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Não: devagar. Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Devagar, porque não sei Espécie de acessório ou sobresselente próprio,
Onde quero ir. Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Há entre mim e os meus passos Sou eu aqui em mim, sou eu.
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Uma diferença de verbo Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Que corresponde à realidade. Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.
O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.
ANJOS OU DEUSES ABDICAÇÃO
Anjos ou deuses, sempre nós tivemos Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
A visão perturbada de que acima E chama-me teu filho.
De nós e compelindo-nos Eu sou um rei
Agem outras presenças. Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Como acima dos gados que há nos campos
O nosso esforço, que eles não compreendem, Minha espada, pesada a braços lassos,
Os coage e obriga Em mãos viris e calmas entreguei;
E eles não nos percebem, E meu ceptro e coroa, – eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.
Nossa vontade e o nosso pensamento
São as mãos pelas quais outros nos guiam Minha cota de malha, tão inútil,
Para onde eles querem Minhas esporas, de um tinir tão fútil,
E nós não desejamos. Deixei-as pela fria escadaria.
QUERO IGNORADO
Não sei se existe o Rei que me mandou Quem me dispôs para o que não pudesse ?
Minha missão será eu a esquecer, Quem me fadou para o que não conheço
Meu orgulho o deserto em que em mim estou... Na teia do real que ninguém tece ?
Quem me arrancou ao sonho que me odiava
Mas há! Eu sinto-me altas tradições E me deu só a vida em que me esqueço,
De antes de tempo e espaço e vida e ser... "Onde a minha saudade a cor se trava ?"
Já viram Deus as minhas sensações...
Sagra, sinistro, a alguns o astro baço. Cansa ser, sentir dói, pensar destrói.
Seus três anéis irreversíveis são Alheia a nós, em nós e fora,
A desgraça, a tristeza, a solidão. Rui a hora, e tudo nela rói.
Oito luas fatais fitam no espaço. Inutilmente a alma o chora.
Este, poeta, Apolo em seu regaço De que serve ? O que é que tem que servir ?
A Saturno entregou. A plúmbea mão Pálido esboço leve
Lhe ergueu ao alto o aflito coração, Do sol de inverno sobre meu leito a sorrir...
E, erguido, o apertou, sangrando lasso. Vago sussurro breve.
Inúteis oito luas da loucura Das pequenas vozes com que a manhã acorda,
Quando a cintura tríplice denota Da fútil promessa do dia,
Solidão e desgraça e amargura! Morta ao nascer, na esperança longínqua e absurda
Em que a alma se fia.
Mas da noite sem fim um rastro brota,
Vestígios de maligna formosura: Chove. Que fiz eu da vida?
É a lua além de Deus, álgida e ignota.
Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
As lentas nuvens De pensada, mal vivida...
As lentas nuvens fazem sono, Triste de quem é assim
O céu azul faz bom dormir.
Bóio, num íntimo abandono, Numa angústia sem remédio
À tona de me não sentir. Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tédio,
E é suave, como um correr de água, Só do que nunca quis ter...
O sentir que não sou alguém,
Não sou capaz de peso ou mágoa. Quem eu pudera ter sido,
Minha alma é aquilo que não tem. Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim, stou de mim partido.
Que bom, à margem do ribeiro Se ao menos chovesse menos!
Clareia cinzenta
Saber que é ele que vai indo...
E só em sono eu vou primeiro. Clareia cinzenta a noite de chuva,
E só em sonho eu vou seguindo. Que o dia chegou.
E o dia parece um traje de viúva
Bóiam farrapos Que já desbotou.
Como às vezes num dia azul e manso Dormir! Não Ter desejos nem esperanças
No vivo verde da planície calma Flutua branca a única nuvem lenta
Duma súbita nuvem o avanço E na azul quiescência sonolenta
Palidamente as ervas escurece A deusa do não-ser tece ambas as tranças.
Assim agora em minha pávida alma
Que súbito se evola e arrefece Maligno sopro de árdua quietude
A memória dos mortos aparece... Perene a fronte e os olhos aquecidos,
E uma floresta-sonho de ruídos
Ensombra os olhos mortos de virtude.
Como um vento na floresta
Ah, não ser nada conscientemente!
Como um vento na floresta, Prazer ou dor? Torpor o traz e alonga,
Minha emoção não tem fim. E a sombra conivente se prolonga
Nada sou, nada me resta. No chão interior, que à vida mente.
Não sei quem sou para mim.
Desconheço-me. Embrenha-me futuro,
E como entre os arvoredos Nas veredas sombrias do que sonho.
Há grandes sons de folhagem, E no ócio em que diverso me suponho,
Também agito segredos Vejo-me errante, demorado e obscuro.
No fundo da minha imagem.
Minha vida fecha-se como um leque.
E o grande ruído do vento Meu pensamento seca como um vago
Que as folhas cobrem de som Ribeiro no verão . Regresso , e trago
Despe-me do pensamento: Nas mão flores que a vida prontas seque.
Sou ninguém, temo ser bom.
Incompreendida vontade absorta
Daqui a pouco Em nada querer... Prolixo afastamento
Do escrúpulo e da vida no momento...
Daqui a pouco acaba o dia.
Não fiz nada.
Também, que coisa é que faria? O Louco
Fosse o que fosse, estava errada.
E fala aos constelados céus
Daqui a pouco a noite vem. De trás das mágoas e das grades
Chega em vão Talvez com sonhos como os meus...
Para quem como eu só tem Talvez, meu Deus!, com que verdades!
Para contar o coração.
As grades de uma cela estreita
E após a noite a irmos dormir Separam-no de céu e terra...
Torna o dia. Às grades mãos humanas deita
Nada farei senão sentir. E com voz não humana berra...
Também que coisa é que faria?
TABACARIA
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Quem quer dizer o que sente Indómita praia, que a raiva do oceano
Não sabe o que há-de dizer. Faz louco lugar, caverna sem fim,
Fala: parece que mente... Não são tão deixados do alegre e do humano
Cala: parece esquecer... Como a alma que há em mim!
Ah, mas se ela adivinhasse, Mas dura planície, praia atra em fereza,
Se pudesse ouvir o olhar, Só têm a tristeza que a gente lhes vê;
E se um olhar lhe bastasse E nisto que em mim é vácuo e tristeza
P'ra saber que a estão a amar! É o visto o que vê.
Mas quem sente muito, cala; Ah, mágoa de ter consciência da vida!
Quem quer dizer quanto sente Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,
Fica sem alma nem fala, Que rasgas os robles – teu pulso divida
Fica só, inteiramente! Minh'alma do mundo!
Mas se isto puder contar-lhe Ah, se, como levas as folhas e a areia,
O que não lhe ouso contar, A alma que tenho pudesses levar –
Já não terei que falar-lhe Fosse pr'onde fosse, pra longe da ideia
Porque lhe estou a falar... De eu ter que pensar!
Sim, tudo esqueço. Pela noite sou Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver o
Noite também Universo....
E vagaroso eu (...) vou, Por isso a minha aldeia é grande como outra qualquer
Fantasma de magia. Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
No vácuo que se forma de eu ser eu
E da noite ser triste Nas cidades a vida é mais pequena
Meu ser existe sem que seja meu Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
E anônimo persiste... Na cidade as grandes casas fecham a vista a chave,
Escondem o horizonte, empurram nosso olhar para longe
Qual é o instinto que fica esquecido de todo o céu,
Entre o passeio e a rua? Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos
Vou sob a chuva, amargo e diluído olhos nos podem dar,
E tenho a face nua. E tornam-nos pobres porque a única riqueza é ver.
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste, Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais, Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
E já quase adormecia, ouvi o que parecia Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais. Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais. Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus
É só isto, e nada mais." umbrais,
Com o nome "Nunca mais".
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais. Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais - Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais, pensamento
Mas sem nome aqui jamais! Perdido, murmurei lento, "Amigos, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo Disse o corvo, "Nunca mais".
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo, A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais; "Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais. Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o
É só isto, e nada mais". abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante, E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais; Era este "Nunca mais".
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais, Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais. Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
Noite, noite e nada mais. E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando, ancestrais,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais. Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita, Com aquele "Nunca mais".
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais. Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
Isso só e nada mais. À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo, No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais. Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela. Reclinar-se-á nunca mais!
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais. Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
"É o vento, e nada mais." Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça, concedeu-te
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais. O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento, O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais, Disse o corvo, "Nunca mais".
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais. "Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
Com o solene decoro de seus ares rituais. A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado, Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais! Disse o corvo, "Nunca mais".
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".
Quando ela passa
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta! Quando eu me sento à janela
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais. P'los vidros qu'a neve embaça
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida Vejo a doce imagem d'elia
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais, Quando passa... passa.... passa...
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais". N'esta escuridão tristonha
Duma travessa sombria
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte! Quando aparece risonha
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais! Brilha mais qu'a luz do dia.
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais! Quando está noite ceifada
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!" E contemplo imagem sua
Disse o corvo, "Nunca mais". Que rompe a treva fechada
Como um reflexo da lua,
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais. Penso ver o seu semblante
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha, Com funda melancolia
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais, Qu'o lábio embriagante
E a minhalma dessa sombra que no chão há mais e mais, Não conheceu a alegria
Libertar-se-á... nunca mais!
Aqui está-se sossegado E vejo curvado à dor
Todo o seu primeiro encanto
Comunica-mo o palor
Aqui está-se sossegado, As faces, aos olhos pranto.
Longe do mundo e da vida,
Cheio de não ter passado, Todos os dias passava
Até o futuro se olvida. Por aquela estreita rua
Aqui está-se sossegado. E o palor que m'aterrava
Cada vez mais s'acentua
Tinha os gestos inocentes,
Seus olhos riam no fundo. Durmo, desperto e sozinho. Um dia já não passou
Mas invisíveis serpentes Que tem sido a minha vida? O outro também já não
Faziam-a ser do mundo. Velas de inútil moinho — A sua ausência cavou
Tinha os gestos inocentes. Um movimento sem lida... Ferida no meu coração
Durmo, desperto e sozinho.
Aqui tudo é paz e mar. Na manhã do outro dia
Que longe a vista se perde Nada explica nem consola. Com o olhar amortecido
Na solidão a tornar Tudo está certo depois. Fúnebre cortejo via
Em sombra o azul que é verde! Mas a dor que nos desola, E o coração dolorido
Aqui tudo é paz e mar. A mágoa de um não ser dois
Nada explica nem consola. Lançou-me em pesar profundo
Sim, poderia ter sido... Lançou-me a mágoa seu véu:
Mas vontade nem razão Menos um ser n'este mundo
O mundo têm conduzido E mais um anjo no céu.
A prazer ou conclusão.
Sim, poderia ter sido... Depois o carro funério
Esse carro d'amargura
Agora não esqueço e sonho. Entrou lá no cemitério
Fecho os olhos, oiço o mar Eis ali a sepultura:
E de ouvi-lo bem, suponho
Que veio azul a esverdear. Epitáfio.
Agora não esqueço e sonho.
Cristãos! Aqui jaz no pó da sepultura
Não foi propósito, não. Uma jovem filha da melancolia
Os seus gestos inocentes O seu viver foi repleto d'amargura
Tocavam no coração Seu rir foi pranto, dor sua alegria.
Como invisíveis serpentes.
Não foi propósito, não. Quando eu me sento à janela
P'los vidros qu'a neve embaça
Julgo ver imagem dela
Que já não passa... não passa.
Sol nulo
Sol nulo dos dias vãos, Tédio
Cheios de lida e de alma,
Não vivo, mal vegeto, duro apenas,
Aquece ao menos as mãos
Vazio dos sentidos porque existo;
A quem não entras na alma!
Não tenho infelizmente sequer penas
E o meu mal é ser (alheio Cristo)
Que ao menos a mão, roçando
Nestas horas doridas e serenas
A mão que por ela passe,
Completamente consciente disto.
Com externo calor brando
O frio da alma disfarce!
Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça Mas um terror antigo, que insepulto
A sua santa guerra. Trago no coração, como de um trono
Sagrou-me seu em honra e em desgraça, Desce e se afirma meu senhor e dono
Às horas em que um frio vento passa Sem ordem, sem meneio e sem insulto.
Por sobre a fria terra.
E eu sinto a minha vida de repente
Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me Presa por uma corda de Inconsciente
A fronte com o olhar; A qualquer mão nocturna que me guia.
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome Sinto que sou ninguém salvo uma sombra
Dentro em mim a vibrar. De um vulto que não vejo e que me assombra,
E em nada existo como a treva fria.
E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá, As coisas que errei na vida
Pois venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.
As coisas que errei na vida
São as que acharei na morte,
O menino da sua mãe Porque a vida é dividida
Entre quem sou e a sorte.
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece, As coisas que a Sorte deu
De balas trespassado Levou-as ela consigo,
- Duas, de lado a lado -, Mas as coisas que sou eu
Jaz morto, e arrefece. De outra algibeira, alada Guardei-as todas comigo.
Pronta a roçar o solo,
Raia-lhe a farda o sangue. A brancura embainhada E por isso os erros meus,
De braços estendidos, De um lenço... Deu-lho a criada Sendo a má sorte que tive,
Alvo, louro, exangue, Velha que o troxe ao colo. Terei que os buscar nos céus
Fita com olhar langue Quando a morte tire os véus
E cego os céus perdidos. Lá longe, em casa, há a prece: À inconsciência em que estive.
«Que volte cedo, e bem!»
Tão jovem! que jovem era! (Malhas que o Império tece!)
(Agora que idade tem?) Jaz morto, e apodrece,
Filho único, a mãe lhe dera O menino da sua mãe.
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
O Andaime CESSA Universal lamento
Cessa o teu canto!
O tempo que eu hei sonhado Cessa, que, enquanto Universal lamento
Quantos anos foi de vida! O ouvi, ouvia Aflora no teu ser.
Ah, quanto do meu passado Uma outra voz Só tem de ti a voz e o momento
Foi só a vida mentida Como que vindo Que o fez em tua voz aparecer.
De um futuro imaginado! Nos interstícios
Do brando encanto O Véu
Aqui à beira do rio Com que o teu canto
Sossego sem ter razão. Vinha até nós. O véu das lágrimas não cega.
Este seu correr vazio Vejo, a chorar,
Figura, anónimo e frio, Ouvi-te e ouvi-a O que essa música me entrega –
A vida vivida em vão. No mesmo tempo A mãe que eu tinha, o antigo lar,
E diferentes
A sp'rança que pouco alcança! Juntas a cantar. A criança que fui,
Que desejo vale o ensejo? E a melodia O horror do tempo, porque flui,
E uma bola de criança Que não havia, O horror da vida, porque é só matar!
Sobe mais que a minha sp'rança Se agora a lembro, Vejo e adormeço,
Rola mais que o meu desejo. Faz-me chorar.
Num torpor em que me esqueço
Ondas do rio, tão leves Foi tua voz Que existo inda neste mundo que há...
Que não sois ondas sequer, Encantamento Estou vendo minha mãe tocar.
Horas, dias, anos, breves Que, sem querer, E essas mãos brancas e pequenas,
Passam – verduras ou neves Nesse momento,
Que o mesmo sol faz morrer. Vago acordou Cuja carícia nunca mais me afagará –,
Um ser qualquer Tocam ao piano, cuidadosas e serenas,
Gastei tudo que não tinha Alheio a nós (Meu Deus!)
Sou mais velho do que sou. Que nos falou? Un soir à Lima.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha: Não sei. Não cantes! Ah, vejo tudo claro!
Despiu-se, e o reino acabou. Deixa-me ouvir Estou outra vez ali.
Qual o silêncio Afasto do luar exterior e raro
Leve som das águas lentas, Que há a seguir Os olhos com que o vi.
Gulosas da margem ida, A tu cantares!
Que lembranças sonolentas Mas quê? Divago e a música acabou...
De esperanças nevoentas! Ah, nada, nada! Divago como sempre divaguei
Que sonhos o sonho e a vida! Só os pesares Sem ter na alma certeza de quem sou,
De ter ouvido, Nem verdadeira fé ou firme lei
Que fiz de mim? Encontrei-me De ter querido
Quando estava já perdido. Ouvir para além Divago, crio eternidades minhas
Impaciente deixei-me Do que é o sentido Num ópio de memória e de abandono.
Como a um louco que teime Que uma voz tem. Entronizo fantásticas rainhas
No que lhe foi desmentido. Sem para elas ter o trono.
Que anjo, ao ergueres
Som morto das águas mansas A tua voz, Sonho porque me banho
Que correm por ter que ser, Sem o saberes No rio irreal da música evocada.
Leva não só as lembranças, Veio baixar Minha alma é uma criança esfarrapada
Mas as mortas esperanças – Sobre esta terra Que dorme num recanto obscuro.
Mortas, porque hão-de morrer. Onde a alma erra
E com as asas De meu só tenho,
Sou já o morto futuro. Soprou as brasas Na realidade certa e acordada,
Só um sonho me liga a mim – De ignoto lar? Os trapos da minha alma abandonada,
O sonho atrasado e obscuro E a cabeça que sonha contra o muro.
Do que eu devera ser – muro Não cantes mais!
Do meu deserto jardim. Quero o silêncio Mas, mãe não haverá
Para dormir Um Deus que me não torne tudo vão,
Ondas passadas, levai-me Qualquer memória Um outro mundo em que isso agora está?
Para o olvido do mar! Da voz ouvida, Divago ainda: tudo é ilusão.
Ao que não serei legai-me, Desentendida, Un soir à Lima
Que cerquei com um andaime Que foi perdida
A casa por fabricar. Por eu a ouvir... Quebra-te, coração...
Na noite A Lembrada
Na noite em que não durmo A lembrada canção,
Não dorme Amor, renova agora.
O relógio também. Na noite, olhos fechados, tua voz
Pus na alma esvurmo. Dói-me no coração
É enorme Por tudo quanto chora.
O que a treva contém. Cantas ao pé de mim, e eu estou a sós.
Sonhei que m'afagavam as ternuras Estou só, só como ninguém ainda esteve,
De leda vida e que jamais palor Oco dentro de mim, sem depois nem antes.
Marcou na face humana as desventuras Parece que passam sem ver-me os instantes
Que a lei de Deus impôs com rigor. Mas passam sem que o seu passo seja leve.
Sonhei tudo azul e cor-de-rosa Começo o ler, mas cansa-me o que inda não li.
E a sorte ostentando-se furiosa Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.
Rasgou o sonho formoso que tive; O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir
É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi.
Sonhando sempre eu não tinha sonhado
Que n'esta vida sonha-se acordado, Não ser nada, ser uma figura de romance,
Que n'este mundo a sonhar se vive! Sem vida, sem morte material, uma ideia,
Qualquer coisa que nada tornasse útil ou feia,
Uma sombra num chão irreal, um sonho num transe.
ADIAMENTO
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã... Saudoso
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não... Saudoso já deste Verão que vejo,
Não, hoje nada: hoje não posso. Lágrimas para as flores dele emprego
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva, Na lembrança invertida
O sono da minha vida real, intercalado, De quando hei-de perdê-las.
O cansaço antecipado e infinito, Transpostos os portais irreparáveis
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico... De cada ano, me antecipo a sombra
Esta espécie de alma... Em que hei-de errar, sem flores,
Só depois de amanhã... No abismo rumoroso.
Hoje quero preparar-me, E colho a rosa porque a sorte manda.
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte... Marcenda, guardo-a; murche-se comigo
Ele é que é decisivo. Antes que com a curva
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos... Diurna da ampla terra.
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo; Lídia
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro... Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. Onde quer que estejamos.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana. Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância... Onde quer que moremos. Tudo é alheio
Depois de amanhã serei outro, Nem fala língua nossa.
A minha vida triunfar-se-á, Façamos de nós mesmos o retiro
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático Onde esconder-nos, tímidos do insulto
Serão convocadas por um edital... Do tumulto do mundo.
Mas por um edital de amanhã... Que quer o amor mais que não ser dos outros?
Hoje quero dormir, redigirei amanhã... Como um segredo dito nos mistérios,
Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância? Seja sacro por nosso.
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
Caiam cidades, sofram povos,
Não sei Ouvi contar cesse
A liberdade e a vida,
Não sei o quê desgosta Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia Os haveres tranquilos e avitos
A minha alma doente. Tinha não sei qual guerra, Ardem e que se arranquem,
Uma dor suposta Quando a invasão ardia na Cidade Mas quando a guerra os jogos
Dói-me realmente. E as mulheres gritavam, interrompa,
Dois jogadores de xadrez jogavam Esteja o rei sem xeque,
Como um barco absorto O seu jogo contínuo. E o de marfim peão mais
Em se naufragar avançado
À vista do porto À sombra de ampla árvore fitavam Pronto a comprar a torre.
E num calmo mar, O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus Meus irmãos em amarmos
Por meu ser me afundo, Momentos mais folgados, Epicuro
Para longe da vista Quando havia movido a pedra, e agora E o entendermos mais
Durmo o incerto mundo. Esperava o adversário, De acordo com nós-próprios
Um púcaro com vinho refrescava que com ele,
Sobriamente a sua sede. Aprendamos na história
Sim, sei bem Dos calmos jogadores de
Ardiam casas, saqueadas eram xadrez
Sim, sei bem
As arcas e as paredes, Como passar a vida.
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos, Tudo o que é sério pouco nos
Que nunca terei uma obra.
Traspassadas de lanças, as crianças importe,
Sei, enfim,
Eram sangue nas ruas... O grave pouco pese,
Que nunca saberei de mim.
Mas onde estavam, perto da cidade, O natural impulso dos instintos
Sim, mas agora,
E longe do seu ruído, Que ceda ao inútil gozo
Enquanto dura esta hora,
Os jogadores de xadrez jogavam (Sob a sombra tranquila do
Este luar, estes ramos,
O jogo do xadrez. arvoredo)
Esta paz em que estamos,
De jogar um bom jogo.
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser. Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos, O que levamos desta vida inútil
E, ao reflectir, soubessem desde a alma Tanto vale se é
Que por certo as mulheres A glória, a fama, o amor, a
E as tenras filhas violadas eram ciência, a vida,
Nessa distância próxima, Como se fosse apenas
Inda que, no momento que o pensavam, A memória de um jogo bem
Uma sombra ligeira jogado
Lhes passasse na fronte alheada e vaga, E uma partida ganha
Breve seus olhos calmos A um jogador melhor.
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho. A glória pesa como um fardo
rico,
Quando o rei de marfim está em perigo, A fama como a febre,
Que importa a carne e o osso O amor cansa, porque é a sério
Das irmãs e das mães e das crianças? e busca,
Quando a torre não cobre A ciência nunca encontra,
A retirada da rainha branca, E a vida passa e dói porque o
O saque pouco importa. conhece...
E quando a mão confiada leva o xeque O jogo do xadrez
Ao rei do adversário, Prende a alma toda, mas,
Pouco pesa na alma que lá longe perdido, pouco
Estejam morrendo filhos. Pesa, pois não é nada.
Mesmo que, de repente, sobre o muro Ah! sob as sombras que sem
Surja a sanhuda face qu'rer nos amam,
Dum guerreiro invasor, e breve deva Com um púcaro de vinho
Em sangue ali cair Ao lado, e atentos só à inútil
O jogador solene de xadrez, faina
O momento antes desse Do jogo do xadrez,
(É ainda dado ao cálculo dum lance Mesmo que o jogo seja apenas
Pra a efeito horas depois) sonho
É ainda entregue ao jogo predilecto E não haja parceiro,
Dos grandes indif'rentes. Imitemos os persas desta
história,
E, enquanto lá por fora, Reticências
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção.
Chamam por nós, deixemos Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Que em vão nos chamem, cada um de nós Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer
Sob as sombras amigas qualquer coisa!
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez Vou fazer as malas para o Definitivo,
A sua indiferença. Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem — um antes de
ontem que é sempre...
Ave Maria Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
Ave Maria, tão pura, Produtos românticos, nós todos...
Virgem nunca maculada E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos
Ouvide a prece tirada nada.
No meu peito da amargura. Assim se faz a literatura...
Santos Deuses, assim até se faz a vida!
Vós que sois cheia de graça Os outros também são românticos,
Escutai minha oração, Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Conduzi-me pela mão Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Por esta vida que passa. Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.
O Senhor, que é vosso filho Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um hino
Que seja sempre connosco, inconsciente,
Assim como é convosco Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
Eternamente o seu brilho. Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o
Bendita sois vós, Maria, silêncio da vida...
Entre as mulheres da terra Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para a janela,
E voss'alma só encerra Por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
Doce imagem d'alegria. E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma crítica
metafisica.
Mais radiante do que a luz Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
E bendito, oh Santa Mãe Fitei de frente todos os destinos pela distração de ouvir apregoando,
É o fruto que provém E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
Do vosso ventre, Jesus! E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o
poema...
Ditosa Santa Maria, Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem outra...
Vós que sois a Mãe de Deus
E que morais lá nos céus
Orai por nós cada dia. Criança Desconhecida
Rogai por nós, pecadores, Criança desconhecida e suja brincando à minha porta,
Ao vosso filho, Jesus, Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos.
Que por nós morreu na cruz Acho-te graça por nunca te ter visto antes,
E que sofreu tantas dores. E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra criança,
Nem aqui vinhas.
Rogai, agora, oh mãe querida Brinca na poeira, brinca!
E (quando quiser a sorte) Aprecio a tua presença só com os olhos.
Na hora da nossa morte Vale mais a pena ver uma coisa sempre pela primeira vez que
Quando nos fugir a vida. conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
Avé Maria, tão pura, E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.
Virgem nunca maculada,
Ouvide a prece tirada O modo como esta criança está suja é diferente do modo como as
No meu peito da amargura. outras estão sujas.
Brinca! Pegando numa pedra que te cabe na mão,
Sabes que te cabe na mão.
Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior?
Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta.
O MONSTRENGO
ALFONSO DE ALBUQUERQUE
Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas.
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo.
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora.
Na distância subitamente impossível de percorrer.
Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé antepé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.