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ESCREVER

Marguerite Duras

https://revistapolichinelo.blogspot.com/2017/04/escrever-marguerite-duras.html

É numa casa que a gente se sente só. Não do lado de fora, mas dentro. Em um parque, há
pássaros, gatos. E de vez em quando um esquilo, um furão. Em um parque a gente não está
sozinha. Mas dentro da casa a gente fica tão só que às vezes se perde. Só agora sei que
permaneci na casa dez anos. Sozinha. E para escrever livros que mostraram, para mim e para
os outros, que eu era a escritora que sou. Como isso aconteceu? E como isso pode ser
expresso? O que posso dizer e que o tipo de solidão que há em Neauphle foi feito por mim.
Para mim. E que é apenas dentro dessa casa que fico só. Para escrever. Não para escrever
como havia feito até então. Mas escrever livros desconhecidos para mim, e nunca previamente
determinados, por mim nem por ninguém. La escrevi Le Ravissement de Lol V. Stein e Le Vice-
cônsul. E outros depois desses. Compreendi que eu era uma pessoa sozinha com a minha
escrita, sozinha e muito distante de tudo. Isso durou dez anos, talvez, não sei mais, raramente
contei o tempo que passei escrevendo e qualquer outro tempo. Contei o tempo que passei
esperando por Robert Antelme e Marie-Louise, sua jovem irmã. Depois, não contei mais nada.

Le Ravissement de Lol V. Stein e Le Vice-cônsul, eu os escrevi lá em cima, no meu quarto,


aquele de armários azuis, hoje, que pena, destruídos por jovens pedreiros. Às vezes eu
também escrevia aqui, nessa mesa da sala.

Guardei essa solidão dos primeiros livros. Ela me acompanha. Minha escrita, eu sempre a levo
comigo, aonde quer que eu vá, Paris, Trouville. Ou Nova York. Foi em Trouville que cai na
loucura de me tornar Lola Valérie Stein. Foi também em Trouville que o nome de Yann Andréa
Steiner me veio com uma evidencia inesquecível. Foi há um ano.

A solidão da escrita e uma solidão sem a qual o texto não se produz, ou então a gente se
acaba, exangue, de tanto procurar o que escrever. Sem sangue, o autor não reconhece mais o
seu texto. E acima de tudo e necessário que ele nunca seja ditado a qualquer secretaria, por
mais hábil que ela possa ser, e que nessa fase o texto nunca seja mostrado a um editor.

É sempre necessária uma separação da pessoa que escreve livros em relação às pessoas que a
rodeiam. É uma solidão. É a solidão do autor, a solidão da escrita. Para começar, o autor se
pergunta que silencio é esse ao redor de si. E praticamente em cada passo que ele dá no
interior de uma casa, e em todas as horas do dia, em todas as luzes, tanto as do lado de fora
como as lâmpadas acesas do lado de dentro. Essa real solidão do corpo transforma-se na
outra, inviolável, a solidão da escrita. Eu não falava sobre isso com ninguém. Nesse período da
minha primeira solidão eu já havia descoberto que escrever era o que eu precisava fazer. Eu já
tinha sido aprovada por Raymond Queneau. O simples veredito de Raymond Queneau, aquela
frase: “Não faça mais nada a não ser isso, escrever.”
Escrever, essa foi a única coisa que habitou minha vida e que a encantou. Eu o fiz. A escrita não
me abandonou nunca.

Meu quarto não é uma cama, nem aqui, nem em Paris, nem em Trouville. É uma certa janela,
uma certa mesa, a intimidade com a tinta preta, marcas de tinta preta impossíveis de achar em
outro lugar, e uma certa cadeira. É certos hábitos que reencontro sempre, a onde quer que eu
vá ou esteja, mesmo nos lugares em que não escrevo, como quartos de hotel, por exemplo, o
habito de sempre ter uísque na minha mala, para o caso de insônias ou súbitos desesperos.
Durante aquele período eu tive amantes. Raras vezes fiquei sem amante algum. Eles se
acostumavam a solidão de Neauphle. E, como seu encanto, ela as vezes lhes permitia escrever
livros. Eu raramente dava meus livros para meus amantes lerem. Aos amantes, as mulheres
não devem mostrar os livros que estão escrevendo. Tao logo terminava um capitulo, eu o
escondia. A coisa e tão verdadeira, no que me toca, que eu me pergunto como e possível ser
de outro modo quando se é mulher e se tem um marido ou um amante. Nesse caso, também
se deve esconder dos amantes o amor do marido, O meu nunca foi substituído. Sei disso a
cada dia da minha vida.

Esta casa e o lugar da solidão, no entanto da para uma rua, uma praga, um tanque muito
antigo, a escola da cidade. Quando o tanque fica congelado, algumas crianças vêm patinar e
me impedem de trabalhar. Não mando embora essas crianças. Tomo conta delas. Todas as
mulheres que tiveram filhos tomam conta dessas crianças, desobedientes, doidas, como todas
as crianças. Mas que medo, cada vez pior. E que amor.

A solidão não se encontra, se faz. A solidão se faz sozinha. Eu a fiz. Porque resolvi que ali eu
deveria ficar só, para escrever livros. Foi assim que aconteceu. Eu estava sozinha nesta casa. Eu
me fechei — eu tive medo também, e claro. E depois eu amei esta casa. Esta casa se tornou a
casa da escrita. Meus livros saíram desta casa. Desta luz também, do parque. Desta luz que
reverbera no tanque. Precisei de vinte anos para escrever isso que acabei de dizer.

Da para caminhar de uma ponta a outra dentro desta casa. Sim. Da para ir e voltar também. E
depois há o parque. Lá, existem arvores milenares e arvores ainda jovens. Há lariços, e
macieiras, uma nogueira, ameixeiras e uma cere- jeira. O pé de abricó morreu. Na frente do
meu quarto, há aquela roseira formidável de L’Homme Atlantique. Um salgueiro. Há também
cerejeiras-do-japão, palmas-de-santa-rita. E embaixo de uma janela da sala de música há uma
camélia, que Dionys Mascolo plantou para mim.

Primeiro troquei a mobília da casa, depois mandei pintar as paredes de novo. E então, talvez
dois anos depois, minha vida com a casa teve inicio. Aqui terminei Lol V. Stein, redigi o final do
livro aqui e em Trouville, a beira-mar. Sozinha não, eu não estava sozinha, havia um homem
comigo naquele tempo. Mas não falávamos disso. Como eu escrevia, era preciso evitar falar
sobre livros. Os homens não suportam isso: uma mulher que escreve. E cruel para o homem. E
difícil para todos. Exceto para Robert A.
Em Trouville, porem, havia a praia, o mar, a imensidão do céu, das areias. E era isso a solidão.
Foi em Trouville que contemplei o mar até o nada. Trouville e uma solidão para a vida inteira.
Ainda tenho essa solidão, inexpugnável, a minha volta. Por vezes, fecho as portas, corto o
telefone, corto minha voz, não quero mais nada.

Posso dizer aquilo que quero, e não descobrirei jamais por que razão se escreve e como não se
escreve.

Às vezes, quando estou aqui sozinha, em Neauphle, reconheço os objetos, como um radiador.
Lembro que havia uma tabua grande em cima do radiador e que muitas vezes eu me sentava
nessa tabua para ver os carros passar.

Aqui, quando estou sozinha, não toco piano. Não toco mal, mas toco bem pouco porque
acredito que não posso tocar quando estou só, quando não há ninguém senão eu na casa. E
muito difícil de suportar. Porque isso parece ter um sentido drástico. Porem, em certos casos
bem pessoais, só a escrita faz sentido. Pois eu a manejo, a prático. Ao passo que o piano e um
objeto distante, ainda inacessível, e para mim sempre o mesmo. Creio que, se eu tivesse
tocado piano profissionalmente, não teria escrito livros. Mas não tenho certeza. Acho mesmo
que é falso. Acho que teria escrito livros de um jeito ou de outro, mesmo no caso da música
paralela. Livros ilegíveis, mas completos. Tao longe de todas as palavras quanto o
desconhecido se encontra de um amor sem objeto. Como o de Cristo ou o de J. S. Bach —
ambos de uma equivalência vertiginosa.

A solidão também quer dizer isso: ou a morte, ou o livro. Mas antes de tudo quer dizer álcool.
Quer dizer uísque. Até agora, nunca fui capaz, nunca mesmo, realmente nunca, ou talvez fosse
preciso procurar bem longe... nunca fui capaz de começar um livro sem terminar. Nunca fiz um
livro que não fosse minha razão de ser na hora em que está sendo escrito, e isso vale para
qualquer livro. E em toda parte. Em todas as estações do ano. Essa paixão, eu a descobri aqui
em Yvelines, nesta casa. Eu tinha afinal uma casa onde me esconder para escrever livros.
Queria viver nessa casa. Para que? Começou desse jeito, como uma brincadeira. Talvez
escrever, disse a mim mesmo, quem sabe eu sou capaz? Já havia começado livros que deixara
de lado. Esquecera até os títulos. Le Vice-cônsul, não. Eu não o abandonei, penso nele muitas
vezes. Em Lol V. Stein não penso mais. Ninguém pode conhece-la, L. V. S., nem vocês nem eu. E
mesmo aquilo que Lacan disse a respeito do livro, eu nunca cheguei a entender direito. Lacan
me deixava atordoada. E aquela sua frase: “Ela não deve saber que escreve, nem aquilo que
escreve. Porque ela se perderia. E isso seria uma catástrofe. ” Esta frase tornou-se, para mim,
uma espécie de identidade de princípio, um “direito de dizer” totalmente ignorado pelas
mulheres.

Achar-se em um buraco, no fundo de um buraco, numa solidão quase total, e descobrir que só
a escrita pode nos salvar. Achar-se sem assunto para o livro, sem a menor ideia do livro
significa achar-se, descobrir-se, diante de um livro. Lima imensidão vazia. Um livro eventual.
Diante de nada. Diante de algo semelhante a uma escrita viva e nua, algo terrível, terrível de
ser subjugado. Acho que a pessoa que escreve não tem a ideia de um livro, tem as mãos
vazias, a mente vazia, e dessa aventura do livro ela conhece apenas a escrita seca e nua, sem
futuro, sem eco, distante, com suas regras de ouro, elementares: a ortografia, o sentido.

Le Vice-cônsul é um livro que gritou, sem voz, por todo lado. Não gosto desta expressão, mas
quando releio o livro eu a reencontro, qual- quer coisa desse tipo. E verdade, o vice-cônsul
berrava todo dia... mas de um lugar secreto para mim, Como se reza todo dia, ele todo dia
berrava. Isto e verdade, gritava com força e pelas noites de Lahore ele disparava nos jardins de
Shalimar para matar. Não importava quem fosse, mas matar. Ele matava por matar. A partir do
momento cm que não importava quem fosse, a Índia inteira podia se achar em estado de
decomposição. Ele berrava em casa, na Residência Oficial, e quando estava sozinho na noite
negra de uma Calcutá deserta. Ele está louco, louco de inteligência, o vice-cônsul. Ele mata
Lahore todas as noites.

Nunca o encontrei em outro lugar, não o encontrei senão dentro do ator que o representava,
meu amigo, o genial Michael Lonsdale — mesmo em seus outros papeis, para mim, ele ainda e
o vice-cônsul da França em Lahore. É meu amigo, meu irmão.

E no vice-cônsul que eu acredito. O grito do vice-cônsul, “a única política”, ele também


registrou-se aqui, em Neauphle-le-Château. Foi aqui que ele a chamou, a ela, sim, aqui. Ela, A.
M, S. Anna-Maria Guardi. Foi ela, Delphine Seyrig. E todas as pessoas do filme choravam. Eram
lagrimas livres, sem noção do sentido que possuíam, inevitáveis, as lagrimas verdadeiras, as
lagrimas da gente da miséria.

Chega um momento na vida, e acho que isso e fatal, do qual não se pode escapar, no qual tudo
e posto em dúvida: o casamento, os amigos, sobretudo os amigos do casal. Não as crianças. As
crianças jamais são colocadas em questão. E nossa dúvida cresce a nossa volta. Essa dúvida
existe sozinha, e a duvida da solidão. Nasce daí, da solidão. Já se pode nomear a palavra. Acho
que muita gente não d capaz de suportar isso que estou dizendo, fugiriam. Talvez este seja o
motivo por que todos os homens não são escritores. Sim. Esta e a diferença. Está é a verdade.
Nada além disso. A dúvida e escrever. Portanto, e também o escritor. E com o escritor o
mundo inteiro escreve. Sempre se soube isso.

Também acho que sem esta dúvida primordial sobre o gesto da escrita não existe solidão.
Ninguém jamais escreveu a duas vozes. Foi possível cantar as duas vozes, e também tocar
música, e jogar tênis, mas escrever não. Jamais. De saída, fiz livros chamados de políticos. O
primeiro foi Abahn, Sabana, David, um dos que me são mais caros. Creio que isso e um
detalhe, o fato de um livro ser mais ou menos difícil de guiar do que é a vida comum. A
dificuldade e uma coisa que simplesmente existe. Um livro e difícil de guiar, na direção do
leitor, na direção da sua leitura. Se eu não tivesse escrito, teria me tornado uma alcoólatra
incurável. Trata-se de um estado prático, achar-se perdido sem poder mais escrever... É aí que
se bebe. A partir do momento em que se está perdido e que não se tem mais o que escrever,
mais o que perder, aí é que se escreve. Ao passo que o livro está ali, e grita, exige ser
terminado, exige que se escreva. A pessoa se vê obrigada a se colocar a seu serviço. É
impossível escapar de um livro, antes que ele esteja afinal escrito — ou seja: sozinho e livre de
você que o escreveu. É tão insuportável quanto um crime. Não acredito nas pessoas que
dizem: “Rasguei meu manuscrito, joguei tudo fora. ” Não acredito nisso. Ou o que estava
escrito não existia para os outros, ou não era um livro. E sempre se sabe quando não é um
livro. Se chegara um dia a ser um livro, não, isso nunca se sabe. Nunca.

Quando ia me deitar, cobria o rosto. Eu tinha pouco de mim mesma. Não sei como não sei por
que. E por isso bebia álcool antes de dormir. Para me esquecer de mim. Isso passa num
instante pelo sangue, e depois vem o sono. A solidão alcoólica e angustiante. O coração, sim, é
isso. De repente ele começa a bater ligeiro demais.

Tudo escrevia quando eu escrevia na casa. A escrita estava por todo lado. E quando via os
amigos, as vezes mal os reconhecia. Houve muitos anos assim, difíceis, para mim, dez anos
talvez, foi quanto durou. E quando os amigos, mesmo os mais queridos, vinham me ver,
também era terrível. Não sabiam nada de mim: me queriam bem e vinham por gentileza,
acreditando que me faziam bem. E o mais estranho era que eu não pensava em nada disso.

L'écriture était partout.

Isso torna a escrita selvagem. Vai-se ao encontro de uma selvageria anterior a vida. E sempre a
reconhecemos, e aquela das florestas, tão antiga quanto o tempo. O medo de tudo, algo
distinto e ao mesmo tempo inseparável da própria vida. Encarniçado. Não se pode escrever
sem a força do corpo. E preciso ser mais forte do que si mesmo para abordar a escrita. E uma
coisa gozada, sim. Não e apenas a escrita, o escrito, e o grito das feras noturnas, de todos, de
você e eu, os gritos dos cães. É a vulgaridade maciça, desesperadora, da sociedade. A dor,
também Cristo e Moises e os faraós e todos os judeus e todas as crianças judias, e é também a
bondade mais violenta. Sempre, acredito nisso.

Esta casa em Neauphle-le-Château, comprei-a com os direitos da adaptação do meu livro Un


Barrage contre le Pacifique para o cinema. Ela me pertencia, ela estava em meu nome. Essa
compra precedeu a loucura da escrita. Uma espécie de vulcão. Acho que esta casa e assim para
muitos. Ela me consola de todas as dores da infância. Quando a comprei, soube logo que tinha
feito alguma coisa importante, para mim, e definitiva. Alguma coisa só para mim e para meu
filho, pela primeira vez na vida. E me dediquei a rasa. Limpei-a. Fiquei bastante “ocupada” com
ela. Depois, quando embarquei nos meus livros, me ocupei menos.
A escrita vai muito longe.... Até se acabar. Às vezes e algo insustentável. De súbito, tudo
adquire um sentido em relação escrita, e de deixar a gente doida. As pessoas que conhecemos
não as conhecemos mais, e aquelas que não conhecemos, achamos tê-las visto antes. Não há
duvida de que eu estava já simplesmente, e um pouco mais que os outros, cansada de viver.
Era um estado de dor sem sofrimento. Não tentava me proteger dos outros, sobretudo das
pessoas que me conheciam. Não era triste. Era desesperado. Eu tinha embarcado no trabalho
mais difícil da minha vida: meu amante de Lahore, escrever sua vida. Escrever Le Vice-cônsul.
Precisei dedicar três anos a este livro. Não podia falar do assunto porque a menor intrusão no
livro, a menor informação “objetiva” teria apagado tudo do livro. Uma outra escrita, corrigida,
teria destruído a escrita do livro e o que eu sabia de mim em relação ao livro. Essa ilusão que
se tem — e que é justa — de ser o único que escreveu o que está escrito, seja uma nulidade ou
uma maravilha. E quando lia os críticos, a maior parte do tempo eu me achava sensível ao fato
de que se dizia que aquilo não se parecia com nada. Quer dizer que aquilo vinha ao encontro
da solidão inicial do autor.

Eu achava que tinha adquirido esta casa em Neauphle também para meus amigos, para
recebe-los, mas eu estava enganada. Comprei-a para mim. É só agora que o entendo e que o
digo. Certas noites havia muitos amigos, os Gallimard vinham muitas vezes, e suas esposas e
seus amigos. Eram muitos, os Gallimard, uns quinze talvez, às vezes. Eu pedia que viessem um
pouco antes para colocar as mesas em um mesmo cômodo a fim de ficarmos juntos. Estas
noites de que falo eram, para todos, muito alegres. As mais a alegres de todas. Ha via sempre
Robert Antelme, Dionys Mascolo e seus amigos. E meus amantes também, sobretudo Gerard
Jarlot, que era o sedutor em pessoa, e que se tornou amigo dos Gallimard.

Quando havia o mundo, me sentia ao mesmo tempo menos só e mais abandonada. Essa
solidão, para aborda-la, e preciso atravessar a noite. À noite, imaginar Duras em seu leito
tentando dormir sozinha em uma casa de quatrocentos metros quadrados. Quando eu ia até o
fim da casa, lá do outro lado, na direção da “casa pequena”, tinha medo do espaço como de
uma emboscada. Posso dizer que tinha medo todas as noites. No entanto jamais fiz o menor
gesto para que alguém viesse morar aqui. Às vezes, de noite, eu saia já tarde. Adorava as
caminhadas, com as pessoas da aldeia, os amigos, os habitantes de Neauphle. Bebíamos.
Conversávamos bastante. Íamos a uma espécie de cafeteria grande como Uma aldeia de
muitos hectares. O auge vinha às três horas da manhã. Lembro o nome: era Parly II. Lugares
onde estamos também perdidos. Os garçons vigiavam, como se fossem policiais, aquele
imenso território da nossa solidão.

Não é uma casa de campo, esta casa, aqui. Não se pode dizer isso. Antes, era uma chácara,
com o tanque, e depois virou a casa de campo de um tabelião, o grande Tabelionato de Paris.

Quando abriram para mim a porta de entra- da, vi o parque. Durou alguns segundos. Eu disse
que sim, que ia comprar a casa, desde o instante em que atravessei a porta. Comprei-a
imediata- mente. Paguei no ato, em espécie.
Agora ela se tornou uma casa de todas as estacoes. E dei-a também ao meu filho. Ela pertence
a nos dois. Ele se sente tão ligado a ela quanto a mim, agora creio nisso. Guardou tudo o que e
meu dentro desta casa. Nela, ainda posso estar sozinha. Tenho minha mesa, minha cama, meu
telefone, meus quadros e meus livros. E os argumentos de meus filmes. E quando entro nesta
casa, meu filho fica muito contente. Essa alegria, do meu filho, € agora a alegria da minha vida.

É uma coisa curiosa um escritor. Uma contradição e também um absurdo. Escrever é também
não falar. E se calar. E berrar sem fazer barulho. E muitas vezes o repouso de um escritor, e ele
tem muito a ouvir. Não fala muito porque é impossível falar com alguém de um livro que se
escreveu e sobretudo de um livro que se está escrevendo. É impossível. É o contrário do
cinema, o contrário do teatro, e de outros espetáculos. É o contrário de todas as leituras. E o
mais difícil de tudo. É o pior. Porque um livro é o desconhecido, é a noite, é fechado, é assim. É
o livro que avança, que cresce, que avança nas direções que se supõem exploradas, que
avança para o seu próprio destino e do seu autor, agora aniquilado pela sua publicação: a
separação entre os dois, o livro sonhado, como a criança recém-nascida, sempre a mais
amada.

Um livro aberto e também a noite.

Não sei por que, estas palavras que acabei de dizer me fazem chorar.

Escrever apesar do desespero. Não: com desespero. Que desespero, eu não sei, não sei o
nome disso. Escrever ao lado daquilo que precede o escrito e sempre estragá-lo. E é preciso,
no entanto, aceitar isto: estragar o fracasso significa retornar para um outro livro, para um
outro possível deste mesmo livro.

Esse perder-se de si no interior da casa não é voluntario, em absoluto. Eu não dizia: “Estou
fechada aqui todos os dias do ano.” Eu não estava, isso seria dizer algo falso. Ia dar voltas, ia
ao café. Mas ao mesmo tempo estava aqui. A aldeia e a casa são semelhantes. E a mesa diante
do tanque. E a tinta preta. E o papel branco e parecido. Com os livros, não, de repente, com
eles nunca e parecido.

Antes de mim, ninguém havia escrito nesta casa. Perguntei ao administrador da


municipalidade, aos vizinhos, aos comerciantes. Não. Nunca. Telefonei diversas vezes para
Versailles a fim de tentar saber o nome das pessoas que tinham morado nesta casa. Na série
dos nomes dos moradores e seus prenomes e sua profissão não havia um só escritor. Ora,
todos esses nomes podiam ser nomes de escritores. Todos. Mas não eram. Em volta, havia
chácaras de várias famílias. O que encontrei na terra foram as lixeiras dos alemães. A casa foi
de fato ocupada por oficiais alemães. Suas lixeiras eram buracos, buracos na terra. Havia
muitas conchas de ostras, caixas vazias de produtos caros, sobretudo patê de fois gras, caviar.
E muita louça quebrada. Mandei jogar tudo fora. Exceto os cacos de louça, sem dúvida
nenhuma louça de Sèvres, os desenhos estavam intactos. E o azul era o azul inocente dos
olhos de algumas de nossas crianças.

Quando um livro chega ao fim — quero dizer, um livro que se terminou de escrever —, não se
pode mais dizer, ao ser lido, que este livro seja um livro escrito por você, nem que coisas estão
escritas nele, nem em que estado de desespero ou em que felicidade, a de um achado ou de
um fracasso de todo o seu ser. Porque, no final, em um livro, não se pode ver nada igual. A
escrita e, de algum modo, uniforme, ajuizada. Nada mais pode entrar em um livro assim,
terminado e distribuído. E ele recupera a inocência indecifrável da sua vinda ao mundo.

Estar sozinha com o livro ainda não escrito significa estar ainda no primeiro sono da
humanidade. E assim. E também estar sozinha com a escrita ainda não semeada. Tentar não
morrer por isso. Estar sozinha em um abrigo durante a guerra. Mas sem preces, sem Deus, sem
qualquer pensamento salvo o louco desejo de matar a nação alemã até o último dos nazistas.

A escrita sempre foi destituída de quaisquer referencias, caso contrário ela e... Ela ainda se
acha como no primeiro dia. Selvagem. Diferente. Exceto a gente, as pessoas que circulam no
interior do livro, durante o trabalho o autor nunca as esquece, nunca as lamenta. Não, disto
estou certa, não, a escrita de um livro, o escrito. Portanto e sempre a porta aberta para o
abando no. Existe o suicídio na solidão de um escritor. E possível sentir-se sozinho no interior
da sua própria solidão. Sempre inconcebível. Sempre perigosa. Sim. Um preço a pagar por ter
ousado sair e gritar.

Na casa, era no primeiro andar que eu escrevia, não escrevia embaixo. Depois, ao contrário,
escrevi no grande cômodo central no térreo para estar menos só, talvez, não sei mais, e
também para ver o parque.

Existe isso no livro: a solidão nele e a solidão do mundo inteiro. Está em toda parte. Invadiu
tudo. Sempre creio nesta invasão. Como todos. A solidão é aquilo sem o que nada fazemos.
Aquilo sem o que nada pode ser visto. É uma forma de pensar, de raciocinar, mas apenas com
o pensamento cotidiano. Isso também existe na função de escrever e sobretudo, talvez, dizer a
si mesmo que não e preciso se matar todos os dias, visto que é possível se matar a qualquer
dia. Isto e a escrita de um livro, isto não é a solidão. Falo da solidão mas não estava sozinha
pois tinha esse trabalho para realizar, trazer a luz, esse trabalho de condenado: escrever Le
Vice-cônsul de France a Lahore. E foi feito e traduzido para línguas do mundo todo, e foi
guardado. Nesse livro, o vice-cônsul atira na lepra, nos leprosos, nos miseráveis, nos cães e
depois atira nos Brancos, nos governantes brancos. Matava tudo menos ela, aquela que na
manhã de um certo dia se afogou no Delta, Lola Valérie Stein, essa Rainha da minha infância e
de S. Thala, essa mulher do governador de Vinh Long.

Esse livro foi o primeiro livro da minha vida. Foi em Lahore, e também lá, no Camboja, nas
plantações, em toda parte. Le Vice-cônsul começou com uma criança de quinze anos que esta
gravida, a pequena Annamite, expulsa da casa da mãe e que se volta para o maciço de
mármore azul chamado Pursat. Não sei mais como continua, depois disso. Lembro que tive
muita dificuldade para encontrar esse lugar, a montanha de Pursat, aonde nunca fui. O mapa
estava ali, na minha escrivaninha, e segui os atalhos da marcha dos mendigos e das crianças de
pernas quebradas, abandonadas por suas mães, e que comiam lixo. Era um livro bem difícil de
fazer. Não existia piano algum possível para expor a amplitude da infelicidade porque já não
havia restado mais nada dos fatos visíveis que a provocaram. Nada havia senão a Fome e a
Dor.

Não havia mais encadeamento algum entre os fatos de natureza selvagem, assim não havia
nunca programação. Isso jamais existiu na minha vida. Jamais. Nem na vida nem nos livros,
nem uma única vez.

Escrevia todas as manhas. Mas sem horário certo. Nunca. Exceto quanto à cozinha. Sabia
quando precisava vir porque a panela estava fervendo ou para que a comida não queimasse.
Quanto aos livros, também era assim. Juro. Tudo, eu juro. Nunca menti em um livro. Nem na
vida. Exceto para os homens. Nunca. E isso porque minha mãe me assustou com a mentira de
que as crianças mentirosas acabavam sendo mortas.

Acho que é isso que condeno nos livros, em geral, o fato de que não são livres. Vê-se isto
através da escrita: eles são fabricados, organizados, regulamentados, convenientes,
poderíamos dizer. Uma função de revisão que o escritor, muitas vezes, exerce em relação a si
mesmo. O escritor, assim, se converte em policial de si mesmo. Entendo desta maneira a busca
da boa forma, ou seja, a forma mais corrente, a mais clara e a mais inofensiva. Ha ainda
gerações de mortos que fazem livros pudibundos. Mesmo os jovens: Livros charmosos, sem o
menor prolongamento, sem noite. Sem silencio. Em outras palavras: sem autor verdadeiro
autor verdadeiro. Livros do dia, de passatempo, de viagem. Mas não livros que se incrustam no
pensamento e que exprimem o luto negro da vida inteira, o lugar-comum de todo
pensamento.

Não sei o que é um livro. Ninguém sabe. Mas dá para saber quando aparece um livro. E
quando não há nada, dá para saber, do mesmo modo que se sabe que estamos vivos, que
ainda não morremos.

Cada livro, como cada escritor, tem alguma passagem mais difícil, incontornável. E ele deve
tomar a decisão de deixar este erro no livro para que permaneça um livro verdadeiro, e não de
mentira. A solidão, ainda não sei em que ela se transforma depois. Ainda não posso falar disso.
O que acho é que essa solidão se torna banal, com o tempo ela se torna vulgar, e que isso é
uma felicidade.

Quando pela primeira vez falei do amor entre Anne-Marie Stretter, a embaixadora da França
em Lahore, e o vice-cônsul, tive o sentimento de ter destruído o livro, de ter retirado o livro do
estado de espera. Mas não, isso não só foi preservado, mas também o contrário disso. Existem
erros dos autores, coisas que na verdade são acasos. Os erros bem-sucedidos entusiasmam
muito, são coisas magníficas, e até os outros, aqueles fáceis como os relativos a infância,
muitas vezes são também maravilhosos.

Os livros dos outros, eu muitas vezes os acho "adequados”, mas muitas vezes me parecem
dependentes de um classicismo sem risco algum. A palavra seria fatal, sem dúvida. Não sei.

As grandes leituras da minha vida, aquelas que só eu fiz, são as escritas por homens. É
Michelet, Michelet e sempre Michelet, até as lágrimas. Os textos políticos também, mas
menos. É Saint-Juste, Stendhal, e de uma forma Bizarra não e Balzac. O Texto dos textos é o
Velho Testamento.

Não sei como sai disso que se pode chamar uma crise, como se diria crise de nervos ou crise de
moleza, de degradação, como seria um sono fingido. A solidão também era isso. Um tipo de
escrita. E ler era escrever.

Alguns escritores são apavorados. Têm medo de escrever. O que contou no meu caso foi talvez
nunca ter tido medo desse medo. Fiz livros incompreensíveis e foram lidos. Há um que li i
recentemente, que não relia há trinta anos, e que acho mágico. Seu título é La Vie tranquille.
Dele, eu esquecera tudo, salvo a última frase: "Ninguém, a não ser eu, tinha visto o homem se
afogar. ” É um livro feito de uma assentada só, segundo a lógica sombria e bastante banal de
um assassino. Nesse livro, é possível ir mais longe do que o livro mesmo, do que o assassino do
livro. Não dá para saber para onde se vai, sem dúvida para a adoração da irmã, a história de
amor da irmã e do irmão, ainda, sim, para a eternidade de um amor deslumbrante, irrefletido,
castigado.

Somos doentes da esperança, nós, os de 68, a esperança era aquilo que colocávamos no papel
do proletariado. E lei alguma, coisa alguma, nem nada nem ninguém vai nos curar dessa
esperança. Eu queria voltar a me inscrever no PC. Mas ao mesmo tempo sei que não seria
necessário. E queria também me dirigir a direita e insultá-la com toda minha cólera. O insulto e
tão forte quanto a escrita. E uma escrita mais dirigida. Insultei pessoas em meus artigos e é tão
satisfatório quanto escrever um belo poema. Para mim, há uma diferença radical entre um
homem de esquerda e um homem de direita. Parece que são as mesmas pessoas. Na
esquerda, há Beregovoy, que ninguém vai substituir. O Beregovoy número um é Mitterrand,
que não se parece com ninguém.

Eu pareço com todo mundo. Acho que ninguém jamais me reconheceu na rua. Sou a
banalidade. O triunfo da banalidade. Como aquela velha senhora do livro: Le Camion.

Viver assim, como digo que eu vivia, nessa solidão, por um longo tempo, cria riscos que se
precisa correr. E inevitável. Desde o momento em que o ser humano se vê sozinho, ele oscila
para a demência. Acredito nisso: acredito que uma pessoa entregue a si mesma já se acha
acometida de loucura, porque não há nada que barre seu caminho quando ocorre um delírio
pessoal.

Nunca se está só. Nunca se está só, fisicamente. Em parte alguma. Sempre se está em algum
lugar. Ouvem-se barulhos na cozinha, na televisão, ou no rádio, nos apartamentos vizinhos, e
no prédio inteiro. Sobretudo quando nunca se precisou do silencio como eu sempre fiz.

Vou adorar contar a história que contei pela primeira vez a Michelle Porte, que tinha feito um
filme sobre mim. Àquela altura da história, eu me encontrava naquilo que se chama a
“despensa” na “casa pequena”, que se comunica com a casa grande. Estava sozinha. Esperava
por Michelle Porte naquela despensa. Muitas vezes fico assim em lugares calmos e vazios. Por
longo tempo. E foi no interior desse silencio, naquele dia de repente vi e ouvi, rente a parede,
bem perto de mim, os últimos minutos da vida de uma mosca comum.

Sentei no chão para não assustá-la. Não mexi mais.

Estava sozinha com ela na casa inteira. Nunca tinha pensado nas moscas até então, exceto
para rogar pragas contra elas. Como vocês. Fui educada, como vocês, no horror dessa
calamidade para o mundo inteiro, que transmite a peste e o colera.

Cheguei perto para vê-la morrer.

Ela queria escapar a parede, onde corria o risco de se tornar prisioneira da areia e do cimento
que se depositavam sobre a parede, com a umidade do parque. Olhei como uma mosca dessas
morria. Foi demorado. Ela se debatia contra a morte. Durou talvez algo entre dez e quinze
minutos e depois cessou. A vida precisara cessar. Ainda fiquei ali para ver. A mosca continuou
parada junto a parede como eu a tinha visto, como chumbada a parede.

Eu estava enganada: ela ainda vivia.


Ainda estou ali, a olhar, na esperança de que ela recomece a esperar, a viver.

Minha presença tornava aquela morte ainda mais atroz. Sabia disso e fiquei ali. Para ver. Ver
como aquela morte invadia a mosca progressiva- mente. E também tentar ver de onde vinha
essa morte. De fora, ou da espessura da parede, ou do sol. De que noite ela vinha, da terra ou
do céu, das florestas vizinhas, ou de um nada ainda inominável, talvez muito próximo, talvez
de mim, que tentava refazer os caminhos da mosca no esforço de passar para a eternidade.

Não sei mais qual foi o final. Sem dúvida, a mosca, no final de suas forças, acabou tombando.
As patas se desprenderam da parede. E ela caiu da parede. Não sei mais nada, exceto que sai
de lá. Disse para mim mesma: “Você está a ponto de ficar doida. ” E sai de lá.

Quando Michelle Porte chegou, mostrei a ela o lugar e contei que uma mosca morrera ali as
três e vinte. Michelle Porte riu um bocado. Ela teve um ataque de riso. Tinha razão. Sorri paia
ela, como intuito de pôr um fim naquela história. Mas não: ela riu ainda mais. E eu, quando
conto de novo a história para vocês, assim, a pura verdade, a minha verdade, foi tudo como
acabei de dizer, aquilo que se passou entre mim e a mosca, e que ainda não se presta a risos.

A morte de uma mosca e a morte. E a morte em marcha para um determinado fim do mundo,
que estende o campo do sono derradeiro. Vemos morrer um cão, vemos morrer um cavalo, e
dizemos qualquer coisa, por exemplo, coitado do bicho... Mas se uma mosca morre, não
dizemos nada, não registramos nada.

Agora está escrito. E, talvez, a este tipo de derrapagem não gosto desta palavra — muito
sombria que nos arriscamos. Não chega a ser grave, mas d um fato em si mesmo, total, de um
sentido enorme: de um sentido inacessível e de uma extensão sem limites. Pensei nos judeus. i
Odeio a Alemanha como nos primeiros dias da guerra, com todo meu corpo, com toda minha
força. Assim, durante a guerra, a cada alemão que passava na rua, eu pensava no seu
assassinato, que eu cometeria, inventado e aperfeiçoado por mim, pensava nessa alegria
colossal, um corpo alemão aos meus pés, morto.

E bom também se o escrito conduz a isso, a essa mosca em agonia, quero dizer: escrever o
pavor de escrever. A hora exata da morte, registrada, a tornava já inacessível. Isso lhe dava
uma importância de caráter geral, digamos, um lugar preciso no mapa geral da vida sobre a
terra.

Essa exatidão da hora da morte faria com que a mosca tivesse funerais secretos. Vinte anos
depois da sua morte, a prova esta aqui mesmo, ainda falamos dela,
Nunca contei a morte dessa mosca, sua demora, sua lentidão, seu medo atroz, sua verdade.

A exatidão da hora da morte remete a coexistência com o homem, com os povos coloniza- dos,
com a massa fabulosa dos desconhecidos do mundo, as pessoas sós, na solidão universal. A
vida, ela está em toda parte. Da bactéria ao elefante. Da terra aos céus divinos ou já mortos.

Não organizei nada em torno da morte da mosca. As paredes brancas, lisas eram já sua
mortalha e fizeram com que sua morte se tornas- se um acontecimento público, natural e
inevitável. Aquela mosca evidentemente estava no final da vida. Eu não podia me impedir de
vê-la morrer. Ela não se mexia mais. Também havia isso, e de saber também que não se pode
contar que essa mosca existiu.

Isso foi há vinte anos. Nunca contei este fato como acabei de contar aqui, nem mesmo para
Michelle Porte. O que eu sabia — o que eu via — era que a mosca já sabia que aquele gelo que
a atravessava era a morte. Isso era o mais assusta- dor. O mais inesperado. Ela sabia. E ela
aceitava.

Uma casa só, isso não existe desse jeito. E preciso que o tempo passe ao redor dela, pessoas,
historias, “reviravoltas”, coisas como o casamento ou a morte daquela mosca, a morte, a
morte banal — a da unidade e do nome ao mesmo tempo, a morte planetária, proletária. A
morte provocada pelas guerras, as montanhas de guerras que existem na Terra.

Naquele dia. Naquela data, deum encontro com minha amiga Michelle Porte, um fato visto
apenas por mim, naquele dia sem hora, uma mosca morreu.

No momento em que olhei para ela, de repente eram três horas e vinte da tarde, um pouco
mais: o ruído dos elitros havia cessado.

A mosca estava morta.

Aquela rainha. Negra e azul.

Aquela, que eu tinha visto, eu, ela estava morta. Lentamente. Ela se debatera até o ultimo
sobressalto. E em seguida ela cedeu. Isso durou talvez de cinco a oito minutos. Foi demorado.
Foi um momento de medo absoluto. E assim foi a partida da morte para outros céus, outros
planetas, outros lugares.
Eu queria me salvar e ao mesmo tempo me dizia que era preciso olhar na direção daquele
barulho no chão, apesar de já ter ouvido, certa vez, aquele ruído de fogo na madeira verde que
tem a morte de uma mosca comum.

Sim. E isso, essa morte da mosca tomou-se um deslocamento da literatura. Escreve-se sem
saber. Escreve-se sobre olhar uma mosca morrer. Existe o direito de fazê-lo.

Michelle Porte teve um ataque de riso quando eu disse a que horas a mosca tinha morrido. E
agora penso que talvez não tenha sido eu que contou essa morte de um jeito engraçado.
Àquela altura eu me achava privada dos meios de expressão porque eu olhava essa morte, a
agonia daquela mosca negra e azul.

A solidão está sempre acompanhada de loucura. Sei disso. A loucura não se vê. Às vezes
apenas a pressentimos. Não creio que possa ser de outro modo. Quando um livro inteiro sai de
dentro da pessoa, e inevitável o estado particular de uma certa solidão que não se pode
partilhar com ninguém. Não se pode fazer nada para partilhar isso. E preciso ler sozinho o livro
que se escreveu, enclausurar-se no livro. Isto possui evidentemente um aspecto religioso, mas
não se percebe de imediato, podemos pensar nisso mais tarde (como penso neste momento)
em razão de algo que seria a vida, por exemplo, ou uma solução para a vida do livro, da
palavra, dos gritos, dos urros surdos, silenciosamente terríveis de todos os povos do mundo.

À nossa volta, tudo escreve, e isso que se deve perceber, tudo escreve, a mosca, ela também
escreve, sobre as paredes, ela escreveu bastante na luz da grande sala, refratada pelo tanque.
A escrita da mosca era capaz de sustentar uma página inteira. Então já e uma escrita, A partir
do momento em que poderia ser uma escrita, já e uma escrita. Um dia, talvez, no correr dos
séculos futuros, alguém lera essa escrita, ela também será decifrada, traduzida. E a imensidão
de um poema legível se desdobrara pelo céu.

Mas, apesar de tudo, em qualquer lugar do mundo fazem-se livros. Todo mundo faz. Acredito
nisso. Tenho certeza de que é assim. Para Blanchot, por exemplo, e assim. Existe a loucura que
gira a seu redor. A loucura e também a morte. Não para Bataille. Por que Bataille se achava a
salvo do pensamento livre, louco? Eu não saberia responder.

Sobre a história da mosca eu gostaria.de dizer ainda alguma coisa,

Ainda a vejo, ela, aquela mosca na parede branca, morrendo. Primeiro na luz solar, depois na
luz refratada e sombria do chão de ladrilhos.
E também possível não escrever, esquecer uma mosca. Apenas olhar para ela. Ver como ela
rodopiava, se debatia de uma forma terrível e compatibilizada comum céu desconhecido e de
nada.

Eis tudo.

Vou falar de nada.

De nada.

Todas as casas em Neauphle são habitadas: no inverno, mais ou menos, e verdade, mas
mesmo assim são habitadas. Não são reservadas para o verão como ocorre muitas vezes.
Ficam abertas o ano inteiro, habitadas.

O que conta nesta casa de Neauphle-le-Château são as janelas que dão para o parque e a
estrada de Paris diante da casa. A estrada por onde passam as mulheres de meus livros.

Dormi bastante naquele aposento que se converteu em sala. Por muito tempo acreditei que
um quarto de dormir fosse uma coisa convencional. Foi quando trabalhei ali que um quarto de
dormir se tornou algo indispensável como os demais quartos, mesmo aqueles vazios, dos
outros andares. O espelho da sala era dos proprietários que me precederam. Deixaram-no
para mim. O piano, eu o comprei logo depois de comprar a casa, quase pelo mesmo preço.

Ao lado da casa, cem anos atrás, havia uma trilha para o gado vir beber no tanque. Agora o
tanque se encontra dentro do meu parque. E não existe mais gado. Na aldeia, não há mais
leite fresco de manhã. Há cem anos.

Na verdade, e quando se roda um filme aqui que a casa aparece como outra casa, aquela que
existiu, certa época, para gente que viveu antes de nos. Na solidão, mostra imediatamente sua
graça, como uma outra casa que pertenceria ainda a outras pessoas. Como se algo tão
monstruoso como a perda da posse desta casa pudesse ser visto.

O lugar onde se colocam as frutas, os legumes, a manteiga salgada, para manter tudo fresco, lá
dentro.... Havia um lugar assim... escuro e frio... acho que era assim, uma despensa, e isso
mesmo. Esta e a palavra. Para pôr a salvo as provisões de guerra.
As primeiras plantas que nasceram aqui são as que estão no parapeito das janelas da entrada.
E o gerânio-rosa vindo do sui da Espanha. Aromático como o Oriente.

Nesta casa, nunca se jogam as flores fora. É um habito, não uma regra. Nunca, mesmo quando
estão mortas, elas sempre ficam onde estão. Existem pétalas de rosas que estão no mesmo
lugar ha quarenta anos, na mesma jarra. Estão ainda bem rosadas. Secas e Rosas.

O problema, o ano todo, e o crepúsculo. Tanto no verão quanto no inverno.

Há o primeiro crepúsculo, aquele do verão, e não e preciso iluminar o interior da casa.

Depois há o verdadeiro, o crepúsculo do inverno. Às vezes, fecho os postigos das janelas para
não ver isso. Ha também as cadeiras, elas são arrumadas para o verão. E no terraço que se
costuma ficar no verão. Ali converso com os amigos que vem durante o dia. Para isso, muitas
vezes: conversar.

Sempre e triste, mas não trágico, o inverno, a vida, a injustiça. O horror absoluto de uma certa
manhã.

É apenas isso, triste. Nem com o tempo dá para se acostumar com isso.

O mais difícil, nesta casa, e o temor pela sorte das arvores. Sempre. E cada vez. Cada vez que
há tempestade, e há muitas tempestades por aqui, a gente torce pelas arvores, tem medo do
que possa acontecer com elas. Não sei mais seus nomes na ponta da língua.

A hora do crepúsculo do anoitecer é a hora em que, ao redor do escritor, todo mundo para de
trabalhar.

Nas cidades, nas aldeias, em toda parte, os escritores são pessoas sós. Em toda parte, e
sempre, foram assim.

No mundo inteiro, com o fim da luz, vem o fim do trabalho.


E sempre senti essa hora como não sendo, para mim, a hora do fim do trabalho, mas a hora do
começo do trabalho. Existe, na natureza, um tipo de inversão de valores em relação ao
escritor.

Para os escritores, o outro trabalho e aquele que as vezes chega a dar vergonha, aquele que
provoca, na maior parte do tempo, um desgosto de ordem políticos, o mais violento de todos.
Sei que isso deixa a pessoa inconsolável. E que a gente acaba malvada, como cães da polícia.

Aqui, a gente se sente separada do trabalho manual. Mas contra isso, contra esse sentimento
a que € preciso se adaptar, se habituar, nada poderá ser eficaz. O que vai dominar sempre, e
isto nos faz chorar, e o inferno e a injustiça do mundo do trabalho. O inferno das fabricas, os
rigores do desprezo, a injustiça do patronato, seu horror, o horror do regime capitalista, toda a
infelicidade que ele emana, o direito dos ricos terem o proletariado a seu dispor e fazerem
dele a razão de seu fracasso, nunca de seu sucesso. O mistério e por que o proletariado aceita.
Mas são numerosos, e cada dia cresce mais o número daqueles que acreditam que isto não
pode durar mais muito tempo. Que alguma coisa foi alcançada por nós todos, uma nova leitura
talvez de seus textos desonrosos. Sim, e isso mesmo.

Não insisto, vou embora. Mas digo aquilo que todos sofrem, mesmo quando não sabem que
sofrem.

Muitas vezes, com o fim do trabalho, nos vem a lembranças da maior injustiça. Falo do
cotidiano da vida. Não t de manhã, e de noite que isso acontece, entra nas casas, vem até nos.
E se não e assim, então não e absolutamente nada. Não é: nada. E sempre, em todos os casos,
em todas as aldeias, sabe-se disso.

A libertação ocorre quando a noite começa a se instalar. Quando o trabalho cessa lá fora.
Resta esse luxo que temos, nos, de poder escrever durante a noite. Podemos escrever a
qualquer hora. Não recebemos autorização de ninguém, horários, chefes, armas, muitas,
guardas, chefes dos chefes. E galinhas chocas dos fascismos de a manhã.

A luta do vice-cônsul é uma luta ao mesmo tempo ingênua e revolucionaria.

E esta a maior injustiça de todos os tempos: e se não chorarmos por isso, pelo menos uma vez
na vida, não vamos chorar por mais nada. E não chorar nunca e não viver.

Chorar, e preciso que isto também aconteça.


Se chorar é inútil, mesmo assim creio que e preciso chorar. Pois o desespero é tangível.
Perdura. A lembranças do desespero, isto perdura. As vezes mata.

Escrever.

Não posso.

Ninguém pode.

E preciso dizer: não se pode.

E se escreve.

É o desconhecido que trazemos conosco: escrever, é isto o que se alcança. Isto ou nada.

Pode-se falar de uma doença da escrita.

Não e simples o que tento dizer aqui, mas acho que e possível reencontrarmo-nos aqui,
camaradas de todos os países.

Ha uma loucura de escrever que existe em si mesma, uma furiosa loucura de escrever, mas
não e por isso que se cai na loucura. Ao contrário.

A escrita e o desconhecido. Antes de escrever, nada se sabe do que se vai escrever. E em total
lucidez.

E o desconhecido de si mesmo, de sua cabeça, de seu corpo. Escrever não e sequer uma
reflexão, e um tipo de faculdade que se possui ao lado da personalidade, paralelo a ela, uma
outra pessoa que aparece e avança, invisível, dotada de pensamento, colera, e que por vezes
acaba colocando a si mesma em risco de perder a vida.

Se soubéssemos algo daquilo que se vai escrever, antes de fazê-lo, antes de escrever, nunca
escreveríamos. Não ia valer a pena.
Escrever significa tentar saber aquilo que se escreveria se fossemos escrever — só se pode
saber depois — antes, é a pergunta mais perigosa que se pode fazer. Mas também a mais
comum.

A escrita vem como o vento, nua, é de tinta, a escrita, e passa como nada mais passa na vida,
nada, exceto ela, a vida.

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