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Brasil
2019
2
PREFÁCIO
A estar correto Hegel quando diz que “a coruja de Minerva só alça voo ao anoitecer”, ou
seja, que “nenhuma sociedade é capaz de se identificar conceitualmente”1, essas páginas nem
deveriam existir. Como o próprio significado etimológico da palavra indica, qualquer reflexão
só é possível depois de uma completa flexão, de sorte que refletir sobre um tempo que ainda
não acabou (e para ser exato, mal começou) é incorrer em algum tipo de futurologia ou
impostura intelectual. Contudo, não seja esse o nosso caso. O objetivo dessa investigação não
é explicar o tempo atual nem aquilo que se convencionou chamar Pós-modernidade, assunto
por demais sujeito a controvérsia e à indeterminação; por ela perspectiva-se apenas entender o
fenômeno religioso desse tempo de transição, que foi chamado por Kolakowski de “a revanche
do sagrado”2, em artigo que antecipou todo o interesse acadêmico no retorno da religião.
O ‘apenas’ aqui funciona como conectivo e não deve ser tirado desse contexto. Entender
a religião de nosso tempo nunca será ‘apenas’, como não seria em quaisquer outro contexto.
Mas a dificuldade singular que nos desafia é o fato de se tratar de uma religião que nasce de
uma esfinge de diversas cabeças, como é o caso da Pós-modernidade, cujas características
múltiplas são evidentes pela maneira variegada como é denominada: além de Pós-modernidade
ou Pós-modernismo, Sociedade de risco, Sociedade do Conhecimento, Sociedade Pós-
industrial, Capitalismo Tardio, Modernismo reflexivo, etc. A religião dessa raiz será de igual
modo um fenômeno multidimensionado, que pode ser abordado por diversas perspectivas:
econômica, social, cultural, ideológica, etc.
1
Leszek Kolakowski. Modernity on endless trial (Chicago: Chicago University Press, 1997), p. 3.
2
Idem. “The revenge of the sacred in secular culture. In Modernity on endless trial, p. 63.
3
desistir, mas duas coisas me convenceram a continuar: minha teimosia e a relevância do tema.
Não é possível permanecer indiferente à uma ambiência cultural e religiosa plural que atinge o
âmago do Cristianismo fingindo-lhe simpatia e receptividade.
O que lhes apresento aqui é um estudo amplo da matéria que por sua natureza complexa
obriga a um diálogo com outras áreas do conhecimento, cujo interesse vai muito além do que
geralmente se rotula como religião. A própria configuração holística da sociedade
contemporânea e a condição difusa e dispersa da religião nesses tempos, que a faz mais
encontrável em outros espaços e não nas próprias instituições presumidamente consideradas
seu lugar de abrigo e salvaguarda, ou seja, igrejas. Nesse contexto, a filosofia, a sociologia da
religião, a psicologia social, tornam-se disciplinas obrigatórias para quem está a caça de algo
que se apresenta com identidade tão amorfa a ponto de enganar por muito tempo os especialistas
que achavam que a religião estava em processo de recessão no Ocidente.
O projeto parece ambicioso demais? Contudo, não temos nem a sombra da intenção de
esgotar o assunto. Ao invés, o que intentamos é fornecer um guia teórico-prático para o
enfrentamento da ideologia pós-moderna, algo que fica a meio caminho entre um manual e um
tratado; não sendo nem uma coisa nem outra, mas agregando suas qualidades e seus vícios, as
qualidades sendo a manuseabilidade e a aplicabilidade de um manual; os vícios decorrem
exatamente do fato de o tema ter uma amplitude que vai além do adequado para este formato,
de sorte que em muitos trechos desdobram-se discussões muito específicas, que julguei
indispensáveis para entender o Tardo Capitalismo, a exemplo da discussão sobre a genealogia
filosófica da epistemologia fraca; não só pela importância da questão para a sustentação
ideológica da Pós-modernidade, mas também porque fundamenta a hermenêutica pós-moderna
que afeta diretamente o Cristianismo tradicional e sua própria hermenêutica. Ou seja, apesar da
abrangência da temática dessa obra, ela também não é a rigor um tratado, um trabalho
sistemático, o que significa várias coisas, a primeira e mais importante é que o leitor poderá aí
encontrar repetições (algumas até irritantes) que não pude evitar. Por exemplo, a segunda parte
do segundo capítulo e a segunda parte do terceiro. Parte da culpa não é minha. A epistemológica
da Pós-modernidade é mais práxis do que episteme e como a segunda parte do terceiro capítulo
trata de sua ética quase-religiosa não há como evitar que muitas vezes se fale as mesmas coisas.
Contudo, essa práxis e essa ética quase-religiosa, como a terminologia indica, relaciona coisas
diferentes: a filosofia e a religião, e, portanto, têm perceptivas e aplicações diversas.
4
Como já se pode de perceber, fiz questão de aqui fazer com que a Filosofia ou
Epistemologia e a Sociologia da Religião se pusessem à serviço da pregação, como não poderia
ser diferente em uma obra que se vê como prolegômenos de uma teologia. E a pregação sendo
a razão de ser de qualquer teologia, essa não pode se resumir a um empreendimento meramente
teórico, porque em o fazendo já terá deixado de ser teologia e se tornado outra coisa, quem sabe
se transformado em filosofia ou Sociologia como a ‘teologia’ de Troeltsch. Não gostaria de ver
meu trabalho interpretado dessa forma; não é esse seu objetivo e nem essa sua função.
Resumindo, todos os caminhos desse livro levam à busca de elementos para a constituição de
um guia para uma pregação apropriada e eficaz nesses dias, nos quais vivem aqueles que se
tornaram nosso principal campo missionário: os nossos vizinhos ‘sem religião’. Satisfazer a
exigência desse Ide àqueles que estão mais próximos e que, não obstante, estão muito distantes,
é a raison d’etre desse livro, por isso o resto merece apenas uma dedicação suficiente.
5
Sumário
1. Capítulo I
1. Introdução.............................................................................................................................5
1.a. Definição provisória de Pós-modernismo............................................................5
1.b. A Pós-modernidade e o Cristianismo....................................................................9
2. Capítulo II
2. As raízes ocultas da ideologia Pós-moderna.......................................................................16
2.a. Apresentando o problema..................................................................................16
2.b. Em busca da debilidade alheia............................................................................21
2.c. Buscando defender-se da própria debilidade.....................................................27
2.d. A epistemologia fraca e suas contradições.........................................................34
2.d.1. O anti-fundacionismo pós-moderno...................................................39
2.d.1.a. Crítica à verdade-doutrina...................................................43
a. Jacques Derrida................................................................44
b. Roland Barthes................................................................48
2.d.1.b. Crítica à verdade-arché.......................................................58
2.d.1.c. Crítica à verdade-objetividade.............................................66
2.d.1.d. Crítica à verdade-fato..........................................................74
2.d.2. O anti-fundacionismo ético-político....................................................84
2.e. Conclusão............................................................................................................89
3. Capítulo III
As religiões e a quase-religião da Pós-modernidade..............................................................91
3.a. A mudança de endereço da religião...................................................................91
3.a.1. Redesenhando os contornos da religião.............................................94
3.b. Massificação-individuação da sociedade..........................................................108
3.c. Religião de mercado e religião no mercado......................................................118
3.c.1. Religião de mercado..........................................................................119
3.c.2. Religião no mercado..........................................................................135
3.d. Dois casos paradigmáticos: a IURD e o Santo Daime........................................139
3.d.1. Sincretismo........................................................................................140
3.d.2. Ecletismo...........................................................................................147
3.e. Outras categorias religiosas pós-modernas......................................................156
3.e.1. Paródia..............................................................................................156
3.e.2. Ecletismo e inventividade religiosa...................................................163
3.e.3. Uma generalizada erosão de fronteiras............................................170
3.e.3.a. Erosão das fronteiras de classe.........................................173
3.a.3.b. Erosão de fronteiras institucionais....................................175
3.f. Quase-religiões pós-modernas..........................................................................177
3.f.1. Definições..........................................................................................180
3.f.2. Decifrando a quase-religião pós-moderna........................................183
3.f.2.a. A liberdade sempre é um valor?........................................188
3.f.2.b. As minorias sempre têm razão?.........................................195
4. Capítulo IV 199
Palavras Finais......................................................................................................................199
5. Referências Bibliográficas.....................................................................................................20
6
7
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO
3
Tim Woods. Beginning Postmodernism (Manchester, U.K.: Manchester University Press, 1999), p. 9.
8
Em suma, sem querer simplificar aquilo que tem a complexidade como própria essência
e é por isso merecedora de muito mais espaço do que aqui é-lhe oferecido, deve-se a princípio
tentar entender como se agrupam as teorias interpretativas que se debruçam sobre a Pós-
modernidade, seus principais debatedores e onde essa investigação se insere nesse quadro de
discussões. De início diga-se que nossa perspectiva é tradicional, mas não é um tradicionalismo
cego e reducionista que clássica tudo sob o rótulo da inverdade pura e simples. As
reivindicações dos pós-modernos têm sua pertinência; algumas de suas críticas, também. É
preciso separar o trigo da pragana e delinear bem a linha fronteiriça entre repudiável e o
aceitável de uma ideologia que, ademais, já faz parte da cosmovisão da maioria das novas
gerações. Em suma, queremos considerar com seriedade o que dizem os pós-modernos.
A essas duas correntes principais é ainda possível agregar uma terceira que é formada
pelos críticos que negam a existência de um movimento pós-moderno específico e autônomo,
vendo-o apenas como extensão ou superlativação da Modernidade, como uma consequência
natural das contradições do Capitalismo; ou ainda como uma crítica, uma sombra da
Modernidade. Essa condição de crítica e sombra, no entanto, é seu maior trunfo. Como vive
4
Pauline M. Rosenau. Postmodernism and Social Science. Insights, inroads and intrusions (Princeton, NJ:
Princeton University Press, 1992), p. 15.
5
Ibidem, pp. 15-16.
9
uma ética lugar-comum, tão óbvia que as pessoas já pensam que sabem viver conforme a
vontade de Deus sem precisar consultar o que diz a Escritura que parece mesmo ter se tornado
supérflua. Muitos cristãos estão divididos quanto a como enfrentar o desafio pós-moderno. Há
cristãos que são propensos a adotar-lhe a linguagem e categorias ideológicas, articulando-as
mesmo com o Evangelho, p. ex. quando defendem o direito das minorias e a inclusão social dos
excluídos (LBGT, p. ex.) – sua ideologia lhes parece tão natural que é simplesmente espantoso
que alguém não a adote. Há aqueles que são contra qualquer aproximação, vendo em suas
propostas um perigo para a integridade da fé cristã6. Há ainda os que o ignoram, considerando-
o mais um modismo teológico passageiro.
Por sua própria natureza anti-dogmática promovem uma ambiência relativista que induz
as pessoas a uma adesão irrefletida ao seu programa ético-político, a princípios axiológicos que
por vezes contradizem a doutrina cristã. Não podemos, portanto, afastar a função apologética
desse empreendimento, tendo em vista o grande estrago que o ácido do ceticismo pós-moderno
e o mel de sua recepção à espiritualidade causam ao Evangelho. É preciso restaurar a confiança
do contemporâneo na razoabilidade da mensagem cristã e isso é uma operação delicada, já que
o Pós-modernismo em muitos aspectos é importante aliado contra um velho inimigo do
Cristianismo, o Iluminismo. Assim, é preciso rejeitar o niilismo pós-moderno sem, entretanto,
descartar seus argumentos contra as pretensões absolutistas da racionalidade moderna; afastar
suas mistificações teóricas relativas à ciência da incerteza e da indecidibilidade, sem deixar de
reconhecer sua crítica ao dogmatismo científico e à sua pretensão de ser a última palavra sobre
qualquer assunto.
Por tudo isso, não é difícil concluir que qualquer teologia ou missiologia necessita hoje
em dia de uma introdução, de um prolegômeno à Pós-modernidade, sob pena de perder sua
capacidade de se fazer entender aos contemporâneos. Já ficaram bem para trás os dias em que
Karl Barth erigia uma teologia embasada apenas na doutrina da Palavra de Deus, sem a
necessidade de um prolegômeno de qualquer natureza, dizendo, entre outras coisas que “não
existe uma propedêutica humana à fé, nenhum caminho à salvação, nenhuma escada para
ascender à fé. A fé é sempre o primeiro, o requisito prévio, a fundamentação.”7. Barth fala nessa
passagem a partir de Kierkegaard, pressupondo como ele a incompatibilidade entre a fé e a
razão. De fato, não é possível pela razão chegar a fé, mas, uma certa razão pode facilmente criar
6
Myron B. Penner. “Christianity and postmodern turn: some preliminaries considerations”. Myron B. Penner.
Christianity and Postmodern turn (Grand Rapids, MI: Brazos Press, 2005), p. 14.
7
Karl Barth. The Epistle to the Romans (New York, Oxford University Press, 1980), p. 148.
11
sérios obstáculos à fé, como se vê em nossos dias. Por esse motivo se uma propedêutica
meramente negativa com a demonstração da ilegitimidade dos excessos da razão moderna foi
suficiente para o projeto barthiano, não o será para nós. Além disso, uma propedêutica
sociológica também seria bem-vinda porque as mudanças sociais em curso tornaram as velhas
formas de missionamento antiquadas e contraproducentes quando aplicadas aos
contemporâneos. É preciso reaprender a dialogar, pois o diálogo de muitas denominações
cristãs atualmente é com as sombras do passado e não com os homens e mulheres que vivem
na sociedade das relações e das instituições instantâneas, aqueles para quem as igrejas se
tornaram entidades que funcionam em câmera lenta enquanto eles movem-se na velocidade dos
bytes.
Todas essas mudanças cobram uma urgente providência adaptativa. As contenções contra
o Cristianismo dos iluministas ficaram no passado, o formato da apologética cristã deve,
portanto, mudar. A nova ideologia pós-moderna permite o retorno da religião, mas em uma
condição enfraquecida, que não mais pode ser apresentada como Paulo sugere: “a fé vem pelo
ouvir e o ouvir da Palavra de Deus” (Rm 10: 17). Cabe pensar que a apresentação da Palavra
de Deus de que Paulo fala ocorre em um ambiente onde as pessoas sabem o que é essa Palavra
(haja vista que o programa missionário de Paulo foi realizado entre os Judeus da diáspora e seus
prosélitos), o mesmo ocorrendo ao tempo de Karl Barth, em contexto, pelo menos,
nominalmente cristão. O problema de Paulo e de Barth era ‘apenas’ a contenção de uma parte
de seus ouvintes quanto ao que dizem as Escrituras. No auditório de Paulo a hermenêutica cristã
dos textos que falavam do Messias e de seu cumprimento em Jesus Cristo estava errada para os
Judeus; na assistência de Barth, a hermenêutica reformada sobre os textos que tratavam da ação
sobrenatural de Deus em favor do ser humano estava equivocada, segundo os iluministas. No
ambiente pós-moderno nossa dificuldade é muito mais profunda. O que essa nova ideologia
promove é uma ressignificação completa da Palavra de Deus, em que o mesmo conceito
Escritura perde a referência porque os pós-modernos desconstroem a noção de livro e de
hermenêutica. O conceito de revelação está sob ataque tanto nos meios cristãos como nos não-
cristãos e seu rival já não é hoje o racionalismo iluminista, mas um outro inimigo que a ataca
por duas frentes: (a) uma ideologia cética e relativista que atinge a transmissão da revelação;
(b) uma espiritualidade que privilegia a iluminação como meio de comunicação com o sagrado,
ou então que defende a privilegiamento do carisma em detrimento da Palavra. De fato, no meio
cristão afetado pelas ideias pós-modernas, a Bíblia perde sua autonomia e sua capacidade de
definir a doutrina e a prática, tornando-se refém do carisma, como ocorre entre os
12
De fato, entre Barth e seus ouvintes não havia uma incompatibilidade tão grande como a
que existe hoje entre a teologia tradicional e os contemporâneos pós-modernos. A tendência
secularizante que Barth e outros teólogos enfrentaram no século passado era contrária ao
evangelho, enquanto a Pós-modernidade é-lhe contraditória. Era-o porque o processo de
secularização da cultura em meados do século XX era uma escatologia secular. Para o Nazismo
e o Comunismo, que eram messianismos seculares, não se tratava de destituir os valores
cristãos, mas transfigurá-los e levá-los a efeito por meio dos métodos brutais do coletivismo
compulsório (Comunismo) e da eugenia (Nazismo), tentando através da reordenação político-
econômica e de expurgos de elementos estranhos a harmonização do mundo humano e o
estabelecimento de um paraíso sobre o planeta. O Cristianismo, portanto, era rival, mas não era
estranho àquelas quase-religiões.
Hoje em dia o que existe é uma contradição entre essas partes. O ambiente pós-moderno
não preserva mais a mesma referência axiológica e epistêmica, portanto, não diz coisas
13
Muitos questionam a eficácia missiológica dessa tentativa de dialogar com essa nova
ambiência. Tendo em vista os parcos resultados evangelísticos obtidos na Europa e nos Estados
Unidos onde ela prevalece. Acham que é preferível destinar seus recursos às missões onde as
colheitas sejam mais fartas, ou seja, países mais pobres onde os conceitos de Palavra de Deus,
Cristianismo ainda não sofreram uma corrosão muito profunda. Mas, a ideologia pós-moderna
avança sobre o mundo subdesenvolvido, em suas grandes cidades (assim indicam os últimos
censos que atestam o crescimento dos sem religião). Tudo leva a crer que em breve não existirá
mais essa opção e o ambiente pós-moderno será, sem medo de errar, o maior desafio
missiológico do Cristianismo do século XXI, sempre criando sérios embaraços para a
evangelização e para a conservação de sua membresia, especialmente os jovens.
O erro daqueles que veem o problema restrito aos países secularizados setentrionais é
pensarem que a erosão da cultura religiosa tardo-moderna é um fenômeno exclusivamente
religioso, e, portanto, restrito àquela modalidade de Cristianismo europeu, afetado por
problemas que são particularidades de sua história. Por exemplo, as guerras religiosas que
devastaram a Europa no século XVII. Não é. O problema, como dizíamos, é multifatorial:
cultural, político, social e religioso. A origem de todos os grandes desafios à missiologia
contemporânea tem um fundamento comum: a ideologia pós-moderna. A expansão dos sem
8
M. Castellana. L’epistemologia debole. Bachelard, Desanti e Raymond (Verona: Bertani, 1985). Brian McHale.
Postmodern fiction (London: Routledge, 2004), p. 10.
14
religião, dos adeptos de religiões orientais, das religiões pós-modernas, do ecletismo religioso,
todos esses fenômenos estão em alguma medida correlacionados. Destrinchar essa
complexidade passa a ser para o Cristianismo uma luta de vida ou morte, cujo campo de batalha
são as grandes cidades do mundo. E ainda que isso fosse um fenômeno restrito às grandes
megalópoles, a elas, invadidas e inseminadas pelas ideias pós-modernas, também está dirigido
no Ide de Mateus 24.
Como Paulo no areópago, forcejando por tornar o evangelho um discurso com sentido
aos atenienses adeptos da Academia, do Jardim e do Liceu, obtendo como resultado apenas um
único converso, Dionísio, também estamos nós diante dessa nova sociedade e dessa cultura,
que muitos já chamam de pós-cristã, obrigados a confirmar na fé os que já conhecem a doutrina
cristã e discipular alguns a quem faltam mesmo os rudimentos do Evangelho. Não é fácil mudar
sem mudar, preservar os fundamentos quando são os próprios fundamentos que estão em
questão, quando a própria noção de doutrina sofre taxativo repúdio por parte dessa nova
epistemologia e dessa nova hermenêutica. Quando a liberdade e a diversidade apresentam-se
como os maiores valores desses tempos fica difícil defender uma coleção de artigos de fé
padronizados, custodiados por uma instituição religiosa constituída por religiosos profissionais
que, no exercício de suas funções, mostram-se portadores de uma autoridade que se pretende
inquestionável.
9
Blaise K. Muzembe. Le concept théologique de la postmodernité (Paris: Editions Connaissances et Savoirs,
2011), pp. 13-15.
15
Essa homogeneização não surgiu como resultado espontâneo da evolução das mídias e da
mudança de formato na apresentação do discurso religioso; é a consequência e não a causa dela.
As causas, como em geral ocorre às ciências humanas, são tão complexas como as
consequências e nesse caso decorrem de uma conjunção de fatores epistemológicos e sociais
interconectados e dialeticamente implicados, os quais pretendemos aclarar nessa exposição que
por sua natureza pede um tratamento interdisciplinar. Refiro-me à influência da crítica pós-
moderna sobre a epistemologia moderna e sobre a religião e quase-religião pós-modernas no
Brasil. Essas duas dimensões são indissociáveis por isso esse trabalho vem dividido em dois
grandes capítulos, além dessa introdução: o primeiro, voltado para a desconstrução da
“epistemologia fraca” e outras propostas epistemológicas fundamentais do Pós-modernismo: o
Ecletismo, o Relativismo, o Niilismo, etc. A discussão é, portanto, colocada em um quadro de
discussões filosóficas onde aparecem figuras como: Lyotard, Barthes, Derrida, Deleuze,
Foucault, etc. No segundo capítulo, que trata das religiões pós-modernas e de sua influência na
organização e no trabalho dos movimentos e instituições religiosas cristãs e não cristãs, bem
como em organizações políticas não partidárias que lutam por um mundo melhor. Aí se procura
fazer uma avaliação da influência das ideias pós-modernas nas religiões brasileiras,
especialmente onde manifestam-se de forma mais evidente: o Neopentecostalismo e as religiões
do espectro New Age; procurando identificar o comportamento institucional e individual no
tocante às missões com auxílio dos clássicos da Sociologia da Religião: E. Durkheim, Max
10
Antônio F. Pierucci. “Religiosidade, racionalização e desencantamento”, em palestra concedida à rede Cultura
em 2004, e está disponível na internet. Infelizmente, o aprofundamento da análise que vinha desenvolvendo foi
interrompida por sua morte prematura em 2012.
16
Weber, Peter Berger, etc. Na segunda parte desse mesmo capítulo procura-se examinar a quase-
religião pós-moderna e seus principais postulados, bem como a maneira como as denominações
cristãs se colocam diante desses postulados. Ainda nesse capítulo serão objeto de discussão
temas caros a esses pós-modernos afirmativos: homossexualismo, trâns-gênero e modelos
humanísticos alternativos, sempre em contraste com a doutrina cristã.
Poderia ter acrescentado um terceiro capítulo de cunho teológico para enfrentar a Pós-
modernidade que dá seus primeiros passos no campo da teologia sistemática e bíblica, mas isso
ficará para uma outra oportunidade, quando escrever uma obra só sobre a hermenêutica
teológica em confronto com a hermenêutica pós-moderna. O motivo para não o fazer é a
exorbitante complexidade que se apresenta só nessas duas primeiras partes que poderiam
tranquilamente ser duas obras separadas (e talvez fosse mesmo mais indicado apresentá-las
dessa forma, perdoem o açodamento).
17
CAPÍTULO II
Roland Barthes eram homossexuais assumidos, aquele até ativista; G. Deleuze participou da
insurreição de Maio de 1968; Michel Serres viveu grandes traumas com a guerra civil espanhola
e a Segunda Guerra Mundial em sua região, no Sul da França, etc. E aqui não vai nenhuma
intenção de vilipendiar essas figuras consagradas do pensamento pós-moderno francês, apenas
observar que a gênese de suas ideias está mesclada com suas lutas pessoais, o que só vem
corroborar com aquela ideia de que qualquer teoria será sempre fragmento de uma biografia. O
movimento de ’68 como um todo tem essa marca, questão ético-política mescla-se com a
discussão epistemológica e sem essas questões sua epistemologia da negação não teria qualquer
sentido; permanecendo, como ocorre, destrutiva sem a proposição de um modelo de
substituição ao que rejeita. Se a negação tem algum valor esse decorre do desvalor do que é
rejeitado, e, portanto, não podemos estar falando só de ideias.
11
Steven Connor oferece um modelo compreensivo da pós-modernidade pelo qual o movimento é entendido como
estando organizado em quatro fases: (1) a primeira que ele chama de “acumulação”, vai de 1970 até o começo dos
anos ’80, e se caracteriza por uma massa de autores e trabalhos que procuravam dar forma à pós-modernidade que
nascia; (2) a segunda fase chamada síntese, vai do meado de 1980 até o início da década de ’90, tem como principal
marca a construção de sincretismos e ecletismos na superfície da cultura; (3) a terceira fase, que começa com a
década de ’90, é a autonomia caracteriza pelo amadurecimento e institucionalização da pós-modernidade, com
resultados que agora se apresenta como “horizonte geral” da cultura, e não mais como análise particular, ou seja,
suas teorias começam a se tornar mais gerais; e por último (4) a dissipação a partir dos anos ’2000, a qual se tornou
tão onipresente e hegemônica que não é mais possível, sem esforço, separá-la dos objetos da cultura. Steven
Connor. “introduction”. Steven Connor (ed.) The Cambridge companion to Postmodernism (Cambridge:
Cambridge University Press, 2004), pp. 1-4.
12
Jürgen Habermas. El discurso filosófico de la modernidad (Madrid: Taurus Humanidades, 1993).
13
Terry Eagleton. As ilusões do pós-modernismo (Rio de Janeiro: Zahar, 1996), p. 7.
1414
Ihab Hassan. The dismemberment of Orpheus. Toward a postmodern literature (Madison, WI: The University
of Wisconsin Press, 1982).
19
Com efeito, agregar uma massa de manifestações culturais mais ou menos inovadoras e
um emaranhado de movimentos e submovimentos epistemológicos: pós-estruturalismo, pós-
marxismo, pós-colonialismo, etc. Estabelecer uma tendência estética para tão diversos campos
artísticos e culturais (arquitetura, artes plásticas, literatura, cinema, teatro, etc.) sob a única
rubrica de Pós-modernidade só pode ocorrer se adotamos a designação D. Harvey, que a
15
Zygmunt Bauman. Intimations of Postmodernity (London: Routledge, 1991), p. 187.
16
Fredric Jameson. “Postmodernism and consumer society”. In David H. Richter. The critical tradition. Classic
texts and contemporary trends (Boston/New York: Bedford/St. Martin, 2007).
17
Perry Anderson. “Modernity and revolution”. In Cary Nelson; Lawrence Grossberg (eds.). Marxism and the
interpretation of culture (Chicago, University of Illinois, 1988), p. 333.
20
No campo social vai de igual contraditória. Ainda que se defina por sua crítica à
Modernidade, o processo de institucionalização que vem sofrendo fá-la apresentar pares
contraditórios que a tornam paradoxalmente inimiga da Modernidade e cada vez mais
semelhante a ela. Ou seja, é um movimento popular e a um tempo também acadêmico;
contestatório, defensor do direito das minorias, mas igualmente ápice de um capitalismo de
consumo; defensor de um saber local, mas também tem uma tendência universalizante; inimiga
do dogmatismo por um antidogmatismo militante; desencadeia um processo de individuação
que procede de um de massificação. Enfim, um fenômeno sociocultural sobre o qual ignora-se
até o mais fundamental, pois ainda não se sabe se se trata de “um zeitgeist, um sistema, ou uma
situação corrente”22. O problema é que, como demonstrou Steve Connor, o movimento vem
sofrendo mutações ao longo das décadas, encontrando-se hoje no estágio da dispersão: uma
18
David Harvey. La condición de la posmodernidad. Investigación sobre los orígenes del cambio cultural (Buenos
Aires: Amorrortu Editores, 1998), p. 369.
19
Steven Connor. “introduction”. Steven Connor (ed.) The Cambridge companion to Postmodernism, p. 3.
20
Ihab Hassan. The dismemberment of Orpheus, p. 264.
21
Allain Touraine. Crítica da modernidade (Petrópolis: Vozes, 2002), p. 266.
22
Fredric Jameson. Postmodernism, or the cultural logic of late Capitalism (Durham, NC: Duke University Press,
1991), p. x.
21
neblina espessa que cobre a visão dos homens, fazendo-os pensar que enxergam melhor dessa
perspectiva.
Assim, por falta de uma terminologia mais explicativa, decide-se denominar o movimento
por essa palavra muito usada e abusada: Pós-modernidade, que pode significar uma grande
quantidade de coisas e que por isso mesmo é inconveniente e conveniente. É conveniente
porque esse amorfismo conceitual representa bem o que ela é, apesar de pouco esclarecedora.
Assim, continuamos limitados a pensá-la como alguma coisa que vem depois da Modernidade,
o que também não é uma boa definição, como o seria se ambas convivem até agora? Além
disso, não é exatamente alguma coisa, mas várias coisas; não é exatamente um fenômeno
cultural, mas é também político, econômico e religioso. Ao fim, diante de tantas tentativas
fracassadas em defini-la percebe-se que não se pode abandonar o campo da descrição. Fixemo-
la simplesmente como “situação corrente”, com a ressalva de que também não se sabe até que
ponto é durável.
Modernidade: Pós-modernidade:
Romantismo/Simbolismo Patafísica/Dadaísmo
Forma (conjuntiva, fechada) Antiforma (disjuntiva, aberta)
Propósito Jogo
23
Ihab Hassan. “Pluralism in postmodern perspective”, Critical Inquiry (vol. 12, no. 3, Spring 1985), pp. 504-508.
24
Michael H. Whitworth (ed.). Modernism (Malden, MA/Oxford, U.K./Carlton, Aust.: Blackwell Publishing,
2007), p. 274.
22
Design Acaso
Hierarquia Anarquia
Domínio/Logos Exaustão/Silêncio
Objeto de Arte/Trabalho completado Processo/Performance/Acontecimento
Distância Participação
Criação/Totalização Descriação/Desconstrução
[...] [...]
A cruzada pós-moderna contra a Modernidade possui várias frentes, as quais não vão se
construindo de modo coordenado; a Pós-modernidade vai se espalhando como uma ameba
sobre a cultura, fagocitando-a; ao mesmo tempo destruindo-a, ao mesmo tempo se alimentando
dela. Pode-se, entretanto, dizer que seu primeiro ato de agressão contra os modernos é a rejeição
da disciplinaridade que eles construíram. Para os pós-modernos a própria pretensão
metodológica de disciplinar o campo do conhecimento, qualquer que seja, deve ser combatida,
por dois motivos básicos: o primeiro epistemológico, baseando-se em uma pressuposição
equívoca de que é possível um ponto de vista de Deus ou do sujeito transcendental, que
caracteriza toda a filosofia dogmática que faz da razão uma habitante de um planeta distante de
onde olha pesarosa para as vicissitudes humanas. Esse tipo de racionalidade que conhece o fim
23
desde o começo, como se fosse o Onisciente, e como Ele é capaz de discernir os limites de tudo,
é descartada pelos pós-modernos.
A unidade da história é uma farsa porque a cola usada para agrupar seus pedaços não é
uma neutra racionalidade, mas um discurso que fala de uma perspectiva e se destina a um
objetivo. A verdade de uma teoria, a verdade que surge como resultado de uma teoria, estará
sempre determinada por uma função política, a despeito de seus protestos em contrário.
Verdade e poder são duas coisas inseparáveis; não há discurso (poder) que não institua uma
verdade (saber), e não há poder sem a instituição correlata de um campo de saber que o
legitima27. Em suma, quanto à verdade, será sempre oportuno perguntar: cui bono? Cui prodest?
Ora, sendo a verdade sempre interessada e nunca neutra, são colocados em xeque todos os seus
subprodutos, todos os sistemas de pensamento, todas as doutrinas, todos os argumentos que a
ela se destinam, toda a história de sua constituição. A Pós-modernidade, reputando toda a
25
Michel Foucault. Arqueologia do Saber (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987), p. 10.
26
Ibid., p. 9.
27
Michel Foucault. Vigiar e punir. O nascimento da prisão (Petrópolis: Vozes, 1999), p. 27.
24
organização do conhecimento a priori como ideológica e política, pretenderá ela somente, ser
a única legítima teorização, à medida que se apresenta como anti-teoria, anti-sistema e anti-
ideologia28, e nunca como um sistema positivo de pensamento29.
28
Max Charlesworth. “Postmodernism and Theology” (The way, July, 1996), p. 188.
29
A palavra nunca é sempre problemática, não seria diferente a esse respeito. Com efeito, a rejeição da
disciplinaridade moderna não significa necessariamente a completa rejeição da positividade. Michel Serres, por
exemplo, apesar de adotar a mesma visão crítica da ciência como discurso e das academias como sistemas de
controle, adota certa positividade, a qual está baseada na teoria do caos. Mais adiante retornaremos a essa questão.
30
Graham Ward. “Postmodern Theology”. In David F. Ford; Rachel Muers. The modern theologians. An
introduction to Christian theology since 1918 (Malden, MA: Blackwell Publishing, 2005), p. 322.
31
Gilles Deleuze; Félix Guattari. A Thousand plateaus. Capitalism and schizophrenia (London: Continuum,
2004), p. 4.
32
Fredric Jameson. Postmodernism and consumer society, p. 1956.
33
Carl Bereiter. “Implications of Postmodernism for Science, or, Science as progressive discourse”, Educational
Psychologist (29, 1, 1994), p. 4.
25
deflagradas pela física quântica e a pesquisa do genoma, parece estar sendo superado (mais
adiante retomamos esta questão).
Por esse ecletismo os pós-modernos blindam-se contra quaisquer argumentos que lhes
pareça prejudiciais às pretensões, por assim dizer, colocando-se a si e a seus contendores fora
do jogo epistemológico e dentro do jogo político. Pelo argumento a priori de que toda
epistemologia faz parte do jogo de poder que serve apenas à justificação e à legitimação das
instituições sociais onde funcionam como jogos de linguagem34. E aqui provavelmente está a
principal referência epistemológica da Pós-modernidade, o segundo Wittgenstein, autor de
Investigações Filosóficas, livro cuja principal tese é a afirmação que todos os tipos de discurso
(inclusive o científico) estão inscritos em um sistema fechado de regras (“jogos de linguagem”),
de sorte que não se pode aderir a seus resultados uma validade universal, dados serem
perspectivos. Lyotard, como neomarxista, vai além, aventando que este sistema de regras foi
criado para iludir aqueles que pertencem à sociedade pós-industrial, e para legitimar suas
instituições.
A rejeição do discurso universal e dos limites disciplinares impostos pelo ponto de vista
de Deus são os responsáveis pela condição amorfa que caracteriza a Pós-modernidade, sendo
sua melhor representação “o rizoma” de Deleuze e Guattari, cujas características são a
multiplicidade e a conexão, bem como a rejeição da intersecção entre os diversos campos do
conhecimento 35 . No corpo do rizoma as distinções disciplinares são desenvolvimentos
atrofiados da multiplicidade cultural, porquanto aí os elementos vão crescendo à medida que
forças caóticas o impilam, sem nenhum modelo prévio de normatização, sem nenhum limite
34
Jean-François Lyotard. La condición posmoderna, p. 4.
35
Gilles Deleuze; Félix Guattari. A Thousand plateaus, p. 7-8.
26
para seu confinamento. Pelo que, o modelo que serve para entender a cultura não é mais
nenhuma figura definida por traços simétricos e geométricos: um círculo, um retângulo, etc.,
ou qualquer outra figura geométrica. É um rizoma onde as ideias maturam-se à sombra da
imprevisibilidade; onde são jogados jogos de linguagem sem quaisquer universais, com seu
diversos dialetos, patoás, gírias e linguagens especializadas se entrecruzam e se entremesclam,
gerando um pensamento mestiço e anti-eurocêntrico. Parece que nas ideias pós-modernos,
como as de Deleuze e Guattari, querem afastar as ideias pasteurizadas da academia, propondo
em seu lugar um crescimento orgânico para o pensamento, na esperança de, afastada a
manipulação, daí brotar alguma verdade. Em síntese, por rizoma deseja-se significar “uma
realidade essencialmente heterogênea”36 que não aceita regras e regulamentos políticos para
gerir sua evolução, deixando-se guiar apenas pelas forças caóticas.
Michel Serres tem uma proposição semelhante ao oferecer como modelo para a evolução
das ideias uma teia de relações, “uma teoria geral das relações”37. Já que seu objetivo não é
territorializar a discussão, o que para ele significa a fossilização, a calcificação das ideias com
a definição de um vencedor e sua verdade. Ele não é cartesiano; sua preocupação não é a
definição clara de um problema e sua solução, mas “a substituição de um determinado problema
pelo conjunto de relações que o tornam possível”38, como se o que produzisse o conhecimento
verdadeiro fosse uma espécie de zapear pelas diversas regiões da cultura para assim dizer
escapar ao controle das polícias do conhecimento disciplinar e manter a questão aberta, a fim
de que a verdade possa ser achada em lugares invisitados, que estão fora do circuito; o que está
no circuito de visitação será apenas a verdade da conveniência de seus detentores, o que para
Serres é o cemitério do pensamento e não seu berçário.
Aqui temos uma grande nota dissonante entre esses dois modelos de pensamento.
Enquanto para os modernos a verdade está oculta na desordem, a qual cumpre desbravar para
fazê-la saltar à luz, justamente o que Descartes, Galileu, Bacon, Hobbes, Newton e outros,
parecem ter pretendido; para os pós-modernos ela está oculta na ordem, sob as regulamentações
da organização meticulosa, sob a lisura da pureza teórica, sob a angulosidade da
disciplinaridade rigorosa. O que justifica essa mudança de perspectiva parece ser a ascensão de
um modelo diverso da própria realidade, em que a previsibilidade e a constância da física
36
Ibid., p. 8.
37
Michel Serres. Diálogos sobre as ciências, Conversas com Bruno Latour (Lisboa: Instituto Piaget, 1996), p.
173.
38
Idem, ibid.
27
Não custa concluir que ambos estão errados, que ambos têm como projeto a aplicação
injustificada de um modelo geral de realidade, conforme uma ciência, à sociedade em que
vivemos. A primeira pergunta é: o que a natureza da realidade humana tem a ver com a realidade
dos fenômenos naturais? Por que deveríamos construir a sociedade por esses moldes? Uma vez
mais às ciências humanas é imposto um modelo de pensamento a priori, apenas que
abandonamos o modelo analítico da ciência newtoniana e agora adotamos o holismo da ciência
contemporânea. Parece que ninguém aí tem uma ideia muito clara sobre a humanidade e buscam
na física e na ciência elementos que lhe sirvam à construção de um modelo de humanidade. A
ciência e a epistemologia pós-moderna nesse caso funcionam como “publicidade” no sentido
que Serres deu à palavra39 tanto quanto teria funcionado no período moderno; ambos fazendo
uso de argumentos ético-políticos para encobrir sua real ignorância sobre o humano.
39
Michel Serres. Diálogos sobre a ciência, a cultura e o tempo, p. 128.
28
Por que então a Pós-modernidade ainda não reuniu força para suplantar sua rival? Devido
a estar firmada sobre os frágeis alicerces de uma epistemologia fraca, que lhe garante apenas o
direito de criticar e desconstruir, mas não o de construir. Na obra de J.-F. Lyotard, A condição
pós-moderna, um de seus textos inaugurais, aparece a seguinte definição: a Pós-modernidade é
“uma incredulidade quanto aos grandes relatos” ou meta-narrativas 41 . Mas o que significa
suspeitar das meta-narrativas e dos grandes relatos? Basicamente colocar em questão a
possibilidade de um discurso que se entende como ‘meta- o que quer que seja’, muito menos
aqueles chamados metalinguagem; pelo simples fato de que tudo o que pode ser pensado já é
linguagem e não existe nada fora daí. J. Derrida escreverá “não há um fora-do-texto” (Il n’y a
40
Jean-François Lyotard, op. cit., p. 4.
41
Jean-François Lyotard. La condición postmoderna (Madrid: Ediciones Cátedra, 1987), p. 4.
29
pas de hors-texte), ou seja, “não há nada de real que não seja textualizado, construído,
simbolizado e contextuado – interminavelmente”42. Portanto, não podendo transpor a barreira
da linguagem, não podemos pensar fora dela, como que transportando-nos para fora dela como
um barão de Münchausen epistemológico, puxando-nos pelos cabelos de um pântano onde
estamos atolados. Daí a conclusão de que é impossível universalizar uma afirmação teórica
qualquer, não havendo, portanto, outra forma de pensar senão perspectivamente.
Aqui assiste-se a uma escorregadela lógica de Lyotard, pois, como observa J. Habermas,
ao propor o fim das meta-narrativas sua argumentação na verdade invalida o argumento, porque
a proposição ‘não há mais grandes narrativas’ também é uma meta-narrativa, que se pode
chamar ironicamente “a grande narrativa do fim das grandes narrativas” 43 . Nessa mesma
arapuca lógica caíram seus antepassados espirituais, os neopositivistas, que, em sua santa
cruzada contra a metafísica, pontificavam: ‘todo discurso não proposicional – aquele pelo qual
não se diz algo de algo – deve ser considerado metafísico’. Mas onde no mundo está a referência
para isso, para que tal afirmação seja considerada uma proposição? Como concluiu no Tractatus
o primeiro Wittgestein, no mundo não há valores, só há o silêncio da existência; pela mera
razão, nada se pode dizer nada além de é ou não é, portanto, não se pode afirmar a metafísica
ou negá-la. Voltando aos pós-modernos, de nada adianta chamar seu próprio discurso de
‘pequena narrativa’ e continuar agindo como fazem as grandes, tentando fazer calar as que não
concordam consigo.
42
Joseph Margolis. Interpretation radical but not unruly. The new puzzle of the arts and history (Berkeley CA:
University of California Press, 1995), p. 172.
43
Richard Rorty. “Habermas, Lyotard e a Pós-modernidade” (Educação e Filosofia, 4 (8), Jan – Jun), p. 76.
44
Dorothea E. Olkowski. Postmodern philosophy and scientific turn (Bloomington, IN: Indiana University Press,
2012), p. xiii.
45
Ferdinand Saussure. Curso de linguística geral (São Paulo: Editora Cultrix, 2006), p. 79.
30
Afirmação com que Wittgenstein concorda, embora, tanto quanto se saiba, não conhecesse a
obra de Saussure. Sua ênfase, contudo, não foi estrutural como no eminente linguista suíço, mas
pragmática, ou seja, as ações que realizamos com a linguagem (o contexto onde ela ocorre) são
o solo semântico de onde também o sentido decorre.
46
Ludwig Wittgenstein. Philosophical Investigations / Philosophische Untersuchungen (U. S. A., The Macmillan
company, 1969), # 97.
47
David R. Griffin. God and religion in the postmodern world. Essays in postmodern theology (New York: State
University of New York Press, 1989), p. 4.
48
Wittgenstein o demonstra por meio de diversos estudos gramaticais que realizou sobre o problema filosófico da
dor, propondo-os em lugar de uma elucidação epistêmica. Se precisamos dominar a gramática da dor para
identificar algo tão íntimo – uma vez que não percebemos o Self sentindo dor: resmungos, gemidos, suspiros,
choro, apertar ou segurar com as mãos o local dolorido, percebe-se até onde penetram os jogos-de-linguagem;
necessitamos de “um conceito de dor”. Ludwig Wittgenstein. Zettel (Lisboa, Edições 70, 2000), # 547.
49
A linguística do século XIX era acima de tudo comparativa tal como sua antropologia, obcecada pela aspecto
histórico-evolutivo. Para se fazer qualquer estudo linguístico naquela época eram comparados os elementos
fundamentais dessas línguas, com o objetivo de identificar a origem e o parentesco entre as línguas humanas.
Saussure foi o primeiro a perceber que os elementos da linguagem “não existiam um ao lado do outro, mas um por
causa do outro”, trazendo à tona a natureza sistêmica e orgânica das línguas. Anna Morpurgo Davis. “Saussure
31
Como dizíamos, a razão moderna era dogmática e, portanto, tinha como objeto a verdade
absoluta e tinha como método, um único adequado a esse objeto; sendo a verdade única, só
existe uma forma correta de uso do raciocínio: o método analítico, ou seja, começar com ideias
claras e distintas, continuar com a divisão do problema em partes menores e finalmente agrupar
tudo de novo em uma visão totalizante54. Qualquer que seja o método utilizado, racionalista ou
empirista, a verdade pretendida pelos modernos era uma verdade objetiva que repudiava toda e
qualquer subjetividade ou dúvida, carregando a promessa de que finalmente seria estabelecido
and Indo-European linguistics”. In Carol Sanders. The Cambridge companion to Saussure (Cambridge: Cambridge
University Press, 2004), p. 26.
50
Ludwig Wittgenstein. Das Blaue Buch und Eine Philosophische Betrachtung (Frankfurt am Main, Suhrkamp
Verlag, 1982), # 6.
51
Ferdinand Saussure. Curso de linguística geral, p. 16.
52
Se, p. ex., eu digo tal e tal ponto do campo visual é azul, eu não somente sei isto, eu sei também que o ponto não
é verde, não é vermelho, não é amarelo, etc. Eu tenho assim, simultaneamente, aplicado toda a escala de cores.
Esta é também a razão porque um ponto não pode ter diferentes cores ao mesmo tempo... É todo um sistema que
é comparado com a realidade e não uma única proposição (25.12.1929). Ludwig Wittgenstein. Wittgenstein und
die Wiener Kreis, Gespräche. Aufgezeichnet von Friedrich Waismann, B. F. McGuiness (org.), Schriften 3
(Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1969).
53
Ferdinand Saussure. Curso de Linguística Geral, p. 139.
54
René Descartes. Discurso do método (São Paulo: Nova Cultural, 1999).
32
o acordo entre todos os homens, desde que se deixassem orientar pelo método adequado
(restava saber qual fosse). Como vimos, o Positivismo, e, posteriormente, o Positivismo Lógico,
tentaram levar esta concepção ao ponto de decidir sobre a morte da religião e da metafísica,
pontificando que a palavra que não pudesse representar algo nesse mundo deveria ser
descartada como lixo metafísico, ou seja, tudo o que não fosse tecnicamente uma proposição,
predicação sobre algo da realidade física, deveria ser rejeitado como ideia metafísica.
55
Rebecca Goldstein. Incompleteness. The proof and paradox of Kurt Gödel (New York: W. W. Norton Co.,
2005), pp. 155 e 156.
56
Wikipedia. Teoremas da incompletude de Gödel, 2018.
57
Existe uma extensa relação de autores pós-modernos, das várias áreas do conhecimento, que cooptaram o
teorema de Gödel; Alain Badiou, Régis Debray, para citar apenas alguns. Sokal e Bricmont argumentam que na
maioria das vezes o uso do argumento é completamente gratuito, como é o caso dos citados, que o transportam
para o campo das ciências humanas, onde aparentemente o argumento parece ter um uso meramente metafórico,
como mais tarde, depois de receber críticas, reconhece o próprio Debray. Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable
non-sense, Postmodern intellectuals’ abuse of Science (New York: Picador, 1998), p. 177.
33
com abertura a uma certa espiritualização da vida (desde que não podemos provar nada contra
isso). Essa abertura pode ter como axioma a seguinte proposição: ‘desde que não podemos ter
certeza de nada, podemos experimentar de tudo’.
Como é óbvio, axioma e proposição não tem aqui um sentido rigoroso, só pode dar
nascimento a um ceticismo epistêmico que será melhor definido como uma descrença no
projeto da Modernidade e uma ânsia por um ceticismo que lhe é contrário. Não se trata,
entretanto, de um sentimento como os românticos o entendiam, quando propõem a substituição
do axioma racionalista cartesiano: ‘penso, logo existo’ por ‘sinto, logo existo’58. O sentimento
romântico ainda é moderno, pois pretende lançar os fundamentos da ética e da estética em um
conceito de natureza humana prévio à existência, posto que entende o sentimento como
fundamento da essência do homem e, portanto, o primeiro responsável por seu comportamento
(D. Hume e J.-J. Rousseau). A Pós-modernidade confirma o apego ao sentimento, mas esse já
não tem âncora epistemológica; o sentimento é induzido pelo afeto e é relativo ao grupo o ao
lugar a que o indivíduo pertence, ou seja, trata-se de uma coletivização do sentimento59. Em
outras palavras, ainda da fala de Maffesoli: é “o feeling de uma relação, do sentimento induzido
por um lugar, ou de outras categorias não menos vaporosas para descrever um situacionismo,
amoroso, profissional ou cotidiano”60.
Esse feeling, contudo, não é completamente desarrazoado. Sob sua aparente fragilidade
gnosiológica, existe uma base, um fundamento, dificilmente visibilizável, mas muito presente
e influente no mundo contemporâneo. É um ceticismo decorrente da erosão da epistemologia
moderna e nesse sentido uma desconfiança epistemo-ético-política que é a própria imagem da
Pós-modernidade, uma abertura a um “pan-experimentalismo” 61 , bastante aceite entre
professores universitários da área das ciências humanas, onde Foucault, Derrida, Lyotard,
Barthes, etc. dão as cartas em diversos campos do conhecimento e por meio de doutrinas-
matrizes correlatas: pós-estruturalismo, semiótica, ideologia de gênero, etc., que põe em xeque
todos os modelos de pensamento herdados à Modernidade, inclusive criticando a própria
ciência moderna, como fazem Latour e Serres, pela acusação de sofrer distorção resultante de
controle das academias. Mas, isso é só uma parte da verdade. A Pós-modernidade também
distorce usando aquele modelo de ciência já referido como justificativa para um vale-tudo tão
58
Floyd Merrell. Semiosis in the postmodern age (West Lafayette, IN: Purdue University Press, 1995), p. 7.
59
Michel Maffesoli. O tempo das tribos. O declínio do individualismo nas sociedades de massa (Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1998), prefácio.
60
Michel Maffesoli. O tempo das tribos, prefácio.
61
David R. Griffin. God and religion in the postmodern world, p. 5.
34
falseador quanto o controle das academias. Trata-se de um laxismo teórico que vem produzindo
o surgimento de material pseudo-científico de cunho meramente propangandístico.
Allan Sokal foi o estudioso que, para testar a proliferação de teorias-fake e a falta de
critérios epistemológicos da Pós-modernidade, submeteu um artigo a um periódico de estudos
culturais dos Estados Unidos, The social text. Submeteu, na verdade uma paródia do tipo de
texto científico que prolifera e tem larga aceitação nesses ambientes. O texto tratava de um tema
da Física e o título era: “Transgredindo os limites: rumo a uma hermenêutica transformadora
da gravitação quântica” (Transgressing the boundaries: toward a transformative hermeneutics
of Quantum gravity). Como o próprio título indica, o artigo está totalmente repleto de meias-
verdades, quartas-verdades, falsidades, non sequitures, expressões sem sentido”62. Mas tudo
vinha expresso por asserções que afirmavam um extremo relativismo cognitivo, zombando de
dogmas absurdos como, “a existência de um mundo exterior, cujas propriedades são
independentes de qualquer ser humano e da humanidade como um todo”63. O artigo foi aceito
e publicado como matéria especial e, com destaque, por sua originalidade e relevância. Por aí
se percebe a alienação ideológica dos editores da dita revista, já que secundaram a negação de
um truísmo que é o próprio fundamento do discurso científico: ‘o mundo exterior independente
de nossos sentidos’. O motivo para tão grande despautério editorial foi Sokal haver recheado
sua paródia com citações de nomes da moda: Deleuze, Derrida, Guattari, Irigaray, Lacan,
Latour, Serres e Verílio. A nata da intelligentsia pós-moderna francesa64. Após a revelação do
engodo, o editor da revista, Bruce Robbins, ainda se justificou evocando um velho argumento
pós-moderno: “a verdade científica tem sido utilizada para oprimir as mulheres, os
afroamericanos, gays, lésbicas”65; em outras palavras, ‘se um conceito é questionável sob o
aspecto ético-político, para que nos ocupar com seu significado epistemológico? Merece a lata
do lixo sumariamente, sem maiores formalidades’.
O tema escolhido para a paródia também merece uma glosa. Por que física quântica? Uma
das coisas que mais atraem os pós-modernos para a física quântica é sua indecidibilidade. Como
demonstrou Heisenberg, no mundo quântico é impossível determinar simultaneamente a
velocidade e a posição de uma partícula nuclear; definindo uma a outra resta indefinível. Ou
seja, no âmago da realidade mais fundamental existe uma incerteza ou uma indeterminação de
62
Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable non-sense., pp. 268 e 269.
63
Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable non-sense, p. 2.
64
Ibid., p. 3.
65
Dorothea Oikowski. Postmodern philosophy and scientific turn, p. 5.
35
tal monta que nenhuma observação quantitativa ou qualitativamente superior ao que se conhece
poderá suplantar. No mesmo campo, Niel Bohr decretou o fim da polêmica entre os físicos
sobre a natureza da luz (partícula ou onda?), entendendo-a como possuidora de ambas
naturezas. Gödel, Heisenberg, Planck, Niel Bohr, sendo entendidos integralmente ou não,
deram aos pós-modernos a munição que faltava para detonar o modelo epistêmico moderno e
trazer para o léxico de qualquer epistemologia palavras como “indeterminação, incompletude,
incerteza, ambiguidade, contingência e caos”66.
66
Steven Best; Douglas Kellner. The Postmodern turn (New York: Guilford Press, 1997), p. 256.
67
Hans Bertens. “The detective”. In Hans Bertens; Dowe Fokkema. International postmodernism. Theory and
literary practice (Philadelphia/Amsterdam: John Benjamin Publishing, 1997), p. 195.
68
Ressalve-se que não se questiona aqui a validade metodológica da transdisciplinaridade, em muitos campos do
conhecimento ela é legítima. Contudo, o que ocorre hoje em ambientes pós-moderno é um abuso e uma
generalização sem nenhuma justificativa.
36
(b) O empréstimo de conceitos das ciências naturais sem se dar ao trabalho de uma
justificação teórica.
69
Michel Serres. Diálogos sobre a ciência, a cultura e o tempo, p. 87.
37
70
Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable non-sense, p. 5.
71
Michel Serres. Diálogos sobre a ciência, a cultura e o tempo, p. 26.
72
Steven Best; Douglass Kellner. The postmodern turn (New York: Guilford Press, 1997), p. 5.
73
Steven Best; Douglass Kellner. The postmodern turn, p. 5.
38
revela uma grande verdade sobre as pretensões desse movimento: ‘seja realista; peça o
impossível’, ou seja, queriam mudar, mas não sabiam o queriam no lugar do que rejeitavam;
era o anarquismo pelo anarquismo. Esse mesmo espírito permanece vivo até hoje, porque ainda
há teóricos que pensam daquela mesma forma, fundamentando sua rejeição ao modelo moderno
com base em razões ético-políticas, e sem serem capazes de apontar razões realmente
epistêmicas para a adoção de um novo modelo social, exceto a radicalização dos ideais da
Revolução Francesa.
Por tudo isso recai a suspeita de que a epistemologia fraca é um estratagema para a
obtenção de uma licença irrestrita para bricolar sem critério. Ora, se todas as verdades são locais
e perspectivas não há nenhum mal em juntar uma porção delas por um critério não muito
plausível para criar um mosaico de verdades locais que acabam obtendo um status universal,
uma vez que para negar o universal e permanecer coerente deveriam depois disso permanecer
calados. Embora negar o discurso universal com ensemblages que o imitam, mas não pretendem
esses status seja uma operação altamente contraditória é exatamente isso que ocorre; dane-se o
princípio da não contradição. É assim que os pós-modernos vêm misturando os assuntos mais
díspares sem o menor constrangimento, criando teorias franksteinianas, sem sequer darem-se
ao trabalho de uma justificativa74. E, se de algum modo essas construções teóricas parecerem
caóticas e capengas, eles ainda têm o álibi de atribuí-lo à própria condição humana e à realidade
que retratam e não à canhestrez de seus criadores75.
E assim o ecletismo domina hoje vastas áreas do conhecimento, podendo-se mesmo dizer
que hoje em dia isso seja um modismo teórico e quanto mais díspares forem as áreas do
conhecimento conectadas mais credibilidade e fama obtém o autor da proeza. Vejam o exemplo
de Fritjof Capra, físico que conectou a física com a religião védica hindu76 e angariou muitos
discípulos, como por exemplo, Marcelo Gleiser77, físico brasileiro. E isso não ocorre somente
com teóricos da física; além dela o ecletismo também domina vastas regiões do conhecimento.
Na Psicologia, a exemplo, atualmente é moda os terapeutas ecléticos que se negam a seguir
uma escola terapêutica específica, preferindo fazer uma combinação assistemática de diversas
correntes (até rivais), improvisando terapias de acordo com sua avaliação do cliente e da
74
Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable non-sense, p. x.
75
Marvin Harris. Cultural Materialism: The struggle for a science of culture (Walnut Creek, CA: Altamira Press,
2001), p. 290.
76
Fritjof Capra. Il tao della física (Milano: Adelphi Edizioni, 1989).
77
Marcelo Gleiser. A dança do universo. Dos mitos da criação ao Big-Bang (São Paulo: Companhia das Letras,
1997).
39
situação desse78. Na Arquitetura, de semelhante modo, o ecletismo hoje chega a ser opção
preferencial, especialmente pela adoção da diversidade de estilo como norma, o assim chamado
“ecletismo radical”, por não se restringir a diferentes estilos de arquitetura no ambiente coletivo,
mas indo além, defende o ecletismo em uma mesma edificação79, indo além do que defendia a
Carta do Novo Urbanismo (1996) quanto ao uso misto do espaço, ao adensamento, e à mistura
das classes sociais e estilos80.
Além desse ecletismo interno nas áreas do conhecimento, existe a invasão disciplinar que
afeta as ciências em geral, pelo ingresso nos domínios de uma transdisciplinaridade que se
desenvolve por influência do Pós-modernismo. Por exemplo, no campo da gestão e da
administração, muitos autores se locupletam da simbologia cristã para ensinar lições de
liderança 81 ; por essa mesma tendência existe uma Psicologia que usurpa a função dos
administradores, especialmente na área de gestão de pessoas e marketing 82 ; ocorrendo o
inverso, quando o assunto é coaching emocional, é a gestão que invade o campo da psicologia,
em que coachs atuam como psicólogos, tendo em vista que as técnicas de gestão invadem todas
as dimensões da vida, inclusive a das emoções 83 . Como veremos mais adiante, a religião
também se adianta de seus marcos originais e invade os domínios da gestão por meio de
diversos programas de aperfeiçoamento de relações inter-pessoais e liderança. Nada demais,
considerando-se que tudo na me generation gira em torno do Self e do auto-conhecimento.
Aqui justifica-se o que vínhamos dizendo sobre o grande desafio que a Pós-modernidade
lança ao Cristianismo. Por trás de seu aparente ecletismo e de uma espiritualização de diversos
setores da cultura (inclusive usando elementos próprios do Cristianismo), esconde-se uma
ideologia que aborrece a mensagem cristã em sua essência, pela recusa ao absoluto. Por esse
motivo, há necessidade de urgente exame dos fundamentos dessa epistemologia fraca que nada
mais deseja senão ser mais coerente com a opacidade da realidade, mas que em verdade produz
um niilismo tão destrutivo como insidioso. Como uma serpente que morde o próprio rabo, esse
78
Lois Shawver. Nostalgic Postmodernism. Postmodern Therapy, vol. 2 (Oakland, CA: Paralogic Press, 2006), p.
99.
79
Charles Jenkens. The story of Postmodernism. Five decades of ironic, iconic and critical in Architecture
(Chichister: John Wiley & Sons), 2011, p. 51.
80
Adilson C. Macedo. “A carta do Novo Urbanismo norte-americano”, Integração (Jan-Mar, ano XIII, no. 48).
81
James C. Hunter. O monge e o executivo. Uma história sobre a essência da liderança (Rio de Janeiro: Sextante,
2010).
82
Louise Kelly; Jay M. Finkelman. Psychologist manager. Success models for psychologists in executive positions
(Cambridge, MA: Hogrefe Publishing, 2013).
83
Hallina Brunning (ed.). Executive coaching. System-psychodynamics perspective (London/New York: Karnac
(Books), 2007).
40
niilismo uma vez gerado torna-se o fundamento de um laxismo epistemológico que não precisa
justificar-se senão por uma ilação tão frouxa quanto suas próprias convicções epistêmicas: “se
se aceita o relativismo epistêmico, então não há razão para ficar aborrecido com uma
apresentação não rigorosa das ideias científicas; de qualquer forma tudo está relacionado
(holismo); e além disso, tudo é discurso, até a própria ciência”84.
84
Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable non-sense, p. xi.
85
Stuart Sim. “Postmodernism and philosophy”. In Stuart Sim (ed.). The Routledge companion to postmodernism
(New York/London: Routledge, 1999), p. 3.
86
Nesse caso não podemos deixar de observar que, embora o projeto filosófico dos modernos tenha abandonado
o fundacionismo religioso e teológico, ele não se afasta muito do que tenta obliterar, pois há um paralelo perfeito
entre o fundacionismo teológico e o da filosofia dos modernos. O fundacionismo do livro está para a revelação
especial assim como o fundacionismo metafísico está para a revelação natural.
87
Ludwig Wittgenstein. Philosophical Investigations, # 123.
41
Deus por outro nome. Os pós-modernos, percebendo-o, tentam ir além dos modernos rompendo
com essas práticas hermenêuticas arcanas, fundadas na ideia de Deus; abolindo todos os tipos
de fundacionismo, especialmente as citadas (natureza, história, livro, Self)88e adotando em seu
lugar o Niilismo. Seus inspiradores são especialmente Nietzsche e em certo sentido Heidegger;
seu objetivo, eliminar a teologia residual que ainda persiste no Ocidente. Depois que essa
teologia funcional for expulsa, o homem finalmente atingirá a maioridade espiritual e poderá
transcender para além de suas limitações (assim esperam).
Mas, para que lhes serve essa obra de destruição? Bem, aqui está a questão da verdade
novamente. Ela parece ser um valor absoluto, mas donde lhe vem essa valoração? Se é absoluto
não pode decorrer da realidade contingente. Daí concluirmos que para valorar, para afirmar
uma coisa em detrimento de outra, é necessário reconhecer que existe um modelo que está além
das contingências e circunstâncias. Os pós-modernos, entretanto, cegamente, deixam de
reconhecer que sua obra de destruição só tem algum valor à medida que representam a
substituição do erro pela verdade, e pensam sua iconoclastia como abertura de campo para algo
que ainda existe, uma transvaloração ou uma trans-humanização em nome de que o martelo da
crítica deve esmiuçar os ídolos da Modernidade:
O Pós-modernismo nos exorta que reconheçamos que não perderemos nada com o
desmoronamento dos fundamentos, salvo nossas cadeias. Agora podemos fazer o que
queremos sem ter que carregar por todas as partes um pesado e incômodo
88
Cf. Mark Taylor. Erring: A Postmodern A/Theology (Chicago: The University of Chicago Press, 1987), p. 7.
89
Entende-se por Cristandade aqui a organização social, econômica, cultural e política europeia que apareceu
como resultado do Cristianismo ter se tornado religião oficial do império romano. Durante mil e quinhentos anos
a Europa foi plasmada pelo pensamento cristão e a Modernidade não logrou desfazer esse legado, pois livrou-se
do conteúdo (a determinação teológica da civilização europeia e de seus resultados), mas conservou a forma.
42
Seria isso uma espécie de escatologia, a julgar pelo fato de aparentemente os novos
fundamentos estarem no futuro? A verdade permanece como fundamento, ainda que por
alicerces que ainda estão por ser lançados.
Mais adiante nos ocuparemos desse outro álibi da Pós-modernidade, agora o que nos toca
é a tarefa de desconstruir a epistemologia pós-moderna. Entretanto, não o faremos por
descontruir a desconstrução do Self, do livro, da história e da natureza em toda a amplitude
dessas questões. Isso demandaria muito mais do que as páginas que temos previsto. Não
podendo mover uma investigação completa sobre a anti-metafísica pós-moderna, preferimos ao
invés dimensionar o estrago produzido por essa ideologia na hermenêutica tradicional; e, tendo
em vista esta finalidade, resolvemos organizar a discussão no âmbito da questão da verdade,
que é como fundamento na metafísica, o sucedâneo mais imediato de Deus. Dividimo-la em
duas grandes classes: (a) a questão epistemológica e (b) a questão ético-política.
90
Terry Eagleton. Después de la teoría (Barcelona: Cultura libre, 2013), p. 68.
43
um fundamento político. O conhecimento científico não está apenas a serviço da verdade, mas
também das instituições que gerem essa verdade em proveito das instituições que os gerem. Por
outro lado, como vimos, a abordagem crítica também decorre da mudança de modelo da ciência
promovida pela nova física, pela alegação de que a própria forma de se fazer ciência também
deve mudar adotando um modelo mais consentâneo com aquilo que a nova ciência tem
revelado.
Mais uma vez deve-se ressalvar que todo o tratamento que vem em seguida traçado tem
função meramente pedagógica – o objetivo é demonstrar como é construída a argumentação
pós-moderna no tocante à questão. Porque, primeiramente, é impossível na Pós-modernidade
separar ética de epistemologia, a segunda perdendo a pureza com que era pensada pelos
modernos. Em segundo lugar, toda essa distinção e classificação da verdade atende o mesmo
objetivo, porque todas essas críticas lidam com objetos confluentes para a maioria dos
pensadores citados ou aludidos. Por exemplo, a distinção entre verdade-arché e verdade-
objetividade em Heidegger não faz o menor sentido. Seu projeto filosófico abarca os dois
conceitos, desde que para chegar à verdade-arché é necessário tirar do caminho a verdade-
objetividade, desde que para ele, “o erro da tradição metafísica Ocidental tem sido considerar
o Ser como como uma espécie de entidade objetiva totalmente separada do sujeito
91
Aristóteles. Metaphysics (Indianapolis, IN: Hackett Publishing Company, 2016), cap. IV, 7, 1011b25-29.
44
A segunda grande crítica é ético-política, sob sua rubrica estão (a) a crítica às instituições
e (a) opção ética pela diversidade. Para os pós-modernos esta organização da discussão está de
antemão condenada, porque, tal como a ética, também é impossível separar epistemologia de
política. Não lhes tiro de todo a razão, mas a prioridade de um texto deve ser a capacidade de
se comunicar, portanto, optamos por não misturar demais essas duas matérias: (a) epistemologia
e (b) ética, preservando à medida do possível a distinção entre elas.
A verdade-doutrina que aqui vem citada não diz respeito a uma verdade fundamental
específica, uma verdade geral da qual decorram as demais. Trata antes da possibilidade desse
tipo de verdade existir e de se ter acesso a ela, de se poder pensá-la a partir de um sentido
permanente. É, portanto, para a hermenêutica que a Pós-modernidade encaminha a questão. E
não só uma hermenêutica filosófica, mas uma hermenêutica do texto, debruçando-se sobre o
autor, o sentido do texto, a permanência desse sentido.
Para Lyotard, por exemplo, não é mais possível sustentar a univocidade de sentido em
nenhum texto 93 . Assim como ele, muitos outros teóricos pós-modernos pensam de forma
semelhante, baseando-se nos dois principais mestres da opacidade semântica: F. Saussure e L.
Wittgenstein, os quais têm linhas muito próximas, como já vimos. Lyotard segue a
argumentação de Wittgenstein, concluindo como ele que o modelo representacionista deve ser
rejeitado e a metafísica da representação, destituída94. A linguagem não é mais representação
dos pensamentos nem representação do mundo. Essa visão perdurou de Parmênides até o
Wittgenstein do Tractatus, fazendo da filosofia Ocidental apenas nota de rodapé à filosofia de
Platão95. Outros, como Derrida e Barthes, tomam como ponto de partida o Curso de Linguística
Geral de Ferdinand Saussure, e com ele concluem que o significado emerge da própria situação
linguística, chegando ao fim o antigo acordo entre a linguagem e o mundo. Toda a metafísica
que fora construída em torno disso perde o chão e a linguagem passa a ser definida como uma
92
Terry Eagleton. Una introducción a la teoría literaria (México: Fundo de Cultura Económica, 1998), p. 43.
93
Jean-François Lyotard. La condición postmoderna, p. xxiii.
94
Idem, ibid.
95
Alfred North Whitehead. Process and Reality (New York: Free Press, 1979), p. 39.
45
convenção social que deve sua existência exclusivamente ao que lhe acontece no próprio
interior.
a) Jacques Derrida
96
Stuart Sim. “Postmodernism and philosophy”, p. 4.
97
Jacques Derrida. Limited Inc. (Evanston, IL.: Northwestern University Press, 1988), p. 7.
98
Ibid., p. 9.
99
Idem, ibid.
100
Geoffrey Bennington. Jacques Derrida (Chicago: The University of Chicago Press), p. 85.
46
possuem várias camadas conceituais que vão se sobrepondo à medida que transcorre o tempo.
A linguagem, portanto, sofre uma evolução permanente que também afeta a inteligibilidade
automática de seu sentido original; embora as línguas que podem ser escritas sejam mais
estáveis do que as ágrafas, mas isso é apenas uma regra geral com inúmeras exceções101. A
linguagem sofre mudanças semânticas e sintáticas, que fazem com que o significado das
palavras não permaneça igual. Existe sempre algo que se perde ou é criado toda vez que um
texto é lido, donde a conclusão de que nenhum texto é unívoco e de que há tantos textos quanto
há leitores.
O texto na visão tradicional é uma comunicação com começo, meio e fim. Pode ser uma
narrativa, pode ser um discurso, um poema, um filme, e até um conjunto de aforismos e
conselhos, em que as ideias do autor são o elemento integrador. E, além disso, subjazem-lhe
outros elementos não menos fundamentais: o tema, a verdade, a tese, a narrativa, que,
entretanto, os pós-modernos veem como artifícios e ilusionismos construídos com o intuito de
enganar o leitor. Para eles, tudo o que fundamenta o texto está marcado pelo desejo de produzir
uma metafísica do discurso, e estão a serviço dos interesses culturais e políticos, de governos,
de instituições religiosas, de livreiros e editoras. Por esse motivo, todo o sistema que pressupõe
a ideia do livro é atacado impiedosamente, e, como resultado dessa desconstrução, o
conhecimento arrisca-se a ser engolfado por um niilismo onde perecem o sentido, o sujeito, a
intencionalidade da comunicação humana. E é interessante que o que negam aos outros não
negam a si próprios, pois não deixam de escrever livros, de se fazerem entender por meio de
textos, e, por seu teor polêmico, também querem ser considerados ‘verdadeiros’.
101
Ferdinand Saussure. Curso de Linguística Geral, p. 34.
47
primordial do autor quando trata de qual seja assunto não é nada além do que uma camisa-de-
força imposta ao texto, que faz o autor faltar com a verdade escondendo evidências que são
contrárias ao seu ponto de vista102.
Um livro não tem nem objeto e nem sujeito; é feito de assuntos diversamente
formados, pertencentes a épocas diferentes, escrito em velocidades diferentes.
Atribuir a um livro um assunto é passar por alto essa construção contínua porque
passam as matérias e a exterioridade de suas relações. É fabricar um Deus benevolente
para explicar os movimentos geológicos. Em um livro, assim como em todas as coisas,
há linhas de articulação e de segmentação, camadas e territórios; mas também há
linhas em voo, movimentos de desterritorialização e de desestratificação. Taxas
comparativas de fluxo sobre essas linhas produzem fenômenos de relativa lentidão e
viscosidade, ou, ao contrário, de aceleração e ruptura. Tudo isso, velocidades
mensuráveis, constituem uma assemblage. Um livro é uma assemblage desse tipo e
como tal é inatribuível103.
O excerto acima bem poderia figurar como modelo de texto pós-moderno, haja vista a
bela exposição de seus pontos primordiais. Derrida também faz sua incursão no
experimentalismo textual com Glas 104 , livro em que ele discute com Hegel e Jean Genet
simultaneamente em duas colunas; além disso, elementos textuais explicativos inseridos como
glosas no próprio texto transformam o livro em um labirinto de fragmentos colados por uma
metodologia de nenhum modo explícita 105 . Glas, portanto, por seu descentramento, é uma
metáfora da própria linguagem (e por extensão desse tipo de filosofia do texto). A rejeição da
unidade logocêntrica tão prezada na civilização Ocidental é atacada por Derrida na própria
composição da estrutura textual, ainda que a custa de tornar a expressão do autor mais difícil e
mais complicado o entendimento do leitor, que precisa localizar os marcadores do texto e os
102
D. Cheryl Echum; David J. A. Clines. The new literary criticism and the Hebrew Bible (Sheffield, U. K.:
Sheffield Academic Press, 1993), p. 19.
103
Gilles Deleuze; Félix Guattari. A thousand plateaus, p. 4.
104
Jacques Derrida. Glas (Lincoln, NK: University of Nebraska Press, 1986).
105
Geoffrey H. Hartmann. ”Monsieur Texte: On Jacques Derrida, his Glas“, The Georgia Review (vol. 29, Winter
1975, no. 4), p. 761.
48
sinalizadores do sentido dispersos nesses fragmentos, ou então, em número bem menor do que
nos textos lineares.
O que Deleuze, Derrida e os demais não estão dispostos a admitir é que que a dissolução
desses elementos inviabiliza a comunicação e a inteligibilidade, ou então, torna a leitura mais
penosa. O objetivo deles é descontruir os truques textuais e estilísticos que servem para
constituir a ilusão da verdade: “um exército móvel de metáforas, metonímias e
antropomorfismos” 106 (Nietzsche). O que é muito óbvio, porém, é que eles jogam fora a criança
junto com a água suja, pois esses elementos tanto servem para iludir como para comunicar. Se
o sentido provém do sistema e o sistema é formado por certos elementos e por certa relação
entre esses elementos, se eles são destruídos ou se é destruída a relação em que estão
organizados, não resta mais nenhum sentido. Mas, como Saussure ensina, se o sentido também
é resultado de uma decodificação executada pela mente do leitor, eliminando esses elementos
ou esses sendo ocultados, a operação mental também ficará mais difícil.
Os pós-modernos não entendem corretamente Wittgenstein e leem por aquilo que ele
nunca diz. Quanto a Saussure, rejeitam a relevância da estrutura tripartite da semiótica da
linguagem: significante, significado e o signo, ou seja, o significante, que pode ser um sinal
106
Ibid., p. 764.
107
Ludwig Wittgenstein. Philosophical Investigations, # 139.
49
vocálico ou gráfico; o significado que ele evoca; o signo, aquilo em que aparecem unidos os
antecedentes 108 . Para eles a semiologia de Saussure já está ultrapassada. Sua ênfase na
comunicação precisa ser superada para que um segundo e mais importante papel da linguagem
possa emergir: o político. Mais adiante analisamos um dos mais destacados pós-modernos que
se preocupou examine com essa questão, R. Barthes.
b) Roland Barthes
108
Ferdinand Saussure. Curso de linguística geral, p. 79 e 80.
109
Roland Barthes, Mitologias (Rio de Janeiro: Difel, 2009), p. 201.
110
Paul Ricoeur. Interpretação e ideologias (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990), p. 47.
111
Idem, ibid.
112
Ludwig Wittgenstein. Philosophical Investigations, # 19.
113
Ibid., # 201.
50
Para exemplificar o segundo e o terceiro sentido, Barthes usa uma ilustração idílica: rosas
vermelhas. Quando um namorado as leva à namorada, elas são o significante, sua paixão é o
significado e o signo, transformado em terceiro objeto, é a união das flores com a paixão do
namorado116. Quanto às rosas em si mesmas, não têm qualquer importância (exceto para um
estudante de botânica): “o significante é vazio, e o signo é pleno, é um sentido”117. Tão pleno
que ainda há um terceiro sentido, um sentido político, que subsiste como parasita do significante
e opera sua deformação; nesse caso simboliza a fragilidade e a suavidade do gênero feminino,
qualidades que definem a mulher segundo um discurso normativo sexista. Por causa desse
terceiro sentido inevitável, que faz uso do segundo para constituir-se, os pós-modernos rejeitam
o discurso intencionado do autor e interpretam o signo livremente, evitando as restrições de
significado operado pela intenção ideológica; ou então, em uma leitura negativa, fazem uma
crítica textual do terceiro sentido. Barthes pergunta e responde: “toda linguagem primeira é
fatalmente cativa do mito? [Sim.] Não existe nenhum sentido que possa resistir a essa
captura.”118 Antes de começar a escrever o escritor já está roubado, pois parte do que vai dizer
não lhe pertence, mas à época em que nasceu e à cultura que o alimentou, pertence aos
preconceitos que o possuem, às obrigações morais que seu superego lhe impõe. Seu discurso
não é, portanto, seu; pelo menos não completamente. Daí que a decisão de semiólogos como
Barthes de abrir o signo, por meio de uma interpretação plural, que faz o intérprete entregar-se
a um pessimismo hermenêutico, não deixa de ter suas razões epistemológicas.
Para consolidar sua teoria, Barthes oferece a seus leitores uma imagem caricata do
conceito de texto, assim como entendido pela hermenêutica tradicional, fazendo-os crer que
essa ignora o fato de que o autor não tem total controle sobre os significantes que manipula,
tendo em vista a intrínseca polissemia dos signos. Julgando ser original, ele afirma que no texto
existe uma multiplicidade, um excesso de sentido, de sorte que “interpretar é dar-lhe o sentido
114
Roland Barthes, Mitologias, p. 205.
115
Idem, Ibid.
116
Ibid., p. 203.
117
Idem, ibid.
118
Ibid., p. 223.
51
plural de que é feito” 119 , é dar-se conta de “uma galáxia de significantes”, motivadores de
leituras diferentes que jamais encontram-se à disposição do leitor como totalidade: “não há um
todo do texto”120, no sentido de uma plenitude que, alcançada, impõe um fim ao processo de
interpretação. Nessas passagens entreolha-nos uma hermenêutica anárquica, uma hermenêutica
que se recusa a ser uma “filosofia do sentido” e quer instaurar em seu lugar uma hermenêutica
criativa, quer transformar o leitor em um transgressor que lê um texto com um sentido
deslizante, para que o texto não mais retorne à insípida “moral da verdade”. O objetivo de
Barthes é “desparafusar um pouco a teoria”121 para potencializar a fruição do leitor; a propósito
do que T. Eagleton faz a observação irônica de que para Barthes “ler é menos laboratório do
que boudoir”122. E aqui voltamos a repetir, o ideal não pode substituir o real, a crítica política
não pode definir o sentido às expensas do campo epistemológico, pois isto é faltar com “a moral
da verdade”, ironizando a expressão depreciativa do próprio Barthes.
Também concordamos que na interpretação também não deve haver excessiva rigidez.
Todo mundo sabe que existem textos clássicos que são inesgotáveis, a exemplo da própria
Escritura, mas isso não significa que não exista um sentido primeiro intencionado pelo autor.
E. D. Hirsch, hermeneuta norte-americano, que em seu livro Validity in interpretation defende
uma distinção útil para desfazer as fabulações pós-modernas. A multiplicidade do texto não está
no “significado” que lhe foi proposto pelo autor, mas na “significação” que nele encontra o
leitor123. Pode haver um grande número de significações válidas, mas elas devem mover-se no
interior de um sistema de significação razoável, ou seja, aquela que não entra em conflito com
aquela sugerida pelo significado do autor. A interpretação não é discricionária; de outro modo,
o texto poderá dizer qualquer coisa, inclusive o que nunca pretendeu e contra o que é
terminantemente contra. Imaginemos a constituição de um país sendo interpretada por juízes
que esposam a hermenêutica pós-moderna. Seria o caos jurídico. Mas, como já vimos, ainda
que o caos seja criativo, pelo menos por essa abordagem, um sistema pautado pela imaginação
dos leitores e que despreza os códigos da comunicação, torna impossível uma hermenêutica
com interesse coletivo. O texto por esse viés tornar-se-ia refém de um solipsismo de inspiração
cartesiana que, em vez de pensamentos singulares como ensina o solipsismo tradicional, haveria
leituras singulares, ignorantes quanto à compreensão do texto que outras pessoas leem.
119
Roland Barthes. S/Z (México: Siglo XXI, 2011), p. 3.
120
Idem, ibid.
121
Roland Barthes. O prazer do texto (São Paulo: Editora Perspectiva, 1987), p. 83.
122
Terry Eagleton. Una introducción a la teoría literaria, p. 54.
123
Ibid., p. 45.
52
Derrida diz algo parecido sobre a limitação imposta pelo conceito tradicional de livro, e
parece entender a Sagrada Escritura como seu arquétipo:
Também causa estranheza a conclusão de Barthes de que no “texto plural não pode haver
estrutura narrativa, gramática ou lógica do relato”, a menos que queiramos um texto com
pluralidade por medida e não um que realmente seja plural 125 . Disso decorre que uma das
características do texto pós-moderno é ser poligráfico, em contraste com a monográfico
tradicional. De fato, os pós-modernos promovem “uma proliferação de narrativas em seus
textos”126, tanto em sua leitura como em sua criação e redação. A diversidade é o ideal político
que interfere na percepção da realidade do texto. O Niilismo deve ser o alfa e o ômega. Alfa
porque o começo da narrativa é algo que padece de uma gratuidade absurda, como a conversa
dos personagens de Beckett em Esperando Godot; ômega, porque lá pelo meio do texto há
tantas narrativas que “o sentido do texto se torna indeterminado”127. Nada contra a poligrafia
como princípio estilístico que faz o leitor perder-se em um labirinto se esta for a mensagem do
texto (que, por sinal, retrata muito bem a condição existencial do homem pós-moderno), como
fazem Proust e Kafka. Porém, como princípio hermenêutico geral, é algo que não corresponde
ao que ocorre quando se escreve ou se lê um texto.
A esse respeito não se pode ignorar algo muito elementar. Para chegar a pluralidade do
excesso ínsito no símbolo e no texto é necessário começar pelo sentido que torna possível que
ele seja lido. Existe uma pressuposição básica aí que marca o nascimento do livro: para o leitor,
o autor é alguém que tem algo importante a dizer; para o autor, o leitor deveria saber sobre o
que tem a dizer. Se o texto é polissêmico e poligráfico ao ponto defendido pelos hermeneutas
pós-modernos então o texto se torna irrelevante e dispensável, pois nesse caso não há nada
importante a dizer ou a descobrir por sua leitura. O texto é múltiplo, mas para chegar a essa
multiplicidade precisa haver uma compatibilidade prévia de sistema que faculta ao leitor
entender o que o autor escreve; e esse sistema é formado pelo tema, pela narrativa, pelo estilo,
124
Jacques Derrida. Gramatologia (São Paulo: Editora Perspectiva, 1973) p. 22.
125
Idem, ibid.
126
Will Slocombe. Postmodern nihilism. Theory and literature (Cardiff, U. K.: Tese de doutoramento, University
of Wales, 2003), p. 290.
127
Idem, ibid.
53
pela estrutura (a forma ou gênero e subgêneros literários e seus códigos) e pelas regras de
retórica que abarcam tudo o que se diz, como se diz e o que é tácito. A interpretação da
multiplicidade é apenas uma segunda abordagem ao texto; a primeira é a busca pelo sentido
comum, que é a visada primeira de qualquer autor quando redige.
O principal motivo para Barthes rejeitar esta hierarquia na interpretação do texto não se
dá por motivos epistemológicos, de resto, inquestionavelmente contrários à sua posição; mas
por motivos políticos. Segundo ele, os filólogos fazem um círculo “ao redor da denotação (foco,
centro, custódia, refúgio, luz da verdade) [e isso] é fechar o discurso (científico, crítico e
filológico) em uma organização centralizada”128. É, portanto, por uma medida autoritária que
se cerceia os direitos de quem lê. A posição dos intérpretes pós-modernos me faz lembrar a
peça de Camus que retrata Calígula e sua titânica noção de liberdade absoluta129. A liberdade
ansiada pelo imperador romano o fazia agir sem nenhuma consideração prévia, como se ele
existisse sozinho no universo e suas ações não tivessem consequência sobre ninguém. Algo
parecido ocorre a esses intérpretes quando pensam no texto como uma cornucópia que existe
unicamente para o prazer dos leitores.
Coerente com essa ânsia de liberdade que recusa aceitar os elementos constitutivos do
texto, Barthes também recusa a hermenêutica tradicional porque para ele o autor e o leitor
também são fabulações. Eles nascem de um esquema epistemológico dualístico que dominou o
Ocidente por pelo menos dois mil anos. Seu grito de guerra é a supressão desse dualismo
sujeito-objeto, os sujeitos estando para o autor e o leitor, o objeto para o texto: “na cena do texto
não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo (o escritor), diante dele ninguém
passivo (o leitor); não há sujeito e objeto”130. O texto deixa de ser livro e passa a ser leitura,
uma atividade que ganha autonomia em relação a ambos, porque a revolta dos signos se apodera
dele, e no campo da comunicação e da semiótica instaura-se a anarquia libertária da livre
significação que também não pertence ao leitor, mas ao seu tempo.
128
Ibid. p. 4.
129
Albert Camus. Caligula and 3 other plays (New York, Random House, 1958).
130
Roland Barthes. O prazer do texto, p. 24.
54
de uma época131, não podendo, a rigor, serem tributadas ao próprio Balzac. Ora se a elocução
de uma ideia pertence a uma comunidade e não ao indivíduo que a emite, do mesmo modo, a
interpretação não é feita pelo leitor, mas pelo Sitz im Leben onde está localizado, de modo que
cada nova interpretação pertence ao contexto social onde ocorre. A interpretação, portanto, liga-
se a uma cadeia sem fim de interpretações, onde não se pode nunca chegar aos fundamentos,
porque eles não existem. Foucault corroboraria dizendo que, para Nietzsche, “Não há,
absolutamente, uma primeira interpretação, porque, no fundo, tudo já é interpretação, cada sinal
não é em si mesmo uma coisa que se oferece à interpretação, mas é interpretação de outros
sinais”132. Portanto, o princípio não é realmente o começo, e qualquer princípio assim nomeado
já se encontra dentro de uma cadeia de interpretações, cuja genealogia é impossível perscrutar.
E mesmo a interpretação da interpretação já se torna uma operação difícil e impossível de levar
a cabo devido ao abismo que semânticas diferentes impõem a homens de épocas e lugares
diferentes, e que impede de ser entendido em sua integridade o que outros disseram133.
131
Roland Barthes. O rumor da língua (Brasília: Editora Brasiliense, 1988), p. 284.
132
Michel Foucault. “Nietzsche, Freud, Marx”, Cahiers de Royaumont (Paris, Éd. de Minuit, 1967) p. 183.
133
Rudi Visker. Michel Foucault. Genealogy as Critique (London: Verso, 1995), p. 12.
134
Ibid., p. 6.
135
Chaïm Perelman e Lucy Olbrechts-Tyteca. Tratado da argumentação (São Paulo, Martins Fontes, 2002), p. 17.
55
Além dessa regra fundamental que regula o mundo humano, que podemos chamar de
etiqueta, há inúmeras outras regras tácitas que devem ser seguidas e que pressupõem a
intencionalidade do autor e do leitor enquanto componentes de uma comunidade comunicativa.
Trata-se de procedimentos que executados visam a pactuação que caracteriza o “discurso
prático-geral”, como o chama Alexy136, o qual se destina ao auditório universal, formado por
todos os que usam a linguagem. Esses procedimentos podem ser divididos em três partes:
“regras fundamentais”, “regras de razão” e “regras de carga de argumentação.”137:
(2.) Todo falante deve, se lhe for pedido, fundamentar o que afirma, a não ser que
possa dar razões que justifiquem negar uma fundamentação.
(2.1.) Quem pode falar pode tomar parte no discurso.
(2.2.) (a.) Todos podem problematizar qualquer asserção.
(2.2.) (b.) Todos podem introduzir qualquer asserção no discurso.
(2.2.) (c.) Todos podem expressar suas opiniões, desejos e necessidades. 139
(3.1.) Quem pretende tratar a uma pessoa A de maneira diferente de uma pessoa B
está obrigado a fundamentá-lo.
(3.2.) Quem ataca uma proposição ou uma norma que não é objeto da discussão, deve
dar uma razão para isso.
(3.3.) Quem aduziu um argumento, está obrigado a dar mais argumentos em caso de
contra-argumentos.
(3.4.) Quem introduz no discurso uma afirmação ou manifestações sobre suas
opiniões, desejos ou necessidades, que não se apresentem como argumento a uma
manifestação anterior tem, se lhe for pedido, de fundamentar porque tal manifestação
foi introduzida na afirmação.”140
Essas regras tácitas de comunicação não podem ser ignoradas. Elas são a essência da
comunicação humana e do que nela há de mais básico: há um falante, alguém que dirige um
136
Robert Alexy. Teoria da argumentação jurídica (São Paulo, Landy, 2005), p. 284.
137
Idem, ibid.
138
Idem, ibid.
139
Idem, ibid.
140
Idem, ibid.
56
discurso; há uma audiência, que pode ser uma ou mais pessoas; há um discurso e as regras de
interpelação do discursante. Não importa se o discurso é declamado ou escrito, essas regras
servem como baliza sociolinguística dentro das quais a permuta de signos circula e a
comunicação acontece. A intencionalidade do autor que institui o discurso e a intencionalidade
do leitor que ‘acredita’ no discurso e todos os demais elementos (o tema, a narrativa) criam um
primeiro sentido que não pode ser simplesmente varrido para fora da hermenêutica em nome
de uma anarquia pseudolibertadora que faz desaparecer em suas águas turbilhonosas tudo o que
poderia constituir-se como sentido de um discurso.
Mas donde vem essa epistemologia que faz o sentido do texto desaparecer? Ela provém
de uma interpretação radical da linguística de Saussure e das ideias de Wittgenstein, pelas quais
a linguagem se resolve por si mesma sem ajuda do falante humano. Grosso modo, a sintaxe
sozinha produz a semântica ou o sentido, já que o contexto, a atividade em que está imersa a
comunicação, revela o sentido das palavras142. As palavras ou as expressões linguísticas são
peças de um jogo que se jogam sozinhas: “nenhuma palavra ou ato pode ser verdadeiro ou falso
e ninguém é responsável pelas consequências de qualquer palavra ou ato porque não há autores.
Ninguém está jogando, todos são jogados.”143. Nem mesmo a comunidade onde transcorre esse
jogo tem papel preponderante; ela também é determinada pela história de relações que se
constroem a seu despeito, por sistemas discursivos que visam o controle institucional, como
veremos mais adiante na discussão com Foucault.
141
Tian Yu Cao. Postmodernity in Science and Philosophy, p. 15.
142
Ludwig Wittgenstein. Philosophical Investigations, # 2.
143
Dorothea E. Olkowiski. Postmodern philosophy and scientific turn, p. xx.
57
peculiar hermenêutica criativa. Entretanto, não atentam para o fato de que recaem em velhos
vícios, por exemplo, aquele velho hábito epistemológico dos modernos, condenado, por ex.,
por L. Wittgenstein: a generalização indevida dos fenômenos linguísticos, “as dietas
unilaterais”144, que os faz esquecerem do fato fundamental de que não existe uma linguagem
em geral, apenas jogos de linguagem e se são jogos é impossível que se joguem sem que sejam
seguidas regras, Não podemos simplesmente descartá-las e ainda pensar que preservamos o a
comunicação e sua inteligibilidade. Ora, se não existe sentido transcendental, o sentido sendo
imanente e sendo construído pelos próprios utentes da linguagem, a única forma de construir
esse sentido são as regras e o seguimento delas. Os pós-modernos cometem muitos equívocos
epistemológicos aqui, mas o principal é que não aplicam os princípios básicos da linguística a
seu próprio discurso. Mutatis mutandis, quando universalizam seu próprio discurso e proíbem
aos outros de fazerem o mesmo, agem como os neopositivistas, quando esses rejeitam a
metafísica por meio da ‘metafísica da rejeição da metafísica’, ou então, criticam os discursos
universais através do ‘discurso universal da rejeição dos discursos universais’. Pode-se até
concordar com eles de que em certas circunstâncias as práticas discursivas funcionam de uma
maneira política, reforçando a terceira significação. Contudo, isto não é tudo o que constitui um
texto.
Ora, para o que não é política (porque não posso dizer que tudo é política), existe a
hermenêutica, os estudos filológicos, históricos e arqueológicos, etc. O pessimismo
hermenêutico pós-moderno é injustificado em face de tantas ciências auxiliares que pelejam
pelo esclarecimento tendo como objetivo a interpretação. Parece que segundo seu ponto de vista
a sociedade deveria destituir essas áreas do conhecimento já que seus esforços são vãos e até
parciais, seja por ser impossível superar o abismo semântico interposto entre nós e os homens
na Antiguidade Clássica, por exemplo; seja porque o objetivo do discurso é basicamente
enganar e iludir. Não se pode deixar de reconhecer que houve maus exemplos entre aqueles que
tentaram fazer essa transposição do homem de hoje para o mundo do texto no passado;
estudiosos que manipularam os fatos; teses ardilosamente ocultaram informações que não as
favoreciam. Mas, será isso razão suficiente para destituir boa parte da cultura erudita e artística
humana? E o que colocam em seu lugar, se não parecem ser capazes de oferecer outra
alternativa senão o nonsense ou o silêncio? Como já foi observado o principal impulso estético
e epistemológico pós-moderno é um impulso ao silêncio e esse constituído por duas naturezas
144
Ludwig Wittgenstein. Philosophical Investigations, # 593.
58
145
Hans Bertens. “The Postmodern Weltanschauung and its relation to Modernism: An introductory survey”.
Joseph Natoli; Linda Hutcheon. A Postmodern reader (New York: State University of New York Press, 1993), p.
43.
146
Andrew K. M. Adam. What is the postmodern biblical criticism (Minneapolis, MN: Fortress Press, 1995), p.
19.
147
François-Xavier Amherdt. “Apresentação”. in Paul Ricoeur. A hermenêutica bíblica (São Paulo: Loyola, 2006),
p. 53.
59
paradoxalmente, por causa de sua polissemia e porque sempre “ultrapassa o horizonte subjetivo
da interpretação”148, a obra de gênio torna-se universal e, por esse motivo, é possível ter dela
uma interpretação compartilhável.
Heidegger também esteve preocupado com a diferença (se bem que outra diferença) e
provavelmente deve ter sido a primeira inspiração da desconstrução de Derrida. Foi da boca do
filósofo da Floresta Negra que saiu o primeiro brado de revolta contra a ocultação do Ser e de
148
Hans-Georg Gadamer. Verdade e Método (Petrópolis: Vozes, 1999), p. 18.
149
Terry Eagleton. Después de la teoría (Barcelona: Cultura Libre, 2003), p. 113.
150
Jacques Derrida. A escritura e a diferença (São Paulo: Perspectiva, 1995), p. 208.
60
sua verdade. Desde Platão e antes dele (Tales de Mileto e os outros pré-socráticos preocupados
com a physis) a filosofia tem se ocupado em falar dos entes quando pensa em falar do Ser. E
quando menos fala de Deus entendendo-se ateia, mas fala de Deus enquanto ente (já que a Deus
ela está referida, embora não o reconheça), no que que é duplamente equívoca, quando O nega
e em negá-Lo fazendo-O de forma errada. A superação da metafísica onto-ontológica só
ocorrerá na medida em que for ressaltada a diferença entre os entes e o Ser151, ou seja, em
ascender à completude do Ser no fundo de sua vacuidade152, porque o Ser é um fundamento e
não um ente entre outros.
Heidegger, portanto, está muito longe de ser niilista, porque apesar da recepção
acolhedora ao pensamento de Nietzsche (que é reconhecidamente um niilista convicto), o
niilismo para ele é também uma grande promessa, prenúncio de uma nova era, à medida que é
afastado todo o lixo acumulado por dois milênios de onto-metafísica153. Despir o Ser de falsos
ornamentos e proclamar a morte dos entes, não é de modo algum uma glorificação do nada,
mas daquilo que daí emerge, pois para ele:
O nada não é nunca nada, tampouco é algo no sentido de um objeto; é o Ser mesmo,
de cuja verdade se apropria o homem quando supera a si mesmo como sujeito, isto,
quando já não se representa o ente como objeto. [Em suma], o que quer colocar em
relevo é o Ser como não-ente, o Ser como ontologicamente diferente do ente 154.
Mas, como o próprio Heidegger reconhece é muito difícil falar do Ser sem recorrer ao
ente. Mas se todas as línguas ocidentais já estão tão impregnadas de metafísica, marcadas tão
indelevelmente pelo pensamento onto-teológico, tem muita pertinência a pergunta se seria
mesmo impossível falar do Ser sem falar dos entes? Se existem outras possibilidades de
expressar o “silêncio do Ser”?155 Com efeito, todas as vezes que usamos o verbo de ligação
‘ser’ a relação do Ser com o ente já está pressuposta, ainda que negada. E ainda quando
completamente ausente, como na afirmação: “Deus não existe!’, em certo sentido, está aí “a
metafísica da presença”, porque a referência da afirmação é Aquele que nunca se ausenta.
Heidegger quer construir um novo caminho para falar do Ser sem recorrer à onto-teologia.
Perseguindo esse propósito procura fazer com que a própria existência fale do Ser
151
Martin Heidegger. Identity and difference (New York: Harper and Row, 1969), p. 62.
152
Martin Heidegger. Identity and difference, p. 53.
153
Gianni Vattimo. El fin de la modernidad. Nihilismo y hermenéutica en la cultura posmoderna (Barcelona:
Gedisa, 1987), p. 106.
154
Modesto B. Villalibre. Superación de la metafísica en Martin Heidegger (Oviedo, España: Universidad de
Oviedo, 1991), p. 142.
155
Martin Heidegger. Identity and difference, p. 73.
61
Heidegger pretende falar do Ser indiretamente a partir da existência que é seu espelho.
Contudo, para Derrida o filósofo de Marburg ainda não atingira a questão com a radicalidade
necessária, porque para se falar da experiência fundamental do Dasein é necessário fazer uso
de uma linguagem, de modo que é impossível concretizar o projeto heideggeriano por meio de
um discurso estritamente filosófico. Para Derrida, a linguagem estaria inteiramente
contaminada pelas concepções metafísicas. É preciso, portanto, dar um passo atrás em relação
ao lugar em que Heidegger se colocou, e no que F. Saussure vem em seu socorro. O insight
fundamental saussuriano de que a linguagem não é representação do mundo, mas um sistema
arbitrário e diferencial de símbolos que, como convenção social, do ponto de vista da semântica,
não tem nenhuma âncora metafísica. Nenhum signo tem relação de essência com aquilo que
156
Martin Heidegger. A caminho da linguagem (Petrópolis, RJ/Bragança Paulista, SP: Vozes/Editora Universitária
São Francisco, 2003), p. 199.
157
Martin Heidegger. Identity and difference, p. 47.
62
significa, embora tenhamos essa impressão quando falamos nossa língua materna (porque essa
associação foi repetida milhares de vezes em nossa vida); e é diferencial porque da perspectiva
da sintaxe, o significado dos signos decorre de sua estrutura sistêmica composta por dicotomias
ou pares de oposições binárias: mente/corpo, bem/mal, homem/mulher, branco/negro,
cidade/campo, etc., uma parte do significado de um desses pares está em sua contraparte
binária158. Uma parte do significado das palavras está em um elemento que ao mesmo tempo
está ausente e presente; por exemplo, uma parte da significação de mal está na palavra bem,
que embora esteja ausente, de algum modo também está presente159. Derrida leva Saussure às
últimas consequências concluindo com base nesse argumento que o pensamento logocêntrico
constrói-se como aporia fundamental, ao a pergunta transcendental sobre as suas condições de
possibilidade ser respondida da seguinte forma: “essas condições de possibilidade incluem
precisamente o que a presença, a fala e o sentido tentam excluir [porque se constitui como
sistema de oposições binárias]”, de sorte que “as condições de possibilidade do logocentrismo
também são suas condições de impossibilidade”160.
Embora Saussure seja um importante suporte teórico ele ainda tem um vício de princípio
que o impede de superar completamente a “metafísica da presença” de Heidegger e
predecessores, que se apresenta em sua linguística por ainda permanecer ligada à metafísica da
presença por dois motivos: (a) está ainda implícita a concepção hierárquica de que os objetos
são superiores ao signo; (b) o conceito de signo é entendido de modo estático, fixo; servindo,
assim, de ancoragem à metafísica. Derrida chama-o de “significado transcendental, um conceito
independente da língua” 161 , que contraria sua afirmação fundamental de que a relação do
significante com o significado é arbitrária e convencional. Assim, em Saussure, o processo de
significação é de fato anti-metafísico, mas o resultado, não. Ele pensa a linguagem pela
perspectiva de uma inocência que ela não possui. Em suma, embora tenha demonstrado a
autonomia dos processos linguísticos e sua auto-referencialidade, inadvertidamente, esqueceu
em seu interior um resíduo metafísico que é esse significado, esse conceito que é resultado da
significação.
158
Jacques Derrida. “A diferença”, p. 42.
159
Cf. Jacques Derrida. “Semiologia e Gramatologia”. Entrevista a Julia Kristeva. In Jacques Derrida. Posições
(Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2001), p. 24.
160
Simon Critchley. “The ethics of deconstruction: the argument”. In Zynep Direk; Leonard Lawlor. Jacques
Derrida. Critical assessments of leading philosophers, vol. II (London: Routledge, 2002), p. 291.
161
Jacques Derrida. “Semiologia e Gramatologia”, p. 26.
63
A série de argumentos propostos por Derrida contra essa ideia começa com (a) a rejeição
da própria relação significante-significado porque o significado também é significante de outro
significado e assim sucessivamente 162 . Essa é uma cadeia sem fim e sem começo, cujos
elementos estão se reciclando continuamente. Saussure não ignora esse dinamismo da
linguagem, mas pensa-o de forma estrutural: a linguagem evolui em bloco. Derrida aponta a
necessidade de se turvar essa clareza processual e para descontrui-lo começa por apontar para
um excesso natural entre o significante e o significado. Ele rejeita com Saussure que exista
alguma semelhança essencial entre o significante e o significado, uma relação onomatopeica,
por exemplo, em que o significante, ou o som da palavra, se pareça com aquilo que ela quer
representar163. Contudo, tampouco existe uma diferença tão marcada como Saussure quer fazer
crer. Derrida cria uma terceira opção, a que chama de diferança (differance) para designar uma
diferença que não é pura, que é portadora de um espaçamento, de uma demora, que turva o
conceito. A diferença fundamental entre o significante e o significado não é pura. Entre eles há
um espaçamento, uma demora, que faz aí de entremeio se imiscuírem outros significados.
162
Ibid., p. 26.
163
Ferdinand Saussure. Curso de Linguística Geral, p. 83.
164
Jacques Derrida. Posições, p. 32.
165
Idem, ibid.
64
Diferir, portanto, é “esse movimento (ativo) (da produção da diferença) sem origem”170,
que não poderia ser chamado meramente de diferenciação, porque aí se perderia a significação
da temporização, do desvio. Para Derrida, no princípio era a linguagem, mas uma linguagem
com logos quebrado, sobre o qual é impossível fundar uma ontologia, porque a lógica de seu
funcionamento (da linguagem) oscila sobre a areia movediça de um mundo humano perturbado
por inúmeras ocasionalidades responsáveis por esses desvios sobre os quais nada se pode dizer
a priori, exceto que não são a priori. Ou seja, existem diferenças e não uma diferença, “forças
e diferenças no plural”171.
166
Ferdinand Saussure, Curso de Linguística Geral, p. 83.
167
Derridex. Index des termes de l’œuvre de Jacques Derrida. Différance.
168
Jacques Derrida, “A diferança”, p. 53.
169
Derridex. Index des termes de l’œuvre de Jacques Derrida. Différance.
170
Jacques Derrida. “A diferança”, p. 45.
171
Geoffrey Bennington. Jacques Derrida, p. 84.
65
O próprio Derrida reconhece que falar de diferença no singular reporta em alguma medida
a algumas perguntas legítimas dentro do discurso: “o que difere? Quem difere? O que é a
diferença?”. Contudo, não pode responder a nenhuma delas, porque fazendo-o estaria a
reconhecer a derivação do conceito. Ou seja...
Se, de fato, aceitássemos a forma da questão, no seu sentido e na sua sintaxe ("o que
é", "o que é quem", "quem é quem"...) seria necessário admitir que a diferança é
derivada, acidental, dominada e comandada a partir do lugar de um ente-presente,
podendo este ser qualquer coisa, uma forma, um estado, um poder no mundo, aos
quais seria possível atribuir qualquer espécie de nome, um quê ou um ente-presente
como sujeito, um quem. Neste último caso, particularmente, admitir-se-ia
implicitamente que esse ente-presente, por exemplo, como ente-presente a si 172.
172
Ibid., p. 47.
173
“Deus – Mundo, Eternidade – Tempo, Ser – Vir a ser, Repouso – Movimento, Permanência – Mudança,
Presença – Ausência, Um – Muitos, Sagrado – Profano, Ordem – Caos, Significado – Absurdo, Vida – Morte,
Infinito – Finito, Transcendente – Imanente, Identidade – Diferença, Afirmação – Negação, Verdade – Erro,
Realidade – Ilusão, Certeza – Incerteza, Claridade – Confusão, Sanidade – Loucura, Luz – Trevas, Visão –
Cegueira, Invisível – Visível, Espírito – Corpo, Espiritual – Carnal, Mente – Matéria, Bem – Mal, Inocência –
Culpa, Pureza – Imundície, Próprio – impróprio, [...]”. Mark C. Taylor. Erring: a postmodern A/ Theology, p. 8.
174
Jacques Derrida. “A diferença”, p. 44.
66
O erro de Derrida foi ignorar que esses milênios de desvios metafísicos constatados por
Heidegger não estão aí por acaso e nem refletem uma decadência do pensamento pela falta de
um método próprio para limpar o assoreado solo da filosofia, método pelo qual teriam que
esperar até o século XX, quando do nascimento da fenomenologia. Sofremos de uma compulsão
à metafísica, que segundo a definição de Wittgenstein é o desejo irrefreável de ir “além do que
sabemos”175 ou do que podemos saber. Nossa linguagem está repleta dos sinais dessa moléstia,
porque no momento em que decidimos não crer mais em Deus, como os modernos e iluministas
fizeram e em que persistem os pós-modernos, estamos fadados a constituir outros deuses ou
ídolos (nem que esses sejamos nós mesmos), pois não somos humanos sem acreditar 176 .
Nietzsche vai ficar esperando na tumba o dia quando o homem se livrará das “sombras de
Deus”, quando ele houver finalmente se naturalizado por completo177, ou seja, dando as costas
para o discurso metafísico e teológico e se confrontar com sua natureza mais crua e humana.
Não há nada mais humano do que crer em Deus e não nada menos humano do que a
naturalização de nossas ações e da realidade; deveríamos cair de quatro e não levantar mais
para chegar a isso. O que explica o fato de a metafísica haver dominado o pensamento humano
por tanto tempo se não for porque isso é parte intrínseca do ser humano? Esse é o substrato
rochoso onde estão ancorados todos os sistemas linguísticos, dos mais avançados aos mais
primitivos.
175
Ludwig Wittgenstein. Das Blaue Buch und Eine Philosophische Betrachtung (R. Rhees (org.), Schriften 5,
Frankfut am Main, Suhrkamp Verlag, 1982), p. 45.
176
Sto. Agostinho. Confissões (São Paulo: Abril Cultural, 1980), Livro I, capítulo 1.
177
Friedrich Nietzsche. “A gaia ciência”. In Obras incompletas (São Paulo: Nova Cultural, 1999), p. 184.
67
significado dependa apenas dela mesma e de sua condição originária; em suma, todas as
verdades são relativas ao sistema no interior do qual operam e não há nada originário nele,
nenhum arché revelador. A conclusão de Derrida, portanto, faz eco ao niilismo nietzschiano,
pois com a dissolução da verdade-arché da onto-teologia os valores que aí se fundamentam
também desaparecem, dando lugar a “vertiginosas potencialidades [até então] bloqueadas pelo
valor supremo Deus” 178 , pois somente libertos dessas amarras os valores podem tornar-se
geradores de novos valores, “por meio de indefinidos processos”179. Contudo, Derrida, ou quem
quer que seja de seu grupo, deu um passo sequer além do lugar onde Nietzsche deixara a
Filosofia europeia quando de sua morte. Os valores cristãos se perderam e nenhum outro foi
criado. Vaga-se à deriva: “perdemos o estímulo principal; até agora foi tudo em vão”180. A pós-
modernidade como herdeira da transvaloração de Nietzsche até agora ficou só na promessa.
Nem apareceram “os processos indefinidos” nem deram em alguma coisa de “vertiginosas
potencialidades”. Os valores pós-modernos simplesmente recuaram rumo a tempos pré-tribais
(porque os primitivos também têm metafísica), onde o afeto é o principal argumento para sua
manutenção; ou então estamos criando pequenas metafísicas grupais para justificar nossas
ações.
Mas estamos nos adiantando; deixemos esta discussão para mais pra frente quando
pusermos em tela a questão ético-política. Mantendo-nos no plano conceitual, embora já
estejamos discutindo essa questão, é hora de analisar como Foucault critica a verdade objetiva
de Aristóteles entendendo-a como exercício de poder.
178
Gianni Vattimo. El fin de la modernidad, p. 25.
179
Idem, ibid.
180
Friedrich Nietzsche. “Niilismo”. In Obras incompletas, p. 430.
181
Michel Foucault. A arqueologia do saber (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987), p. 20.
68
relação sujeito-objeto por ele suposto. Foucault observa que a relação entre o sujeito e o objeto
não é algo dado desde sempre, mas uma construção social, decorrente de condições históricas,
estabelecidas por “modos de objetivação” e “modos de subjetivação”182. Tratando-se, portanto,
de sujeitos e objetos cambiantes, que se modificam de acordo com as instituições que os
operacionalizam, no interior de um projeto de poder e situação históricas específicas. A verdade
por correspondência neste caso pressupõe um discurso que descreve uma relação desencarnada
entre um sujeito e um objeto, a abstração irreal que tem como referência uma realidade social,
permeada por outras relações simultâneas e concorrentes ínsitas em uma complexa gramática
de poder. Para ele, a assim chamada relação sujeito-objeto, é uma abstração, é uma ilusão
produzida por várias linhas discursivas, por prescrições veritativas, que impõem modos de
subjetivação e objetivação, consideradas adequadas pela instituição que é a guardiã dessas
verdades. Essas verdades são operacionais e exercem por isso um papel regulador que
possibilita a manutenção de um dado sistema de conhecimento, que, por sua vez, é uma técnica
de controle social. São aquilo que Foucault chama de “jogos de verdade”183, no interior dos
quais são usados vários tipos de técnicas veritativas, nas mais diversas áreas do conhecimento:
psicologia, psiquiatria, direito, sexualidade, história, etc. Em suma, a objetividade é apenas um
disfarce que oculta processos discursivos que servem a certas atividades e certas operações para
a manutenção do poder.
182
Michel Foucault. Dits et écrits, IV (Paris: Gallimard, 1994), p. 632.
183
Michel Foucault. Dits et écrits, p. 533.
184
Michel Foucault. A arqueologia do saber, p. 49.
69
A mesma tese permeia uma obra em que Foucault põe em discussão a verdade jurídica,
A verdade e as formas jurídicas, onde recapitula a evolução da verdade no contexto jurídico,
no modo como as penas evoluíram de castigos corporais e expiatórios para a supressão da vida;
do castigo como privação da liberdade à submissão a trabalhos forçados e a reflexão racional
sobre as consequências das ações delituosas187. Nesse contexto a transgressão como pecado
desaparece para dar lugar ao delito, que não é um conceito religioso, mas racional; é
transgressão que é paga por meio de um serviço à sociedade ofendida (trabalhos forçados) e
não com a expiação (sofrimento físico) para sanar uma falta de natureza religiosa. Não houve
humanização da pena, apenas surgiu um processo de instrumentalização dos presidiários pelo
sistema capitalista188, por meio da implantação do sistema de vigilância panóptico, idealizado
pelo filósofo empirista inglês Jeremy Bentham, que em maior ou menor grau foi adotado pelo
mundo euro-americano189.
185
Idem, ibid.
186
Michel Foucault. Arqueologia do saber, p. 54.
187
Cesare Beccaria. Dos delitos e das penas (São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997).
188
Michel Foucault. A verdade e as formas jurídicas (Rio de Janeiro: Nau editora, 2002).
189
Jereny Bentham. O panóptico (Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2008).
70
É interessante que Foucault use sua prodigiosa capacidade de análise e de pesquisa para
concluir que o processo de construção das ciências humanas é uma ordenação que mascara a
irracionalidade de seus objetos, sem haver, contudo, uma ordenação prévia, uma busca pela
estrutura do discurso ou de ‘leis’ que secretamente coordenam as inflexões do discurso ao longo
da história dos objetos; porque ele rejeita o estruturalismo190. A única lógica do discurso é a
lógica do poder, que apenas toma ocasião da história para dar-se a si mesmo maior
plausibilidade. Todas as inflexões do discurso são como teias que se entrecruzam infinitamente
em todas as direções, revelando sua real irracionalidade. Os objetos da psiquiatria, por exemplo,
não são definidos apenas por essa ciência, mas “por textos jurídicos, por expressões literárias,
por reflexões filosóficas, por decisões políticas e por opiniões comuns que são parte integrante
da formação discursiva”191. Foucault é hobbesiano; o discurso que instituiu esses objetos são
maquinaria autônoma que funciona movida pelo instinto de autopreservação dessas instituições,
ou seja, não têm sujeito e nem referência192; dimanam da necessidade do exercício de uma
função e seu significado decorre do conjunto de regras que se auto-instituem. Nisso segue
também o modelo linguístico de Saussure, mas também difere dele à medida que rejeita uma
lógica que precede sua instituição. A estrutura vai sendo montada à medida que se necessita
enquadrar novos objetos; ademais, ela nunca está acabada porque os objetos nunca cessam de
nascer e morrer em seu seio. Devido à essa percepção, a análise de Foucault está atravessada
por elementos híbridos provenientes da Linguística e da História, mas que não chegam a definir-
se pela metodologia ou pelo objeto como disciplina no campo das ciências humanas.
190
Michel Foucault. Arqueologia do saber, p. 233.
191
Gilles Deleuze. Foucault (Barcelona: Paidos Editora, 1987), p. 45.
192
Gilles Deleuze. Foucault, p. 43.
193
Idem, Ibid.
71
desse estágio inicial; enfim, só o futuro dirá. Em sua atual condição, é como se tivessem
formulado uma disciplina que é mais um antídoto para as ilusões do pensamento moderno do
que um campo teórico capaz de gerar um conhecimento positivo, o que provavelmente faz dela
um conhecimento sem outra expectativa senão a esterilidade, pois será incapaz de deixar
descendentes194.
O que foi falado linhas acima sobre o projeto crítico de Barthes vale também para
Foucault, ou seja, sua crítica serve para desnudar as motivações ideológicas do discurso de dada
ciência, portanto, é uma abordagem epistemológica segunda. Como ele mesmo diz: “estudando
a formação dos objetos, os campos nos quais emergem e se especificam, estudando também as
condições de apropriação do discurso, depara-se com a análise das formações sociais”195. Em
resumo, as formulações teóricas de Foucault padecem da mesma moléstia de seu conterrâneo
Barthes, porque, como nesse também naquele, o que chama a atenção não é a formação do
conceito, mas a distorção do conceito; de sorte que sua crítica atinge a psiquiatria apenas em
um segundo momento epistemológico, quando seu objeto já está distorcido pelos interesses do
sistema do sistema capitalista. Isso induz seus leitores a pensar que ela se reduz a essas
distorções, o que não é verdade. A cooptação ideológica da psiquiatria sempre existiu e subsiste
até hoje (como poderemos perceber nas definições da normatividade sexual a ser discutida mais
adiante), mas a psiquiatria não é só isso. O que Foucault consegue com sua crítica é substituir
uma ilusão por outra, a saber, retira a ilusão de que as formulações da psiquiatria são uma
verdade completamente objetiva, substituindo-a por outra ilusão, a de que a psiquiatria não tem
nenhuma objetividade real, devendo a ilusória ser desconstruída, dado que sua intenção é
marginalizar os sujeitos que estuda e classifica.
194
Michel Foucault. A arqueologia do saber, p. 234.
195
Ibid., p. 235.
72
uma operação positiva que vise a construção de uma ciência, exceto se eu pensar a partir de
uma generalização: ‘todo discurso científico distorce os objetos de que trata’. Mas, se o declaro,
adoto a posição do sujeito transcendental que crítico e invalido meu próprio projeto crítico,
coisa que Foucault sagazmente não faz, ao menos não positivamente. Contudo, deixar como
legado uma ciência em estado de esboço é um ardil que se sustenta apenas porque depois de
atirar todas as pedras no telhado dos outros ele pode afirmar: ‘não me atirem pedras, eu não
tenho teoria’.
O que fica, de resto, óbvio, é que Foucault coloca todos os homens na prisão do discurso,
retrata-os como coagidos pelas malhas de suas regras, mas dá-se a si mesmo uma rara liberdade,
e não menos rara capacidade de analisá-lo e perceber o que ninguém mais vê. Não seria esse o
álibi do sujeito transcendental tão difamado pela Pós-modernidade? O fato de Foucault não
chegar a concluir sua análise com um capítulo positivo e não se sentir confiante para arriscar
uma qualificação para sua teoria, significa que não se trate de uma teoria? Parece que Foucault
fica no meio do caminho, eis o motivo porque chama os resultados de sua reflexão de “teoria
envolvente”198. Contudo, a que conclusão nos leva a descoberta das astúcias do discurso? A
expropriação do sujeito de sua soberania, como Foucault sugere? Não me parece. Um sujeito
196
Ibid., p. 236.
197
Idem, ibid.
198
Ibid., p. 235.
73
que é capaz de perceber os limites de sua soberania é tanto mais soberano quanto mais é capaz
de fazê-lo.
199
Hans-George Gadamer. Verdade e método, p. 17.
200
Idem, ibid.
201
Jacques Bouveresse. “Herméneutique et linguistique” (Berlin: Walter de Gruyter, 1981), p. 118.
202
Idem, ibid.
203
Richard Palmer, Hermenêutica (Lisboa: Edições 70, 1985), p. 66.
74
não dá a devida atenção à historicidade do texto nem ao que ele diz, por estar mais preocupada
com hermenêutica do homem. Em síntese, para Betti, Gadamer “perdeu-se em uma
subjetividade existencial sem quaisquer regras”204. Mas o discípulo de Heidegger não aceita a
invectiva e responde afirmando que sua hermenêutica não pode satisfazer as expectativas de
Betti porque o que lhe interessa é o que há de comum em todas as hermenêuticas específicas e
não uma em especial, ou seja, sua intenção não era “desenvolver um sistema de regras que
conseguisse descrever o procedimento metodológico das ciências do espírito, ou até guia-
las.”205; pelo contrário, o que lhe interessa é a análise fenomenológica da experiência estética:
“o que está em questão não é o que fazemos, ou o que devíamos fazer, mas o que, ultrapassando
nosso querer e fazer, nos sobrevém, ou nos acontece”206.
Quanto a Foucault, sua investigação tem importância à medida que expõe os mecanismos
disciplinadores dos sujeitos e dos objetos, revelando os limites da imparcialidade do discurso e
de sua objetividade, mas peca por negar qualquer legitimidade aos empreendimentos racionais,
recomendando o silêncio à maioria das ciências contemporâneas, porque, como discurso, já
estão de antemão condenadas à sujeição aos interesses políticos. Desse modo trocamos uma
visão a priori por outra, a preconceituosa e marginalizadora de certos grupos pela
preconceituosa e marginalizadora de certas instituições; a total confiança nas instituições que
produzem essas verdades pela total desconfiança. Se na maior parte do tempo é isso mesmo que
ocorre, conforme demonstrou T. Kuhn, no período de transição entre um paradigma e outro, a
204
Ibid., p. 67.
205
Hans-George Gadamer. Verdade e método, p. 14.
206
Idem, Ibid.
75
O recurso aos fatos como cavalo de batalha para a mais recente eliminação da metafísica
tem sua raiz histórica no empirismo de David Hume. Esse notório cético escocês, empirista,
contemporâneo dos iluministas franceses, mas que, diferente de Locke, seu conterrâneo e
predecessor, não concedeu aos fatos aquela mesma dignidade epistêmica, por não concordar
em chamá-los de fundamentos da certeza. Segundo Hume só existe dois tipos de ciência: (a) a
ciência dos fatos, empíricas e contingentes, para cuja descrição é utilizada uma linguagem
sintética e por isso a posteriori; (b) as ciências das ideias, formais e necessárias, tais como a
matemática e a lógica, para as quais se utiliza uma linguagem analítica e portanto a priori207;
não havendo nem sinal de ciência moral, psicológica, metafísica, etc. Esses dois grupos de
ciências também não são lá grande coisa para ele porque as primeiras são prejudicadas pela
psicologia humana, responsável pela ideia de causa e efeito; e as segundas não passam de mera
tautologia. Para concluir, existe um abismo tão grande entre elas que é impossível haver
qualquer cooperação. Contudo o ácido humeano não conseguiu corroer a ciência newtoniana, a
qual veio a servir de modelo para a reação posterior de I. Kant.
Além de Hume houve naquela época toda uma estirpe de filósofos iluministas mais ou
menos materialistas (Holbach, La Mettrie, Diderot, por exemplo) que procuraram dar combate
às ideias metafísicas de Descartes, Espinosa e Leibniz, com relativo sucesso. No século XIX a
tradição empirista fortalece-se ainda mais com a proposta de A. Comte de aproximar as ciências
do espírito das ciências da natureza, emulando-lhe o método e, consequentemente, levando a
verdade-fato a ser entronizada como fundamento último da realidade e do mundo, ou seja,
assentando o fundamento do conhecimento verdadeiro sobre uma nova metafísica, a da ciência.
Toda essa seda rasgada pelas descobertas científicas do século XVII não tardarão em fazer
surgir um de seus críticos mais aguerridos que também é um dos pais fundadores da Pós-
modernidade, Friedrich Nietzsche, o primeiro a torcer o nariz para mais essa ilusão moderna,
chamando a atenção da intelligentsia europeia para o fato de que os fatos são tão ilusórios
quanto as execradas entidades metafísicas dos racionalistas. Ele afirmava: “não existem fatos,
apenas interpretações”208, ou seja, qualquer fato não chegaria a sê-lo sem que primeiro fosse
207
Anthony Flew. A dictionary of philosophy (New York: St. Martin’s Press, 1984), p. 156.
208
Friedrich Nietzsche, The Will to Power (New York: Random House, 1967), p. 481.
76
interpretado, já que é uma interpretação que opera sua transformação de fenômeno em fato.
Nietzsche foi a primeira voz pós-moderna perdida no final do século XIX; contudo, os pós-
modernos contemporâneos não foram além dele, apesar do esforço que fazem para parecer
atualizados, adotando a linguagem científica, por exemplo.
Imre Lakatos, por sua vez, rejeita a ideia de “racionalidade instantânea”212 implícita no
conceito de observação ou experimentação. Qualquer tipo de experimento já está impregnado
teoricamente desde seu início, pois nenhum fato é interpretado isoladamente; os fatos são
explicados por teorias explanatórias 213 . Quando há conflito entre um fato e uma teoria, na
verdade, o que ocorre é o confronto entre uma teoria explanatória e uma teoria mais geral, que
ele chama de interpretativa. Experimentar, portanto, é comparar os resultados de uma teoria
mais limitada com uma mais ampla que a abrange. Por isso normalmente não existe uma
refutação de teorias quando fatos entram em conflito com elas. Existem muitos motivos que
podem ser evocados para explicar o ocorrido. Ademais, o que normalmente ocorre é que os
209
Paul Feyerabend. Contra o método (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977), p. 17.
210
Paul Feyerabend. Contra o método, p. 17.
211
Idem, Ibid., p. 21.
212
Imre Lakatos. “O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa científica”. In Imre Lakatos; Alan
Musgrave. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento (São Paulo, Cultrix, 1979), p. 190.
213
Ibid., p. 158.
77
fenômenos que não se enquadram são descartados214, pois não têm serventia: não podem ser
lidos ou interpretados. Discordando de Popper e de sua teoria falsibilista, Lakatos conclui,
portanto, que “as experiências simplesmente não derrubam teorias”215.
Mesmo uma função fisiológica básica como enxergar, resultante da percepção de um dado
sensorial, acaba significando da mesma forma que as palavras têm significado no interior de
uma linguagem. Kant no final do século XVIII já havia percebido isto ampliando a função da
mente na constituição da percepção, posto que todo objeto ao ser visto é instantaneamente
enquadrado no espaço e no tempo e nas categorias. Psicólogos que estudam a percepção
humana concordam (Gestalt). Ninguém vê objetos isolados. Bruner, por exemplo, reconhece o
acerto do entendimento de nossa percepção como sistêmica: “dada a presença de certas
evidências de forma, tamanho e textura, inferimos que o objeto diante de nós é uma maçã, ergo,
pode ser comida, cortada com uma faca, relacionada com outras frutas e classificada ou não
entre elas” 217 . A conclusão de Hanson, acompanhando Wittgenstein, é a de que “o
conhecimento do mundo não é um monte de pedras, paus, manchas de cor e ruídos, antes um
sistema de proposições”218, e essa é muito plausível, apesar dos protestos dos realistas.
214
Ibid., p. 159.
215
Imre Lakatos. “O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa científica”, p. 159.
216
Norwood R. Hanson. Patrones de descubrimiento. Observación y Explicación (Madrid, Alianza Universidad,
1977), p. 91 e 92.
217
Floyd Merrell. Semiosis in the postmodern age, p. 80.
218
Norwood R. Hanson. Patrones de descubrimiento, p. 107.
78
219
Michela Massimi; Duncan Pritchard. “What is this thing called Science? A very brief philosophical overview”.
In Michela Massimi (org.). Philosophy and the sciences for everyone (Abingdon, U.K.: Routledge, 2015), p. 9.
220
Ludwig Wittgenstein. Da Certeza, # 105.
221
Thomas S. Kuhn. The structure of scientific revolutions (Chicago: The University of Chicago Press, 2012).
79
partículas”, equipamentos que demonstram por seu funcionamento a verdade das teorias
científicas que os fundamentam222 não podem simplesmente ser descartados como ilusionismos
teóricos.
Tudo o que é complicado pode ser reduzido a uma equação simplificadora que trabalha o
que lhe é mais fundamental, mas o que é complexo, não. O conceito de sistema complexo põe
222
Iain H. Grant. “Postmodernism and science and technology”. In Stuart Sim (ed.). The Routledge companion to
postmodernism (New York/London: Routledge, 1999), p. 51.
223
Gregoire Nicolis; Catherine Nicolis. Foundations of complex systems. Emergence, information and prediction
(Singapore: World Scientific Publishing, 2012), p. 1.
224
Gregoire Nicolis; Catherine Nicolis. Foundations of complex systems, p. 2.
225
Paul Cilliers. Complexity and postmodernism. Understanding complex systems (London: Routledge, 1998), p.
4.
80
Por exemplo, pode-se fazer manipulação genética sem saber exatamente como os genes
interagem entre si e com o ambiente. Sabe-se que apenas 2 % do Genoma humano são genes
codificantes, cerca de 25 mil genes que irão resultar após a tradução na produção de proteínas;
o resto é DNA não codificante constituído por dois bilhões de elementos basais, chamados
nucleotídeos. Até pouco tempo se pensava que esta quantidade imensa de genes replicados, de
aminoácidos sinalizadores, empregados na expressão gênica “(liga-desliga genes)” 229 , não
tivessem nenhuma função, compreensão também reforçada por não existir uma
correspondência padrão na relação entre os genes e os nucleotídeos que compõem uma
sequência230. O DNA não codificante já foi chamado de lixo porque no início das pesquisas
com o GH utilizava-se a metáfora errada para entendê-lo; o GH não é uma estante de livros
com as proteínas funcionando como códigos que definem o fenótipo do indivíduo e o
funcionamento de seu corpo. Hoje sabe-se que muito provavelmente desempenhem papel
fundamental no processo adaptativo dos organismos, quando por causa de mudanças ambientais
precisam passar por mutações ou então quando, buscando essa mesma adaptação, o organismo
precisa ‘expressar’ o que já se apresenta em seu GH, mas aí permanece em estado latente. O
226
Paul Cilliers. Complexity and postmodernism, p. x.
227
Ibid., p. 1.
228
Ibid., p.
229
Alice T. Ferreira. “A bioética e os avanços da Genética, da Biologia Celular e Molecular” . In Dalton L. P.
Ramos. Bioética. Pessoa e vida (São Caetano do Sul, SP: Difusão Editora, 2009), p. 193.
230
Alice T. Ferreira. “A bioética e os avanços da Genética, da Biologia Celular e Molecular”, p. 192.
81
genoma humano não é estante é um sistema complexo em permanente mutação à medida que
conversa com o ambiente onde o organismo do qual é regulador vive. Se o genoma fosse fixo
como um códice poucos organismos teriam sobrevivido sobre a superfície desse planeta, haja
vista as alterações climáticas pelas quais já passou o planeta.
Deu para suspeitar, não é? As teorias da ciência complexa têm feito a cabeça dos pós-
modernos. As razões não parecem ser difíceis de identificar, a principal delas é o fato de
confrontarem o modelo epistemológico da Modernidade, destituindo-o de todas as suas
qualidades e pretensões: a analiticidade, a previsibilidade, a racionalidade, etc. Pensadores pós-
modernos nunca perdem a oportunidade de exibir essas teorias como troféus de suas vitórias no
campo das ideias e até as usam de forma ostensiva e muitas vezes até irresponsável, porque são
apresentadas sem fundamentação e sem justificação; havendo até quem não veja nisso nada
senão impostura, porque servem-se desses conceitos para impressionar seus leitores. Como a
Pós-modernidade é um sistema político-ideológico com um braço ativista, essas alusões à
ciência também funcionam como propaganda. Há até um pouco de bravata, quando, por
231
Paul Cilliers. Complexity and postmodernism, pp. 3-5.
232
Gregoire Nicolis; Catherine Nicolis. Foundations of complex system, p. 8.
82
exemplo, Latour se pergunta muito seriamente se não teria ensinado alguma coisa a Einstein no
campo das ciências se o tivesse conhecido233.
Michel Serres não fica atrás na pretensão enciclopédica, excessiva para alguns (a despeito
de suas qualidades intelectuais, com formação em Letras Clássicas, Matemática, Física e
Filosofia), porque seu objeto de estudo tem uma abrangência simplesmente estupefaciente.
Basta uma vista de olhos na relação de seus interesses para se ter uma ideia, aparecem aí em
um mesmo fôlego, a matemática, a história da ciência, a literatura, religião, teoria da
informação, física, etc.; e os mestres dessas áreas de todas as eras: Idade Antiga – a física de
Lucrécio, Modernidade – ele escreve exaustivamente sobre a ciência de Leibniz,
Contemporaneidade – também escreve sobre Zola e é considerado também excelente crítico
literário 234 . Serres constrói seus textos pulando de um para o outro, ignorando quaisquer
demarcações cronológicas: “o corte temporal equivale a uma expulsão dogmática” 235 ; ou
disciplinares: “eu defendo que existe tanta racionalidade em Montaigne e Velaine quanto na
Física e na Bioquímica”236. A pista para entender o que leva Michel Serres tão longe em sua
revolta contra a disciplina moderna e a associar elementos tão díspares quanto ao tempo e aos
campos do conhecimento foi a intuição de que a academia limita a ciência e a ciência
transformada em academia busca tão somente impor sua metodologia e seus resultados.
Quando, por exemplo, compara a física de Lucrécio com a de Leibniz ou Newton percebe que
a primeira está muito mais próxima da física contemporânea do que essas que estão situados
mais próximos dela na escala cronológica237. Para ele Lucrécio não falava de leis, nem buscava
uma lei geral “que fosse a garantia da estabilidade do universo”238 como faziam os modernos
citados; sua física tratava de “fluidos, de turbulência e do caos”239. Para os últimos uma vez que
Deus já não é uma hipótese relevante (Laplace) deve-se substitui-lo por outros legisladores que
são as leis da Física. Mas uma “legislação significa prisão – lei, ordem, estabilidade, prisão”240;.
Portanto, toda a produção de Serres dos primeiros anos tem como objetivo denunciar esse erro
233
Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable non-sense, p. 5.
234
Michel Serres. Hermes. Literature, Science and Philosophy, Josué V. Harari; David F. Bell (eds.) (Baltimore,
ML: The John Hopkins University Press, 1982).
235
Michel Serres. Diálogo sobre a ciência, a cultura e o tempo. Conversas com Bruno Latour (Lisboa: Instituto
Piaget, 1996), p. 74.
236
Idem, ibid.
237
Ibid., p. 69.
238
Josué V. Harari; David F. Bell. “Journal à plesieurs voies”. In M. Serres. Hermes. Literature, Science and
Philosophy, p. vi e vii.
239
Michel Serres. Diálogo sobre a ciência, a cultura e o tempo, p. 69.
240
Idem, ibid.
83
da ciência moderna, sua ânsia pelo controle e o poder que se refletia nas teorias explicativas do
mundo.
Ilya Prigogine, físico-químico russo, tornou-se famoso por seus estudos sobre o tema241,
que são música aos ouvidos pós-modernos: “flutuações, emergência e indecidibilidade”242 –
não só aos ouvidos de Michel Serres. Prigogine é o grande responsável pelo nascimento do
interesse na capacidade criativa das forças caóticas. Segundo sua conclusão, os processos
caóticos são responsáveis pela ocorrência de novos fenômenos e de novas relações entre
fenômenos. Esses processos são capazes de gerar uma nova ordem, e, portanto, apontam para
“a fecundidade intrinsicamente incontrolável da aleatoriedade”243.
Tomando Prigogine como guia, Michel Serres faz uma interpretação ético-estética da
teoria do caos 244 , colocando-a em contraponto com o modo costumeiro da metodologia
científica, incluindo nessa consideração aquilo que a ciência não costuma tratar: valores. Com
efeito, para ele oculto no conceito de caos está uma grande gama de valores até agora
“injustamente negligenciados”: “abertura, anti-exclusivismo, multiperspectivismo,
heterogeneidade, indecidibilidade.”. Serres não foi o único a fazer esse tipo de apologia do caos
prigoginiano. O próprio título do livro de Prigogine, Ordem a partir do caos, tornou-se com o
tempo “uma metáfora básica da retórica pós-moderna” 245, transformando-se em mote na defesa
do anarquismo. E Serres não está sozinho, mas faz-se acompanhar com inúmeros outros
teóricos pós-modernos que compartilham a mesma opinião de que “a ciência é uma construção
social e linguística”: Derrida, Lacan, Latour, Aronowitz, Haraway, etc.
241
Ilya Prigogine; I. Stengers. Order out of chaos. Man’s dialogue with nature (Toronto/New York: Bantam,
1984).
242
Tian Yu Cao. Postmodernity in Science and Philosophy (Ciudad de México: Universidad Autónoma de México,
1998), p. 21.
243
Tian Yu Cao. Postmodernity in Science and Philosophy, p. 22.
244
Idem, ibid., p. 15.
245
Idem, ibid., p. 21.
246
Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable nonsense, p. 6.
84
pela aplicação da topologia à psicanálise, no uso que Júlia Kristeva faz da matemática de
Kantor247. E de uma forma menos sutil e mais abusiva, há o caso de alguns cientistas pós-
modernos que Lyotard tomou sob sua proteção: René Thom e Benoit Maldebrot. O primeiro
pratica uma ciência híbrida bem ao gosto pós-moderno que mescla matemática, física,
antropologia e semiótica248; Maldebrot, outro explorador da teoria do caos, pretendeu inventar
uma ciência nova: a geo-metria, com que quer escrever um novo capítulo da história das
ciências da Terra, mas, infelizmente, só consegue repetir Comte, já que suas conclusões híbridas
o levam a concluir evolutivamente que a terra já foi plana (pré-moderna), já foi esférica
(moderna) e agora é fractal e infinita249.
Essas distorções do discurso científico não ocorrem por uma especial malignidade da
intelligentsia pós-moderna. Não se trata como se tem aventado, de “fraude consciente”,
“autoengano”250, ou de pura charlatanice praticada com o intuito de enganar os desavisados.
Ocorre que para os subversivos pós-modernos e sua ideologia todo-englobante, a distinção entre
a ciência e os outros discursos não é realmente importante. O primeiro impulso da pós-
modernidade é desmistificar a ciência, subverter seus campos de trabalho, relativizar os
resultados da experimentação. Notar como os cientistas pós-modernos são transdisciplinares
em um nível quase surreal, observar como lhes agrada o pensamento complexo que põe em
xeque o valor da experimentação e das teorias científicas. O que serve como pano de fundo para
essa forma de abordar a ciência é a crítica de Foucault sobre o saber-poder que contamina os
ambientes da ciência. Além disso, percebe-se que embora a intenção dos intelectuais pós-
modernos seja desmistificar a ciência, o que acaba ocorrendo com esse uso frouxo do discurso
científico é uma tentativa de automistificação. Talvez por razões históricas e por sua própria
fragilidade epistemológica a Pós-modernidade sinta essa necessidade; ou seja, passada a fase
crítica, tenha que justificar a que veio.
Como ficou evidente nas páginas precedentes, boa parte da gnosiologia pós-moderna não
resulta de razões propriamente epistemológicas, mas daquelas que originariamente são ético-
políticas, as quais, de acordo com muitos analistas, acabam tornando-se seu fundamento e não
247
Joanne Morra. Julia Kristeva 1966-1996. Aestetics, Politics, Ethics (Parallax, Jul-Sept, 1998), p. 117.
248
Iain H. Grant. “Postmodernism and science and technology”. In Stuart Sim (ed.). The Routledge companion to
Postmodernism (New York/London: Routledge, 1999), p. 99.
249
Iain H. Grant. “Postmodernism and science and technology”, p. 99.
250
Alan Sokal; Jean Bricmont. Fashionable nonsense, p. 6.
85
seu resultado, como era de se esperar em se tratando de epistemologia. Contudo, como se sabe,
não se pode inverter essa ordem, ou mesmo desconectar ética de epistemologia sem evitar a
impressão de superficialidade que essa nova ética carrega, porque assim a ética perde sua
capacidade de universalizar suas reivindicações e se torna um relativismo que não vê como
sustentar sua exigibilidade, decorrendo daí a questão se se trata ainda de uma ética251. É assim
engraçado que uma epistemologia pessimista produzida por uma série de contenções éticas
tenha produzido como resultado uma ética otimista ou um “otimismo moral”, como prefere
Joseph Margolis, em que a racionalidade é substituída pela razoabilidade e a autonomia e
objetividade do sujeito é destituída por “um pontual e contingente” consenso de grupo252.
Esse pessimismo epistemológico de viés ético teve como ponto de partida a crítica à
Modernidade, uma crítica dirigida à sociedade e a seus valores. Crítica conhecida e reconhecida
na atividade dos assim chamados mestres da suspeita da Europa central: Marx, Nietzsche e
Freud. Contudo, não é apropriado dizer que a crítica pós-moderna esteja definida por seus
limites teóricos; eles são os inspiradores, mas não os formuladores. Até porque em muitos
sentidos sua teoria já se acha envelhecida pelas mudanças sociais transcorridas desde então.
(1) O Capitalismo de produção que Marx analisou e criticou perdeu força no Ocidente, e
isto deu-se por vários motivos: (a) os conflitos de classe tendem a desaparecer porque os
processos de automação mudaram o perfil do trabalhador industrial em geral, diminuindo a
oferta de postos de trabalho pela indústria, o operariado fabril decresce, e também se
transforma; antes semianalfabeto, agora altamente qualificado, operarando máquinas
computadorizadas; antigamente ganhava salários baixos, hoje, elitizado, passa a receber
salários mais altos, compatíveis com sua nova condição de “trabalhador do conhecimento”253.
(b) O poder do baronato industrial recuou em face de uma mudança estrutural da
macroeconomia. Hoje prevalece o entendimento de que vivemos sob o signo da sociedade do
conhecimento. O principal fator de produção de riquezas não é mais a indústria, mas a
tecnologia, o conhecimento e a inovação tecnológica que é resultado desses. A economia hoje
não estar mais voltada para o produto, sim para o mercado; a indústria não pode mais impor
seus produtos ao consumidor como ocorria no passado, mas deve curvar-se à sua vontade, a
qual vem sendo fortalecida pela internet e pelas redes sociais. Hoje quem dá as cartas é o
251
Cf. Gary B. Madison; Marty Fairbairn (orgs.). The Ethics of Postmodern. Currents trends in continental
Thought (Evanston, IL: Northwestern University Press, 1999), p. 1 e 2.
252
Joseph Margolis. “Moral optimism“. In Gary B. Madison; Marty Fairbairn. The Ethics of Postmodern, p. 36.
253
Peter Drucker. O melhor de Peter Drucker (São Paulo: Nobel, 2001), p. 45.
86
(2) O moralismo protestante atacado por Nietzsche está hoje moribundo. A teologia
liberal que nesse moralismo se fundamentava e que foi criadora de uma plataforma ideológica
importante na Europa do século XIX e na primeira metade do século XX, perdeu relevância;
não pela crítica de Nietzsche, mas por ter abandonado a única coisa que tinha o poder de
transformar moralmente o ser humano: a `Palavra de Deus. A transvaloração e trans-
humanização como projeto nietzscheano de reforma da humanidade virou um abortivo. A
transvaloração falhou fragorosamente com o fracasso das quase-religiões totalitárias, e a trans-
humanização só persiste como projeto viável no campo das ciências biológicas, onde defende
um futuro aberto para a humanidade, haja vista sua alegada capacidade de transmudá-la para
algo melhor e mais evoluído. Ninguém sabe ao certo o que seria essa evolução, sendo entendida
muito restritivamente a um prolongamento e um melhoramento da vida biológica do ser
humano por diversos meios biotecnológicos: transformismo sexual, manipulação genética,
manipulação somática, biomecatrônica, bioengenharia, nanoengenharia, etc. Nesse contexto
Nietzsche e Darwin ficam lá atrás servindo apenas como símbolos, como precursores, dessa
nova compulsão prometeica da humanidade256 de ir para além do homem.
(3) Alguns autores pós-modernos partem de Freud, mas também promovem a superação
de Freud e seu modo de pensar ainda enraizado na Modernidade. J. Lacan propõe o abandono
do modelo conceitual representacional, recomendando entender o inconsciente por meio de
categorias conceituais da Linguística e do Estruturalismo. O desejo, por exemplo, para Freud
composto por dois elementos: (a) a realidade uma vez possuída no passado e agora faltante, (b)
a imaginação, a fantasia, como mera representação do objeto faltante. De acordo com Lacan o
desejo tem uma estrutura mais complexa; em vez de bipartite, será tripartite, representado pela
famosa fórmula lacaniana: RSI, realidade, símbolo e imaginação. E esse terceiro elemento
acrescentando, o símbolo, é originário da linguística de Saussure, e é o verdadeiro substituto da
254
Domenico de Masi. O futuro do trabalho. A fadiga e o ócio na sociedade pós-industrial (Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 2001), p. 181.
255
Richard L. Brandt. Nos bastidores da Amazon. O jeito Jeff Bezos de revolucionar mercados com apenas um
clique (São Paulo: Saraiva, 2011).
256
Nick Bostrom. “A history of Transhumanist thought” (Journal of evolution and technology (14 (1), April,
2005), pp. 1-25.
87
Ainda há que se agregar a essa discussão a nova ruptura proposta por Deleuze-Guattari,
a saber, a crítica que aparece no Anti-édipo contra o conceito lacaniano de desejo, a qual é
denunciada como pouco radical, já que permanece a subscrição às grandes narrativas, conforme
é perceptível pela fundamentação estruturalista do pensamento de Lacan. Deleuze-Guattari
baseiam-se em Foucault para concluir que o desejo não é como propõe Lacan uma ausência,
com satisfação por substituição oblíqua, simbólica, metonímica: a parte pelo todo, produzido
pela idiossincrática gramática do ente desejante. A perversão do desejo não resulta apenas de
uma singularização do processo de simbolização, pode ser também a perversão do desejo
gregário, produzida por certas condições históricas nas quais vive o indivíduo. Em síntese, a
falta que nos faz desejantes “é arrumada, organizada, na produção social”, e “a produção social
é unicamente a própria produção desejante em condições determinadas”260. Portanto, cabe aí a
crítica de Marx sobre a historicidade dos fatos humanos, até dos psíquicos, revelado por célebre
passagem sempre muito citada: “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem
de livre e espontânea vontade, pois não são eles que escolhem as circunstâncias sob as quais ela
é feita, mas essas lhes foram transmitidas assim como se encontram”261. Contudo, como prefere
Foucault, essa história não é uma evolução linear, nem está construída apenas sobre o
fundamento dos fatos econômicos, ela é um conjunto de linhas discursivas que decorrem, ora
paralelas, ora subversivas, e que servem acima de tudo para classificar as ações e ideias
257
Jacques Lacan. Seminar XXII: R.S.I. 1974-1975 (livro não publicado: Gagoa.free.fr.
258
Scott Lash. Sociology of Postmodernism (New York: Routledge, 1992), p. 67.
259
“Para abordar a R.S.I. , nada melhor do que começar pelas negativas: o real não é a realidade, o imaginário não
é a imaginação, o simbólico não é uma simbólica. A realidade é constituída por uma trama simbólico-imaginária”
Marco A. Coutinho Jorge; Nadiá P. Ferreira. Lacna, o grande freudiano (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005),
p. 32. Por isso para Lacan os anéis entrelaçados do nó borromeano é sua melhor ilustração.
260
Gilles Deleuze; Félix Guattari. O anti-édipo. Capitalismo e esquizofrenia 1 (São Paulo: Editora 34, 2010), p.
46.
261
Karl Marx. O 18 Brumário de Luís Bonaparte (São Paulo: Boitempo Editorial, 2011), p. 25.
88
humanas, para definir o que é normal e o que é patológico, para revelar o que é desejável e o
que não é desejável, socialmente falando.
Essa questão que se inscreve sob a crítica de Marx não se aplica só à explicação do desejo.
Toda a psicanálise freudiana cai sob o peso de uma Modernidade contaminada da epiderme até
a medula. As neuroses atacadas por Freud, provenientes de conflitos de valores de uma
sociedade cristã e uma sociedade secularizada da Viena do início do século XX, já ficaram
muito lá para trás. Será que faz ainda algum sentido a inversão do senso comum religioso
promovida por Freud: “os criminosos não se sentem culpados porque são criminosos, mas são
criminosos porque já se sentem culpados” 262 , entendida como principal motivação do
psicocriminoso, quando a questão da culpa se torna cada vez mais irrelevante como categoria
psicopatológica, estando a própria noção de pecado a perder espaço no mundo contemporâneo?
262
Roger Horrocks. Freud revisited: Psychoanalitics themes in the postmodern age (New York: Palgrave
Publishers, 2001), p. 5.
263
Richard Rorty. Contingency, irony and solidarity (New York: Cambridge University Press, 1993), p. xiii.
264
Gilles Deleuze; Felix Guattari. O anti-édipo, p. 16.
89
dos indivíduos, passa a ser uma ruptura 265 ou um conjunto de micro-histórias que se
interpenetram enquanto discorrem e não decorrem, porque são narrativas e seus sujeitos não
estão indo a lugar algum. Pelo que, hoje assistimos a desaparição do sentido da história na
cultura, como deixa claro o emblemático trabalho de Fukuyama266. A história acabou; não há
mais telos. Basta observar como eventos de nosso passado recente vão sendo apagados da
memória coletiva ao ponto de as novas gerações ignorarem quase por completo o que ocorreu
há dez, quinze anos atrás. Os eventos tornaram-se objetos de consumo que estão destinados ao
esquecimento. Os eventos e sua narrativa desaparecem e são substituídos por imagens a compor
o caleidoscópio da vida instantânea em que passamos em alta velocidade.
Na Pós-modernidade não há solução para esse dilema, que na verdade é melhor entendido
como aporia. A única forma de solucioná-lo é destruindo-o como fez Alexandre, o Grande,
quando em vez de desatar o nó górdio cortou-o com sua espada, ou seja, isto significa rejeitar
o problema considerando-o insolúvel; do contrário a falta de alternativas a que nos obriga o
niilismo pós-moderno não nos permitiria a realização de qualquer ação, qualquer projeto,
porque uma vez destruídos a verdade, o indivíduo e a coletividade, não resta nada que seria
discernível ou preferível. Para fugir dessa aporia paralisante, só restou uma liberdade sem telos,
uma liberdade sem para, que se esgota em si mesma, uma vez que é pressuposta sua
benignidade, assim como é pressuposta a malignidade da privação dela, de sorte que liberdade
definida como “a infindável realização e proliferação da liberdade”268 é a única norma ética do
mundo pós-moderno.
265
Michel Foucault. Arqueologia do saber, p. 4.
266
Francis Fukuyama. O fim da história e o último homem (Rio de Janeiro: Rocco, 1992).
267
Fredric Jameson. El giro cultural. 38.
268
Richard Rorty. Contingency, irony and solidarity, p. xvi.
90
2.e. Conclusão
Em síntese, a pós-modernidade está sendo construída sobre dois pilares que são totais
autocontradições. A primeira, nasce da rejeição das metas-narrativas por meio da meta-
narrativa do fim das meta-narrativas. A desconstrução das meta-narrativas origina-se, portanto,
de um paralogismo e só seria possível se eles possuíssem um padrão racional transcendente, ou
seja, se conseguissem pensar como Deus, fora da linguagem; caem, assim, vítimas de seu
próprio argumento. Ora sendo toda e qualquer teoria imanente a determinado sistema nada
pode-se dizer sobre as outras teorias no campo veritativo senão como opinião. A segunda
grande autocontradição é a rejeição de todos os absolutos por meio de uma liberdade absoluta,
ou seja, defendendo dogmaticamente um anti-dogmatismo. A criação de um absoluto privado
visto como algo positivo, tira das mãos das instituições sua força e empodera o indivíduo,
tornando, ao menos teoricamente, a sociedade humana mais harmoniosa e menos propensa a
conflitos, visto, nesse contexto, as instituições religiosas não terem como coagir os que se
desviam do padrão por elas imposto. Observe-se, entretanto, que o conflito apenas mudou de
lugar. Agora antagoniza os partidários da meta-narrativa do fim das meta-narrativas com os
sequazes de alguma meta-narrativa específica, que posiciona a liberdade absoluta contra os
proponentes de outros absolutos.
269
Max Charlesworth. “Postmodernity and Theology”, p. 190.
270
Ibid., p. 191.
91
que sugira que os direitos humanos e a liberdade de escolha não são os mais altos valores da
humanidade é imediatamente suspeito de Fascismo ou Nazismo”271.
Atentem para a diferença entre o discurso e a prática. Na prática os pós-modernos são tão
absolutistas como quaisquer outros ismos e tão xiita como aqueles que são denunciados como
tais por eles. Por essa franqueza não os culpo. A humanidade não pode viver sem o absoluto e
esta é uma boa interpretação de Sto. Agostinho quando em suas Confissões reconhece que é da
essência humana é estar em busca do absoluto. Assim, a intercorrência do absoluto no discurso
pós-moderno era mais do que esperada. Paradoxalmente, o relativo foi tão enfatizado e
defendido que acabaram por absolutizá-lo. Agora quem não pensa da mesma forma é
estigmatizado como retrógrado, obscurantista, maniqueísta e outros termos pouco elogiosos. E,
o que é pior, o Pós-modernismo usa argumentos tão poderosos que compelem o cristão a sentir-
se em um grande dilema acerca de sua fé. Como se sua fé fosse em alguma medida eticamente
defeituosa por defender pontos de vista absolutistas, quando deveria ser mais aberta às ideias
dos que dela não compartilham. Agora o politicamente correto é: ‘não sou muito assertivo; não
sou uma pessoa dogmática’. Dizendo isso, contudo, está a trocar um discurso absoluto por outro
e se torna assertivo em sua inassertibilidade, visto esse anti-dogmatismo ter se tornado hoje em
dia uma quase-religião e pouco falta para se poder afirmar que se tenha tornado a religião civil
dos países desenvolvidos em sua maioria. Esse é o assunto que vamos colocar em discussão no
próximo capítulo.
271
Andrew K. M. Adam. What is the postmodern biblical criticism, p.17.
92
CAPÍTULO III
A religião não desapareceu nem está em vias de desaparecer, apenas passa por um
processo de desinstitucionalização e fragmentação; o Cristianismo está ameaçado, mas não
acuado; e tudo o que se pensou sobre a natureza e os estímulos da experiência religiosa mostra-
se incapaz de explicar os fenômenos religiosos contemporâneos. Como demonstrou
Kolakowski, basear-nos em estatísticas para postular o declínio da religião em nossa sociedade
é metodologicamente simplista e simplório. O fato de as pessoas estarem deixando de ir à Igreja
nos países desenvolvidos Ocidentais e não responderem afirmativamente nas pesquisas sociais
quanto a crenças tradicionais e à pertença religiosa a dada instituição272, pode significar muitas
coisas, inclusive que a religião está a tornar-se mais presente (dado que as pessoas não precisam
mais ir à igreja para ter acesso a ela), embora que também mais difusa e ambígua. Assim,
entretém nossa atenção um oximoro paradoxal e, entretanto, muito instrutivo: levar em conta a
ambiguidade desses tempos é fundamental para entender o papel hodierno da religião. De modo
que a atitude do analista que com seriedade se debruça sobre o tema não é esclarecer e
simplificar, mas evidenciar essa ambiguidade ou ambivalência, revelar a troca de ambiente e
linguagem que a substituição de um paradigma moderno pelo pós-moderno pode implicar para
a religião.
272
Leszec Kolakowski. “The revenge of the sacred in secular culture. In Modernity on endless trial, p. 63.
93
lugar próprio da vida religiosa legados pela Modernidade, que são: (a) o modelo europeu, com
uma religião de Estado única que atinge o indivíduo em sua vida privada e serve de mediação
entre as esferas política e a sociedade civil 273; (b) o modelo norte-americano, em que uma
religião civil fundamental e genérica274, estruturante de todas as demais, que é impedida de
interferir na esfera política, mas preserva a sociedade civil como seu domínio. Essa
compartimentalização e separação institucional entre o público e o privado, que é mais intensa
no modelo europeu, embora esteja presente em ambos os casos, vem sendo substituída por uma
visão de mundo que as aproxima em vez de distanciá-las275.
Mas a retirada do senhorio da ideologia moderna sobre o espaço público não é um eclipse,
antes um refluir de maré. Não é um desaparecimento, mas uma erosão paulatina, que começa
onde o império das leis o permite, ou seja, naquelas dimensões sociais não governadas
diretamente pelo Estado: o mercado e a sociedade civil. O Estado laico permanece como dogma
político das sociedades contemporâneas ocidentais, mas a influência da religião nas questões
273
Pier Paolo Donati. “Religion and Democracy in the postmodern world: the possibility of a ‘religious qualified’
public sphere”, Democracy, reality and risponsability, Pontifical Academy of Social Science (acta 6, Vatican City,
2001) p. 316.
274
Cf. Robert N. Bellah. The Broken Covenant. America Civil Religion in Time of Trial, Chicago: The University
of Chicago Press, 1975; Phillip Harmon. “Civil Religion”. In Gary Laderman; Luís D. León (edts.). Religion and
American Cultures. An Encyclopedia of Traditions, Diversity and Popular Expressions (Santa Barbara, CL: ABC
Clio, 2003.
275
William D’Antonio; Anthony J. Pagorelc. “Sociologia da Religião”. In Masamishi Sasaki et alia (eds.). Concise
encyclopedia of comparative sociology (Leiden: Brill, 2014), p. 160.