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América Latina:
um Permanente Mal-Entendido?
Thomas E. Skidmore
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Os Estados Unidos e a América Latina
o caso de Cuba
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Não foi por acidente que o exército dos Estados Unidos viu-se guarne
cendo as barricadas nesta ilha tropical de língua espanhola. Aquelas tropas eram
o pelotão avançado de uma sociedade que há muito acreditava ter por missão
levar a civilização à América Latina. Os americanos partiam da premissa di-
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samento típico de boa parte da elite política americana ao longo do século XIX.
Durante uma viagem ao norte da Espanha em 1779-80, por exemplo, o furoro
presidente John Quincy Adams, então com 12 anos, descreveu assim a população
local: "são preguiçosos, sujos, grosseiros e, em resumo, só posso compará-los a
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uma vara de porcos". Muitos americanos argumentariam depois que a Espanha
havia transmitido todos os seus vícios a suas colônias americanas. Os diplomatas
dos Estados Unidos foram pouco mais favoráveis depois que a maior parte da
América Latina alcançou a independência, na década de 1820. Em 1827, o cônsul
americano em Lima descreveu Simón Bolivar, o legendário herói da inde
pendência da América espanhola, como "ardente, veemente, arrogante; [com)
suas paixões descontroladas e sem restrição de qualquer princípio público ou
privado e com freqüentes tiradas de franqueza, ou antes, indiscrição, ele é capaz
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da mais profunda, solene hipocrisia".
A guerra mexicano-americana (conhecida no México como a "Invasão
do Norte") foi o principal surto de expansão imperialista dos Estados Unidos, no
meado do século, em direção à América Latina. Uma longa e complexa disputa
em torno do status do Texas (legalmente parte do México, mas habitado basi
camente por colonos dos Estados Unidos) forneceu o motivo para a guerra, em
1848. Um exército americano sob o comando do general Winfield Scorr invadiu
o México e aplicou uma amarga derrota aos mexicanos. O exército americano
retornou em seguida ao norte para relatar sua dúbias impressões sobre o inimigo
de há pouco. Um tenente dos Estados Unidos chamou os mexicanos de "uma
raça de gente feia". Um capitão do exército manifestou assim suas dúvidas sobre
o fururo político do México: "Muitos, incontáveis anos devem passar-se antes
que a gente comum, o público da mal denominada República, seja suficiente
ll
mente esclarecido para gozar as bênçãos da independência".
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sobre os sagrados princípios de 4 de jUlho... ". Mas esses opositores eram
minoria. Os imperialistas controlavam a política dos Estados Unidos. Para os
propósitos desta palestra, portanto, irei concentrar-me no lado predominante das
atitudes dos Estados Unidos para com a América Latina, mas reconhecendo que
havia outras vozes.
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Para voltarmos ao caso de Cuba, que passo agora a enfocar, a entrada dos
Estados Unidos na guerra de independência desta ilha, em 1898, e o subseqüente
estabelecimento ali de um protetorado de facto dos Estados Unidos gerou urna
onda de choque que varreu a América Latina. Os intelectuais levantaram-se em
todo o continente na defesa de sua civilização contra o que consideravam urna
ameaça ianque. Na literatura, a mais famosa dessas vozes foi a do uruguaio José
Enrique Rodó, cujo ensaio Ariel (1900) foi um manifesto elitista afirmando a
superioridade espiritual da América Latina sobre uns Estados Unidos que
reputava materialistas. Ele argumentava que "a vida norte-americana, de fato,
descreve perfeitamente o círculo vicioso identificado por Pascal: a fervorosa
busca do bem- estar que não tem objetivo além de si mesmo. A prosperidade
none-americana é tão grande quanto sua inc�acidade de satisfazer uma con
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cepção ainda que média do destino humano.,, Como observou Carlos Fuentes,
o notável homem de letras mexicano: "No centro deste período que se estende
entre o Destino Manifesto e a Política da Boa Vizinhança, oAriel de Rodó aparece
como a resposta emocional e intelectual do pensamento e da espiritualidade
latino-americanos à crescente arr�ância imperial, à política das canhoneiras e
do big stick da América do Norte".
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podem não ter alternativa senão o uso da força. Cenas de caos seriam exibidas
pela CNN a todo o mundo. Estaria em risco o futuro de Cuba. Iria ela continuar
socialista, ou voltaria ao campo capitalista? Poderia muito bem resultar daí a
guerra civil.
O público dos Estados Unidos acharia difícil ficar de lado assistindo ao
desenrolar de tais eventos. A idéia formada há um século sobre Cuba iria agora
influenciar os eventos. Aqui precisamos outro lembrete sobre como essa idéia
sobre Cuba se desenvolveu. Ela inclui hábitos mentais que vêm de muito atrás
no século XIX, desde T homas Jefferson, que escreveu em 1823 que "a anexação
de Cuba aos Estados Unidos é exatamente o que falta para completar nosso poder
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como nação, levando-o ao ponto de seu interesse extremo". O presidente J ames
Polk fez uma oferta para compra de Cuba à Espanha por US$ lOO milhões em
1848. O presidente Franklin Pierce aumentou a oferta para US$130 milhões, mas
a Espanha mostrou-se refratária. Esta relutância levou três proeminentes
diplomatas americanos a recomendar, em 1854, a tomada de Cuba (sua mensagem
foi denominada "Ostend Manifesto").
No âmago deste incidente estava o fato de que Cuba se havia tornado o
centro da luta em torno da escravidão, pois os políticos sulistas esperavam anexar
a ilha e com isto aumentar o peso, na união, dos estados que mantinham a
escravidão. A revolta cubana de 1895 deu aos patriotas americanos outra opor
tunidade de desopilar seus fígados contra a Espanha - vilã histórica aos olhos
americanos. Quando os Estados Unidos intervieram na guerra, o Congresso
americano já havia declarado, através da emenda Teller, que não tinham ambições
territoriais em Cuba. Mas esta retórica não impediu que impusessem uma
ocupação militar em Cuba após a guerra. Quando o exército dos Estados Unidos
deixou a ilha em 1902, o governo cubano, supostamente independente, sabia que
tinha rédea curta. A emenda Plan, de autoria americana, inserida na recém
escrita constituição cubana, dava aos Estados Unidos o direito de intervir "para
preservação da independência cubana [sic!], manutenção de um governo ade
quado à proteção da vida, da propriedade e da liberdade individual, e ao cumpri
mento das obrigações referentes a Cuba impostas aos Estados Unidos pelo
Tratado de Paris, que agora deveriam ser assumidas e cumpridas pelo governo
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cubano". Washington invocou repetidas vezes este poder nas décadas sub
seqüentes. O caso mais significativo deu-se em 1933, ano que marca a queda da
longa ditadura de Gerardo Machado. O Departamento de Estado dos Estados
Unidos e o embaixador Sumner Welles coordenaram a sucessão. Primeiro,
manobraram para desviar uma iminente revolução socialista liderada por es
tudantes universitários. O homem-forte que tinha o endosso de Washington para
o cargo era Fulgencio Batista, um ex-sargento do exército que ficou bastante
satisfeito em alinhar-se com o poderio dos Estados Unidos para "salvar" seu pais
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Por que Washington não será capaz de resistir a fazer nova intervenção
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no Haiti por motivos de preocupação com a "proteção da força". Há poucas
dúvidas sobre o fato de que a questão de nossa posição frente à Cuba pós-Fidel
será tema altamente controvertido que será definido através do processo político
doméstico nos Estados Unidos. Quais são os atores-chave, e o que os motivará?
Os políticos americanos, especialmente os de Washington, estarão di
vididos. Muitos, como no passado, simpatizarão com os exilados cubanos ex
tremistas e seus representantes no Congresso, que exigirão que os Estados Unidos
façam retroceder o relógio em Cuba. Outros estarão abertos aos argumentos de
que a saída de Fidel cria uma nova oportunidade para a política externa norte
americana. Contudo, há sinais de fadiga no Congresso diante de intervenções
atOladas como as da Bósnia e do Haiti, e a que agora se contempla no Kosovo. E
a autoconfiante campanha de "exportação" da democracia americana já perdeu
um pouco de seu fervor no Capitólio. Esta análise termina por dizer que ainda
há uma possibilidade razoável de que um intervencionismo Cr'dSSO não venha a
prevalecer no meio político.
Quem pode agir para moderar o ímpeto intervencionista? Um grupo
chave será o dos empresários. O lobby dos homens de negócio americanos tem
agido repetidas vezes em prol do relaxamento do embargo. A maioria parece
pronta a retomar o comércio com Cuba sem exigir um acerto prévio dos pedidos
de indenização pelas propriedades nacionalizadas pela Revolução. Esses em
presários usarão o poderoso argumento de indicar a China, um país com quem
Washington anseia comerciar apesar de sua ideologia ostensivamente comunista.
A ideologia, porém, não será um fator irrelevante na Cuba pós-Fi deI.
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Guerra Fria, que levou o presidente Kennedy em 1961 a chamar a América Latina
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de "a área mais perigosa do mundo".
Pode este fato levar-nos a sugerir que poderia haver outro cenário para a
Cuba pós-Castro? Imaginemos por um momento que os Estados Unidos não
sejam mais prisioneiros de seu passado. Poderia a atribulada história das relações
entre os Estados Unidos e Cuba estar prestes a entrar em uma fase distinta?
Poderia Washington não estar mais "condenada à repetição", nas palavras de um
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ex-insider do processo de formulação de políticas para a América Latina?
Para que este cenário alternativo seja realista, várias premissas importantes
precisam materializar-se. Primeiro, o governo e a elite dos Estados Unidos teriam
de reconhecer que Cuba já não é (na medida em que algum dia o foi) urna ameaça à
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segurança dos Estados Unidos Assim como a ameaça dos mísseis em 1962 não
passa de uma lembrança, a risco de uma revolução exportável há muito deixou
de existir. De acordo com esta premissa, Cuba saiu do campo da rivalidade entre
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as superpotências e pode ser vista agora em uma perspectiva pós-Gueua Fria.
A segunda premissa enfoca a mudança ocorrida dentro da comunidade
dos exilados cubanos nos Estados Unidos. As quatro décadas que se passaram
desde que a maioria dos exilados deixou a ilha produziram uma nova geração de
cubano-americanos, muitos dos quais não simpatizam com a retórica revanchista
dos exilados mais velhos. A geração mais nova busca reconciliar-se com suas
raízes cubanas, independentemente de ideologias e reivindicações de pro
priedades. Essas vozes vêm crescendo há anos. Urna das primeiras iniciou a
publicação de um periódico,Arielo, em 1974, que incluía os escritos de acadêmi
cos exilados de peso, como Lourdes Casais e Marifelli Pérez-Stable, que pro
curavam alguma outra abordagem da questão que não a visão reacionária dos
exilados da Cuban-American National Foundation. Outra intelectual nascida em
Cuba e baseada na América, Ruth Behar, publicou em 1993 uma espessa antologia
chamada Bridges 10 Cuba (Pontes para Cuba), em que buscou "desmantelar, de
uma vez por todas, os estereótipos, dos ilhotas corno subordinados de um Estado
marxista submetidos a lavagem cerebral, e dos imigrantes como vermes desal
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mados sem qualquer preocupação com justiça social". Um exemplo mais
recente vem de um professor católico de filosofia em Miami que lançou este
chamamento: ''O presente e o futuro de Cuba têm de ser alcançados por meios
pacíficos, pelo diálogo. São indispensáveis paciência, insifhl sobre o passado,
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visão de longo prazo e vontade democrática sustentada". A questão crucial é
como mobilizar esta opinião, especialmente no confronto com os exilados mais
conservadoresY Se esta nova geração pressionar por moderação poderá neutrali-
zar os extremistas.
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Esta é a condição mais dificil de imaginar, porque presume que o governo dos
Estados Unidos renegaria sua longa tradição de uso da intervenção como forma
de manter a hegemonia no Caribe. Poderiam os atuais formuladores de política
em Washington contemplar manterem-se de fora de uma ilha desestabilizada "a
apenas noventa milhas" de nossas costas?
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