Você está na página 1de 2

A economia do Dom

Existirá um outro tipo de troca, que não seja a comercial?


Que vivemos em um mundo altamente comercializado e comercializável não é mistério para
ninguém. Muitas dimensões da vida cotidiana parecem se reduzir, em última análise, a trocas
comerciais mais ou menos escondidas. Nesse sentido, se reduz a política à economia quando
tudo o que parece importar para o bem comum da “pólis” (cidade) é como o dinheiro entra,
sai e se distribui em seu interior. Mais lamentável ainda é a redução de relações pessoais a
meros interesses comerciais. Ter amizades para que elas te abram portas. Será que, no fim
das contas, tudo pode se resumir na máxima “faço algo porque espero outro algo em troca”?
Ou será que existe alguma troca de algo sem preço?
Ao lado da noção de troca comercial, sem dúvida a noção mais espontânea que vem a nossa
mente quando falamos de troca, Paul Ricoeur, filósofo francês falecido em 2005, nos
apresenta a noção de troca simbólica. Essa segunda noção é difícil de apreender em uma
primeira olhada, justamente porque estamos viciados com a comercialização de tudo. Então
vamos devagar.
O que é um presente? Quando se oferece um presente ao outro em nome da amizade, do
amor, do carinho ou do reconhecimento fica mais evidente que aquilo que é ofertado não tem
preço. Como assim? Se eu dou de presente um vinho, por exemplo, ele certamente tem um
preço. Mas quando você entrega esse vinho a alguém como presente, não recebe esse valor
de volta. O que você está dando então, na verdade?
A oferta é de si mesmo, no símbolo do vinho. E por isso é uma oferta sem preço. A condição
que diferencia as trocas comerciais das trocas simbólicas é a insubstituibilidade daquilo que
é trocado. Se fosse uma troca comercial, você receberia algo de um valor semelhante de volta
(Não será o caso de repensar os amigos secretos? Isso é para outro texto). Mas não é o caso,
você não espera receber nada em troca daquele presente.
Mas isso quer dizer que não há troca? Que o caminho do oferecimento sem preço é uma via
de mão única que vai de quem dá para quem recebe, da parte totalmente ativa para a parte
totalmente passiva? Ricoeur vai defender que não. E não é muito difícil seguir o raciocínio.
Um outro exemplo deixará mais evidente o que ele quer dizer. Pensemos no abraço, ou no
beijo. Ao aceitarmos um abraço, abraçamos de volta. E se não beijamos de volta também,
pelo menos oferecemos a face para ser beijada. Nessa dinâmica vemos o que Ricoeur quer
dizer quando ele diz que o Dom exige um contra dom.
O que é esse contra dom? É a resposta que acontece na troca simbólica. Se na troca comercial
se espera um valor determinado em troca, na troca simbólica se espera um dom determinado
em troca. Mas é preciso frisar aqui algo importante que a nossa mente comercial não vai
deixar escapar tão facilmente. O que se troca na troca simbólica são os “trocantes” e não o
“trocado”, são as pessoas e não o vinho. E por isso o que se espera em troca é “sem preço”,
um contra dom, em resposta ao “sem preço” do dom inicial.
Desçamos mais uma vez a um exemplo. Dessa vez um exemplo Bíblico. É conhecida a
história na qual Jesus pede que se ofereça a outra face ao agressor. É um dom de si mesmo,
de sua própria face. E qual é o contra dom esperado? Certamente não é que o agressor volte
a esbofetear-nos. Nesse dom está implícita a esperança de que o outro não seja mais violento.
Agora voltemos ao nosso hoje. Porque essa reflexão é pertinente para essa época do advento
em espera do natal?
Acredito que a mentalidade comercial invada em certa medida a mentalidade religiosa. E não
estou falando principalmente da evidente comercialização das festas religiosas com todas as
luzes e festas e o dinheiro envolvido no processo. Se bem ela também é questionável, ela é
também mais evidente e é até um lugar comum criticar essas práticas nessa época do ano.
Por outro lado, a própria vida cristã é muitas vezes vista como um comércio. Deus me dará
algo em troca de outra coisa. Me dará a salvação em troca de umas boas obras, de um gesto
concreto. Me dará a prosperidade em troca de alguns Pais-nossos e Ave-marias. Me dará um
milagre em troca de uma peregrinação (Quando não é o contrário, ou seja, esperamos o
milagre e então o trocamos por uma peregrinação). Me dará uma semana boa se eu fora a
missa no Domingo, etc....
Mas e se tentássemos nos despojar dessa visão comercial e entendêssemos a vinda de Jesus
como uma troca simbólica? Vimos que na troca simbólica o que se troca não é o vinho (O
presente mesmo), mas o insubstituível que ofertou o vinho. No caso da vinda de Jesus isso é,
ao mesmo tempo, mais evidente e mais obscuro. Porque é ele o presente, e nele é Deus
mesmos que se doa. Percebe a diferença com o vinho? Eu não estou realmente no vinho, mas
Deus está realmente em Jesus, ou dito de outra forma, Jesus é Deus mesmo. E esse dom
ofertado, se seguimos a lógica das trocas simbólicas, espera um contra dom daquele que
recebe. É nessa ótica que a vida cristã tem sentido. Ela é um beijo que damos em Deus como
resposta ao beijo que ele nos deu primeiro. Ou é o abraço que damos no próprio Deus como
resposta ao abraço que ele nos deu em Jesus.
E nessa nova ótica, os gestos concretos têm sentido, as orações têm sentido, as peregrinações
têm sentido e a Missa, como ápice de todas essas respostas, de um modo profundamente
misterioso, belo e significativo, tem seu sentido revelado. Respondendo a pergunta feita no
início de se tudo se resume ao “faço porque espero algo em troca”, a vida cristã diz “faço
porque já recebi um dom inicial”. É esse dom que celebramos no Natal. É esse dom que
enche a nossa vida de sentido e que nos lança ao abraço de Deus nos nossos irmãos e irmãs.
Quem possui esse Espírito que Jesus vem trazer, se sente verdadeiramente obrigado a
“oferecer a outra face”, sem estar, na verdade, obrigado a nada.
Feliz Dom Natalino!

Você também pode gostar