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Textos críticos 1
Poesia trovadoresca
A cultura medieval portuguesa (séculos XI a XIV)
José Mattoso
[…]
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 129
O fenómeno literário que se concordou designar como a «poesia lírica galego-portuguesa» põe um grande
número de problemas que até agora não obtiveram uma resposta satisfatória ou que não obtiveram resposta
nenhuma.
O primeiro destes problemas e o mais difícil de resolver é, na minha opinião, o das coordenadas crono-
lógicas que delimitam o fenómeno em questão. Consideremos, por exemplo, o limite inferior, isto é, o momento
do declínio, ou, mais exatamente, da mutação, segundo o qual a poesia galego-portuguesa, de inspiração
provençal, se torna uma poesia diferente, uma poesia cujos temas e formas deslizam para a poesia castelhana do
século xv. Este limite, fixámo-lo em meados do século xiv. Poderíamos fazê-lo coincidir com a morte do conde
de Barcelos D. Pedro de Portugal, filho natural do rei D. Dinis, ou melhor ainda, poderíamos escolher a data do
testamento (1350), no qual o conde, último dos poetas e último dos mecenas da poesia galego-portuguesa,
legava a Afonso xi de Castela um Livro das Cantigas que era, muito provavelmente, o predecessor dos cancioneiros
completos, ponto de partida da linhagem mais rica da tradição manuscrita desta poesia. É, evidentemente,
um limite arbitrário; com efeito, o processo de decadência da lírica galego-portuguesa, esse processo que teria
acabado com uma mutação, tinha já começado no momento da morte do pai de D. Pedro, o rei D. Dinis (1325),
cuja corte foi durante muito tempo o centro da atividade poética peninsular, e ainda se não tinha concluído em
meados do século, porque ao longo da segunda metade do século xiv assistimos a uma espécie de continuação
da poesia galego-portuguesa, desta vez na corte de Castela, onde se reúne um grupo de poetas que, ainda
que cultivando as formas antigas, aceitam, todavia, as novas que vêm de Itália; esses poetas preparam
o desabrochar lírico castelhano, que chegará ao seu mais alto ponto de desenvolvimento com Juan de Mena,
Santillana, Jorge Manrique e, sobretudo, Garcilaso. É, pois, muito difícil estabelecer uma linha de demarcação
bastante nítida entre a poesia galego-portuguesa e a poesia seguinte, que se concorda chamar, para sublinhar
as analogias e as diferenças em relação à outra, «galego-castelhana». Para traçar esta linha recorremos então
a um critério exclusivamente externo, material; visto que a lírica galego-castelhana foi recolhida num cancioneiro
particular, o famoso Cancioneiro de Baena, que é completamente diferente dos cancioneiros galego-portugueses,
fez-se a separação na base da tradição manuscrita: o que estava nos cancioneiros galego-portugueses pertencia
à poesia galego-portuguesa, o que se encontrava no Cancioneiro de Baena, à poesia galego-castelhana. Parece-
-me evidente que o problema foi resolvido um pouco por alto: deveria ter-se feito antes a distinção numa base
mais estritamente literária, linguística, temática; seria necessário analisar os textos de uma tradição e de outra e
determinar para cada poeta e para cada poesia o grau de deslize para uma nova formulação do discurso poético.
Se o problema do limite cronológico inferior da poesia galego-portuguesa espera ainda uma solução satis-
fatória, o outro problema cronológico, o do limite superior, é quase insolúvel.
Este último problema arrasta, com efeito, um outro, o problema que mais intrigou os romanistas: o das
próprias origens da poesia lírica vulgar. Não é, evidentemente, minha intenção examinar aqui esse problema, mas
tenho que referir-me a ele, justamente, porque a questão das origens da lírica galego-portuguesa é indissociável
da outra questão, mais geral, das origens da poesia moderna. Vou explicar-me, tentando ser o mais claro e esque-
mático possível.
O património poético galego-português compõe-se de 1679 textos, a maior parte dos quais pertence,
cronologicamente, ao século xiii e à primeira metade do século xiv. Apenas um destes textos pode ser situado no
século xii com algumas garantias de certeza: é a cantiga de escarnho [escárnio], ou melhor, o sirventês político,
«Ora faz ost’o senhor de Navarra», de Johan Soarez de Pavha, membro da aristocracia portuguesa, beneficiário de
um feudo em Aragão, precisamente na fronteira do reino de Navarra. A datação deste texto, como aliás, a datação
de quase todos os textos galego-portugueses, foi muito controversa: as alusões às pilhagens feitas pelo rei de
Navarra em território do rei de Aragão, quando este tinha ido a Provença, foram atribuídas por Carolina Michaëlis
a 1216 e por López Aydillo a 1196. Mas é esta última data que tem mais possibilidades de se referir aos aconteci-
mentos a que faz alusão o poeta, a que é confirmada pelo maior número de dados históricos; aceitá-la-emos,
pois, como a mais provável. De resto, o problema não reside aí. O que nos interessa de momento é que a quase
totalidade dos textos poéticos galego-portugueses se inscreve em limites cronológicos que podem estar um
pouco deslocados, mas que, no fundo, são bastante precisos: 1196 e 1350. Mas então onde é que está o problema
cronológico de que falava há pouco?
Giuseppe Tavani, Ensaios Portugueses: Filologia e Linguística, cap. I, Lisboa, IN-CM, 1988 (com adaptações).
130 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana