Você está na página 1de 9

Os Bramanas

por Solange Lemaitre em O Hinduísmo (1958), Editora Flamboyant, São Paulo.

____________________________________________________________

Os Bramanas, comentários em prosa, interpretam o Brama, sob o ponto de vista teológico


por meio de, símbolos, e tratam da ciência sagrada explicando-lhe os ritos e as formulas.
Espécies de repertórios de observações teológicas ou rituais, os Bramanas compõe-se de
duas matérias: 1) as prescrições, ou vidhis e 2) as explicações ou arthavadas.

A cada Veda se prende um ou vários bramanas, com exceção do Atharva-Veda que só


possui um. Dos que pertencem ao Rig-Veda o mais importante é o Aitareyabramana, mas
o mais considerável como fundo e como extensão é o Catapathabramana ou Bramana dos
cem caminhos, que consiste em cem leituras. Ele se prende ao Yajur-Veda branco e
comenta o rito da lua Cheia ou Nova, as oferendas vegetais, o sacrifício do soma e de
modo especial o Agnicayana e o agni-rahasya ou "mistérios (do altar) do Fogo". [L. Renou,
Inde classique, pág. 290].

Ele diz, por exemplo, que tal operação sacrifical para a apresentação do soma pede o canto
de tal mantra, ao mesmo tempo que o elogio do deus destinatário. Um brâmane deve
sempre velar pela boa ordem de cerimônia que é celebrada ao ar livre, diante de uma
camada de erva. Nenhum templo, nenhuma preparação. Sob essa simplicidade exterior
esconde-se o poder do ato sacrifical oferecido ao deus invocado ou a qualquer outra
personificação do Brama.

Encontram-se ainda nessas obras técnicas, que formam de algum modo a ortodoxia do
Veda, legendas cosmogônicas, narrações épicas, combates entre os deuses e anedotas
relativas às deusas, ou, como nos bramanas do Sama-Veda, comentários sobre os sámans
(melodias).

Não se pode fixar uma data para os bramanas. Parece que eles se estendem por um
período de duração assaz longa. Nota-se grande diferença de forma entre os mais antigos
bramanas e os mais modernos. O seu estilo se distingue pela originalidade do conjunto, e
não pode ser comparado a nenhuma das outras literaturas indianas.

Extrato dos Bramanas, Cat. BR II 3, 3, 15 [Inde clas. L. Renou, pág. 293];


A Agnihotra (oblação do fogo) é em verdade a nau que leva ao céu; desta nau que leva ao
céu, os fogos ahavaniya e garhapatya são os dois flancos; o piloto é aquele que oferece o
leite. Quando ele se dirige para o este, ele impele então sua nau para o este, na direção do
mundo celeste; com ela ele conquista o mundo celeste. Subindo ali do norte, ela o conduz
ao mundo celeste; mas se ele permanecer ali, ao chegar do sul, será como alguém que
chegasse quando a nau já estivesse em alto mar; ele ficaria para trás, ele estaria fora dela.

Eis a célebre lenda do dilúvio que será retomada pela epopéia.- (Cat. Br. 1, 8, 1) [Renou,
ibid, pág. 294];

Certa manhã trouxeram a Manu água para suas abluções, como se faz hoje para a ablução
das mãos. E enquanto ele se lavava, veio-lhe um peixe às mãos. O peixe disse-lhe:
"Guarda-me; eu te salvarei. - De que me salvarás? - Eis que um dilúvio vai engolir todas as
criaturas: é disso que eu te salvarei. - Mas de que modo posso guardar-te? - O peixe disse:
Enquanto somos pequeninos, corremos muitos riscos de morte: peixe come peixe.
Guardar-me-ás num vaso, e depois, quando eu estiver grande, cavarás uma fossa e me
guardarás ali, e depois quando eu estiver muito grande, atirar-me-ás ao mar: então, eu já
estarei livre dos riscos da morte. No ano tal e tal virá um dilúvio; prepara uma nau e vela
sobre mim. Quando o dilúvio cair, embarcar-te-ás na nau e eu te salvarei. Manu guardou o
peixe e depois o levou para o mar. No ano predito pelo peixe Manu preparou uma nau e
velou; quando veio o dilúvio ele subiu para a nau. O peixe acorreu; fixou ao seu tentáculo
as amarras do barco e atravessou assim a montanha do norte. E disse: eis que te salvei;
prende teu barco a uma árvore, mas cuida de não seres cortado pela água enquanto
estiveres na montanha. À medida que a água for abaixando tu irás descendo. Ele assim o
fez. A montanha do norte chama-se ainda "a descida de Manu". Ora, o dilúvio levou todas
as criaturas; só Manu ficou neste mundo.

Os Aranyakas

Os Aranyakas ou "textos da floresta" são obras muito secretas (rachasya) que se recitavam
fora da comunidade, no isolamento da floresta, em razão - ao que se supõe - do poder
eficacíssimo de seus mantras.
"Ao Rig-Veda pertencem dois Aranyakas: o Aitareya e o Cankhayana, que se referem aos
Bramanas do mesmo nome; eles trazem um comentário sobre a “Agnihotra" interior e
algumas fórmulas místicas.
"Do Yajur-Veda possuímos o Taitriyaranyaka (comentado por Sayana) , em 10 prapathaka:
mistura de versículos (notadamente sobre o sacrifício do cavalo e do homem sobre o altar
do fogo) e de prosa (rito pravargya, etc.) que é uma seqüência das Samhitas e dos
Bramanas do mesmo nome. Uma parte desse Aranyaka é imputada pela tradição à escola
Katha, da qual procedem também fragmentos de outro Aranyaka”.
"Do Yajus Branco (o livro terminal do Catapatha-bramana é um Aranyaka cujo nome
subsiste no título do Upanichade que o completa) temos a Bradaranyaka-Upanichade, que
inclui igualmente o pravargya”.
Enfim, para o Sarna-Veda, temos na própria Samhita o Aranyakasamhita e o Aranyagana;
possuímos além disso o começo da Chandogyaupanichade". [L. Renou, Inde classique,
pág. 295].

Os Upanichades

Aos Bramanas sucederam textos de lirismo filosófico e imagens poderosas, que


incorporam de maneira notável os principais axiomas da metafísica universal. São os
Upanichades, cuja elaboração se estendeu por mais de um milenário e se desenvolveu de
modo muito ativo.

Eles são verdadeiras ramagens novas que se ajuntam às antigas, esclarecendo-as e as


enriquecendo. Sempre em uso nos seminários em coleções de folhas avulsas, eles formam
a última parte dos Livros Sagrados da Çruti (Revelação).

Os Upanichades exprimem em metáforas as mais altas inquietudes humanas e


respondem-nas a seguir sob a forma de apólogos ou de poemas de inspiração cósmica.
.Eles são a base do esoterismo ortodoxo e refletem em atitudes intelectuais diversas o
monismo puro de que estão todos impregnados. Em geral muito breves, eles prolongam as
especulações anteriores, definindo e acentuando o tema "átman-brama", que é a busca da
Unidade no seio da diversidade.

Entre os Upanichades atualmente conhecidos, cento e oito representam "a essência de


todos os Upanichades", mas há dez deles que são de particular importância: o lsha-up, o
Kena-up, o Katha-up, o Mundaka-up, o Atareya-up, o Brihad-up, o Chandogya-up, o
Taititiya-up, o Mandukya-up, o Prashna-up.

O Credo dos Upanichades é o famoso tat tvam asi que se traduz por: Tu és Isto. Isto é o
Absoluto, o Brama: palavra deslumbrante pelas virtualidades que ela encerra.

Brama, palavra ritual e mágica do sacrifício no Veda, encarna a Divindade Suprema. O


espírito não pode compreender Brama. Ele é transcendente, imanente, além de toda a
limitação, de toda a definição. Mas cada ser traz em si uma parcela de Brama: o átman.

Impassível, imutável, eterno, esse átman, que não se deve confundir com o eu pessoal, faz
parte de Brama como o sal desaparece na água salgada;

“Joga este sal na água e volta a mim amanhã cedo”. Assim fez Cvetaketu. “Seu pai disse-
lhe”:
Traze-me o sal que jogaste ontem na água. Cvetaketu olhou e já não o viu. fole se tinha
dissolvido.
- Toma um pouco da superfície dessa água e prova-a. Que dizes?
- Está salgada.
- Toma agora do meio e prova-a. Que dizes?
- Está salgada.
- Prova-a de novo e volta para junto de mim. fole assim o fez e disse: "Está sempre
salgada".
- Assim, em verdade, meu amigo, não percebes o Ser, e entretanto ele está aí. É por esta
essência sutil que tudo é animado; ela é a única realidade; ela é o átman, e tu mesmo,
Cvetaketu, tu és Isto.
[Chandogya-up 12, 1].

O Chandogya disse ainda:


Este átman que reside no coração é menor que um grão de arroz, menor que um grão de
cevada, menor que um grão de alpiste, menor que o germe que está no grão do alpiste;
este átman que reside no coração é ao mesmo tempo maior que a terra, maior que a
atmosfera, maior que o céu, maior que todos os mundos reunidos.
(Ibid., 111, 14).
É raro ver a metafísica exprimir-se em linguagem tão poética e feita de imagens tão
concretas, que buscam a sua beleza na fonte eternamente fresca da natureza.

Observando o visível, os hindus descobriram o invisível que é a sua Causa, e


estabeleceram suas primeiras noções filosóficas ao ritmo, do Universo, reconhecido por
eles idêntico nas coisas do céu e da terra. Os astros, os elementos, o alimento dos homens
lhes servem de medida. Toda a comparação se baseia no solou na lua, no trigo ou no sal.

Só a noção da Divindade é sugerida sem precisão, porque o átman que é uma sua faísca só
pode ser definido por negações: inatingível, ele não pode ser apreendido; indestrutível, ele
não pode ser destruído; soberanamente livre, ele não pode prender-se a nada. Ele é
inacessível a todo o sofrimento, a toda a inquietude. Espécie de subconsciente primordial e
ao mesmo tempo promessa de suprema bem-aventurança, o átman, que se acha além da
consciência humana, só pode ser atingido pela meditação intuitiva, pela concentração
mental ou pelas práticas yógicas. O sábio que o descobriu, já não conhece o mundo
exterior nem sua própria personalidade.

"Menor do que o menor, maior do que o maior, o átman repousa oculto no coração da
criatura. O sábio, libertado do apetite e apaziguado os seus sentidos, percebe em si mesmo
a majestade do átman. Apesar de imóvel, o átman viaja para longe, e sem se mover ele
percorre o espaço. A dor do sábio cessa a partir do momento em que ele conhece o átman
imenso, que penetra por toda a parte, sem corpo em meio dos corpos, estável no seio das
coisas transitórias. Esse átman não pode ser atingido nem pela ciência, nem pelo estudo;
ele só pode ser conhecido pelo próprio átman. O átman do sábio reconhece então a sua
própria essência."
(Kathaka-up. i, II, 20-23).

Toda a parcela do Brama é pura e sem defeito, livre de quaisquer manchas ou taras. Os
upanichades ensinam que o átman experimenta passageiramente alguma pena e prazer,
mas que não o mata o golpe que o fere, porque, embora habitando um corpo mortal, ele é
imortal.

Desembaraçado de sua veste carnal, ele se funde no Brama que é o Absoluto, o akaça, ou
éter que enche o mundo. O akaça, espécie de vibração universal que envolve todos os
seres, Vida antes que espaço, permanece intraduzível. Ora, esse Absoluto, exterior ao
homem, é aquele mesmo que está dentro do coração. É o pleno, o imutável. Aquele que o
sabe goza de uma felicidade sem limites. Toda a base do Veda, da tradição hindu ou do
Sanátana Dharma repousa nesta Revelação sagrada.

Sendo o akaça exterior ao homem aquele mesmo que está na cavidade do seu coração, o
átman é idêntico ao Brama. A essência da alma, ou átman, deve pois se identificar com a
essência do Universo, ou Brama. Os textos védicos insistem nesta tendência da alma a
voltar para o foco donde saiu.

"Como um fogo ardente expele para todos os lados milhares de faíscas de natureza
idêntica, assim as inumeráveis criaturas pro- cedem do Ser indestrutível e para ele
voltam."
(Mundahya upan., II, I, I).

O Brama existe na personalidade humana como a imagem do sol num lençol d’água. A
água se agita ou se corrompe e obscurece temporariamente a imagem que ela reflete, mas
sem que a imagem se altere na realidade. Sua origem a impede, salvo nas aparências, de
sofrer as modificações que a cercam.

O fim do Sanátana Dharma realiza-se na identificação do átman com Brama. É o mokcha,


ou Libertação.

Alguns dados sobre a ordem cósmica formam um conjunto imponente por sua exposição
em diálogos célebres. O diálogo é uma forma freqüente nos Upanichades. Um deles tem
por interlocutores Yajnavalkya, brâmane ilustre, e Gargi, mulher dialética e excepcional
pela consideração que lhe era testemunhada. O diálogo começa admitindo as águas como
a trama do universo, porque, segundo o Veda, as Águas primordiais simbolizam a
matéria.

Então Gargi interroga Yajnavalkya:

- Yajnavalkya, disse ela, se as águas são a trama com que tudo foi tecido, com que trama
foram as mesmas águas tecidas?
- Com o ar, Ó Gargi.
- Com que trama foi o ar tecido?
- Com os mundos do espaço, ó Gargi.
- Com que trama foram tecidos os mundos do espaço?
- Com os mundos do sol, ó Gargi.
- Com que trama foram tecidos os mundos do sol?
- Com os mundos da lua, ó Gargi.
- Com que trama foram tecidos os mundos da lua?
- Com os mundos das constelações, Ó Gargi.
- Com que trama foram tecidos os mundos das constelações?
- Com os mundos dos deuses, ó Gargi.
- E os mundos dos deuses, com que trama foram eles tecidos? - Com os mundos de Indra,
ó Gargi.
- E os mundos de Indra, com que trama foram eles tecidos? - Com os mundos de Prajápati,
ó Gargi.
- E os mundos de Prajápati, com que trama foram eles tecidos? - Com os mundos de
Brama, ó Gargi.
- E os mundos de Brama, com que trama foram eles tecidos? Ele respondeu: ó Gargi, não
perguntes demais; toma cuidado, porque tua cabeça pode arrebentar. Perguntas além de
uma divindade acima da qual nada mais há a perguntar. Não perguntes de- mais, ó Gargi.
E Gargi calou-se,
[Brihadaranyaka upa].

Entre os upanichades mais importantes é preciso citar ainda o Isa-upanichade, assim


intitulado porque esta é a palavra com que ele começa. Ele é talvez o primeiro upanichade
versificado, e figura à frente de todas as coleções, além de fazer parte de um dos Samhitas
do Yajur-Veda.

Esse curto poema põe o princípio de um soberano que "reveste" o universo e declara que é
preciso antes de tudo conhecer o "Eu" ou átman como sendo o Eu universal ou brama.
Para o homem que sabe realizar sua transcendência as oposições desaparecem, ele se
liberta do devir e do não-devir;

1) "Deve ser revestido do Senhor tudo o que se move na (terra) movente! Goze do que é
concedido por ele, mas não cobices o bem alheio!"
3) "Há mundos assim chamados demoníacos, cobertos de espessas trevas. Neles entram,
ao morrerem, todos aqueles que destruíram o seu Eu."
7) "Aquele em quem o Eu se tornou todas as essências - para quem o reconhece, - que
vertigem então, e que sofrimento haverá para quem considera a unidade?"
10) "(O átman-brama) é outro, diz-se o devir, outro, diz-se o não-devir: assim aprendemos
dos sábios que no-lo explicaram."
15) "Vento, sôpro imortal e o corpo que se acaba em cinzas! Om, Inteligência, lembra-te!
Lembra-te do mundo! Lembra-te dos atos! (Identidade do vento e do sopro vital) ".
[Trad. L. Renou].

O primeiro versículo do Isa-upanichade foi ajuntado por Mahatma Gândi à sua primeira
prece cotidiana desta forma:

"Tudo o que existe no mundo é sujeito à mudança; envolve de divino cada uma de tuas
percepções; é pela renúncia que te enriquecerás (espiritualmente); não cobices, portanto, o
bem de quem quer que seja (porque nada te pertence)”.

No Kena upanichade, a análise da Consciência forma o tema central, ensinando como


descobrir essa consciência no mais íntimo do ser Esse upanichade prende-se ao Sama-
Veda. Ele pergunta quem criou o mundo dos fenômenos, indicando o mistério insondável
que se encontra por detrás dele. Ninguém o pode compreender.

"Isso não é compreendido por aqueles que pretendem conhecê-lo, porque eles o tomam
por um objeto de conhecimento, como se tratasse de uma coisa qualquer do mundo
exterior."
"Isso é compreendido por aqueles que sabem que não o conhecem, porque eles realizam
que Isso é sempre o sujeito e que Isso jamais poderá tornar-se objeto de conhecimento."
[Trad. Swami Siddhesvarananda].

O Mundaka Upanichade pertence ao Atharva-Veda e foi considerado como uma das


fontes do Bhagavad Gita.

Escrito em verso, e admitindo o valor do ritualismo, esse upanichade recomenda o


conhecimento do Brama pelo do Purucha (forma cósmica do brama), e o conhecimento do
átman (forma do brama no homem). Assim será ultrapassado o ciclo dos renascimentos. O
Mundaka upanichade é posterior ao Chandogya upa.
"O fogo é sua cabeça, a lua e o sol seus olhos, os pontos cardeais seus ouvidos, e sua
palavra os Vedas revelados. O vento é o seu sopro e todo o universo o seu coração. A terra
provém de seus pés, e ele é a alma interior de todos os seres."
[Mundaka II, I, trad. L. Renou].
"A sílaba OM é o arco, o átman é a flecha, o brama o alvo, segundo se ensina. É preciso
atingi-lo sem se deixar distrair. É preciso tornar-se semelhante à flecha."
"Quando o vidente vê "aquele que tem a cor do ouro", o criador, o Senhor, o Ser, matriz do
brama, então, sem mancha, sacudindo em sua sabedoria o bem e o mal, ele chega à
identidade suprema”.

O mandukya upanishade inspirou uma das obras mais originais da filosofia indiana: os
karika de Gaudapada (talvez do século VIII). Enquanto monista absoluto, Gaudapada é
um dos mestres do Vedanta.

"Assim como, destruídos os vasos, os espaços que estavam nos vasos são incorporados no
espaço total (do mesmo modo aqui, os Gita no atman)."[Trad. Renou, Karika, III]
[...]
hinduismoantigo

Você também pode gostar