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Introdução à Textualidade – Nelson Barros da Costa (Universidade Federal do Ceará)

ESQUEMA GERAL DOS FATORES DE COESÃO


nominais
- pro-formas verbais
- substituição numerais
(anafórica ou adverbiais
catafórica)
REFERENCIAL - elipse

- repetição do mesmo item


lexical
- reiteração - sinonímia
- hiponímia e hiperonímia
- expressões nominais
definidas
- nomes genéricos

- recorrência de
termos
- paralelismo
RECORRENCIAL - recursos fonológicos - segmentais
- suprassegmentais

- tempo anterior / posterior


SEQUENCIAL - temporal - tempo simultâneo
- disjunção - tempo contínuo ou
progressivo
- condicionalidade
- causalidade /
explicação
- mediação / finalidade
- conformidade
- conjunção
- contrajunção
- conclusão
- comparação
- especificação /
exemplificação
- correção /
redefinição
- pausas / sinais de
pontuação

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Introdução à Textualidade – Nelson Barros da Costa (Universidade Federal do Ceará)

UNIDADE II

A Coerência textual

Coesão e coerência

Afirmamos na Unidade II que em um texto há elementos responsáveis pelo


estabelecimento de sua unidade sintático-semântica. Parte desses elementos foi
denominada de elos de coesão textual ou elos coesivos e dissemos que sem eles
uma produção simbólica corre o risco de não ser interpretada como um texto e sim
como uma sequência de frases isoladas, sem função comunicativa. É a opinião de
Halliday & Hasan, que afirmam ser a coesão a responsável pelo que os autores
chamaram de textualidade. No entanto, lê-se em Koch & Travaglia (1989) o
seguinte:

"Halliday e Hasan (1976) afirmavam que o que dá


textura é a coesão. Hoje já não se aceita mais isto, pois
essa afirmação não se sustenta empiricamente, visto
que há muitos textos sem coesão que apresentam
coerência e são classificados pelos falantes como textos.
Marcuschi (1983) dá exemplo de texto sem coesão mas
com coerência, e exemplo de texto com coesão, mas sem
coerência e sem textura. Observe o texto "A Pesca", de
Affonso Romano de Sant'Anna, transcrito em (3), o
qual não tem coesão, mas é visto como um texto
coerente com uma unidade de sentido dada pelo
próprio título:

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(66) A Pesca ( Affonso Romano de Sant'Anna)


o anil
o anzol
o azul
o silêncio
o tempo
o peixe

a agulha
vertical
mergulha
a água
a linha
a espuma
o tempo
a âncora
o peixe
a garganta
a âncora
o peixe

a boca
o arranco
o rasgão

aberta a água
aberta a chaga
aberto o anzol

aquelíneo
ágilclaro
estabanado

o peixe
a areia
o sol"

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Discordamos dos autores quando afirmam que o texto acima não tem coesão.
Considerando coesão do modo como a consideramos, é fácil perceber que o que o
texto está desprovido de certos tipos de elos coesivos mas possui outros. De fato, o
texto possui poucos elos de coesão referencial tal como os definimos no capítulo III.

No entanto, o texto é rico em elos de coesão de diversos tipos. Enumeremo-los:


1. Recorrência de termos:
- A sequência o peixe repete-se 3 vezes;
- A sequência o tempo repete-se 1 vez;
- A sequência a âncora repete-se 1 vez;
- O adjetivo aberta repete-se 2 vezes.
2. Recorrência de estruturas (paralelismo):
- Na maioria dos versos repete-se a estrutura [art. + subst.];
- No antepenúltimo verso repete-se a estrutura [adj. + art. + subst.];
- No penúltimo repete-se uma estrutura morfológica composta por adjetivos
aglutinados.
3. Há mesmo casos de coesão referencial reiterativa:
- No antepenúltimo verso, temos "aberta a água" e depois "aberto o anzol".
4. E se considerarmos que o conceito de coesão de Halliday & Hasan envolve
também o que ele chamam de colocação, isto é, o uso de palavras do mesmo
campo semântico, pode-se considerar que a ocorrência de palavras como "anzol",
"peixe", "água", "linha" e outras que fazem parte do campo semântico "pesca"
constitui forte elemento de coesão.
Assim, não é verdade que o texto de Sant'Anna não tenha coesão.
Questionamos também uma avaliação quantitativa da coesão de um texto. Na nossa
opinião, basta que um tipo de coesão ocorra para que consideremos um texto coeso.
No caso da letra de Djavan ("Obi"), por exemplo, a recorrência de elementos
fonológicos é suficiente para tornar o texto coeso. Os títulos também podem cumprir
sozinhos função coesiva assim como a primeira ou última frase do texto. O primeiro
caso ocorre na poesia de Drummond que temos abaixo:
(67) Sub

reptício
merso
consciente
liminar
marginal
desenvolvido
dividido
alterno
serviente
vencionado
delegado
versivo
lunar
tegmine fagi
(ANDRADE, C.D. Boitempo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.)

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O segundo caso ocorre no texto que se segue:

(68) Triste poema para uma mulher criança. Ugo Giorgetti, uma
festa de humor bandido. Premiação. 'Flores', única unanimidade.
O arraso de Magic Slim. Tite de Lemos. Diana Pequeno em nova
fase canta autores inéditos. "Mattogrosso", a ecoópera de
Philip Glass. Duplas feitas e desfeitas. Retratos de Cher
quando jovem. Ney Matogrosso, a aguda inteligência trabalha ao
vivo. Quando o bem sempre triunfava sobre o mal. Romances do
tempo em que se perdia a cabeça. Autor que inspirou Machado.
Reflexo de São Paulo em Amsterdã. Estas são algumas das
matérias do Caderno 2 de "O Estado de São Paulo", hoje,
20/06/1989. (Apud KOCH & TRAVAGLIA, 1993)

Mas as autoras têm razão na medida em que são comuns textos como o que
se segue, praticamente sem coesão:

(69) Eldorado (A A/374)


Fino acabamento
150m² c/ 3 suítes
c/ closet, ampla sala
c/ varanda, granito,
grupo gerador, 2 vagas
serviço completo. Sinal
R$ 12 mil. Restante em
32 parcelas de R$ 1 mil
mais intermediárias. Fone/
fax: 221.5500 Creci 502-J.

(Classificados do Diário do Nordeste, 14/03/1995)

A partir do conceito de coesão que até agora formulamos, conceito este que
exclui elementos textuais que remetem ao contexto, a sequência acima não possui
coesão, mas não pode deixar de ser considerada um texto, visto que resulta da
intenção comunicativa de um usuário da língua.

É também um fato que nem toda sequência coesa pode ser aceita como texto.
Observe, por exemplo, o exemplo abaixo, já visto anteriormente:

(70) João vai à padaria. A padaria é feita de tijolos. Eles são


caríssimos. Também os mísseis são caríssimos. Os mísseis são
jogados no espaço. Aliás, segundo a teoria da relatividade o
espaço é curvo. A geometria Rimaniana dá conta desse fenômeno
(MARCUSCHI, apud KOCH & TRAVAGLIA, 1993).

Apesar de apresentar elos coesivos corretamente empregados, a esta sequência


não é possível atribuir-lhe textualidade devido à falta de unidade temática.

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Mas se o texto é resultado sempre de uma situação comunicativa, é evidente


que ele não poderia em si mesmo resolver-se enquanto elemento de significação.
Noutras palavras, os textos não são artefatos puramente linguísticos que significam
em si e por si mesmos. Enquanto elementos produzidos em situação de
comunicação, o texto deve obedecer a princípios de interpretabilidade e de
aceitabilidade. Ou seja, ele deve ser coerente. O que chamamos portanto de
coerência consiste na propriedade que os textos possuem de cumprirem
eficientemente sua função comunicativa. A coerência tem a ver, portanto, com a
capacidade de uma certa sequência linguística fazer sentido para os usuários. Este
sentido, como dissemos, não é imanente ao texto, mas construído no processo de
interação. Esta construção, segundo diversos teóricos, dá-se cooperativamente na
medida em que o falante quase sempre faz o máximo de esforço para manifestar
eficientemente, através de sua língua, sua intenção comunicativa e que o ouvinte
fará todo o possível para estabelecer um sentido para a sequência que recebe, por
mais absurda e sem sentido que ela possa parecer (Koch & Travaglia, 93).

Assim é que uma sequência como...

(71) Nessas noites de morna calmaria

Nessas noites de morna calmaria


Nem mais, nem menos: tudo tal e qual.
O avião que veio da bruma
Farto de sol e de areia
Sabe-me a sonho
Tem cinco letras apenas

Deu agora meio-dia; o sol é quente


De saudades vou morrendo
Ó minha terra na planície rasa
Perdi-me dentro de mim
Um pouco mais de sol - eu era brasa
No fim de tudo dormir.

... pode ser tida e havida como texto e até objeto de interpretação sofisticada, muito
embora ela não passe de uma mistura de fragmentos de diversos poemas
portugueses.
Do mesmo modo, para sequências descoesas e aparentemente absurdas
como...

(72) Júlia está com dor de dentes. Dois e dois são quatro.

...é possível quase sempre imaginar um contexto em que elas se tornem coerentes.

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Em resumo, embora possamos afirmar que é a coerência que dá textualidade


a uma sequência linguística, o fato é que não existe texto coerente em si mesmo,
dado que a coerência depende da situação comunicativa.
A cerca da coesão, podemos dizer que ela não é nem suficiente (o texto pode
ser coeso, mas não ser coerente) nem indispensável (o texto pode não ser coeso,
mas ser coerente em virtude de outros fatores). Enfim, na construção da coerência, a
coesão é apenas um dos fatores (quiçá o mais importante) que a auxiliam.

Fatores de coerência

São, portanto, muitos os fatores que influenciam no funcionamento


comunicativo de uma sequência linguística, ou seja, que determinam o nível de
aceitabilidade e interpretabilidade, em uma palavra: a coerência, dos textos.

São em número de doze os fatores de coerência normalmente levantados pela


maioria dos autores. Tais fatores, considerados aqui separadamente para fins
didáticos, atuam conjuntamente no estabelecimento do sentido de um texto.
Problemas em qualquer um deles podem tornar uma sequência linguística mais ou
menos coerente.

Examinemos cada um deles.

1. Elementos linguísticos.

São considerados elementos linguísticos todos aqueles que se encontram na


estrutura superficial dos textos. Além dos aspectos macrossintáticos responsáveis
pela coesão do texto, elementos como a modalização, as marcas de temporalidade,
a concordância, a regência, a subordinação e a coordenação, a ordem das palavras,
a estrutura morfossintática, o componente lexical, os componentes de significação e
argumentatividade dos elementos lexicais, os componentes pontuacionais,
ortográficos e de formatação (se escrito) e fonético-fonológicos segmentais e
suprassegmentais (se falado), etc.

Embora seja ilusão pensar que se pode compreender um texto com base
apenas na organização gramatical das palavras e frases, é evidente que os
elementos linguísticos têm grande importância para o estabelecimento da coerência.
Assim é que o acúmulo de transgressões às convenções da língua pode tornar o
texto incoerente ou com um baixo grau de coerência.

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(73) Violência social

A violência em nosso pais esta a cada dia que passa se


acentuando mais, isto devido a diversos fatores podemos citar o
fator econômico a ganância do homem pelo dinheiro, o desemprego
dos pais, a falta de moradias, alimentação e educação impedem o de
criar seus filhos dignamente dai a grande violencia da sociedade o
menor abandonado, que sozinho sem ter uma mão firme que o
conduza pela vida, parte para o crime o roubo na tentativa de
sobreviver.
A falta de terra para os nossos índios contribuindo assim para
extinção da espécie. A matança sem controle de nossos animais, a
poluição de nossas aguas pelas industrias e a destruição de nossas
matas em nome de um progresso uma tecnologia importada a custo
do sacrifício economico financeiro de nosso povo. O homem se
esqueceu dos fatores basicos para sua sobrevivência em sociedade,
a alimentação o trabalho e educação que cada dia que passa se
torna mais dificil, a sua historia é o oxigenio que é fator principal
para a sobrevivencia de qualquer ser, tudo isto pelo dinheiro pela
maquina que o apaixona tornando o cego para necessidades
primarias da vida
O homem caminha para sua propria destruição.
(Redação escolar in VAL, M. G. C. Redação e
Textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1991)

Faça um levantamento dos tipos de problemas linguísticos que esta redação apresenta
explicitando-os detalhadamente e em seguida proponha uma reestruturação do texto
procurando ao máximo conservar as ideias e as palavras originais.

2. Conhecimento de mundo.

Leia o texto abaixo e tente, com as suas palavras, apresentar o seu conteúdo:

(74) Na inflamação, a resposta vascular (vasodilatação e


aumento de permeabilidade - APV) resulta da ação de mediadores
como histamina (HIST), bradicinina (BK), serotonina e
prostaglandina (PG), sendo este um agente potencializador dos

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anteriores e permissivo de outros, como C5a e LTB4. O acúmulo


de neurófilos nos tecidos inflamados tem papel importante no
APV induzido por LTB4 e C5a. Ratos Wistas fêmeas foram
divididas em 3 grupos de 3 animais. No 1º grupo foi injetado
por via i.d. LTB4 (39ng/sítio) e FMLP (43ng/sítio), agentes
quimiotáticos para neutrófilos, 2 h antes do sacrifício.
HIST(1μg/sítio) e BK(1μg/sítio) foram injetadas, também i.d.,
30 min. antes. O 2º grupo recebeu o mesmo tratamento anterior,
sendo os mediadores injetados concomitantemente à PGI2,
(1μg/sítio, i.d.). O 3º grupo foi tratado da mesma forma que o
2º, sendo que os ratos haviam sido pré-tratados com um agente
leucopênico, a vimblastina (VB, 2mg/kg, i.p.) 5 d antes. Azul
de Evans (AE, 25mg/kg, e.v.) foi injetado e.v. 1 h antes do
estímulo. Os animais foram sacrificados, tiveram a pele do
dorso rebatida e os halos formados pelo extravasamento do AE
foram observados, fotografados, recortados e colocados em tubos
com fornamida para a extração do AE e avaliação em
espectofotômetro a 600nm. Os resultados mostraram que PG
potencializou o APV induzido por todos os estímulos:
HIST(21,5%), BK (230%), LTB4 (20%), FMLP (226%). A depleção de
leucócitos, embora de apenas 20%, bloqueou o APV induzido por
LTB4 (64%) e FMLP (78%) sem modificar o APV provocado por HIST
E BK.
(III Encontro de Iniciação à Docência da UFC, 1994)

Como se pode notar com a leitura do texto acima, o conhecimento que temos
acerca do que um texto diz desempenha papel decisivo em nossa avaliação de sua
coerência. Esse conhecimento é adquirido através de nossas experiências de vida e
é armazenado em nossa memória em blocos denominados modelos cognitivos. Os
principais tipos de modelos cognitivos são:

a) Os frames - conjuntos de conhecimentos armazenados na memória debaixo de


um certo "rótulo", sem que haja qualquer ordenação entre eles (KOCH &
TRAVAGLIA, 1993). Os frames podem dizer respeito a temas do senso comum
(carnaval, festa de aniversário, Natal, etc.) como também a temas mais ou menos
especializados (Imposto de Renda, computador, eleições, etc.). No caso do exemplo
(74), uma compreensão satisfatória do texto pelo leitor, que o levasse a encará-lo
como coerente, depende do frame "a inflamação e as substâncias químicas", de
caráter altamente especializado e por isso só conhecido pelos estudantes e
profissionais da área. Este frame incluiria os elementos resposta vascular,
vasodilatação, tecidos inflamados, mediadores, histamina, bradicinina,
serotonina, prostaglandina, agente potencializador, injeção, agentes
quimiotáticos, agente leucopênico, etc. necessários para a compreensão do texto
(74), além de uma série de outros necessários para a compreensão de outros textos
sobre o mesmo tema.
b) Os esquemas - conjuntos de conhecimentos armazenados em sequência
temporal ou causal (id. ibid.). Assim, fazem parte de nosso conhecimento de mundo
não só elementos desordenados pertencentes a um campo temático, mas também

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sequências de elementos que nos permitem prever a ordem de acontecimentos


quando determinados esquemas são ativados. Tomando um exemplo de Fávero
(op.cit.), imaginemos que uma mãe ouve de sua filha que chega da escola a
seguinte frase:

Hoje passei meia hora do recreio na diretoria.

Além dos frames "recreio" (brincadeiras, lanche, correria, algazarra, etc.) e


"diretoria" ( diretora, birô, bandeira do Brasil, máquina de escrever, sofá,
advertência, espera, sermão, etc.), a mãe ativará componentes de seu
conhecimento de mundo que lhe permite formar em sua mente uma sucessão de
acontecimentos anteriores e posteriores ao fato comunicado pela filha. Trata-se
justamente do esquema que pode ser expresso da seguinte forma:

Minha filha infringiu uma regra de comportamento => foi enviada


à diretoria => ficou de castigo e perdeu parte do recreio =>
vai se justificar dizendo que não teve culpa, que não foi a
única => vai dizer que foi suspensa => vou precisar ir amanhã
falar com a diretora => etc.

Este esquema pode ser confirmado, mas pode ser rompido pela sequência da
conversação:

_Era aniversário da diretora e a professora pediu que fôssemos


à diretoria para cumprimentá-la.

A ruptura de esquemas pode ser utilizada propositalmente a fim de tornar o


texto lúdico ou simpático aos olhos do leitor, daí seu uso frequente em anedotas,
textos de publicidade e narrativas policiais:
(75)

O PRÍNCIPE CHARLES
E A PRINCESA DIANA
ESTÃO NO BRASIL.
Com a participação da BBC de Londres no Jornal da CBN, O príncipe Charles, a
Princesa Diana e toda a Família Real chegam mais rápido ao Brasil. Política,
economia, artes e espetáculos, esportes, conflitos, os fatos internacionais mais
importantes são transmitidos ao vivo, direto de Londres. Basta sintonizar o Jornal da
CBN, das 6 às 9 horas, todos os dias. Um privilégio que a CBN, a rádio que toca
notícia, oferece aos ouvintes.

BBc CBN
de Londres A RÁDIO QUE TOCA NOTÍCIA

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No texto (74), o conhecimento do esquema relativo ao processo de pesquisa


científica é útil à compreensão do texto.

c) Os planos - são modelos cognitivos sobre como agir para atingir determinados
objetivos. Refere-se ao conhecimento de estratégias que ajudam na interpretação
das intenções do falante/escritor.
(76)
CASAL NEURAS (GLAUCO)

(http://lh3.ggpht.com/_uxce7sQQ_eA/TSGBplA_jKI/AAAAAAAAPH4/JvQqUWmv75c/2011%20-
%20Casal%20Neuras%20%28Glauco%29.gif. Acessado em 12/09/2019)

d) Os scripts - São conjuntos de conhecimentos relativos a comportamentos e


papéis estereotipados culturalmente de indivíduos, personagens e seres do mundo
real ou textual. Ao lermos um romance policial, por exemplo, temos certas
expectativas acerca do comportamento de determinados personagens como o
detetive, seus auxiliares, o mordomo, os suspeitos, etc. Ao lermos um texto que
relata acontecimentos da Idade Antiga, o mesmo ocorre em relação ao
comportamento dos reis, religiosos, sábios, mulheres, etc. Comportamentos
linguísticos também entram como parte dos scripts. Espera-se de um padre, por
exemplo, que ele diga determinadas palavras e não outras.

e) Os cenários - o conhecimento relativo aos contextos e situações se constitui em


um fator importante para a compreensão de textos (principalmente escritos). Por
outro lado, o bom êxito da compreensão do cenário depende da eficácia do
escritor/falante em ativar cenários apropriados. Os modos descritivos de uso da
língua cumprem esta função e seu bom uso vai determinar a boa compreensão do
texto.

f) As superestruturas - referem-se ao conhecimento da forma global do texto, que


define sua ordem e as relações entre os seus fragmentos. Esta superestrutura pode
ser descrita em termos de categorias e regras de formação. O texto narrativo, por
exemplo, possui as seguintes categorias de formação: Situação - complicação - ação
ou avaliação - resolução - moral ou estado final. Já o texto argumentativo as
categorias seriam: (tese anterior) - premissas - argumentos (contra-argumentos) -
(síntese) - conclusão (nova tese). A ordem em que estas categorias estão colocadas
são definidas pelas regras de formação. Desse modo, a estrutura geral do texto
(superestrutura) determina a descontinuidade, incompletude estrutural e
informacional do texto (FÁVERO, op. cit.).

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Assim, quando se lê ou escuta um texto narrativo, espera-se uma


superestrutura adequada que é a própria razão de ser de sua elocução. Quando
essa expectativa é rompida, o texto é questionado pelo leitor/ouvinte. Isto é
frequente em narrativas orais infantis e narrativas escritas por crianças ou
adolescentes em situação artificial de comunicação. Veja-se a redação abaixo de um
aluno da 8a. série:

(77) Um Belo Passeio

Um certo dia, sai para passear. Como de costume desci a ladeira


num dos subúrbios da grande capital do Rio de Janeiro.
Desci pela rua principal daquele pequeno bairro e segui em direção a
zona sul, até o jardim zoológico e fui cada vez mais me aprofundando
naquele órgão público.
Cheguei perto dos ursos polares que despresavam os poucos kilos de
gelo jogados na sua jaula num humilde chão do polo, e os pobres leões
saudosos de sua terra.
O sol brilhava e eu adimirava, do esplendor daquele domingo.
Segui até o por tão para ir em direção ao abismo da cidade.
(REDAÇÃO ESCOLAR)
Este texto não apresenta a esperada complicação que geralmente estão nos textos
narrativos. Poder-se-ia perguntar ao autor o porquê do texto se ele não apresenta
nada de "interessante" ou "fora do normal", isto é, algo que justifique sua
enunciação. Isto acontece porque na escola escreve-se sem propósito comunicativo.
Observe também a incoerência a nível de esquema: Uma vez que o autor nos dá a
idéia inicial de que desce ladeiras e "se aprofunda" em direção às jaulas do
zoológico, espera-se que ele ao invés de "ir em direção ao abismo da cidade" ele
suba rumo à cidade.

3. O conhecimento partilhado.

Examinando-se qualquer conversação, percebe-se que muitas informações


deixam de ser ditas porque são partilhadas entre falante e ouvinte tornando-se
desnecessário explicitá-las. Os elementos textuais que remetem ao conhecimento
partilhado entre os interlocutores constituem a informação "velha" ou dada, ao passo
que tudo aquilo que for introduzido a partir dela constituirá a informação nova trazida
pelo texto (KOCH & TRAVAGLIA, 1993).

A coerência de um texto irá depender portanto do equilíbrio entre informações


novas e informações velhas. Um texto com excesso de informações novas é
ininteligível, ao passo que um texto somente com informações velhas é irrelevante.
Ambos seriam rejeitados ou questionados pelos seus ouvintes/leitores. Observe
como no texto abaixo o tema em questão é abordado de modo lúdico:

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(78) A Vaguidão Específica

- Maria, ponha isso lá fora em qualquer parte.


- Junto com as outras?
- Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e
querer fazer qualquer coisa com elas. Ponha no lugar do outro
dia.
- Sim senhora. Olha, o homem está aí.
- Aquele de quando choveu?
- Não, o que a senhora foi lá e falou com ele no domingo.
- Que é que você disse a ele?
- Eu disse para ele continuar.
- Ele já começou?
- Acho que já. Eu disse que podia principiar por onde quisesse.
- É bom?
- Mais ou menos. O outro parece mais capaz.
- Você trouxe tudo pra cima?
- Não senhora, só trouxe as coisas. O resto não trouxe porque a
senhora recomendou para deixar até a véspera.
- Mas traga, traga. Na ocasião, nós descemos tudo de novo. É
melhor senão atravanca a entrada e ele reclama como na outra
noite.
- Está bem, vou ver como.

(FERNANDES, Millôr - Trinta anos de mim mesmo, Círculo do Livro, pág. 77.
Apud KOCH & TRAVAGLIA, 93)

4. Inferências.

Trata-se da operação pela qual, utilizando-se de seu conhecimento de mundo,


o receptor (leitor/ouvinte) de um texto estabelece uma relação não explícita entre
dois elementos desse texto que ele busca compreender e interpretar (KOCH &
TRAVAGLIA, 1993).
Por uma questão de economia, a maioria dos textos que lemos omitem uma
série de informações pressupondo que os leitores serão capazes de inferi-las, isto é,
de relacioná-las com elementos que estão explícitos.
Leia o texto abaixo somente uma vez e responda as questões que se seguem:

(79) João chegou atrasado no restaurante. Enfrentara um


trânsito difícil no caminho e já eram quase duas horas. No
entanto, estava sem fome, mas apesar disso pediu o prato que
lhe pareceu mais interessante. Como fazia calor, ocupou a mesa
mais próxima da janela, sob um ventilador. Quando a comida João
chegou, pensou que não ia ter a menor condição de comê-la, mas
de repente veio-lhe uma súbita fome. Uma hora depois, João
pagou a conta e saiu apressado de volta ao trabalho.

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a) João chegou de carro ao restaurante?


b) João foi servido por um garçom?
c) O ventilador que estava acima da mesa de João estava ligado?
d) João comeu a comida que lhe foi servida?

5. Contextualização.

Os fatores de contextualização são aqueles que situam intencionalmente o


texto em uma situação comunicativa determinada. São fatores de contextualização,
presentes principalmente em textos escritos, elementos como a data, o local, a
assinatura, elementos gráficos, timbre, etc. Tais fatores ajudam na coerência na
medida em que restabelecem o sentido daqueles elementos que remetem ao
contexto comunicativo os quais Halliday & Hasan denominam de exofóricos.

Assim, o texto...

(80) Estarei aqui na próxima semana neste mesmo horário.

...terá sua coerência mais definida se acima dele houver:

(80a) Alunos de Linguística de Texto (turma 01),

... e se abaixo dele houver:

(80b) Prof. Nelson, 16/09/2019, 14:00

Os elementos gráficos também são importantes fatores de coerência nos textos


escritos. Observe este mesmo texto que você está lendo. Verifique que os exemplos
estão sempre seguidos de números entre parênteses e em caracteres de forma e
tamanho diferentes dos outros fragmentos do texto que têm caráter explanatório.

Há também aqueles elementos contextualizadores chamados perspectivos ou


prospectivos que avançam expectativas sobre o conteúdo e a forma do texto. O
título, o nome do autor, o início do texto, são elementos desse tipo.

O título, por exemplo, é um importante guia de expectativas no processo da


leitura. A ruptura dessa expectativa pode determinar a rejeição do texto, fato comum
em situação de sala de aula. Mas essa ruptura pode ser intencional em textos
humorísticos e jornalísticos. Vejamos o exemplo abaixo:

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(81)

Também o nome do autor pode trazer implicações para a previsão de seu conteúdo
e para a aceitação de um texto. Se sabemos, por exemplo, que um determinado
texto é de Carlos Drummond de Andrade, lemos esse texto "com outros olhos" do
que se soubéssemos que seu autor é uma pessoa desconhecida.

O início do texto, por sua vez, pode trazer informações sobre o conteúdo e a
forma do texto. Se o texto começa pela expressão "era uma vez", por exemplo,
certamente esperamos que esse texto conte uma história infantil.

6. Situacionalidade.

Muito próxima do fator anterior, a situacionalidade diz respeito às marcas que


todo texto apresenta da situação de produção. Visto que todo texto tem sua
coerência estabelecida em uma situação comunicativa definida, situação esta que
pode ser mediata ou imediata, o cálculo do sentido de um texto vai depender do
conhecimento da situação comunicativa em que aquele texto foi produzido.

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(82)Companheiros, estamos aqui, solidariamente com os


trabalhadores da classe trabalhadora pra unificar essa força...
pra unificar essa força, certo. Esse pessoal..., a classe
empresária (eu tô aqui nervosa, viu gente). A classe empresária
ficando em cima da gente, trabalhadores... mas precisamos
unificar nossa luta... pra derrubar essa classe burguesa que
está aí, mamando em cima de nós, trabalhadores, que temos
filhos nas empresas e que essas empresas não dão creche, não
dão salário justo para nós trabalhadores. Estou aqui
representando o Centro Popular da Mulher de Fortaleza... Muito
obrigada, minha gente, e desculpe porque eu estou nervosa.
(Discurso político, 1°/05/1995)

Há nesse discurso marcas contextuais que permitem prever seu


conteúdo e sua forma (o início "companheiros" e sua entonação) e há
principalmente marcas situacionais mediatas e imediatas evidentes.
Marcas situacionais imediatas:
- "...estamos aqui..."; "...eu tô aqui nervosa, viu gente...";
"estou aqui representando o Centro Popular da Mulher de
Fortaleza..."; "...Muito obrigada, minha gente, e desculpe porque eu
estou nervosa".
Marcas situacionais mediatas:
- "...solidariamente com os trabalhadores da classe trabalhadora pra
unificar essa força..."; "...a classe empresária ficando em cima da
gente, trabalhadores..."; "...essa classe burguesa que está aí...";
"...essas empresas não dão creche, não dão salário justo para nós
trabalhadores..."

7. Informatividade.

Diz respeito ao grau de previsibilidade da informação contida em um texto. Um


texto será tanto menos informativo, quanto mais previsível ou esperada for a
informação por ele trazida. Assim, se contiver apenas informação previsível ou
redundante, seu grau de informatividade será baixo (ex. 83); se contiver, além da
informação esperada, informação não-previsível, terá um grau maior de
informatividade (ex. 83a); se, por fim, toda a informação do texto for inesperada ou
imprevisível, ele terá um grau máximo de informatividade, podendo, a primeira vista,
parecer incoerente por exigir do receptor um grande esforço de decodificação
(ex.83b) (KOCH & TRAVAGLIA, 1993).

(83) O oceano é água.


(83a) O oceano é água. Mas ele se compõe, na verdade, de uma
solução de gases e sais.
(83b) O oceano não é água. Na verdade, ele é constituído de
gases e sais.

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Observe que a informatividade, embora esteja bastante relacionada com a


questão do conhecimento partilhado, não se confunde com este fator. Enquanto
este último diz respeito à presença ou ausência de feed back entre emissor e
receptor diante da mensagem, a informatividade diz respeito à distribuição da
informação no texto. De acordo com seus propósitos comunicativos, o emissor pode
dar ênfase a esta ou aquela informação, omitindo ou explicitando uma ou outra,
variando assim o grau de informatividade de seu texto de modo a facilitar ou a
dificultar o cálculo do sentido. Ele pode então construir um texto mais ou menos
hermético, mais ou menos vago, mais ou menos polissêmico conforme seu desejo
de ser claro ou obscuro, de estimular ou de desafiar a leitura.

(84) Próximo a Boston, no Massachusetts Institute of Technology


- onde leciona Noam Chomsky, um dos papas da linguística
contemporânea -, a paulista Luciana Storto está investigando a
hipótese de que um índio karitiana, qualquer um dos 170 que
lutam para sobreviver numa reserva a 100 quilômetros de Porto
Velho, tem estruturas mentais (os "universais linguísticos")
como as de Karl Marx. Explicando melhor: esses universais são
regras inatas, impressas no cérebros de qualquer ser humano
desde seu nascimento. Eles fazem com que uma criança até os 4
anos de idade, não importa onde seja, tenha capacidade de falar
qualquer uma das 5000 línguas humanas. O conceito é endossado
atualmente por praticamente todos os linguistas. Luciana
descobriu que, nas formas históricas de construir as frases dos
karitiana, especialmente na posição dos verbos em relação a
sujeito e predicado dentro da oração, há um fenômeno - que
Chomsky havia batizado na literatura especializada como V2 -
típico da língua alemã.
(Veja, 30/11/1994)

8. Focalização.

Todo escritor/falante constrói seu mundo textual segundo a perspectiva de seus


interesses e/ou conhecimento de mundo, assim como, da mesma forma, o
leitor/ouvinte processa qualquer texto. A melhor comunicação
(expressão/compreensão) se dará quando há coincidência de perspectiva entre
escritor/falante e leitor/ouvinte na construção do entendimento. A focalização
consiste então na ênfase que fazem emissor e receptor em certos aspectos
conteudísticos de um texto conforme seus interesses ou conhecimento de mundo.

Desse modo, se um arquiteto, por exemplo, produz um texto descrevendo uma


cidade, certamente ele focalizará aspectos diferentes dos que seriam focalizados por
um ecologista. Haverá problemas de compreensão se o ecologista for ler o texto do
arquiteto sem deslocar sua perspectiva, isto se não houver crenças compartilhada
entre ambos. Seria o caso se o arquiteto fosse ligado à especulação imobiliária, mas
não o seria se fosse um arquiteto preocupado com soluções alternativas de

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ocupação do espaço urbano. No primeiro caso, pareceria um absurdo para o


ecologista uma descrição de uma cidade que não desse a devida ênfase em seus
espaços naturais ou em suas condições climáticas e ambientais.
Na literatura, o autor pode construir dentro do texto diferentes perspectivas que
se superpõem às suas. São famosas as letras de Chico Buarque que apresentam
uma perspectiva feminina das relações quotidianas. Mas vejamos este texto de
Vinícius de Moraes que, além de focalizar as relações econômicas na sociedade
capitalista sob o ponto de vista de um operário da construção civil, tematiza a própria
divergência de interpretação do mundo por parte de diferentes agentes sociais:

(85) O operário em construção

(Vinícius de Moraes)

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe


num momento de tempo todos os reinos do mundo.
E disse-lhe o Diabo: – Dar-te-ei todo este poder e a
sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a
quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será
teu. E Jesus, respondendo, disse-lhe: – Vai-te,
Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor
teu Deus e só a Ele servirás. Lucas, cap. V, vs. 5-8.

De fato, como podia


Um operário em construção
Era ele que erguia casas Compreender por que um tijolo
Onde antes só havia chão. Valia mais do que um pão?
Como um pássaro sem asas Tijolos ele empilhava
Ele subia com as casas Com pá, cimento e esquadria
Que lhe brotavam da mão. Quanto ao pão, ele o comia...
Mas tudo desconhecia Mas fosse comer tijolo!
De sua grande missão: E assim o operário ia
Não sabia, por exemplo Com suor e com cimento
Que a casa de um homem é um templo Erguendo uma casa aqui
Um templo sem religião Adiante um apartamento
Como tampouco sabia Além uma igreja, à frente
Que a casa que ele fazia Um quartel e uma prisão:
Sendo a sua liberdade Prisão de que sofreria
Era a sua escravidão. Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

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Mas ele desconhecia E olhando bem para ela


Teve um segundo a impressão
Esse fato extraordinário:
De que não havia no mundo
Que o operário faz a coisa
Coisa que fosse mais bela.
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia Foi dentro da compreensão
À mesa, ao cortar o pão Desse instante solitário
O operário foi tomado Que, tal sua construção
De uma súbita emoção Cresceu também o operário.
Ao constatar assombrado Cresceu em alto e profundo
Que tudo naquela mesa Em largo e no coração
– Garrafa, prato, facão
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
– Era ele quem os fazia
Pois além do que sabia
Ele, um humilde operário,
– Exercer a profissão
Um operário em construção.
– O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
Olhou em torno: gamela A dimensão da poesia.
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela E um fato novo se viu
Casa, cidade, nação! Que a todos admirava:
Tudo, tudo o que existia O que o operário dizia
Era ele quem o fazia Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Ele, um humilde operário
Do edifício em construção
Um operário que sabia
Que sempre dizia sim
Exercer a profissão.
Começou a dizer não.
Ah, homens de pensamento E aprendeu a notar coisas
Não sabereis nunca o quanto A que não dava atenção:
Aquele humilde operário
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Soube naquele momento!
Que sua cerveja preta
Naquela casa vazia
Era o uísque do patrão
Que ele mesmo levantara
Que seu macacão de zuarte
Um mundo novo nascia Era o terno do patrão
De que sequer suspeitava. Que o casebre onde morava
O operário emocionado Era a mansão do patrão
Olhou sua própria mão Que seus dois pés andarilhos
Sua rude mão de operário Eram as rodas do patrão
De operário em construção Que a dureza do seu dia

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Era a noite do patrão


Que sua imensa fadiga Sentindo que a violência
Era amiga do patrão. Não dobraria o operário
E o operário disse: Não! Um dia tentou o patrão
E o operário fez-se forte Dobrá-lo de modo vário.
Na sua resolução. De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
Como era de se esperar E num momento de tempo
As bocas da delação Mostrou-lhe toda a região
Começaram a dizer coisas E apontando-a ao operário
Aos ouvidos do patrão. Fez-lhe esta declaração:
Mas o patrão não queria – Dar-te-ei todo esse poder
Nenhuma preocupação E a sua satisfação
– "Convençam-no" do contrário Porque a mim me foi entregue
– Disse ele sobre o operário E dou-o a quem bem quiser.
E ao dizer isso sorria. Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Dia seguinte, o operário Portanto, tudo o que vês
Ao sair da construção Será teu se me adorares
Viu-se súbito cercado E, ainda mais, se abandonares
Dos homens da delação O que te faz dizer não.
E sofreu, por destinado Disse, e fitou o operário
Sua primeira agressão. Que olhava e que refletia
Teve seu rosto cuspido Mas o que via o operário
Teve seu braço quebrado O patrão nunca veria.
Mas quando foi perguntado O operário via as casas
O operário disse: Não! E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Em vão sofrera o operário Produtos, manufaturas.
Sua primeira agressão Via tudo o que fazia
Muitas outras se seguiram O lucro do seu patrão
Muitas outras seguirão. E em cada coisa que via
Porém, por imprescindível Misteriosamente havia
Ao edifício em construção A marca de sua mão.
Seu trabalho prosseguia E o operário disse: Não!
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento – Loucura! – gritou o patrão
Da construção que crescia. Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

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E um grande silêncio fez-se E o operário ouviu a voz


Dentro do seu coração De todos os seus irmãos
Um silêncio de martírios Os seus irmãos que morreram
Um silêncio de prisão. Por outros que viverão.
Um silêncio povoado Uma esperança sincera
De pedidos de perdão Cresceu no seu coração
Um silêncio apavorado E dentro da tarde mansa
Com o medo em solidão. Agigantou-se a razão
Um silêncio de torturas De um homem pobre e esquecido
E gritos de maldição Razão porém que fizera
Um silêncio de fraturas Em operário construído
A se arrastarem no chão. O operário em construção.

Veja no link abaixo uma encenação desse poema: https://www.youtube.com/watch?


v=kwPPB35ZVMg

9. Intertextualidade

Ligada ao conhecimento de mundo, a intertextualidade é importante para o


estabelecimento da coerência na medida em que, muitas vezes, para o
processamento cognitivo de um texto é necessário recorrer-se ao conhecimento
prévio da forma e do conteúdo de outros textos.
A intertextualidade formal se dá quando em um texto há a presença de estilo,
expressões, formatos, entonações de outros textos.

(86)
Terezinha de Jesus Terezinha
Cantiga Popular (Chico Buarque)

Terezinha de Jesus O primeiro me chegou


De uma queda, foi ao chão Como quem vem do florista
Acudiram três cavalheiros Trouxe um bicho de pelúcia,
Todos os três, chapéu na mão Trouxe um broche de ametista
Me contou suas viagens
O primeiro foi seu pai E as vantagens que ele tinha
O segundo, seu irmão Me mostrou o seu relógio,
O terceiro foi aquele Me chamava de rainha
Que a Tereza deu a mão Me encontrou tão desarmada
Que tocou meu coração
Terezinha levantou-se Mas não me negava nada,
Levantou-se lá do chão E assustada, eu disse não

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E sorrindo disse ao noivo


Eu te dou meu coração O segundo me chegou
Como quem chega do bar
Da laranja, quero um gomo Trouxe um litro de aguardente
Do limão, quero um pedaço Tão amarga de tragar
Da morena mais bonita Indagou o meu passado
Quero um beijo e um abraço E cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta
Me chamava de perdida
Me encontrou tão desarmada
Que arranhou meu coração
Mas não me entregava nada,
E assustada, eu disse não.

O terceiro me chegou
Como quem chega do nada
Ele não me trouxe nada
Também nada perguntou
Mal sei como ele se chama
Mas entendo o que ele quer
Se deitou na minha cama
E me chama de mulher
Foi chegando sorrateiro
E antes que eu dissesse não
Se instalou feito um posseiro
Dentro do meu coração.

Já a intertextualidade de conteúdo se dá quando o autor se apropria explícita


ou implicitamente do conteúdo de outros textos. No primeiro caso trata-se da
citação, que na escrita vem geralmente marcada por traços gráficos (aspas, negrito,
itálico, etc.) e expressões de referência do tipo "como afirma...", "segundo...", "de
acordo com..." acompanhadas do nome do autor e de outras indicações. É comum
em textos científicos e acadêmicos:

(79) ...Antônio Houaiss escrevia em 1960, p. 73, citado por


Castilho, 1973: "a realidade nua e crua é que, malgrado o
número ponderável de estudos gramaticais, não sabemos
efetivamente o que é e como é a língua portuguesa, sobretudo no
Brasil, e assistimos estarrecidos ao divórcio crescente entre a
norma gramatical canônica e a criação literária viva."

(GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder, 1987)

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Mas pode também ocorrer em textos orais e literários:

(80)...E como já dizia Jorge Maravilha,


prenhe de razão:
mais vale uma filha na mão
do que dois pais sobrevoando.
(Letra de música de Chico Buarque)

Quando não há indicação da fonte do texto citado tem-se a intertextualidade de


conteúdo implícita. Caberá ao leitor/ouvinte, neste caso, através de seu
conhecimento de mundo (do próprio texto citado ou de informações sobre o mesmo)
descobrir e detectar a intenção do emissor ao retomar o que foi dito por outrem.
Seria o próprio caso da frase anterior, de autoria de Koch & Fávero (1993), se nesta
frase a fonte não tivesse sido revelada. É comum também na música popular:

(81) Língua
(Caetano Veloso)
Gosto de sentir a minha língua roçar
A língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar
A criar confusões de prosódias
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior
E deixa os portugais morrerem à míngua
Minha pátria é minha língua
Fala, Mangueira!
Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer, o que pode esta língua?
(…)
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem
(Ouça essa canção através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=fsqoCBfucYo)

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10. Intencionalidade e aceitabilidade.

São fatores essenciais para o estabelecimento da coerência textual. O primeiro


refere-se ao modo como os emissores se utilizam de textos a fim de obter efeitos
desejados. Eles irão se utilizar de todos os recursos que estão ao seu alcance para
atingir seus objetivos comunicativos. Portanto, é necessário que forneçam condições
para que o receptor (re)construa o sentido do seu texto.
Por outro lado, os ouvintes estão quase sempre empenhados em construir o
sentido dos textos por eles recebidos. Eles vão se utilizar de seus conhecimentos de
mundo e, movidos pelo seu desejo de captar o sentido da mensagem, procurarão,
por mais absurdo que pareça o texto, dar-lhe uma interpretação coerente. Diz-se,
então, que os ouvintes aceitam ou procuram aceitar os textos que lhes são
remetidos esforçando-se para calcular-lhes o sentido, atribuindo-lhes interpretações
a partir das pistas fornecidas pelo emissor. Trata-se, portanto, da aceitabilidade, a
contraparte da intencionalidade.

(82) Uma jovem francesa em uma feira nordestina:


- Comment s’appèle ça? (Apontando para um melão)
- Claro que essa pele sai, minha senhora, senão como é que a gente ia comer?
- Comment?
- Com a mão é meio difícil, minha senhora, é melhor com uma faca!
- Je ne comprend pas!
- Olhe, se não vai comprar é melhor ir indo embora!

11. Consistência.

Diz respeito à condição de qualquer texto manter em seu desenvolvimento


temático um princípio de não contradição entre as frases. Assim, o sentido das
frases ou dos enunciados de um texto devem ser mutuamente consistentes, isto é,
um não pode negar o outro, sob pena de o texto ser rejeitado ou ter sua coerência
questionada. O depoimento de acusados de crime à justiça ou à polícia tem a
consistência como o aspecto central a ser avaliado pelos investigadores e membros
do júri. Textos como o que se segue com certeza terão sua coerência questionada:

(83) João Carlos vivia em uma pequena casa construída no alto


de uma colina árida, cuja frente dava para leste. Desde o pé da
colina se espalhava em todas as direções, até o horizonte, uma
planície coberta de areia. Na noite em que completava 30 anos,
João, sentado nos degraus da escada colocada à frente de sua
casa, olhava o sol poente e observava como a sua sombra ia
diminuindo no caminho coberto de grama. De repente, viu um
cavalo que descia para a sua casa. As árvores e as folhagens
não o permitiam ver distintamente; entretanto observou que o

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cavalo era manco e tinha uma pequena marca na orelha esquerda.


Ao olhar de mais perto verificou que o visitante era seu filho
Guilherme, que há 20 anos tinha partido para alistar-se no
exército, e, em todo este tempo, não havia dado sinal de vida.
Guilherme, ao ver seu pai, desmontou imediatamente, correu até
ele, lançando-se nos seus braços e começando a chorar.

12. Relevância.

A relevância refere-se à exigência de unidade temática entre as frases ou


enunciados de um texto. Os elementos de um texto devem, assim, ser encarados
como partes de um todo, de modo que sejam interpretados como "falando sobre um
mesmo assunto". Na conversação, os falantes têm mais liberdade para transgredir
esse princípio. Têm-se desse modo a digressão que, no entanto, só é tolerada
quando devidamente marcada por expressões específicas como: "por falar nisso...",
"a propósito...", "por falar nisso...", "mudando de assunto...", etc. Tais expressões
são denominadas de marcadores de digressão. Outra circunstância em que a
digressão é permitida é aquela em que fatores pragmáticos intervêm na
conversação:

(83) ...É o tipo da coisa: geralmente quando eu tô em casa eu


estou sempre fazendo alguma coisa de trabalho, e nunca consigo
tempo pra essas coisas de casa... quer dizer... varrer casa,
lavar roupa... pode deixar esses jornais aí mesmo que eu tô
trabalhando com eles... pois é, aí eu preciso de uma pessoa pra
me ajudar todos os dias...
(Texto oral)

O excesso de digressão pode ser sintoma de uma doença psíquica, o Transtorno do


Deficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Mas pode ser usado em composições satíricas
como a que você ouve no seguinte vídeo: https://www.youtube.com/watcmh?v=xVuH4GNFsKk.

Esperamos ter deixado claro que a coerência não é uma propriedade do texto
em si mesma. Ela é construída na interação entre falante/escritor e ouvinte/leitor em
situações comunicativas concretas. É importante lembrar também que os fatores de
coerência vistos até então foram examinados isoladamente por motivos didáticos.
Evidentemente, eles atuam em conjunto no estabelecimento da coerência. Vejamos,
para finalizar esta apostila, um esquema proposto por Fávero & Koch (89) sobre a
relação texto-interlocutores-fatores de coerência:

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BIBLIOGRAFIA

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