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ARTIGO ARTICLE 1611

Parto cesáreo: quem o deseja?


Em quais circunstâncias?

Cesarean sections: who wants


them and under what circumstances?
Gisele Peixoto Barbosa 1,2
Karen Giffin 1
Antonia Angulo-Tuesta 1
Andrea de Souza Gama 1
Dóra Chor 3
Eleonora D’Orsi 1
Ana Cristina Gonçalves Vaz dos Reis 1

1 Núcleo de Gênero e Saúde, Abstract Brazil has extremely high cesarean rates. Among related factors, it has been suggested
Departamento de Ciências
that a “culture of cesarean childbirth” (or a preference for this type of delivery) exists among
Sociais, Escola Nacional
de Saúde Pública, Brazilian women. Our study investigates this notion. Data were collected from September 1998
Fundação Oswaldo Cruz. to March 1999 in two maternity hospitals in Rio de Janeiro Interviews were conducted and hos-
Rua Leopoldo Bulhões 1480,
pital records analyzed for a random representative sample of 909 women who had just given
Rio de Janeiro, RJ
21041-210, Brasil. birth (454 vaginal deliveries and 455 cesareans). In the interviews, when asked if they had want-
gpbarbosa@zipmail.com.br ed to have a cesarean, 75.5% replied in the negative, thus indicating that these women cannot be
2 Programa de Assistência
considered as adhering to a “culture of cesarean sections” The main complaints against cesare-
Integral à Saúde da Mulher,
Criança e Adolescente, ans were: slower and more difficult recovery (39.2%) and greater pain and suffering (26.8%).
Secretaria de Estado de However, 17% of the sample had at some point requested a cesarean, 75% of whom during labor.
Saúde do Rio de Janeiro.
Rua México 128,
Analysis revealed that the request for a cesarean section is directly proportional to time between
Rio de Janeiro, RJ admission to the hospital and delivery. This suggests that (in addition to being the usual means
20031-142, Brasil. of access to tubal ligation) the actual circumstances of birthing are important factors in Brazil-
3 Departamento de
Epidemiologia e Métodos
ian women’s requests for cesarean sections.
Quantitativos em Saúde, Key words Cesarean Section; Perinatal Care; Reproductive Health
Escola Nacional de Saúde
Pública, Fundação Oswaldo
Cruz. Rua Leopoldo Bulhões
Resumo O Brasil apresenta altos índices de cesáreas. Este estudo investigou a existência de uma
1480, Rio de Janeiro, RJ “cultura de cesárea”, ou preferência por este tipo de parto, através de uma amostra de 909 puér-
21041-210, Brasil. peras (454 vaginais e 455 cesáreos) em duas maternidades do Município do Rio de Janeiro, onde
entrevistas e revisão de prontuários foram realizados entre setembro de 1998 e março de 1999.
Perguntou-se às mulheres se queriam que seu parto fosse cesáreo e a maioria absoluta (75,5%)
respondeu “não”, as razões principais sendo: “recuperação mais difícil e lenta no parto cesáreo”
(39,2%) e “dor e sofrimento maior depois da cesárea” (26,8%). Apenas 17% das mulheres solicita-
ram cesárea e, destas, cerca de 75% o fizeram durante o trabalho de parto/parto. Análise mostrou
que quanto maior o intervalo de tempo entre a admissão no hospital e o parto, mais freqüente é
a solicitação. A maioria das mulheres, nas maternidades estudadas, não quer e não pede cesá-
rea; ou seja, não existe uma ‘cultura’ feminina que valorize a cesárea como preferência. Além do
desejo da laqueadura, as circunstâncias concretas da assistência no pré-parto/parto parecem in-
fluenciar no pedido da mulher.
Palavras-chave Cesárea; Assistência Perinatal; Saúde Reprodutiva

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Introdução exemplo, a taxa de cesárea foi de 46%. Nos hos-


pitais com mais de 1.000 nascimentos/ano, es-
A magnitude da questão cesárea sa taxa variou de 9,8% a 84,5% (Campos & Car-
valho, 2000).
A cesárea é um procedimento cirúrgico origi- O uso iatrogênico da cesárea é indicado pe-
nalmente desenvolvido para salvar a vida da lo fato de ser esta mais freqüente em hospitais
mãe e/ou da criança, quando ocorrem compli- privados e em regiões de maior renda, cujas
cações durante a gravidez ou o parto. É, por- gestantes estão em melhores condições sociais
tanto, um recurso utilizável quando surge al- e de saúde, apresentando, em princípio, menor
gum tipo de risco para a mãe, o bebê ou am- risco gestacional (Rattner, 1996).
bos, durante a evolução da gravidez e/ou do Ao longo das últimas décadas muito se tem
parto. Como todo procedimento cirúrgico, a debatido sobre a assistência ao parto. Diversas
cesárea não é isenta de riscos, estando associa- análises realizadas, que retratam a complexi-
da, no Brasil e em outros países, a maior morbi- dade de fatores que cercam o parto (e sua as-
mortalidade materna e infantil, quando com- sistência), têm suscitado uma série de ques-
parada ao parto vaginal (Faundes & Cecatti, tões, que envolvem desde a qualidade da aten-
1991; McClain, 1990; Miller, 1988). A escolha de ção obstétrica até a constituição do significado
qualquer intervenção médica, em termos éti- da experiência do nascimento para nós, mu-
cos, deve basear-se no balanço entre riscos e lheres e homens envolvidos na reprodução.
benefícios. No Brasil e em outros países, no en- No Brasil, a assistência ao parto deve ser
tanto, a cesárea tem sido abusivamente utiliza- compreendida no contexto de um conjunto
da, sem benefícios para as mulheres e recém- complexo de fatores característicos da atenção
natos (Shearer, 1993). à saúde reprodutiva, que inclui, além de altos
Nos últimos 30 anos tem sido observado índices de esterilização e partos cirúrgicos, a
um aumento progressivo das taxas de cesárea baixa qualidade da atenção obstétrica, reflexo
em quase todos os países, embora não de for- da precariedade do pré-natal, das condições
ma homogênea. A magnitude dessa tendência desumanas de assistência ao parto e da pere-
foi maior nos Estados Unidos, no Canadá, em grinação de parturientes em busca de leitos
Porto Rico e no Brasil (Sakala, 1993). Esses paí- hospitalares, se quisermos destacar apenas al-
ses ultrapassaram, na década de 80, o índice de guns elementos (Berquó, 1999; Diniz, 1996; Sil-
15%, considerado pela Organização Mundial ver, 1999; Valladares, 1999).
de Saúde (OMS) como a taxa máxima aceitável Entre os fatores que influenciam a opção
de cesárea para qualquer região (OMS, 1996). A por um parto cesáreo têm sido relatados: (a) a
maioria dos países europeus, nessa mesma organização da atenção obstétrica, pautada
época, apresentou taxas entre 10% e 14%, com pela conveniência de uma intervenção progra-
exceção da Holanda – onde o sistema de aten- mada e pela insegurança do médico, decorren-
ção ao parto privilegia o atendimento domici- te de treinamento insuficiente na gama de va-
liar e conta com a participação efetiva de par- riações que ocorrem durante o desenrolar de
teiras –, que apresentou taxas próximas a 7%. um parto normal; (b) fatores institucionais li-
(Sakala, 1993). É importante também destacar gados à forma de pagamento e à exclusão do
que as taxas de cesárea podem variar dentro de pagamento de anestesia peridural para partos
um mesmo país. vaginais pelo Sistema Único de Saúde (SUS),
Dados nacionais recentes (BEMFAM, 1997) situação já revista pelo Ministério da Saúde,
confirmam a tendência de crescimento desse mas não modificada em todos os hospitais; (c)
tipo de parto, que alcançou 36% no Brasil, com a esterilização cirúrgica, realizada freqüente-
taxas maiores em São Paulo (52%) e na Região mente durante cesáreas eletivas; e (d) fatores
Centro-Oeste (49%), sendo as menores taxas socioculturais, que levariam à preferência, por
nas Regiões Nordeste (20%) e Norte (25%). Ob- parte das mulheres e dos profissionais de saú-
serva-se, ainda, que o parto cesáreo é mais fre- de, por um parto cirúrgico, tais como: medo da
qüente na região urbana (41,8%) do que na re- dor no parto normal, medo de lesões na anato-
gião rural (20,1%) e mostra-se também forte- mia e fisiologia da vagina e a crença de que o
mente associado ao grau de instrução da mu- parto vaginal é mais arriscado do que uma ce-
lher, aumentando progressivamente com o nú- sárea, sendo esta última considerada a forma
mero de anos de estudo (BEMFAM, 1997). Exis- mais “moderna” de se ter filhos (Faundes & Ce-
te, portanto, grande variabilidade das taxas de catti, 1991; Rattner, 1996).
cesárea segundo as diversas unidades de análi- A partir de tais considerações, tem sido su-
se: estados, municípios, bairros ou hospitais. gerida a existência de uma “cultura da cesárea”
No município do Rio de Janeiro, em 1995, por entre as mulheres brasileiras, ou seja, uma pre-

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PARTO CESÁREO 1613

ferência pelo parto cirúrgico, considerado su- médica se apresenta, nesse sentido, como uma
perior ao parto vaginal. resposta necessária para o controle desse risco.
Levada ao extremo, essa lógica passa a justifi-
Uma visão da questão a partir car a utilização corriqueira da tecnologia mé-
de uma perspectiva de gênero dica nos nascimentos, a despeito de qualquer
indicação clínica mais precisa (Scavone, 1992).
Maternidade, gravidez e parto despontam co- No caso do Brasil, o trabalho de Mello-e-
mo assuntos caros no ressurgimento do movi- Souza (1994) visa contribuir para a compreen-
mento feminista nos anos 60, que identificou a são do processo de legitimação social do parto
tradução social da função reprodutora como cesáreo, tanto pelos médicos como pelas pa-
um ponto nevrálgico sobre o qual se assenta a cientes, como um tipo de parto seguro, indo-
opressão feminina. Dessa perspectiva, elabo- lor, moderno e ideal para qualquer grávida. A
rou-se uma crítica à compreensão naturalizada autora busca elucidar a forma pela qual valores
da reprodução e da sexualidade, tratadas como culturais referentes à dor do parto vaginal, à
dimensões biológicas da esfera privada da vida imagem corporal feminina e ao fascínio pela
dos indivíduos, como se nessa arena não se tecnologia foram manipulados pela biomedici-
inscrevessem relações de poder, hierarquia e na a fim de acomodar essa prática dentro da
violência. Para o feminismo, as questões relati- orientação geral da medicina ocidental em re-
vas à reprodução são colocadas no plano das lação à beneficência (“poupar a mulher da
relações de poder e da luta política pela auto- dor”). Assim, o medo da dor passa a ser rotula-
determinação sobre o corpo e a sexualidade do de “falta de preparo psicológico para o tra-
(Ávila, 1993; Giffin, 1991). balho de parto”, transformando-se em justifi-
Historicamente, o parto se constituiu em cativa médica para a cesárea. Embora não haja
uma arena de intensa luta de poder entre as fundamentação empírica para tal, a idéia de
mulheres e a ordem médica, pelo controle so- dano rotineiro ao períneo pelo parto vaginal –
bre o corpo, a sexualidade e a emoção (ver, por interferindo com qualidades estéticas do cor-
exemplo, Brenes, 1991). O processo histórico po e com o potencial sexual feminino, valores
de medicalização do corpo feminino traduz de entendidos como centrais à imagem corporal e
modo exemplar a idéia de que existe uma na- à identidade feminina entre as mulheres brasi-
tureza biológica determinante da condição fe- leiras de estrato social superior – passa a justi-
minina. É justamente por meio dessa concep- ficar a cesárea como “medicina preventiva”.
ção que a medicina construiu o discurso legiti- Mello-e-Souza argumenta que o princípio
mado sobre o corpo das mulheres e sobre a re- do direito da mulher ao poder e controle sobre
produção (Vieira, 1999). A partir dessa óptica, o o próprio corpo, bandeira do feminismo dos
fenômeno moderno da medicalização do nas- anos 60, foi apropriado pelos médicos para jus-
cimento é apontado como mais uma – e funda- tificar a prática de cesáreas desnecessárias.
mental – instância de expressão do poder mas- Nesse processo, tais intervenções passam a ser
culino. denominadas “cesárea a pedido” ou “cesárea
A crítica à assistência ao parto se insere no eletiva”, insinuando que a “cultura da cesárea”
questionamento mais amplo que as mulheres reflete um desejo feminino (Mello-e-Souza,
fazem aos serviços de saúde, e parte da propo- 1994). Conforme essa interpretação, é o desejo
sição feminista de que a situação de subordi- feminino que determina o tipo de parto, e não
nação aí experimentada pelas mulheres e ex- o poder de promoção, legitimação e divulgação
pressa na medicalização do corpo feminino é dos médicos.
socialmente determinada, e não uma decor- Nesse caminho, tratar a maternidade, a gra-
rência natural de suas características biológi- videz e o parto não como fenômenos mera-
cas (Diniz, 1996). mente naturais ou fisiológicos mas fundamen-
A reflexão feminista problematizou a pato- talmente como experiências socialmente cons-
logização da reprodução e a maneira como as truídas permite compreender a complexa di-
práticas médicas definem seu objeto de traba- nâmica de construção social da parturição,
lho, e questionou as bases históricas e políticas suas técnicas de assistência, seus cenários e os
da concepção do feminino como “fisiologica- principais atores envolvidos. Uma abordagem
mente patológico”. A patologização do parto, multidimensional permite, então, analisar o fe-
articulada à construção médico-científica do nômeno da parturição como um processo fi-
feminino como “normalmente defeituoso” e siológico que é contextualizado socialmente
dependente da tutela médico-cirúrgica, orien- por um sistema complexo de valores e que en-
ta-se no século 20 por um modelo de assistên- volve interações entre indivíduos, grupos so-
cia ao parto como evento de risco. A tecnologia ciais e instituições (maternidades) com poder

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diferenciado na definição dessas relações. De- apesar das diferenças existentes nas taxas de
vemos, portanto, ver o parto e, especificamen- cesárea entre o setor público e o privado, a pre-
te, as indicações de parto cesáreo para além ferência da maioria das mulheres (70% a 80%)
das questões clínicas. antes do parto era pelo parto vaginal.
Esses estudos não apóiam a idéia de uma
Uma cultura da cesárea? preferência feminina pelo parto cesáreo. O pre-
sente estudo é uma tentativa de avançar na in-
Dados recentes mostram que, na opinião dos vestigação da “cultura da cesárea” a partir da
médicos, a maioria das mulheres dá preferên- visão de um grupo de parturientes. Nesta aná-
cia ao parto cesáreo. O relatório da Pesquisa lise, indagamos se pedir uma intervenção ci-
sobre Saúde Reprodutiva e Práticas Obstétricas rúrgica é o mesmo que achar o parto cesárea
no Brasil (Núcleo de Estudos de População, superior. Se as mulheres o solicitam, em que
1996) reportou que 89% dos médicos entrevis- contexto e por que o fazem? Esse pedido pode
tados em São Paulo achavam que as mulheres ser relacionado às condições do atendimento
preferiam o parto cirúrgico, assinalando como prestado às mulheres nos serviços de saúde, ao
razões mais importantes dessa preferência o desejo de laqueadura ou significa a noção de
medo do parto vaginal (65%), a possibilidade que o parto cesáreo é a melhor opção?
de laqueadura (11%) e o não-pagamento pelo
SUS da anestesia para o parto vaginal (8%). No
mesmo relatório, médicos do Rio Grande do Métodos
Sul também apontaram como razões para expli-
car a “preferência” por partos cesáreos o medo Os dados foram coletados entre setembro de
do parto vaginal (67,3%) e a possibilidade de 1998 e março de 1999, em duas maternidades
obter ligadura por meio de cesarianas (11,9%). do município do Rio de Janeiro, sendo uma pú-
Por outro lado, Hopkins (2000) realizou um blica e outra conveniada com o SUS. Foram es-
estudo nas cidades de Porto Alegre (Rio Gran- tudadas 909 puérperas: 461 na maternidade
de do Sul) e Natal (Rio Grande do Norte), no pública (230 partos vaginais e 231 cesáreas) e
período de agosto de 1995 a maio de 1996, cu- 448 na maternidade conveniada (224 partos
jos resultados demonstram que as mulheres vaginais e 224 cesáreas), sendo esta uma amos-
não buscam o parto cesáreo: a maioria das pri- tra representativa das mulheres que pariram
míparas referiu preferir o parto vaginal. Entre nessas maternidades no período do estudo. Pa-
as que tiveram filho por parto cesáreo, cerca de ra o cálculo do tamanho da amostra foi utiliza-
75% (maternidade privada) e 80% (maternida- do o programa Epi Info (módulo Statcalc, ta-
de pública) afirmaram que não queriam que manho da amostra e poder, estudo de caso-
seu parto tivesse sido cesáreo. controle não pareado). Foi considerado um er-
Além disso, Hopkins cita estudo desenvol- ro a igual a 5% e um poder (1-b) igual a 80%.
vido em Brasília, com mulheres de média e alta Utilizou-se a variável estado da bolsa d’água na
renda, que demonstra o fato de as pacientes, admissão (íntegra ou rota) como variável de
pelo menos no início da gestação, desejarem exposição para o cálculo de tamanho de amos-
um parto vaginal (Carranza, 1994, apud Hop- tra. As mulheres foram selecionadas segundo a
kins, 2000). A mesma autora faz referência ao data do parto, utilizando-se o registro da sala
trabalho de Freitas, realizado no Sul do Brasil, de parto dos hospitais. Os dados foram coleta-
que mostrou que apenas uma minoria das mu- dos por meio de questionários e pela revisão
lheres requisita a cesárea durante o trabalho de dos prontuários médicos após a alta das pa-
parto. Nesse estudo, os obstetras raramente se cientes. A aplicação do questionário foi reali-
colocaram como responsáveis pelas altas taxas zada nas enfermarias dos hospitais, estando as
de cesárea e, quando o fizeram, dividiram a res- puérperas com 24 a 72 horas de pós-parto.
ponsabilidade com a organização dos serviços O questionário e a revisão dos prontuários
de saúde (Freitas, s.d., apud Hopkins, 2000). abordaram antecedentes obstétricos, dados da
Potter et al. (2001) apresentam mais recen- gestação atual e do pré-natal, de acesso ao hos-
temente um estudo prospectivo realizado em pital, internação, pré-parto, parto e puerpério,
quatro capitais brasileiras (Porto Alegre, Belo sobre a condição do recém-nascido, aspectos
Horizonte, Natal e São Paulo), no período de sócio-demográficos da mulher e opiniões da
abril de 1998 a junho de 1999, com mulheres mulher sobre o parto cesáreo. A análise dos da-
atendidas nos setores público e privado em três dos quantitativos foi feita utilizando o pacote
momentos do ciclo gravídico-puerperal (no iní- estatístico SPSS para Windows.
cio da gravidez, a um mês do parto e com um Com o objetivo de investigar se havia prefe-
mês de pós-parto). Os autores mostram que, rência pelo parto cesáreo, foram feitas as per-

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PARTO CESÁREO 1615

guntas abaixo para as 909 mulheres nas duas internadas. A maternidade pública dispõe de
maternidades: unidade neonatal, com leitos de Unidade de
• Você queria que seu parto fosse cesáreo? Tratamento Intensivo (UTI) e Unidade Inter-
Por quê? mediária (UI), constituindo, por isso, referên-
• Em algum momento você pediu para fazer cia para pacientes de risco, com prematurida-
cesárea? Em caso de resposta afirmativa, em de em cerca de um quarto dos partos. A mater-
que momento? nidade conveniada pode ser caracterizada co-
• Você ligou as trompas? mo de baixo risco, tendo pequeno índice de
Além disso, foram realizadas entrevistas se- prematuridade e de gestantes de risco. Ambas
mi-estruturadas em profundidade com uma têm um grande volume de partos por mês e
subamostra de 24 puérperas, 12 em cada ma- mais de 1.000 partos por ano cada uma.
ternidade, todas multíparas que haviam expe- Para caracterizar a preferência das mulhe-
rimentado os dois de tipo de parto (vaginal e res pelo tipo de parto, utilizamos dados obti-
cesáreo). As entrevistas foram gravadas, trans- dos por meio das perguntas feitas às 909 mu-
critas e posteriormente analisadas por tema. lheres entrevistadas nas duas maternidades,
Entre outras questões, foram abordadas as per- bem como pela análise das entrevistas semi-
cepções quanto ao parto cirúrgico, analisadas estruturadas com as 24 mulheres que tinham
a partir de categorias empíricas estabelecidas, experiência com os dois tipos de parto.
neste caso, para ilustrar as razões de querer ou
não o parto cesáreo, permitindo respostas múl- As mulheres preferem cesárea?
tiplas.
A todas as mulheres entrevistadas foi expli- Quando perguntadas se queriam que seu par-
cado que seus dados seriam utilizados anoni- to fosse cesáreo, a maioria das entrevistadas
mamente numa pesquisa sobre assistência ao (75,6%) respondeu que não. Esse percentual va-
parto, com objetivo de melhorar a qualidade riou, na maternidade pública, de 62,9% (nas
da atenção às mulheres, sendo facultada a to- mulheres que tiveram parto cesáreo) a 81,5%
das a possibilidade de não participar da entre- (nas que tiveram parto vaginal); na maternida-
vista e assegurados a confidencialidade e o de conveniada a resposta negativa variou de
anonimato. A pesquisa foi aprovada pelo Co- 74,2% (parto cesáreo) a 83,7% (parto vaginal).
mitê de Ética da Fiocruz e todas mulheres que Nas duas maternidades, apenas 24 mulheres
aceitaram participar assinaram termo de con- não relataram preferência quanto ao tipo de
sentimento, tendo sido seguidas as recomen- parto (Tabela 1).
dações da legislação brasileira (Resolução n o As razões mais freqüentemente apresenta-
196/96 do Conselho Nacional de Saúde – http:// das pelas mulheres para não quererem o parto
www.conselho.saude.gov.br/docs/Reso196. cesáreo foram: “recuperação mais difícil e len-
doc) e da legislação internacional – Declaração ta no parto cesáreo” (39,2%) e “dor e sofrimen-
de Helsinki (1964, reformulada em 1975, 1983, to maior depois da cesárea” (26,8%). Essas duas
1989, 1996 e 2000 – http://www.wma.net/e/ razões prevaleceram, também, quando anali-
policy/17-c_e.html). samos os dados das duas maternidades sepa-
radamente e por tipo de parto (Tabela 2).
Em terceiro lugar encontra-se um conjunto
Resultados de respostas que categorizamos como “cultura
do parto vaginal”, correspondente a 23,9% das
Não encontramos diferenças importantes en- respostas. Dentro dessa categoria foram incluí-
tre as duas maternidades no que diz respeito às das as respostas que afirmam o desejo por um
características sociais das mulheres nem entre parto normal, embora a razão nem sempre fos-
os tipos de parto. Tratava-se de uma população se clara: parto normal é melhor para mãe e pa-
com baixa escolaridade (a maioria tinha o en- ra criança; sem justificativa; não sabia por que,
sino fundamental incompleto), baixo poder apenas uma opinião; normal é natural, cesárea
aquisitivo (cerca de 75% tinham renda per ca- é artificial; parto vaginal é mais rápido; justifi-
pita de até R$ 200,00 por mês), sem trabalho cativa contraditória, dúvida, mas afirma que
remunerado (seja ele formal ou informal) e que parto vaginal é melhor; a partir da experiência
residia com companheiro. A maioria das mu- de outra pessoa; queria viver a experiência do
lheres tinha entre 20 e 34 anos no momento da parto normal (Tabela 2).
pesquisa. As mesmas duas categorias de respostas
Apesar das semelhanças, sabe-se que as mais freqüentes também se destacaram nas
maternidades têm características diferentes no entrevistas semi-estruturadas realizadas com a
que diz respeito ao perfil de risco das pacientes subamostra que experimentara ambos os tipos

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Tabela 1

Preferência das mulheres por tipo de parto, segundo a maternidade e o tipo de parto atual.

Queria parto cesáreo Pública Conveniada Total


Vaginal Cesáreo Vaginal Cesáreo
n % n % n % n %

Sim 42 18,5 83 37,1 36 16,3 55 25,8 216


Não 185 81,5 141 62,9 186 83,7 157 74,2 669
Total 227 100,0 224 100,0 222 100,0 212 100,0 885
Sem preferência 3 7 2 12 24

Tabela 2

Razões apresentadas pelas mulheres que não queriam parto cesáreo, segundo a maternidade e o tipo de parto atual.

Razões Pública Conveniada Total


Vaginal Cesáreo Vaginal Cesáreo
n % n % n % n % n %

Recuperação mais difícil 69 37,3 50 35,5 75 40,3 68 43,3 262 39,2


e lenta da cesárea
Dor, sofrimento maior 44 23,8 46 32,6 42 22,6 47 29,9 179 26,8
depois da cesárea
“Cultura do parto vaginal” 44 23,8 38 27,0 49 26,3 29 18,5 160 23,9
Risco cirúrgico, medo da 21 11,4 6 4,3 16 8,6 10 6,4 53 7,9
anestesia, do corte, da infecção
Experiência anterior com 7 3,8 1 0,7 4 2,2 3 1,9 15 2,2
cesárea ou parto vaginal
Total 185 100,0 141 100,0 186 100,0 157 100,0 669 100,0

de parto. Transcrevemos a seguir a resposta de to” (29,2%) e o “desejo de laqueadura” (24,1%).


algumas dessas mulheres, apontando as des- Aparecem também como categorias importan-
vantagens da cesárea: tes a “condição de saúde da mulher” (13,4%); o
“Todas. Não vi meu filho, não peguei meu fi- “medo” (8,3%); e o “passado obstétrico da mu-
lho, não botei ele no peito, fiquei mais de 20 dias lher” (8,3%). Categorizamos como “cultura do
pra poder andar direito, muita dor nas costas, parto cesáreo” 11,1% das respostas, que afir-
muita dor na minha coluna, horrível. Para mim mavam esta preferência embora a razão nem
todas as desvantagens, não gostei de nada. Eu sempre estivesse clara: sem explicação, não sa-
acho que a cesariana só devia ser opção mesmo be por que; por curiosidade; “riscos” do parto
em caso de vida ou morte. Eu acho que todas as normal não especificados; justificativa contra-
mulheres deviam se conscientizar de que o par- ditória, dúvida, mas prefere cesárea; cesárea
to normal é o melhor” (C., 29 anos, três partos mais rápida; a partir da experiência ou opinião
vaginais, um cesáreo e um vaginal). dos outros (Tabela 3).
“(…) No normal, no outro dia você já está É interessante notar que a preocupação com
andando, conversando, e nesse a gente não pode danos ao períneo ou efeitos negativos na vida
nem conversar muito” ( V., 35 anos, um parto sexual, sugerida pelos profissionais como ra-
vaginal e um cesáreo). zão para as mulheres desejarem o parto cesá-
E quais seriam as razões apontadas pelas reo, não figura entre as razões dadas pelas mu-
mulheres que gostariam que o seu parto fosse lheres entrevistadas neste estudo.
cesáreo? Nesses casos, que representam 24,4% As duas primeiras categorias de razões se
do total das entrevistadas, destaca-se a “dor e o mantêm importantes nas duas maternidades,
sofrimento menor durante o trabalho de par- embora com maior destaque para as mulheres

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PARTO CESÁREO 1617

Tabela 3

Razões apresentadas pelas mulheres que queriam parto cesáreo segundo, a maternidade e o tipo de parto atual.

Razões Pública Conveniada Total


Vaginal Cesáreo Vaginal Cesáreo
n % n % n % n % n %

Dor e sofrimento menores 14 33,3 19 22,9 14 38,9 16 29,1 63 29,2


Desejo de laqueadura 13 31,0 17 20,5 14 38,9 8 14,5 52 24,1
Condições de saúde da mulher 4 9,5 12 14,5 3 8,3 10 18,2 29 13,4
“Cultura da cesárea” 5 11,9 8 9,6 2 5,6 9 16,4 24 11,1
Medo, medo de complicação, 3 7,1 9 10,8 0 0,0 6 10,9 18 8,3
nervoso
Experiência anterior com 0 0,0 14 16,9 0 0,0 4 7,3 18 8,3
cesárea, passado obstétrico
Condições de saúde da criança 1 2,4 4 4,8 2 5,6 0 0,0 7 3,2
Recuperação melhor 2 4,8 0 0,0 1 2,8 2 3,6 5 2,3
Total 42 100,0 83 100,0 36 100,0 55 100,0 216 100,0

que tiveram parto vaginal. As outras razões/mo- Em resposta à pergunta “Atualmente, mui-
tivações apontadas pelas mulheres apresenta- tas mulheres fazem cesárea. Por que você acha
ram distribuições que variaram entre as mater- que isso vem acontecendo?”, a maioria das 24
nidades e os dois tipos de parto (Tabela 3). mulheres entrevistadas na subamostra apon-
Na análise das entrevistas semi-estrutura- tou as dores, o medo, a falta de informação
das, a grande vantagem atribuída ao parto ce- com relação ao desenvolvimento do parto nor-
sáreo é não sentir as dores no momento do mal e o desejo de laqueadura como motivos
parto vaginal: para outras mulheres pedirem cesárea.
“Eu também não acho vantagem, mas a di- “Porque eu acho que tem muita mulher que
ferença é essa, você não sente a dor do parto” (J., não gosta de sentir dor, só que é ilusão, porque
32 anos, um parto vaginal e um cesáreo). a dor do parto é só aquela hora, mas a cesárea
“Não tem a dor na hora, mas depois as dores vai ficar direto, a dor do parto você sente e com
vêm dobrado” (L., 25 anos, três partos vaginais uma semana você já está normal. Agora, a ce-
e dois cesáreos). sárea não, ela fica ali, ela incomoda, fica aque-
“Só porque a gente não sente essas dores to- la cólica por dentro, tem que vir pra tirar pon-
das pra ter a criança normal. Eles dão logo to...” (A., 26 anos, dois partos vaginais e um ce-
aquela anestesia e eles rapidinho tiram a crian- sáreo).
ça. A gente só vai sentir depois a dor, ardendo...” “Acho loucura. Medo, falta de informação,
(R., 25 anos, um parto vaginal e um cesáreo). principalmente falta de informação. E medo só
O desejo por cesárea parece ter sido influen- pode, porque uma pessoa querer fazer uma ce-
ciado pela experiência anterior de parto da sárea é uma loucura, além de você ficar com
mulher. Entre as 227 mulheres que já haviam aquele corte na barriga, depois também você fi-
experimentado pelo menos uma cesárea, inde- ca toda ruim” (M., 39 anos, um parto cesáreo e
pendentemente do tipo de parto atual e da ma- um vaginal).
ternidade, o desejo pelo parto cesáreo foi em “Medo da dor e querer ligar. (...) Eu, como
média duas vezes mais freqüente, em compa- passei por essas, se fosse ter outro filho agora eu
ração às mulheres que nunca fizeram cesárea. não queria assim de novo não, não queria cesá-
No grupo com cesárea anterior, as razões rea não, faria tudo pra reverter para um normal”
apontadas com mais freqüência para querer o (J., 22 anos, um parto vaginal e um cesáreo).
parto cesáreo foram “dor, sofrimento menor” “Porque tem muitas que não querem sofrer,
(21,9%), “desejo de laqueadura” (21,9%) e, logo não querem sentir. Antes dos nove meses pedem
em seguida, “experiência anterior com cesárea, logo para fazer cesárea, porque não querem sen-
passado obstétrico” (16,2%). A última razão su- tir dor” (L., 27 anos, um parto cesáreo e um va-
gere a hipótese de que essas mulheres já te- ginal).
nham absorvido a “cultura” médica de “uma “Ah, sei lá. Besteira. Uma cirurgia é sempre
vez cesárea, sempre cesárea”. uma cirurgia, não deve se mexer tanto dentro

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1618 BARBOSA, G. P. et al.

da gente como na cesárea. Ah, pedem por causa O percentual de mulheres que pediram pa-
disso, porque quando começa a dor da contra- ra fazer cesárea durante o pré-natal foi maior
ção fica estranho pra caramba” (C., 27 anos, um entre as que efetivamente foram submetidas à
parto cesáreo e um vaginal). cesárea, o que sugere que, nesses casos, a cesá-
Nessas entrevistas, as mulheres que vive- rea pode ter sido acordada previamente a qual-
ram a experiência dos dois tipos de parto rela- quer ocorrência relacionada ao parto, seja por
taram que as informações fornecidas sobre o uma real situação de saúde da paciente, seja
motivo da realização de cesárea foram insufi- por interesse na realização de laqueadura (Ta-
cientes, deixando-as com muitas dúvidas, o que bela 4).
contribuiu para aumentar a ansiedade do mo- Observamos também que, quanto maior o
mento. Além disso, relataram também o fato de intervalo de tempo entre a admissão da mulher
não terem sido informadas sobre os riscos e as no hospital e o parto, mais freqüente a solicita-
dificuldades para se recuperar da cirurgia. ção de cesárea. Do mesmo modo, o tempo entre
Entre as mulheres que tinham acabado de a admissão e o parto reflete ainda o momento
ter o primeiro filho, observamos um percentual em que se dá o pedido pelo parto cesáreo, ou
ligeiramente maior de desejo de parto vaginal, seja, para aquelas mulheres para as quais o in-
o que reforça a idéia de uma cultura feminina tervalo foi maior, o pedido ocorreu no momen-
de parto vaginal. Apesar disto, o pedido de ce- to do trabalho de parto e/ou parto, enquanto
sárea foi discretamente maior entre as partu- para as que ficaram menos tempo o maior per-
rientes de primeira vez. Podemos, portanto, in- centual de pedidos deu-se durante o pré-natal
dagar se as condições no pré-parto e durante o (Figura 1).
parto levaram as mulheres a solicitar a cesárea, Embora o número de laqueaduras tubá-
mesmo sem desejá-la a princípio. rias realizadas nessa amostra não tenha sido
Entre as mulheres que relataram o desejo expressivo (na maternidade pública, 3,0% dos
por cesárea, a principal razão das que tinham partos vaginais e 9,6% dos partos cesáreos; na
pelo menos um filho foi o “desejo de laqueadu- maternidade conveniada, 0,4% dos partos va-
ra”; já nas puérperas que haviam acabado de ginais e 6,7% dos partos cesáreos), percebemos
ter o primeiro filho, destaca-se “dor, sofrimen- haver uma relação entre laqueadura e parto
to menor”. cesáreo.

As mulheres pediram cesárea?


Discussão e conclusões
A maioria absoluta das mulheres (82,9%) infor-
mou que não pediu para fazer cesárea, tanto Os dados aqui apresentados demonstram que
aquelas que tiveram parto vaginal (81%) como a maioria das mulheres pesquisadas não que-
as que foram submetidas ao parto operatório ria ter um parto cesáreo, o que contrasta com a
(85%). noção de valorização cultural que tem sido
Isso sugere, em primeiro lugar, que a maio- afirmada por obstetras em estudos brasileiros
ria dos partos cesáreos não foi feita “a pedido”. como os já referidos anteriormente. Mesmo
A maioria das mulheres que sofreram cesárea quando o pedem, as mulheres não afirmam sua
não o solicitaram. Ao mesmo tempo, 19% das superioridade, apresentando motivos mais com-
que tiveram parto vaginal reportaram que ha- plexos e mais concretos do que os que têm si-
viam pedido cesárea. Isso revela o poder limi- do relatados pelos médicos.
tado das mulheres em determinar o tipo de par- As circunstâncias que cercam a assistência
to que vão fazer, seja ele vaginal ou cesárea, no momento do pré parto/parto, incluindo a
nas maternidades estudadas. ausência de um acompanhante no momento
Das mulheres que solicitaram a cesárea, a do parto (fato que ocorreu em quase todos os
maioria absoluta (77,8%) o fez durante o traba- casos), o tempo entre a admissão e o parto, e a
lho de parto e/ou parto, tendo essa proporção experiência anterior de parto, foram fatores re-
variado de 89% nas mulheres que tiveram par- lacionados com o pedido de parto cesáreo. O
to vaginal a 65% nas que tiveram cesárea (Ta- não uso rotineiro de técnicas de alívio da dor,
bela 4). Ainda mais revelador é o fato de que, farmacológicas ou não, durante o pré-parto e o
entre as mulheres que não queriam cesárea, parto pode, de modo especial, ter também gran-
mas que por algum motivo a solicitaram, a de peso na construção do pedido da mulher
maioria absoluta (93,9%) o fez durante o traba- por um parto cesáreo.
lho de parto e/ou parto. Esse fato parece con- A OMS, no documento “Assistência ao par-
firmar a opinião das entrevistadas, que enfati- to normal: um guia prático”, sugere uma série
zam que o pedido decorre da dor do parto. de práticas úteis que devem ser estimuladas,

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PARTO CESÁREO 1619

Tabela 4

Distribuição das mulheres que pediram para fazer cesárea nas duas maternidades,
segundo o momento do pedido e o tipo de parto.

Momento em que Pública Conveniada Total


pediu cesárea Vaginal Cesáreo Vaginal Cesáreo
n % n % n % n % n %

Pré-natal 1 3,6 12 32,4 5 8,8 7 22,6 25 16,3


Admissão 2 7,1 0 0,0 3 5,3 4 12,9 9 5,9
Trabalho de parto e/ou parto 25 89,3 25 67,6 49 86,0 20 64,5 119 77,8
Total 28 100,0 37 100,0 57 100,0 31 100,0 153 100,0

Figura 1

Distribuição das mulheres segundo o momento do pedido de cesárea e o tempo entre a admissão e o parto.

100
pré-natal

80 admissão

trabalho de parto
60 e/ou parto

40
freqüência (%)

20

0
< 1 hora 1 a 3 horas 3 a 6 horas 6 a 9 horas 9 a 12 horas > 12 horas tempo entre
admissão e o parto

ao mesmo tempo que desaconselha outras. En- Com relação ao desejo de laqueadura – uma
tre as recomendadas, gostaríamos de destacar: das principais razões para a solicitação de par-
respeito à escolha da mulher por um acompa- to cesáreo –, acreditamos que só com um pro-
nhante de sua preferência durante o trabalho grama de planejamento familiar efetivo, com o
de parto e parto; fornecimento das formações oferecimento e o acesso a todos os métodos
e explicações solicitadas; uso de métodos não contraceptivos, bem como a implantação real
farmacológicos e não invasivos de alívio da dor, das já mencionadas leis e portarias de planeja-
tais como massagens e técnicas de relaxamen- mento familiar existentes no Brasil, é que se
to; e liberdade de posição e movimentação du- conseguirá quebrar a associação nociva “cesá-
rante o trabalho de parto (OMS, 1996). O Mi- rea – laqueadura”.
nistério da Saúde (MS, 2001) aponta também Uma “cultura da cesárea”, que considera es-
para a necessidade de mudança na assistência se tipo de parto a melhor forma de nascer, pa-
à mulher no pré-natal e no nascimento, estimu- rece ainda não estar totalmente introjetada nas
lando procedimentos pouco invasivos que en- mulheres. A justificativa da “cesárea a pedido
volvam sua participação ativa. No entanto, tais da mulher”, muitas vezes relatada pelos profis-
práticas não são rotineiramente observadas. sionais de saúde, parece refletir mais uma cul-

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1620 BARBOSA, G. P. et al.

tura médica do que uma real preferência das Concluímos que devemos continuar a des-
parturientes. Entretanto, deve-se levar em con- mistificar essa idéia e investir na melhoria da
ta que o estudo foi realizado em apenas duas atenção durante pré-natal, pré-parto e parto,
maternidades, uma pública e outra convenia- para que a mulher se sinta apoiada e conheça
da, não tendo sido estudada nenhuma mater- melhor o que ocorre com ela durante a gravi-
nidade do setor privado. Um estudo que in- dez e o parto, diminuindo assim seus medos e
cluísse outras maternidades poderia mostrar inseguranças e colocando-a como agente prin-
diferenças na incorporação de uma suposta cipal de um momento ímpar na sua vida, o
“cultura da cesárea”. nascimento de um filho.

Agradecimentos

Agradecemos à Fundação Ford e ao Conselho Nacio-


nal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico o
apoio dado a esta pesquisa.

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