todas as gentes o Reino de Cristo e de com o Reino. Para que os filhos do paganismo não
Deus. Ela lhe é o germe e início.2 se enganassem a respeito desse “Filho de Deus” que
Se por circunstâncias históricas a Igreja Católica pra- aparece na terra, imaginando tratar-se de mera visita
ticamente tinha-se identificado com o Reino, hoje per- de um ser divino entre nós e não de verdadeira en-
cebemos a distinção entre ambos e a relação de sinal, carnação, Lucas e Mateus inserem-no na genealogia
que a Igreja é, respeito ao Reino, realidade que a supera. humana, iniciada ora em Adão (humanidade) ora em
Nesse contexto de valorização do Reino e da missão Abraão (povo hebreu). Mais: Lucas enquadra-o nas
de Jesus como pregador do Reino, teólogos da liberta- coordenadas geográfico-históricas, citando Tibério
ção elaboraram reflexões inovadoras que, de manei- César, Pôncio Pilatos, Herodes e seu irmão Filipe, Li-
ra simples e sintética, resumiremos em quatro teses: sânias, Anás e Caifás. É um Jesus bem localizado e
não um Filho de Deus peregrino. Como se fosse pou-
1. Jesus não se pregou a si mesmo, mas o Reino de co, Paulo, na Epístola aos Filipenses, consagra, defi-
Deus. Só depois da ressurreição a comunidade nitivamente, a condição humana de Jesus, jogando
identifica-o com o Reino, a ponto de, séculos com duas metáforas: esvazia-se do divino e assume
depois, Orígenes chamá-lo de autobasileia — o o esquema do escravo: “Ele, subsistindo na condição
próprio Reino. de Deus, não pretendeu reter para si ser igual a Deus.
2. Jesus se entende numa dupla relação com o Rei- Mas aniquilou-se a si mesmo (em grego: ekenosen),
no. assumindo a condição (em grego: esquema) de escra-
vo, tornando-se solidário com os seres humanos. E
3. No Reino pregado por Jesus, os pobres ocupam apresentando-se como simples homem (Fl 2,6-7)”.
lugar de preferência de tal maneira que eles o Nessa condição de humanidade, de esvaziamen-
qualificam. to, de forma de escravo, Jesus não teria condição de
4. A Igreja é chamada à dupla tarefa de anunciar e pregar-se a si mesmo. Toda a referência dá-se em re-
significar em palavras e gestos o Reino, especial- lação ao Reino de Deus e ao Deus do Reino, como
mente pela predileção pelos pobres, e de reco- Jon Sobrino costuma acentuar. A categoria Reino de
nhecer a presença do Reino em todos os lugares Deus, no tempo de Jesus, por ser muito conhecida,
em que os pobres são evangelizados, libertados. era disputada por diversas propostas, diante das quais
Jesus se posicionou, marcando a própria originalida-
de. A sacralidade da Torá atravessa a tradição de Isra-
Jesus pregou o Reino el. Impressiona na leitura do Antigo Testamento a im-
portância da Lei para os judeus. O Sl 119(118), que
Antes de Jesus iniciar sua pregação, João Batista pro- faz parte, hoje, da oração diária da Igreja, resume
clamou: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus já bem tal exaltação da lei. De beleza tão sublime que
está perto” (Mt 3,2). Anunciou a proximidade do Reino Pascal aconselhava rezá-lo todos os dias. Os fariseus
Conclusão
A ordem bíblica: Reino, Jesus, Igreja. O Reino ilu-
mina a pregação de Jesus. Jesus define-se pelo Reino,
como exterioridade pregada e como identidade re-
alizada. A Igreja refere-se aos dois sob o aspecto de
deixar-se julgar por eles e de ser-lhes sacramento em
benefício da humanidade.
Notas
1
SCHNACKENBURG, R. Gottes Herrschaft und Reich:
eine biblisch-teologische Studie. Freiburg, Herder,
1958.
2
CONCÍLIO VATICANO II. Lumen gentiium, n. 5.
3
NEUTZLING, Inácio O Reino de Deus e os pobres.
São Paulo, Loyola, 1986.