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ÚLTIMA ESTRELA

Última estrela a desaparecer antes do dia,


Pouso no teu trémulo azular branco os meus olhos calmos,
E vejo-te independentemente de mim,
Alegre pela vitória que tenho em poder ver-te,
Sem estado de alma nenhum, senão ver-te.
A tua beleza para mim está em existires.
A tua grandeza está em existires inteiramente fora de mim.
AO VOLANTE

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,


Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...

Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,


Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada.


À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.


A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,


Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,


Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...
INSÔNIA
Não durmo, nem espero dormir. Todos os versos são sempre escritos no dia
Nem na morte espero dormir. seguinte.
Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Espera-me uma insónia da largura dos astros, Paz em toda a Natureza.
E um bocejo inútil do comprimento do mundo. A Humanidade repousa e esquece as suas
amarguras.
Não durmo; não posso ler quando acordo de noite, Exactamente.
Não posso escrever quando acordo de noite, A Humanidade esquece as suas alegrias e
Não posso pensar quando acordo de noite — amarguras.
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite! Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade
Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer! esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo, Exactamente. Mas não durmo.
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.


Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos —


Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos…
Tantos versos…
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.


Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstracção de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê…

Não durmo. Não durmo. Não durmo.


Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo excepto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto… Vem…


Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta…
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.


O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.
Vem, madrugada, chega!

Que horas são? Não sei.


Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada…
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
NÃO: devagar SIM, SOU EU, EU MESMO

Não: devagar. Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Devagar, porque não sei Espécie de acessório ou sobresselente próprio,
Onde quero ir. Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Há entre mim e os meus passos Sou eu aqui em mim, sou eu.
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Uma diferença de verbo Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Que corresponde à realidade. Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

Devagar... E ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconsequente,


Sim, devagar... Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
Quero pensar no que quer dizer De me ter deixado, a mim, num banco de carro eléctrico,
Este devagar... Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em
cima.
Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo. E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
TaIvez a impressão dos momentos seja muito próxima... Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se
acorda,
Talvez isso tudo... De haver melhor em mim do que eu.
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem que ser devagar? Sim, ao mesmo tempo, o impressão, um pouco dolorosa,
Se calhar é o universo... A verdade manda Deus que se diga. Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos
Mas ouviu alguém isso a Deus credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
COMEÇA A HAVER De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
Começa a haver meia-noite, e a haver sossego, De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários da acumulação da vida... Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Calaram o piano no terceiro-andar... Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
Não oiço já passos no segundo-andar... E que mais vale ser criança que querer compreender o mundo –
No rés-do-chão o rádio está em silêncio... A impressão de pão com manteiga e brinquedos,
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
Vai tudo dormir... De uma boa vontade para com a vida encostada de testa à
janela,
Fico sozinho com o universo inteiro. Num ver chover com som lá fora
Não quero ir à janela: E não as lágrimas mortas de custar a engolir.
Se eu olhar, que de estrelas!
Que grandes silêncios maiores há no alto! Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
Que céu anticitadino! — O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
Antes, recluso, A quem tinem as campainhas da cabeça
Num desejo de não ser recluso, Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.
Escuto ansiosamente os ruídos da rua...
Um automóvel! — demasiado rápido! — Sou eu mesmo, a charada sincopada
Os duplos passos em conversa falam-me Que ninguém da roda decifra nos serões de província.
O som de um portão que se fecha brusco dói-me...
Sou eu mesmo, que remédio!...
Vai tudo dormir...

Só eu velo, sonolentamente escutando,


Esperando
Qualquer coisa antes que durma...
Qualquer coisa...
ESTA VELHA ANGÚSTIA
NÃO ESTOU
Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim, Não estou pensando em nada
Transbordou da vasilha, E essa coisa central, que é coisa nenhuma,
Em lágrimas, em grandes imaginações, É-me agradável como o ar da noite,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror, Fresco em contraste com o Verão quente do dia.
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Não estou pensando em nada, e que bom!
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida Pensar em nada
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma! É ter a alma própria e inteira.
Se ao menos endoidecesse deveras! Pensar em nada
Mas não: é este estar entre, É viver intimamente
Este quase, O fluxo e o refluxo da vida...
Este poder ser que..., Não estou pensando em nada.
Isto. É como se me tivesse encostado mal.
Uma dor nas costas, ou num lado das costas,
Um internado num manicómio é, ao menos, alguém, Há um amargo de boca na minha alma:
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio. É que, no fim de contas,
Estou doido a frio, Não estou pensando em nada,
Estou lúcido e louco, Mas realmente em nada.
Estou alheio a tudo e igual a todos: Em nada...
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos MESTRE, SÃO PLÁCIDAS
Estou assim...
Mestre, são plácidas
Pobre velha casa da minha infância perdida! Todas as horas
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto! Que nós perdemos.
Que é do teu menino? Está maluco. Se no perdê-las,
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano? Qual numa jarra,
Está maluco. Nós pomos flores. Não vale a pena
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou. Fazer um gesto.
Não há tristezas Não se resiste
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer! Nem alegrias Ao deus atroz
Por exemplo, por aquele manipanso Na nossa vida. Que os próprios filhos
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África. Assim saibamos, Devora sempre.
Era feiíssimo, era grotesco, Sábios incautos,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê. Não a viver, Colhamos flores.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer – Molhemos leves
Júpiter, Jeová, a Humanidade – Mas decorrê-la, As nossas mãos
Qualquer serviria, Tranquilos, plácidos, Nos rios calmos,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo? Tendo as crianças Para aprendermos
Por nossas mestras, Calma também.
Estala, coração de vidro pintado! E os olhos cheios
De Natureza... Girassóis sempre
Fitando o Sol,
À beira-rio, Da vida iremos
À beira-estrada, Tranquilos, tendo
Conforme calha, Nem o remorso
Sempre no mesmo De ter vivido.
Leve descanso
De estar vivendo.

O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.
ANJOS OU DEUSES ABDICAÇÃO

Anjos ou deuses, sempre nós tivemos Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
A visão perturbada de que acima E chama-me teu filho.
De nós e compelindo-nos Eu sou um rei
Agem outras presenças. Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Como acima dos gados que há nos campos
O nosso esforço, que eles não compreendem, Minha espada, pesada a braços lassos,
Os coage e obriga Em mãos viris e calmas entreguei;
E eles não nos percebem, E meu ceptro e coroa, – eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.
Nossa vontade e o nosso pensamento
São as mãos pelas quais outros nos guiam Minha cota de malha, tão inútil,
Para onde eles querem Minhas esporas, de um tinir tão fútil,
E nós não desejamos. Deixei-as pela fria escadaria.

ONDA Despi a realeza, corpo e alma,


Lenta, descansa a onda que a maré deixa. E regressei à noite antiga e calma
Pesada cede. Tudo é sossegado. Como a paisagem ao morrer do dia.
Só o que é de homem se ouve.
Cresce a vinda da lua. AQUI ONDE SE ESPERA
Nesta hora, Lídia ou Neera ou Cloé,
Qualquer de vós me é estranha, que me inclino Aqui onde se espera
Para o segredo dito Isso que outrora era,
Pelo silêncio incerto.
Tomo nas mãos, como caveira, ou chave Aqui onde, dormindo,
De supérfluo sepulcro, o meu destino, Se sente a noite vindo,
E ignaro o aborreço
Sem coração que o sinta. E nada importaria
Que fosse antes o dia,
SAUDOSO JÁ DESTE VERÃO
Aqui, aqui estarei
Saudoso já deste Verão que vejo, Como no exílio um rei,
Lágrimas para as flores dele emprego
Na lembrança invertida Gozando da ventura
De quando hei-de perdê-las. De não ter a amargura
Transpostos os portais irreparáveis
De cada ano, me antecipo a sombra De reinar, mas guardando
Em que hei-de errar, sem flores, O nome venerando...
No abismo rumoroso.
E colho a rosa porque a sorte manda. Que mais quer quem descansa
Marcenda, guardo-a; murche-se comigo Da dor e da esperança,
Antes que com a curva
Diurna da ampla terra. Que ter a negação
De todo o coração?

QUERO IGNORADO

Quero ignorado, e calmo


Por ignorado, e próprio
Por calmo, encher meus dias
De não querer mais deles.

Aos que a riqueza toca


O ouro irrita a pele.
Aos que a fama bafeja
Embacia-se a vida.

Aos que a felicidade


É sol, virá a noite.
Mas ao que nada spera
Tudo que vem é grato.
ASSIM CANSA SENTIR
Assim, sem nada feito e o por fazer
Mal pensado, ou sonhado sem pensar, Cansa sentir quando se pensa.
Vejo os meus dias nulos decorrer, No ar da noite a madrugar
E o cansaço de nada me aumentar. Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar.
Perdura, sim, como uma mocidade
Que a si mesma se sobrevive, a esperança, Neste momento insone e triste
Mas a mesma esperança o tédio invade, Em que não sei quem hei-de ser,
E a mesma falsa mocidade cansa. Pesa-me o informe real que existe
Na noite antes de amanhecer.
Ténue passar das horas sem proveito,
Leve correr dos dias sem acção, Tudo isto me parece tudo.
Como a quem com saúde jaz no leito E é uma noite a ter um fim
Ou quem sempre se atrasa sem razão. Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.
Vadio sem andar, meu ser inerte
Contempla-me, que esqueço de querer, (Tudo isto me parece tudo.
E a tarde exterior seu tédio verte Mas noite, frio, negror sem fim,
Sobre quem nada fez e nada quere. Mundo mudo, silêncio mudo –
Ah, nada é isto, nada é assim!)
Inútil vida, posta a um canto e ida CHOVE?
Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,
Obra solentemente por ser lida, “Chove? Nenhuma chuva cai…
Ah, deixem-se sonhar sem esperar! Então onde é que eu sinto um dia
Em que ruído da chuva atrai
AUTOPSICOGRAFIA A minha inútil agonia ?
O poeta é um fingidor. Onde é que chove, que eu o ouço?
Finge tão completamente Onde é que é triste, ó claro céu?
Que chega a fingir que é dor Eu quero sorrir-te, e não posso,
A dor que deveras sente. Ó céu azul, chamar-te meu…
E os que lêem o que escreve, E o escuro ruído da chuva
Na dor lida sentem bem, É constante em meu pensamento.
Não as duas que ele teve, Meu ser é a invisível curva
Mas só a que eles não têm. Traçada pelo som do vento…
E assim nas calhas de roda E eis que ante o sol e o azul do dia,
Gira a entreter a razão, Como se a hora me estorvasse,
Esse comboio de corda Eu sofro… E a luz e a sua alegria
Que se chama coração. Cai aos meus pés como um disfarce.

Ah, na minha alma sempre chove.


Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuro, alguém dentro de mim ouve
A chuva, como a voz de um fim…

Os céus da tua face, e os derradeiros


Tons do poente segredam nas arcadas…

No claustro sequestrando a lucidez


Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convés

No meu cansaço perdido entre os gelos,


E a cor do outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância…
COMO INÚTIL TAÇA CHEIA Ela canta, pobre ceifeira
Como inútil taça cheia Ela canta, pobre ceifeira,
Que ninguém ergue da mesa, Julgando-se feliz talvez;
Transborda de dor alheia Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
Meu coração sem tristeza. De alegre e anónima viuvez,

Sonhos de mágoa figura Ondula como um canto de ave


Só para Ter que sentir No ar limpo como um limiar,
E assim não tem a amargura E há curvas no enredo suave
Que se temeu a fingir. Do som que ela tem a cantar.

Ficção num palco sem tábuas Ouvi-la alegra e entristece,


Vestida de papel seda Na sua voz há o campo e a lida,
Mima uma dança de mágoas E canta como se tivesse
Para que nada suceda. Mais razões para cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!


CONTEMPLO O LAGO MUDO O que em mim sente está pensando.
Derrama no meu coração
Contemplo o lago mudo A tua incerta voz ondeando!
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ou se tudo me esquece. Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
O lago nada me diz, Ó campo! Ó canção! A ciência
Não sinto a brisa mexê-lo.
Não sei se sou feliz Pesa tanto e a vida é tão breve!
Nem se desejo sê-lo. Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Trémulos vincos risonhos Depois, levando-me, passai!
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos É brando o dia, brando o vento
A minha única vida?
É brando o dia, brando o vento.
É brando o sol e brando o céu.
MARINHA Assim fosse meu pensamento!
Assim fosse eu, assim fosse eu!
Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida! Mas entre mim e as brandas glórias
São felizes: têm pena... Deste céu limpo e este ar sem mim
Eu sofro sem pena a vida. Intervêm sonhos e memórias...
Ser eu assim, ser eu assim!
Doo-me até onde penso,
E a dor é já de pensar, Ah, o mundo é quanto nós trazemos.
Órfão de um sonho suspenso Existe tudo quanto existo.
Pela maré a vazar... Há porque vemos.
E tudo é isto, tudo é isto!
E sobe até mim, já farto
De improfícuas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.
Emissário de um rei desconhecido Glosa
Emissário de um rei desconhecido Quem me roubou a minha dor antiga,
Eu cumpro informes instruções de além, E só a vida me deixou por dor ?
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga,
Soam-me a um outro e anómalo sentido... Me deixou só no fogo e no torpor ?

Inconscientemente me divido Quem fez a fantasia minha amiga,


Entre mim e a missão que o meu ser tem, Negando o fruto e emurchecendo a flor ?
E a glória do meu Rei dá-me o desdém Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga
Por este humano povo entre quem lido... A seu infiel e irreal sabor...

Não sei se existe o Rei que me mandou Quem me dispôs para o que não pudesse ?
Minha missão será eu a esquecer, Quem me fadou para o que não conheço
Meu orgulho o deserto em que em mim estou... Na teia do real que ninguém tece ?
Quem me arrancou ao sonho que me odiava
Mas há! Eu sinto-me altas tradições E me deu só a vida em que me esqueço,
De antes de tempo e espaço e vida e ser... "Onde a minha saudade a cor se trava ?"
Já viram Deus as minhas sensações...

Entre o luar e a folhagem Fúria nas trevas


Entre o luar e a folhagem, Fúria nas trevas o vento
Entre o sossego e o arvoredo, Num grande som de alongar,
Entre o ser noite e haver aragem Não há no meu pensamento
Passa um segredo. Senão não poder parar.
Segue-o minha alma na passagem.
Parece que a alma tem
Ténue lembrança ou saudade, Treva onde sopre a crescer
Princípio ou fim do que não foi, Uma loucura que vem
Não tem lugar, não tem verdade, De querer compreender.
Atrai e dói.
Segue-o meu ser em liberdade. Raiva nas trevas o vento
Sem se poder libertar.
Vazio encanto ébrio de si, Estou preso ao meu pensamento
Tristeza ou alegria o traz? Como o vento preso ao ar.
O que sou dele a quem sorri?
Não é nem faz. Fosse eu apenas
Só de segui-lo me perdi.
Fosse eu apenas, não sei onde ou como,
Fresta Uma coisa existente sem viver,
Noite de Vida sem amanhecer
Entre as sirtes do meu doirado assomo...
Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém, Fada maliciosa ou incerto gnomo
E tudo é névoas e muros Fadado houvesse de não pertencer
Quanto a vida dá ou tem, Meu intuito gloriola com ter
A árvore do meu uso o único pomo...
Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado, Fosse eu uma metáfora somente
Vejo o longínquo horizonte Escrita nalgum livro insubsistente
Cheio de sol posto ou nado Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,

Revivo, existo, conheço, Mas doente, e, num crepúsculo de espadas,


E, ainda que seja ilusão Morrendo entre bandeiras desfraldadas
O exterior em que me esqueço, Na última tarde de um império em chamas...
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.
Gomes Leal Cansa ser

Sagra, sinistro, a alguns o astro baço. Cansa ser, sentir dói, pensar destrói.
Seus três anéis irreversíveis são Alheia a nós, em nós e fora,
A desgraça, a tristeza, a solidão. Rui a hora, e tudo nela rói.
Oito luas fatais fitam no espaço. Inutilmente a alma o chora.

Este, poeta, Apolo em seu regaço De que serve ? O que é que tem que servir ?
A Saturno entregou. A plúmbea mão Pálido esboço leve
Lhe ergueu ao alto o aflito coração, Do sol de inverno sobre meu leito a sorrir...
E, erguido, o apertou, sangrando lasso. Vago sussurro breve.

Inúteis oito luas da loucura Das pequenas vozes com que a manhã acorda,
Quando a cintura tríplice denota Da fútil promessa do dia,
Solidão e desgraça e amargura! Morta ao nascer, na esperança longínqua e absurda
Em que a alma se fia.
Mas da noite sem fim um rastro brota,
Vestígios de maligna formosura: Chove. Que fiz eu da vida?
É a lua além de Deus, álgida e ignota.
Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
As lentas nuvens De pensada, mal vivida...
As lentas nuvens fazem sono, Triste de quem é assim
O céu azul faz bom dormir.
Bóio, num íntimo abandono, Numa angústia sem remédio
À tona de me não sentir. Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tédio,
E é suave, como um correr de água, Só do que nunca quis ter...
O sentir que não sou alguém,
Não sou capaz de peso ou mágoa. Quem eu pudera ter sido,
Minha alma é aquilo que não tem. Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim, stou de mim partido.
Que bom, à margem do ribeiro Se ao menos chovesse menos!

Clareia cinzenta
Saber que é ele que vai indo...
E só em sono eu vou primeiro. Clareia cinzenta a noite de chuva,
E só em sonho eu vou seguindo. Que o dia chegou.
E o dia parece um traje de viúva
Bóiam farrapos Que já desbotou.

Ainda sem luz, salvo o claro do escuro,


Bóiam farrapos de sombra O céu chove aqui,
Em torno ao que não sei ser. E ainda é um além, ainda é um muro
É todo um céu que se escombra Ausente de si.
Sem me o deixar entrever.
Não sei que tarefa terei este dia;
O mistério das alturas Que é inútil já sei...
Desfaz-se em ritmos sem forma E fito, de longe, minha alma, já fria
Nas desregradas negruras Do que não farei.
Com que o ar se treva torna.

Mas em tudo isto, que faz


O universo um ser desfeito,
Guardei, como a minha paz,
A esprança, que a dor me traz,
Apertada contra o peito.
Como às vezes Dormir!

Como às vezes num dia azul e manso Dormir! Não Ter desejos nem esperanças
No vivo verde da planície calma Flutua branca a única nuvem lenta
Duma súbita nuvem o avanço E na azul quiescência sonolenta
Palidamente as ervas escurece A deusa do não-ser tece ambas as tranças.
Assim agora em minha pávida alma
Que súbito se evola e arrefece Maligno sopro de árdua quietude
A memória dos mortos aparece... Perene a fronte e os olhos aquecidos,
E uma floresta-sonho de ruídos
Ensombra os olhos mortos de virtude.
Como um vento na floresta
Ah, não ser nada conscientemente!
Como um vento na floresta, Prazer ou dor? Torpor o traz e alonga,
Minha emoção não tem fim. E a sombra conivente se prolonga
Nada sou, nada me resta. No chão interior, que à vida mente.
Não sei quem sou para mim.
Desconheço-me. Embrenha-me futuro,
E como entre os arvoredos Nas veredas sombrias do que sonho.
Há grandes sons de folhagem, E no ócio em que diverso me suponho,
Também agito segredos Vejo-me errante, demorado e obscuro.
No fundo da minha imagem.
Minha vida fecha-se como um leque.
E o grande ruído do vento Meu pensamento seca como um vago
Que as folhas cobrem de som Ribeiro no verão . Regresso , e trago
Despe-me do pensamento: Nas mão flores que a vida prontas seque.
Sou ninguém, temo ser bom.
Incompreendida vontade absorta
Daqui a pouco Em nada querer... Prolixo afastamento
Do escrúpulo e da vida no momento...
Daqui a pouco acaba o dia.
Não fiz nada.
Também, que coisa é que faria? O Louco
Fosse o que fosse, estava errada.
E fala aos constelados céus
Daqui a pouco a noite vem. De trás das mágoas e das grades
Chega em vão Talvez com sonhos como os meus...
Para quem como eu só tem Talvez, meu Deus!, com que verdades!
Para contar o coração.
As grades de uma cela estreita
E após a noite a irmos dormir Separam-no de céu e terra...
Torna o dia. Às grades mãos humanas deita
Nada farei senão sentir. E com voz não humana berra...
Também que coisa é que faria?
TABACARIA

Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,


Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.


Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.


Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?


Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim…
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas –
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;


Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei


A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,


Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno – não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,


E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,


E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,


Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.


Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),


E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los


E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira


E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira


Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira.
Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).


Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.
Em toda a noite Há uma música do povo

Em toda a noite o sono não veio. Agora Há uma música do povo,


Raia do fundo Nem sei dizer se é um fado —
Do horizonte, encoberta e fria, a manhã. Que ouvindo-a há um chiste novo
Que faço eu no mundo ? No ser que tenho guardado…
Nada que a noite acalme ou levante a aurora,
Coisa séria ou vã. Se desejar fosse ser…
Com olhos tontos da febre vã da vigília É uma simples melodia
Vejo com horror Das que se aprendem a viver…
O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim
Do mundo e da dor _ E ouço-a embalado e sozinho…
Um dia igual aos outros, da eterna família É essa mesma que eu quis…
De serem assim. Perdi a fé e o caminho…
Quem não fui é que é feliz.
Nem o símbolo ao menos vale, a significação
Da manhã que vem Mas é tão consoladora
Saindo lenta da própria essência da noite que era, A vaga e triste canção…
Para quem Que a minha alma já não chora
Por tantas vezes ter sempre esperado em vão, Nem eu tenho coração…
Já nada espera.
Sou uma emoção estrangeira,
Um erro de sonho ido…
Falhei Canto de qualquer maneira
E acaba com um sentido!
Falhei. Os astros seguem seu caminho.
Minha alma, outrora um universo meu, Não quero rosas
É hoje, sei, um lúgubre escaninho
De consciência sob a morte e o céu. Não quero rosas, desde que haja rosas.
Quero-as só quando não as possa haver.
Falhei. Quem sou vivi só de supô-lo. Que hei-de fazer das coisas
O que tive por meu ou por haver Que qualquer mão pode colher?
Fica sempre entre um pólo e o outro pólo Não
Do que me nunca há-de pertencer. quero a noite senão quando a aurora
A fez em ouro e azul se diluir.
Falhei. Enfim! Consegui ser quem sou, O que a minha alma ignora
O que é já nada, com a lenha velha É isso que quero possuir.
Onde, pois valho só quanto me dou, Para quê?...
Pegarei facilmente uma centelha. Se o soubesse, não faria
Versos para dizer que inda o não sei.
Tenho a alma pobre e fria...
Fito-me Ah, com que esmola a aquecerei?...
Fito-me frente a frente
E conheço quem sou.
Estou louco, é evidente,
Mas que louco é que estou?

É por ser mais poeta


Que gente que sou louco?
Ou é por ter completa
A noção de ser pouco?

Não sei, mas sinto morto


O ser vivo que tenho.
Nasci como um aborto,
Salvo a hora e o tamanho.
PRESSÁGIO VENDAVAL

O amor, quando se revela, Ó vento do norte, tão fundo e tão frio,


Não se sabe revelar. Não achas, soprando por tanta solidão,
Sabe bem olhar p'ra ela, Deserto, penhasco, coval mais vazio
Mas não lhe sabe falar. Que o meu coração!

Quem quer dizer o que sente Indómita praia, que a raiva do oceano
Não sabe o que há-de dizer. Faz louco lugar, caverna sem fim,
Fala: parece que mente... Não são tão deixados do alegre e do humano
Cala: parece esquecer... Como a alma que há em mim!

Ah, mas se ela adivinhasse, Mas dura planície, praia atra em fereza,
Se pudesse ouvir o olhar, Só têm a tristeza que a gente lhes vê;
E se um olhar lhe bastasse E nisto que em mim é vácuo e tristeza
P'ra saber que a estão a amar! É o visto o que vê.

Mas quem sente muito, cala; Ah, mágoa de ter consciência da vida!
Quem quer dizer quanto sente Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,
Fica sem alma nem fala, Que rasgas os robles – teu pulso divida
Fica só, inteiramente! Minh'alma do mundo!

Mas se isto puder contar-lhe Ah, se, como levas as folhas e a areia,
O que não lhe ouso contar, A alma que tenho pudesses levar –
Já não terei que falar-lhe Fosse pr'onde fosse, pra longe da ideia
Porque lhe estou a falar... De eu ter que pensar!

Abismo da noite, da chuva, do vento,


Outros terão
Mar torvo do caos que parece volver –
Outros terão Porque é que não entras no meu pensamento
Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo. Para ele morrer?
A inteira, negra e fria solidão
Está comigo. Horror de ser sempre com vida a consciência!
Horror de sentir a alma sempre a pensar!
A outros talvez Arranca-me, ó vento; do chão da existência,
Há alguma coisa quente, igual, afim De ser um lugar!
No mundo real. Não chega nunca a vez
Para mim. E, pela alta noite que fazes mais escura,
Pelo caos furioso que crias no mundo,
«Que importa?» Dissolve em areia esta minha amargura,
Digo, mas só Deus sabe que o não creio. Meu tédio profundo.
Nem um casual mendigo à minha porta
Sentar se veio. E contra as vidraças dos que há que têm lares,
Telhados daqueles que têm razão,
«Quem tem de ser?» Atira, já pária desfeito dos ares,
Não sofre menos quem o reconhece. O meu coração!
Sofre quem finge desprezar sofrer
Pois não esquece. Meu coração triste, meu coração ermo,
Tornado a substância dispersa e negada
Isto até quando? Do vento sem forma, da noite sem termo,
Só tenho por consolação Do abismo e do nada!
Que os olhos se me vão acostumando
À escuridão
Vou com um passo Para ser grande
Vou com um passo como de ir parar Para ser grande, sê inteiro: nada
Pela rua vazia Teu exagera ou exclui.
Nem sinto como um mal ou mal-estar Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
A vaga chuva fria... No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Vou pela noite da indistinta rua Brilha, porque alta vive.
Alheio a andar e a ser
E a chuva leve em minha face nua Da minha aldeia
Orvalha de esquecer...

Sim, tudo esqueço. Pela noite sou Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver o
Noite também Universo....
E vagaroso eu (...) vou, Por isso a minha aldeia é grande como outra qualquer
Fantasma de magia. Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
No vácuo que se forma de eu ser eu
E da noite ser triste Nas cidades a vida é mais pequena
Meu ser existe sem que seja meu Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
E anônimo persiste... Na cidade as grandes casas fecham a vista a chave,
Escondem o horizonte, empurram nosso olhar para longe
Qual é o instinto que fica esquecido de todo o céu,
Entre o passeio e a rua? Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos
Vou sob a chuva, amargo e diluído olhos nos podem dar,
E tenho a face nua. E tornam-nos pobres porque a única riqueza é ver.

Mar português Acordo de noite


Ó mar salgado, quanto do teu sal Acordo de noite subitamente.
São lágrimas de Portugal! E o meu relógio ocupa a noite toda.
Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Não sinto a Natureza lá fora,
Quantos filhos em vão rezaram! O meu quarto é uma coisa escura com paredes vagamente
Quantas noivas ficaram por casar brancas.
Para que fosses nosso, ó mar! Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
Valeu a pena? Tudo vale a pena E esta pequena coisa de engrenagens que está em cima da
Se a alma não é pequena. minha mesa
Quem quer passar além do Bojador Abafa toda a existência da terra e do céu...
Tem que passar além da dor. Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da
Mas nele é que espelhou o céu. boca,
Porque a única coisa que o meu relógio simboliza ou
significa
O Amor é uma companhia É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez.
O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.

Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.


Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.
EU Música... Que sei eu de mim?

Sou louco e tenho por memória Música... Que sei eu de mim?


Uma longínqua e infiel lembrança Que sei eu de haver ser ou estar?
De qualquer dita transitória Música... sei só que sem fim
Que sonhei ter quando criança. Quero saber só de sonhar...
Depois, malograda trajectória Música... Bem no que faz mal
Do meu destino sem esperança, À alma entregar-se a nada...
Perdi, na névoa da noite inglória Mas quero ser animal
O saber e o ousar da aliança. Da insuficiência enganada.
Só guardo como um anel pobre Música... Se eu pudesse ter,
Que a todo o herdado só faz rico Não o que penso ou desejo,
Um frio perdido que me cobre Mas o que não pude haver
E que até nem em sonhos vejo,
Como um céu dossel de mendigo,
Na curva inútil em que fico Se também eu pudesse fruir
Da estrada certa que não sigo. Entre as algemas de aqui estar!
Não faz mal. Flui,
O mundo rui Para que eu deixe de pensar!
O mundo rui a meu redor, escombro a escombro.
Os meus sentidos oscilam, bandeira rota ao vento.
Que sombra de que o sol enche de frio e de assombro VAGA
A estrada vazia do conseguimento?
Vaga, no azul amplo solta,
Busca um porto longe uma nau desconhecida Vai uma nuvem errando.
E esse é todo o sentido da minha vida. O meu passado não volta.
Por um mar azul nocturno, estrelado no fundo, Não é o que estou chorando.
Segue a sua rota a nau exterior ao mundo.
O que choro é diferente.
Mas o sentido de tudo está fechado no pasmo Entra mais na alma da alma.
Que exala a chama negra que acende em meu entusiasmo Mas como, no céu sem gente,
Súbitas confissões de outro que eu fui outrora A nuvem flutua calma,
Antes da vida e viu Deus e eu não o sou agora.
E isto lembra uma tristeza
E a lembrança é que entristece,
À noite
Dou à saudade a riqueza
De emoção que a hora tece.
O silêncio é teu gémeo no Infinito.
Quem te conhece, sabe não buscar. Mas, em verdade, o que chora
Morte visível, vens dessedentar Na minha amarga ansiedade
O vago mundo, o mundo estreito e aflito. Mais alto que a nuvem mora,
Está para além da saudade.
Se os teus abismos constelados fito,
Não sei quem sou ou qual o fim a dar Não sei o que é nem consinto
A tanta dor, a tanta ânsia par À alma que o saiba bem.
Do sonho, e a tanto incerto em que medito. Visto da dor com que minto
Dor que a minha alma tem.
Que vislumbre escondido de melhores
Dias ou horas no teu campo cabe?
Véu nupcial do fim de fins e dores.

Nem sei a angústia que vens consolar-me.


Deixa que eu durma, deixa que eu acabe
E que a luz nunca venha despertar-me!
ESTADO DE ALMA QUAL
Inutilmente vivida
Qual é a tarde por achar
Acumula-se-me a vida
Em que teremos todos razão
Em anos, meses e dias;
E respiraremos o bom ar
Inutilmente vivida,
Da alameda sendo Verão,
Sem dores nem alegrias,
Mas só em monotonias
Ou, sendo Inverno, baste star
De mágoa incompreendida...
Ao pé do sossego ou do fogão?
Qual é a tarde por voltar?
Mágoa sem fogo de vida
Essa tarde houve, e agora não.
Que a faça viva e sentida;
Mas a mágoa de mãos frias
Qual é a mão cariciosa
E inaptas para arte ou lida,
Que há-de ser enfermeira minha –
Nem pra gestos de agonias
Sem doenças minha vida ousa –
Ou mostras de alma vencida.
Oh, essa mão é morta e osso...
Só a lembrança me acarinha
Nada: inerte e dolorida,
O coração com que não posso.
A minha dor se extasia
Por não ser, e tem só vida
Para em torno a noite fria
Sentir vaga e indefinida... No céu

No céu da noite que começa


Vem dos lados da montanha Nuvens de um vago negro brando
Numa ramagem pouco espessa
Vem dos lados da montanha Vão no ocidente tresmalhando.
Uma canção que me diz
Que, por mais que a alma tenha, Aos sonhos que não sei me entrego
Sempre há-de ser infeliz. Sem nada procurar sentir
E estou em mim como em sossego,
O mundo não é seu lar Pra sono falta-me dormir.
E tudo que ele lhe der
São coisas que estão a dar Deixei atrás nas horas ralas
A quem não quer receber. Caídas uma outra ilusão,
Não volto atrás a procurá-las,
Diz isto? Não sei. Nem voz Já estão formigas onde estão.
Ouço, música, à janela
Onde me medito a sós
Como o luzir de uma estrela.
Árvore Verde
QUANDO

Quando é que o cativeiro Árvore verde,


Acabará em mim, Árvore verde,
E, próprio dianteiro, Meu pensamento Eu tinha um sonho
Avançarei enfim? Em ti se perde. Que me encantava.
Ver é dormir Se a manhã vinha,
Quando é que me desato Neste momento. Como eu a odiava !
Dos laços que me dei?
Quando serei um facto? Que bom não ser Volvia a noite,
Quando é que me serei? 'Stando acordado ! E o sonho a mim.
Também em mim enverdecer Era o meu lar,
Quando, ao virar da esquina Em folhas dado ! Minha alma afim.
De qualquer dia meu,
Me acharei alma digna Tremulamente Depois perdi-o.
Da alma que Deus me deu? Sentir no corpo Lembro ? Quem dera !
Brisa na alma ! Se eu nunca soube
Quando é que será quando? Não ser quem sente, O que ele era.
Não sei. E até então Mas tem a calma.
Viverei perguntando: Também em mim enverdecer
Perguntarei em vão. Em folhas dado !
O corvo

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste, Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais, Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
E já quase adormecia, ouvi o que parecia Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais. Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais. Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus
É só isto, e nada mais." umbrais,
Com o nome "Nunca mais".
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais. Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais - Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais, pensamento
Mas sem nome aqui jamais! Perdido, murmurei lento, "Amigos, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo Disse o corvo, "Nunca mais".
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo, A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais; "Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais. Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o
É só isto, e nada mais". abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante, E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais; Era este "Nunca mais".
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais, Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais. Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
Noite, noite e nada mais. E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando, ancestrais,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais. Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita, Com aquele "Nunca mais".
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais. Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
Isso só e nada mais. À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo, No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais. Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela. Reclinar-se-á nunca mais!
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais. Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
"É o vento, e nada mais." Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça, concedeu-te
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais. O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento, O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais, Disse o corvo, "Nunca mais".
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais. "Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
Com o solene decoro de seus ares rituais. A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado, Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais! Disse o corvo, "Nunca mais".
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".
Quando ela passa
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta! Quando eu me sento à janela
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais. P'los vidros qu'a neve embaça
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida Vejo a doce imagem d'elia
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais, Quando passa... passa.... passa...
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais". N'esta escuridão tristonha
Duma travessa sombria
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte! Quando aparece risonha
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais! Brilha mais qu'a luz do dia.
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais! Quando está noite ceifada
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!" E contemplo imagem sua
Disse o corvo, "Nunca mais". Que rompe a treva fechada
Como um reflexo da lua,
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais. Penso ver o seu semblante
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha, Com funda melancolia
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais, Qu'o lábio embriagante
E a minhalma dessa sombra que no chão há mais e mais, Não conheceu a alegria
Libertar-se-á... nunca mais!
Aqui está-se sossegado E vejo curvado à dor
Todo o seu primeiro encanto
Comunica-mo o palor
Aqui está-se sossegado, As faces, aos olhos pranto.
Longe do mundo e da vida,
Cheio de não ter passado, Todos os dias passava
Até o futuro se olvida. Por aquela estreita rua
Aqui está-se sossegado. E o palor que m'aterrava
Cada vez mais s'acentua
Tinha os gestos inocentes,
Seus olhos riam no fundo. Durmo, desperto e sozinho. Um dia já não passou
Mas invisíveis serpentes Que tem sido a minha vida? O outro também já não
Faziam-a ser do mundo. Velas de inútil moinho — A sua ausência cavou
Tinha os gestos inocentes. Um movimento sem lida... Ferida no meu coração
Durmo, desperto e sozinho.
Aqui tudo é paz e mar. Na manhã do outro dia
Que longe a vista se perde Nada explica nem consola. Com o olhar amortecido
Na solidão a tornar Tudo está certo depois. Fúnebre cortejo via
Em sombra o azul que é verde! Mas a dor que nos desola, E o coração dolorido
Aqui tudo é paz e mar. A mágoa de um não ser dois
Nada explica nem consola. Lançou-me em pesar profundo
Sim, poderia ter sido... Lançou-me a mágoa seu véu:
Mas vontade nem razão Menos um ser n'este mundo
O mundo têm conduzido E mais um anjo no céu.
A prazer ou conclusão.
Sim, poderia ter sido... Depois o carro funério
Esse carro d'amargura
Agora não esqueço e sonho. Entrou lá no cemitério
Fecho os olhos, oiço o mar Eis ali a sepultura:
E de ouvi-lo bem, suponho
Que veio azul a esverdear. Epitáfio.
Agora não esqueço e sonho.
Cristãos! Aqui jaz no pó da sepultura
Não foi propósito, não. Uma jovem filha da melancolia
Os seus gestos inocentes O seu viver foi repleto d'amargura
Tocavam no coração Seu rir foi pranto, dor sua alegria.
Como invisíveis serpentes.
Não foi propósito, não. Quando eu me sento à janela
P'los vidros qu'a neve embaça
Julgo ver imagem dela
Que já não passa... não passa.
Sol nulo
Sol nulo dos dias vãos, Tédio
Cheios de lida e de alma,
Não vivo, mal vegeto, duro apenas,
Aquece ao menos as mãos
Vazio dos sentidos porque existo;
A quem não entras na alma!
Não tenho infelizmente sequer penas
E o meu mal é ser (alheio Cristo)
Que ao menos a mão, roçando
Nestas horas doridas e serenas
A mão que por ela passe,
Completamente consciente disto.
Com externo calor brando
O frio da alma disfarce!

Senhor, já que a dor é nossa Súbita mão


E a fraqueza que ela tem,
Dá-nos ao menos a força Súbita mão de algum fantasma oculto
De a não mostrar a ninguém! Entre as dobras da noite e do meu sono
Sacode-me e eu acordo, e no abandono
GLÁDIO Da noite não enxergo gesto ou vulto.

Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça Mas um terror antigo, que insepulto
A sua santa guerra. Trago no coração, como de um trono
Sagrou-me seu em honra e em desgraça, Desce e se afirma meu senhor e dono
Às horas em que um frio vento passa Sem ordem, sem meneio e sem insulto.
Por sobre a fria terra.
E eu sinto a minha vida de repente
Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me Presa por uma corda de Inconsciente
A fronte com o olhar; A qualquer mão nocturna que me guia.
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome Sinto que sou ninguém salvo uma sombra
Dentro em mim a vibrar. De um vulto que não vejo e que me assombra,
E em nada existo como a treva fria.
E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá, As coisas que errei na vida
Pois venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.
As coisas que errei na vida
São as que acharei na morte,
O menino da sua mãe Porque a vida é dividida
Entre quem sou e a sorte.
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece, As coisas que a Sorte deu
De balas trespassado Levou-as ela consigo,
- Duas, de lado a lado -, Mas as coisas que sou eu
Jaz morto, e arrefece. De outra algibeira, alada Guardei-as todas comigo.
Pronta a roçar o solo,
Raia-lhe a farda o sangue. A brancura embainhada E por isso os erros meus,
De braços estendidos, De um lenço... Deu-lho a criada Sendo a má sorte que tive,
Alvo, louro, exangue, Velha que o troxe ao colo. Terei que os buscar nos céus
Fita com olhar langue Quando a morte tire os véus
E cego os céus perdidos. Lá longe, em casa, há a prece: À inconsciência em que estive.
«Que volte cedo, e bem!»
Tão jovem! que jovem era! (Malhas que o Império tece!)
(Agora que idade tem?) Jaz morto, e apodrece,
Filho único, a mãe lhe dera O menino da sua mãe.
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
O Andaime CESSA Universal lamento
Cessa o teu canto!
O tempo que eu hei sonhado Cessa, que, enquanto Universal lamento
Quantos anos foi de vida! O ouvi, ouvia Aflora no teu ser.
Ah, quanto do meu passado Uma outra voz Só tem de ti a voz e o momento
Foi só a vida mentida Como que vindo Que o fez em tua voz aparecer.
De um futuro imaginado! Nos interstícios
Do brando encanto O Véu
Aqui à beira do rio Com que o teu canto
Sossego sem ter razão. Vinha até nós. O véu das lágrimas não cega.
Este seu correr vazio Vejo, a chorar,
Figura, anónimo e frio, Ouvi-te e ouvi-a O que essa música me entrega –
A vida vivida em vão. No mesmo tempo A mãe que eu tinha, o antigo lar,
E diferentes
A sp'rança que pouco alcança! Juntas a cantar. A criança que fui,
Que desejo vale o ensejo? E a melodia O horror do tempo, porque flui,
E uma bola de criança Que não havia, O horror da vida, porque é só matar!
Sobe mais que a minha sp'rança Se agora a lembro, Vejo e adormeço,
Rola mais que o meu desejo. Faz-me chorar.
Num torpor em que me esqueço
Ondas do rio, tão leves Foi tua voz Que existo inda neste mundo que há...
Que não sois ondas sequer, Encantamento Estou vendo minha mãe tocar.
Horas, dias, anos, breves Que, sem querer, E essas mãos brancas e pequenas,
Passam – verduras ou neves Nesse momento,
Que o mesmo sol faz morrer. Vago acordou Cuja carícia nunca mais me afagará –,
Um ser qualquer Tocam ao piano, cuidadosas e serenas,
Gastei tudo que não tinha Alheio a nós (Meu Deus!)
Sou mais velho do que sou. Que nos falou? Un soir à Lima.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha: Não sei. Não cantes! Ah, vejo tudo claro!
Despiu-se, e o reino acabou. Deixa-me ouvir Estou outra vez ali.
Qual o silêncio Afasto do luar exterior e raro
Leve som das águas lentas, Que há a seguir Os olhos com que o vi.
Gulosas da margem ida, A tu cantares!
Que lembranças sonolentas Mas quê? Divago e a música acabou...
De esperanças nevoentas! Ah, nada, nada! Divago como sempre divaguei
Que sonhos o sonho e a vida! Só os pesares Sem ter na alma certeza de quem sou,
De ter ouvido, Nem verdadeira fé ou firme lei
Que fiz de mim? Encontrei-me De ter querido
Quando estava já perdido. Ouvir para além Divago, crio eternidades minhas
Impaciente deixei-me Do que é o sentido Num ópio de memória e de abandono.
Como a um louco que teime Que uma voz tem. Entronizo fantásticas rainhas
No que lhe foi desmentido. Sem para elas ter o trono.
Que anjo, ao ergueres
Som morto das águas mansas A tua voz, Sonho porque me banho
Que correm por ter que ser, Sem o saberes No rio irreal da música evocada.
Leva não só as lembranças, Veio baixar Minha alma é uma criança esfarrapada
Mas as mortas esperanças – Sobre esta terra Que dorme num recanto obscuro.
Mortas, porque hão-de morrer. Onde a alma erra
E com as asas De meu só tenho,
Sou já o morto futuro. Soprou as brasas Na realidade certa e acordada,
Só um sonho me liga a mim – De ignoto lar? Os trapos da minha alma abandonada,
O sonho atrasado e obscuro E a cabeça que sonha contra o muro.
Do que eu devera ser – muro Não cantes mais!
Do meu deserto jardim. Quero o silêncio Mas, mãe não haverá
Para dormir Um Deus que me não torne tudo vão,
Ondas passadas, levai-me Qualquer memória Um outro mundo em que isso agora está?
Para o olvido do mar! Da voz ouvida, Divago ainda: tudo é ilusão.
Ao que não serei legai-me, Desentendida, Un soir à Lima
Que cerquei com um andaime Que foi perdida
A casa por fabricar. Por eu a ouvir... Quebra-te, coração...
Na noite A Lembrada
Na noite em que não durmo A lembrada canção,
Não dorme Amor, renova agora.
O relógio também. Na noite, olhos fechados, tua voz
Pus na alma esvurmo. Dói-me no coração
É enorme Por tudo quanto chora.
O que a treva contém. Cantas ao pé de mim, e eu estou a sós.

Podridão da alma, moribundo Não, a voz não é tua


Do que me julguei ser, Que se ergue e acorda em mim
Ouço o mundo. Murmúrios de saudade e de inconstância,
É um vento surdo e fundo, O luar não vem da lua
Que do abismo profundo Mas do meu ser afim
Vela o meu morrer. Ao mito, à mágoa, à ausência e à distância.

Indiferente assisto Não, não é teu o canto


Ao cadaverizar Que como um astro ao fundo
Do que sou. Da noite imensa do meu coração
Em que alma ou corpo existo? Chama em vão, chama tanto...
Vou dormir ou despertar? Quem sou não sei... e o mundo?...
Onde estou se não estou? Renova, amor, a antiga e vã canção.

Nada. É na treva onde fala Cantas mais que por ti,


O relógio fatal, Tua voz é uma ponte
Uma grande, anónima sala, Por onde passa, inúmero, um segredo
Uma grande treva onde se cala, Que nunca recebi –
Um grande bem que sabe a mal, Murmúrio do horizonte,
Uma vida que se desiguala, Água na noite, morte que vem cedo.
Uma morte que não sabe a que é igual.
Assim, cantas sem que existas.
Aquilo Ao fim do luar pressinto
Aquilo que a gente lembra Melhores sonhos que estes da ilusão
Sem o querer lembrar,
E inerte se desmembra Nas Grandes
Como um fumo no ar,
É a música que a alma tem,
É o perfume que vem, Nas grandes horas em que a insónia avulta
Vago, inútil, trazido Como um novo universo doloroso,
Por uma brisa de agrado, E a mente é clara com um ser que insulta
Do fundo do que é esquecido, O uso confuso com que o dia é ocioso,
Dos jardins do passado
Cismo, embebido em sombras de repouso
Aquilo que a gente sonha Onde habitam fantasmas e a alma é oculta,
Sem saber de sonhar, Em quanto errei e quanto ou dor ou gozo
Aquela boca risonha Me farão nada, como frase estulta.
Que nunca nos quis beijar,
Aquela vaga ironia Cismo, cheio de nada, e a noite é tudo.
Que uns olhos tiveram um dia Meu coração, que fala estando mudo,
Para a nossa emoção – Repete seu monótono torpor
Tudo isso nos dá o agrado,
Flores que flores são Na sombra, no delírio da clareza,
Nos jardins do passado E não há Deus, nem ser, nem Natureza
E a própria mágoa melhor fora dor.
Não sei o que fiz da vida,
Nem o quero saber.
Se a tenho por perdida,
Sei eu o que é perder?
Mas tudo é música se há
Alma onde a alma está,
E há um vago, suave, sono,
Um sonho morno de agrado,
Quando regresso, dono,
Aos jardins do passado.
INSÔNIA
Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir. Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para
Espera-me uma insónia da largura dos astros, o relógio,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo. Não tenho energia para nada, para mais nada…
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Não durmo; não posso ler quando acordo de noite. Sim, escritos no dia seguinte.
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite – Todos os versos são sempre escritos no dia
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite! seguinte.
Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer! Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas
Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo, amarguras.
E o meu sentimento é um pensamento vazio. Exactamente.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam A Humanidade esquece as suas alegrias e
– Todas aquelas de que me arrependo e me culpo –; amarguras.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam Costuma dizer-se isto.
– Todas aquelas de que me arrependo e me culpo –; A Humanidade esquece, sim, a Humanidade
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada, esquece,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo. Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exactamente. Mas não durmo.
Não tenho forço para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos –


Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir,


Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstracção de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo – sei lá o quê...

Não durmo. Não durmo. Não durmo.


Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo excepto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto... Vem...


Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.


O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.

Vem, madrugada, chega!


SONHO Não sei
Sonhei esta existência de venturas, Não sei. Falta-me um sentido, um tacto
Sonhei que o mundo era só d'amor, Para a vida, para o amor, para a glória...
Não pensei que havia amarguras Para que serve qualquer história,
E que no coração habita a dor. Ou qualquer facto?

Sonhei que m'afagavam as ternuras Estou só, só como ninguém ainda esteve,
De leda vida e que jamais palor Oco dentro de mim, sem depois nem antes.
Marcou na face humana as desventuras Parece que passam sem ver-me os instantes
Que a lei de Deus impôs com rigor. Mas passam sem que o seu passo seja leve.

Sonhei tudo azul e cor-de-rosa Começo o ler, mas cansa-me o que inda não li.
E a sorte ostentando-se furiosa Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.
Rasgou o sonho formoso que tive; O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir
É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi.
Sonhando sempre eu não tinha sonhado
Que n'esta vida sonha-se acordado, Não ser nada, ser uma figura de romance,
Que n'este mundo a sonhar se vive! Sem vida, sem morte material, uma ideia,
Qualquer coisa que nada tornasse útil ou feia,
Uma sombra num chão irreal, um sonho num transe.
ADIAMENTO
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã... Saudoso
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não... Saudoso já deste Verão que vejo,
Não, hoje nada: hoje não posso. Lágrimas para as flores dele emprego
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva, Na lembrança invertida
O sono da minha vida real, intercalado, De quando hei-de perdê-las.
O cansaço antecipado e infinito, Transpostos os portais irreparáveis
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico... De cada ano, me antecipo a sombra
Esta espécie de alma... Em que hei-de errar, sem flores,
Só depois de amanhã... No abismo rumoroso.
Hoje quero preparar-me, E colho a rosa porque a sorte manda.
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte... Marcenda, guardo-a; murche-se comigo
Ele é que é decisivo. Antes que com a curva
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos... Diurna da ampla terra.
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo; Lídia
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro... Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. Onde quer que estejamos.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana. Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância... Onde quer que moremos. Tudo é alheio
Depois de amanhã serei outro, Nem fala língua nossa.
A minha vida triunfar-se-á, Façamos de nós mesmos o retiro
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático Onde esconder-nos, tímidos do insulto
Serão convocadas por um edital... Do tumulto do mundo.
Mas por um edital de amanhã... Que quer o amor mais que não ser dos outros?
Hoje quero dormir, redigirei amanhã... Como um segredo dito nos mistérios,
Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância? Seja sacro por nosso.
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...
Caiam cidades, sofram povos,
Não sei Ouvi contar cesse
A liberdade e a vida,
Não sei o quê desgosta Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia Os haveres tranquilos e avitos
A minha alma doente. Tinha não sei qual guerra, Ardem e que se arranquem,
Uma dor suposta Quando a invasão ardia na Cidade Mas quando a guerra os jogos
Dói-me realmente. E as mulheres gritavam, interrompa,
Dois jogadores de xadrez jogavam Esteja o rei sem xeque,
Como um barco absorto O seu jogo contínuo. E o de marfim peão mais
Em se naufragar avançado
À vista do porto À sombra de ampla árvore fitavam Pronto a comprar a torre.
E num calmo mar, O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus Meus irmãos em amarmos
Por meu ser me afundo, Momentos mais folgados, Epicuro
Para longe da vista Quando havia movido a pedra, e agora E o entendermos mais
Durmo o incerto mundo. Esperava o adversário, De acordo com nós-próprios
Um púcaro com vinho refrescava que com ele,
Sobriamente a sua sede. Aprendamos na história
Sim, sei bem Dos calmos jogadores de
Ardiam casas, saqueadas eram xadrez
Sim, sei bem
As arcas e as paredes, Como passar a vida.
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos, Tudo o que é sério pouco nos
Que nunca terei uma obra.
Traspassadas de lanças, as crianças importe,
Sei, enfim,
Eram sangue nas ruas... O grave pouco pese,
Que nunca saberei de mim.
Mas onde estavam, perto da cidade, O natural impulso dos instintos
Sim, mas agora,
E longe do seu ruído, Que ceda ao inútil gozo
Enquanto dura esta hora,
Os jogadores de xadrez jogavam (Sob a sombra tranquila do
Este luar, estes ramos,
O jogo do xadrez. arvoredo)
Esta paz em que estamos,
De jogar um bom jogo.
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser. Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos, O que levamos desta vida inútil
E, ao reflectir, soubessem desde a alma Tanto vale se é
Que por certo as mulheres A glória, a fama, o amor, a
E as tenras filhas violadas eram ciência, a vida,
Nessa distância próxima, Como se fosse apenas
Inda que, no momento que o pensavam, A memória de um jogo bem
Uma sombra ligeira jogado
Lhes passasse na fronte alheada e vaga, E uma partida ganha
Breve seus olhos calmos A um jogador melhor.
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho. A glória pesa como um fardo
rico,
Quando o rei de marfim está em perigo, A fama como a febre,
Que importa a carne e o osso O amor cansa, porque é a sério
Das irmãs e das mães e das crianças? e busca,
Quando a torre não cobre A ciência nunca encontra,
A retirada da rainha branca, E a vida passa e dói porque o
O saque pouco importa. conhece...
E quando a mão confiada leva o xeque O jogo do xadrez
Ao rei do adversário, Prende a alma toda, mas,
Pouco pesa na alma que lá longe perdido, pouco
Estejam morrendo filhos. Pesa, pois não é nada.

Mesmo que, de repente, sobre o muro Ah! sob as sombras que sem
Surja a sanhuda face qu'rer nos amam,
Dum guerreiro invasor, e breve deva Com um púcaro de vinho
Em sangue ali cair Ao lado, e atentos só à inútil
O jogador solene de xadrez, faina
O momento antes desse Do jogo do xadrez,
(É ainda dado ao cálculo dum lance Mesmo que o jogo seja apenas
Pra a efeito horas depois) sonho
É ainda entregue ao jogo predilecto E não haja parceiro,
Dos grandes indif'rentes. Imitemos os persas desta
história,
E, enquanto lá por fora, Reticências
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção.
Chamam por nós, deixemos Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Que em vão nos chamem, cada um de nós Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer
Sob as sombras amigas qualquer coisa!
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez Vou fazer as malas para o Definitivo,
A sua indiferença. Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem — um antes de
ontem que é sempre...
Ave Maria Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
Ave Maria, tão pura, Produtos românticos, nós todos...
Virgem nunca maculada E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos
Ouvide a prece tirada nada.
No meu peito da amargura. Assim se faz a literatura...
Santos Deuses, assim até se faz a vida!
Vós que sois cheia de graça Os outros também são românticos,
Escutai minha oração, Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Conduzi-me pela mão Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Por esta vida que passa. Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.
O Senhor, que é vosso filho Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um hino
Que seja sempre connosco, inconsciente,
Assim como é convosco Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
Eternamente o seu brilho. Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o
Bendita sois vós, Maria, silêncio da vida...
Entre as mulheres da terra Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para a janela,
E voss'alma só encerra Por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
Doce imagem d'alegria. E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma crítica
metafisica.
Mais radiante do que a luz Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
E bendito, oh Santa Mãe Fitei de frente todos os destinos pela distração de ouvir apregoando,
É o fruto que provém E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
Do vosso ventre, Jesus! E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o
poema...
Ditosa Santa Maria, Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem outra...
Vós que sois a Mãe de Deus
E que morais lá nos céus
Orai por nós cada dia. Criança Desconhecida

Rogai por nós, pecadores, Criança desconhecida e suja brincando à minha porta,
Ao vosso filho, Jesus, Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos.
Que por nós morreu na cruz Acho-te graça por nunca te ter visto antes,
E que sofreu tantas dores. E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra criança,
Nem aqui vinhas.
Rogai, agora, oh mãe querida Brinca na poeira, brinca!
E (quando quiser a sorte) Aprecio a tua presença só com os olhos.
Na hora da nossa morte Vale mais a pena ver uma coisa sempre pela primeira vez que
Quando nos fugir a vida. conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
Avé Maria, tão pura, E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.
Virgem nunca maculada,
Ouvide a prece tirada O modo como esta criança está suja é diferente do modo como as
No meu peito da amargura. outras estão sujas.
Brinca! Pegando numa pedra que te cabe na mão,
Sabes que te cabe na mão.
Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior?
Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta.
O MONSTRENGO

O mostrengo que está no fim do mar


Na noite de breu ergueu-se a voar,
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»

«De quem são as velas onde me roço?


De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou, imundo e grosso,
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»

Três vezes do leme as mãos ergueu,


Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»

ALFONSO DE ALBUQUERQUE

De pé, sobre os países conquistados


desce os olhos cansados
de ver o mundo e a injustiça e a sorte.
Não pensa em vida ou morte,
tão poderoso que não quer o quanto
pode, que o querer tanto
Calcara mais do que o submisso mundo
sob o seu passo fundo.
Três impérios do chão lhe a Sorte apanha.
Criou-os como quem desdenha.
Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio. Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.

Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas.
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo.
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora.
Na distância subitamente impossível de percorrer.

Nossa Senhora Vem, dolorosa,


Das coisas impossíveis que procuramos em vão, Mater-Dolorosa das Angústias dos
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela. Tímidos,
Dos propósitos que nos acariciam Turris-Eburnea das Tristezas dos
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas Desprezados,
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto. Mão fresca sobre a testa em febre
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos... dos humildes.
Vem, e embala-nos, Sabor de água sobre os lábios secos
Vem e afaga-nos. dos Cansados.
Beija-nos silenciosamente na fronte, Vem, lá do fundo
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam Do horizonte lívido,
Senão por uma diferença na alma. Vem e arranca-me
E um vago soluço partindo melodiosamente Do solo de angústia e de inutilidade
Do antiquíssimo de nós Onde vicejo.
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha Apanha-me do meu solo,
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos malmequer esquecido,
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida. Folha a folha lê em mim não sei que
sina
Vem soleníssima, E desfolha-me para teu agrado,
Soleníssima e cheia Para teu agrado silencioso e fresco.
De uma oculta vontade de soluçar, Uma folha de mim lança para o
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena. Norte,
E todos os gestos não saem do nosso corpo Onde estão as cidades de Hoje que
E só alcançamos onde o nosso braço chega, eu tanto amei;
E só vemos até onde chega o nosso olhar. Outra folha de mim lança para o
Sul,
Onde estão os mares que os
Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao
Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que
talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e
a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e
quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca
verei,
Ao Oriente budista, bramânico,
sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não
temos.
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? —
Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente
e mandando tudo...
Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé antepé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.

Vem, Noite silenciosa e extática,


Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,

A lua começa a ser real.”

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