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Os Estados Unidos e a

América Latina:
um Permanente Mal-Entendido?
Thomas E. Skidmore

Os historiadores são notoriamente maus profetas. Nosso trabalho é


explicar o passado, deixando o futuro para os futurólogos. Nas palavras de um
antigo colega, somos profetas do passado. Isto, mal ou bem, podemos fazer. Talvez
estejamos, de fato, no ramo do entretenimento, como o historiador britânico A.
l
J. P. Taylor maliciosamente sugeriu, e demonstrou com tanto sucesso. Mas, será
que nada temos a dizer a respeito do futuro? Quaisquer habilidades futurológicas
que possamos ter certamente não serão de muita valia em nossa próxima ida ao
cassino ou à pista de corridas. Contudo, um acadêmico, como eu, que tem
acompanhado as relações contemporâneas entre os Estados Unidos e a América
Latina por mais de quatro décadas, não pode deixar de se perguntar se a teoria
cíclica da história não terá mais a recomendá-la, talvez, do que nos disseram
nossos mentores no curso de graduação.
A história se repete? Os historiadores abominam esta pergunta. Dedi­
camo-nos a descrever o singular. Esta é nossa defesa contra as grandes teorias que
os ideólogos e sociólogos desejam focar no passado. Mas, o que dizer das atitudes

Nota: Esta tradução é de Paulo Manins Garchel.

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coletivas que as sociedades preservam e passam adiante a sucessivas gerações? E


esses mapas mentais que herdamos do passado? A questão é extremamente
apropriada a um dos campos das relações internacionais dos Estados Unidos -
as relações com a América Latina.

Uma história de ma/-entendidos

As imagens e estereótipos que os americanos e latino-americanos têm


trazido a seus encontros no último século e meio tiveram poderosa influência na
conformação de suas relações. Por volta de 1900, por exemplo, uma atitude
pró-imperialista em relação a Cuba havia triunfado nos Estados Unidos. Mais
atrás, pela metade do século, o senador James Bayard havia declarado que "os
interesses futuros, não apenas deste país, mas da civilização e do progresso
humanos estão profundamente envolvidos na aquisição de Cuba pelos Estados

Unidos". Era função de uma atitude de superioridade mais geral para com toda
a América Latina. Em resposta, os latino-americanos lutaram para afillHar sua
dignidade diante das freqüentes atitudes de condescendência e difamação dos
americanos. Normalmente tinham pouca escolha além de colaborar, como no
caso dos cubanos, que foram "persuadidos" a incluir em sua constituição de 1901
uma cláusula (a Emenda Plan) que dava virtual carta branca aos Estados Unidos
para intervir, mesmo depois do fim de sua ocupação militar, em 1902. Os políticos
e intelectuais latino-americanos pouco mais podiam fazer que contrapor à arro­
gante atitude americana sua própria critica mordaz ao Norte, que viam como
materialista e oportunista.
Este choque de atitudes constituiu um mal-entendido, como sugere o
título desta palestra? Ou deveria, à luz da história, ser denominado choque de
interesses nacionais? Ou choque de culturas? Na verdade foi as três coisas. Mas
o que nos interessa aqui não são definições, e sim a maneira como percepções e
preconceitos como os que descreveremos a seguir influenciaram as ações.
,

Primeiro, temos de tratar da terminologia. E válido faIar de uma entidade


chamada "América Latina"? A resposta é sim. Apesar das diferenças (às vezes
consideráveis) entre os países, o enorme território colonizado pelos dois impérios
ibéricos, Espanha e Portugal, apresenta uma notável coerência de línguas, cul­
turas e instituições (excluindo apenas os enclaves caribenhos colonizados por
franceses, holandeses e ingleses). Dentro da América Latina, uma subárea
merecerá especial atenção neste trabalho: México, América Central e Caribe,
região que sofreu o impacto mais direto do expansionismo norte-americano, às
vezes militar, outras econômico, e sempre cultural.
O chamado mal-entendido entre a América do Norte e a América Latina
no século XX deriva, acima de tudo, da grande assimetria econômica entre as

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duas regiões. Os Estados Unidos haviam surgido como importante potência


industrial, rivalizando com a Grã-Bretanha e a Alemanha no cenário mundial.
Eram um impressionante gerador de inovações tecnológicas, explorando uma
imensidão de recursos naturais, abrangendo terras abundantes e férteis. Sua força
de trabalho era constantemente renovada por ondas de novos imigrantes. A
América Laúna, por outro lado, estava aprisionada na fase de exportação de
produtos primários, faltando-lhe tanto capital quanto tecnologia para se indus­
3
trializar. Essa assimetria foi reforçada pelo caráter da penetraçao econômica dos
Estados Unidos e dos países da Europa Ocidental na América Latina. O resultado
dessa presença, tanto deliberado quanto imprevisto, foi complicar as tentativas
feitas na América Latina para passar a um nível econômico mais elevado. Na era
pós-1945 a Guerra Fria apenas intensificou as tensões associadas a essa assimetria.
Desde 1989, porém, estamos em um mundo pÓs-Guerra-Fria. A ameaça
comunista já não é mais que um fantasma. O Pentágono e a CIA dedicam-se a
redefinir seus inimigos. Nossa defesa antimfssil deve estar agora apontada para
Estados "marginais" desgarrados, e não para uma superpotência. Nossos formu­
ladores de estratégias preocupam-se agora mais com crise financeira que com
desarmamento. Os editores têm em mãos milhares de volumes marxistas que já
não vendem mais. Estamos finalmente livres da rígida estrutura políúca e
econômica que dominou a política externa dos Estados Unidos desde 1945-47.
Onde estamos, então?
Uma vez que a Guerra Fria passou à história, e que a União Soviéúca não
mais existe e portanto não pode mais fomentar a revolução por todo o mundo,
Washington tem údo a oportunidade de repensar sua política externa, especialmente
em relação ao mundo em desenvolvimento. Irá a América Laúna, por exemplo,
defrontar-se agora com uns Estados Unidos não mais obcecados com o comunismo,
que não pensam mais que qualquer tentativa de mudar as estruturas tradicionais de
poder sejam necessariamente uma ameaça? Por exemplo, já nao precisamos presu­
mir que medidas como a redistribuição da tena ou subsídios para habitações
populares impliquem um retomo ao ineficiente Estado todo-poderoso. Afinal de
contas, temos hoje margem mais ampla para o exercício de nossa políúca externa,
uma vez que os cienústas políúcos nos dizem que estamos vivendo em um mundo
4
"unipolar", ou em um mundo "uni-multi-polar',.

o caso de Cuba

Sugiro examinar o caso de Cuba. Cuba e nossa política cubana são


importantes relíquias da Guerra Fria. Cuba continua um autoproc1amado Estado
socialista, dedicada a uma economia centralmente planificada e dirigida pelo
Estado, com uma sociedade relativamente igualitária (embora, hoje, sendo sola-

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pada por uma economia crescentemente dolarizada) e uma política de confron­


tação com os Estados Unidos.
Washington, por seu lado, continua empenhado na derrubada do gover­
no de Fidel. O embargo comercial, iniciado em 1962, continua a ser imposto com
rigor. A exposição de cidadãos dos Estados Unidos a Cuba continua sendo tratada
pelos Departamentos de Estado e do Tesouro dos Estados Unidos como uma
fonte de contágio potencialmente mortal de que devem ser protegidos os norte­
americanos. Como diz um observador de longa data e ex-autoridade dos Estados
Unidos, "a meta da política de Washington continua sendo o desaparecimento
.s
do regime de Castro, seja forçando a reforma, seja a revolta na ilha" Por que
deveriam os Estados Unidos, mais de uma década após o colapso da União
Soviética, manter sua atitude beligerante? Por que, da mesma forma, continuaria
Cuba com sua beligerância frente aos Estados Unidos? Para entender esta
aparente anomalia precisamos repassar a história das relações entre os Estados
Unidos e a América Latina.
Em 1891 José Martí, o grande patriota cubano que passara anos na
América do Norte angariando apoio para uma revolução contra o domínio
espanhol em Cuba, publicou um ensaio intitulado "Our America". Este ensaio
apareceu apenas poucos anos antes de explodir a revolução cubana vitoriosa, em
1895. Martí, contudo, estava tão preocupado com os Estados Unidos quanto com
a Espanha. Ele escreveu: "O desprezo de nosso formidável vizinho, que não nos
conhece, é o maior perigo para nossa América; e é imperativo que nosso vizinho
nos conheça, e nos conheça logo, para que não nos despreze, pois o dia da visita
está próxímo.,,
de seu longo exílio para juntar-se à rebelião em sua pátria e foi rapidamente morto
em batalha, tornando-se o mais conhecido mártir da independência cubana. Mais
ainda, seu alerta sobre o vizinho do norte foi logo confirmado. Em 1898 os
Estados Unidos entraram na guerra, em meio a uma onda de entusiasmo
patriótico vergastado por uma imprensa ufanista. O exército americano rapida­
mente relegou os rebeldes cubanos a um status subalterno, reclamando o crédito
pela derrota do exército espanhol que desmoronara e estabelecendo uma ocu­
pação militar de facto. Começava assim o tumultuoso capítulo das relações entre
7
Estados Unidos e Cuba que persiste até nossos dias.

A an'ogância americana em relação à América Latina

Não foi por acidente que o exército dos Estados Unidos viu-se guarne­
cendo as barricadas nesta ilha tropical de língua espanhola. Aquelas tropas eram
o pelotão avançado de uma sociedade que há muito acreditava ter por missão
levar a civilização à América Latina. Os americanos partiam da premissa di-

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fundida, alardeada por políticos e pela imprensa, de que os latino-americanos


eram intrinsecamente inferiores a seus vizinhos do Norte. T heodore Roosevelt,
por exemplo, comentou que "teríamos estado muito melhor se não tivesse havido
um só cubano no exército... ,,8
Este racismo era, à época, padrão para a maioria dos americanos que
dedicavam alguma atenção à América Latina. Na verdade, havia sido o pen­ •

samento típico de boa parte da elite política americana ao longo do século XIX.
Durante uma viagem ao norte da Espanha em 1779-80, por exemplo, o furoro
presidente John Quincy Adams, então com 12 anos, descreveu assim a população
local: "são preguiçosos, sujos, grosseiros e, em resumo, só posso compará-los a
9
uma vara de porcos". Muitos americanos argumentariam depois que a Espanha
havia transmitido todos os seus vícios a suas colônias americanas. Os diplomatas
dos Estados Unidos foram pouco mais favoráveis depois que a maior parte da
América Latina alcançou a independência, na década de 1820. Em 1827, o cônsul
americano em Lima descreveu Simón Bolivar, o legendário herói da inde­
pendência da América espanhola, como "ardente, veemente, arrogante; [com)
suas paixões descontroladas e sem restrição de qualquer princípio público ou
privado e com freqüentes tiradas de franqueza, ou antes, indiscrição, ele é capaz
10
da mais profunda, solene hipocrisia".
A guerra mexicano-americana (conhecida no México como a "Invasão
do Norte") foi o principal surto de expansão imperialista dos Estados Unidos, no
meado do século, em direção à América Latina. Uma longa e complexa disputa
em torno do status do Texas (legalmente parte do México, mas habitado basi­
camente por colonos dos Estados Unidos) forneceu o motivo para a guerra, em
1848. Um exército americano sob o comando do general Winfield Scorr invadiu
o México e aplicou uma amarga derrota aos mexicanos. O exército americano
retornou em seguida ao norte para relatar sua dúbias impressões sobre o inimigo
de há pouco. Um tenente dos Estados Unidos chamou os mexicanos de "uma
raça de gente feia". Um capitão do exército manifestou assim suas dúvidas sobre
o fururo político do México: "Muitos, incontáveis anos devem passar-se antes
que a gente comum, o público da mal denominada República, seja suficiente­
ll
mente esclarecido para gozar as bênçãos da independência".
,

E preciso admitir que havia na América do Norte vozes que se levan-


tavam contra este expansionismo territorial fundado em um moralismo autocon­
descendente. Em sua HislOry ofMexico publicada em meados da década de 1860,
Hubert Bancroft desdenhou dos arquitetos da guerra mexicana: "A guerra dos
Estados Unidos com o México foi um caso premeditado e predeterminado; foi o
resultado de um esquema deliberado de roubo por parte da potência superior".
Escarneceu dos defensores da guerra chamando-os "escravagistas, contrabandis­
tas, matadores de índios e cuspidores de tabaco que com suas bocas sujas juram

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sobre os sagrados princípios de 4 de jUlho... ". Mas esses opositores eram
minoria. Os imperialistas controlavam a política dos Estados Unidos. Para os
propósitos desta palestra, portanto, irei concentrar-me no lado predominante das
atitudes dos Estados Unidos para com a América Latina, mas reconhecendo que
havia outras vozes.
,

A guerra seguiu-se a aquisição por compra pelos Estados Unidos (embora


o México dificilmente tivesse condições políticas de resistir a esta transação) de um
imenso naco do México (mais de metade do território nacional), que viria a constituir
o sudoeste americano e a Califórnia. A compulsão de "salvar" os herdeiros do império
espanhol não terminou com a guerra mexicano-americana. Em 1854 um deputado
da Califórnia argumentou que "é nossa missão instilar nova vida no fraco e mal
governado povo que cresceu nos escombros do poder espanhol na América, e das
13
colônias ainda sujeitas à desfalecente influência de seu mando... ".
Durante essas décadas, os diplomatas americanos haviam continuado a
exibir um desdém similar pela América Latina e seus habitantes. Os enviados
dos Estados Unidos à América Latina tinham, nas palavras de um recente
estudioso das relações entre os Estados Unidos e a América Latina, "ajudado a
fixar na consciência política dos Estados Unidos uma imagem da América Latina
que, como a visão da geração de J ohn Quincy Adams, ressaltava o abismo cultural
que viam separar os Estados Unidos da América Latina. Mas, ao contrário da
opinião de Adams e sua geração, que se baseava em um etnocentrismo não
informado por um conhecimento direto da América Latina, esta geração seguinte
de enviados americanos vivia e trabalhava na região. O interessante nesta geração
é ver o ponto a che�ou a solidificação de suas predisposições durante sua
residência na região". 4
O mesmo autor observa ainda que "o quadro compósito enviado a
Washington por esta segunda geração de enviados dos Estados Unidos era o de
uma região economicamente subdesenvolvida e politicamente instável. E a
explicação dada para estas desafortunadas condições era que os latino-ameri­
canos, herdeiros da civilização hispânica, eram irracionais e, com freqüência,
IS
incontrolavelmente violentos". Muito antes de suas explorações eqüestres em
Cuba, T heodore Roosevelt justificara a incursão dos Estados Unidos no México:
"Era inadmissível que os texanos continuassem por muito tempo sob domínio
mexicano; e teria sido uma grande infelicidade se o tivessem feito. Esperar que
16
se submetessem ao domínio da raça mais fraca estava fora de questão,, Tais
atitudes persistiram. Em 1940 o US Office of Public Opinion Research conduziu
uma pesquisa nacional em que pedia aos entrevistados que indicassem quais
dentre 19 adjetivos melhor descreviam os latino-americanos. As oito primeiras
respostas eram dominadas por qualidades do tipo "atrasados, preguiçosos, igno-

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rantes" e "supersticiosos", enquanto a parte de baixo da relação era liderada por


l7
"eficientes, progressistas, generosos, corajosos" e "honestos".
Os latino-americanos têm estado conscientes desta atitude. Em 1975 o
ensaísta venezuelano Arturo Uslar Pietri escreveu: "Desde os tempos da Rainha
Vitória e da Terceira República francesa houve uma América digna de admiração
por sua riqueza, suas virtudes e seu crescente poderio, que se compunha dos
Estados Unidos e talvez do Canadá também; e uma outra América, de países
l8
quentes, pitoresca, primitiva, no máximo boa para colonização e exploração".
O desprezo americano pela América Latina permanece até nossos próprios dias.
Um caso exemplar é o de Lawrence Harrison, ex-administrador de programa de
ajuda externa dos Estados Unidos para a América Latina, que tem uma explicação
pronta para a falta de progresso nesta região: ''As crônicas más políticas e fracas
instituições da América Latina - e o que pode parecer um persistente mau
discernimento - são, principalmente, um fenômeno cultural decorrente do
-

sistema ibero-católico tradicional de valores e atitudes. (...) E esta cultura a


principal explicação de por que, ao nos avizinharmos do final do século XX, a
América Latina ainda se arrasta atrás dos Estados Unidos e Canadá. E é o muito
diferente sistema anglo-protestante de valores, atitudes e instituições que prin­
l9
cipalmente explica o sucesso destes dois países."

A prcs�lIça dos Estados Unidos �III Cuba

Para voltarmos ao caso de Cuba, que passo agora a enfocar, a entrada dos
Estados Unidos na guerra de independência desta ilha, em 1898, e o subseqüente
estabelecimento ali de um protetorado de facto dos Estados Unidos gerou urna
onda de choque que varreu a América Latina. Os intelectuais levantaram-se em
todo o continente na defesa de sua civilização contra o que consideravam urna
ameaça ianque. Na literatura, a mais famosa dessas vozes foi a do uruguaio José
Enrique Rodó, cujo ensaio Ariel (1900) foi um manifesto elitista afirmando a
superioridade espiritual da América Latina sobre uns Estados Unidos que
reputava materialistas. Ele argumentava que "a vida norte-americana, de fato,
descreve perfeitamente o círculo vicioso identificado por Pascal: a fervorosa
busca do bem- estar que não tem objetivo além de si mesmo. A prosperidade
none-americana é tão grande quanto sua inc�acidade de satisfazer uma con­
2
cepção ainda que média do destino humano.,, Como observou Carlos Fuentes,
o notável homem de letras mexicano: "No centro deste período que se estende
entre o Destino Manifesto e a Política da Boa Vizinhança, oAriel de Rodó aparece
como a resposta emocional e intelectual do pensamento e da espiritualidade
latino-americanos à crescente arr�ância imperial, à política das canhoneiras e
do big stick da América do Norte".

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o intelectual brasileiro Eduardo Prado, que escreveu um livro atacando


a ofensiva militar dos Estados Unidos em direção ao Caribe, exaltou a supe­
rioridade moral de seu país frente aos Estados Unidos. Em 1894 ele escreveu:
"Os Estados Unidos encontraram uma solução (para o problema da escravidão)
que é genuinamente republicana e norte-americana, isto é, uma solução através
da violência, através da força e através do enorme clamor de uma guerra fratricida.
O Brasil encontrou uma saída genuinamente brasileira e monárquica que, como
22
todos podemos ver, ultrapassou os sonhos dos humanitaristas mais otimistas".
Prado referia-se à adoção gradual da abolição no Brasil, através de três leis, entre
1871 e 1888.
A irada confrontação entre os principais intelectuais do Norte e do Sul
avançou pelo século XX. Entre os líderes políticos, nenhum contemporâneo
latino-americano tem sido tão audacioso quanto Fidel Castro no desafio à
pretensão dos Estados Unidos à hegemonia hemisférica. "Apenas a 90 milhas de
nossas praias" (no jargão dos anti comunistas americanos) há 40 anos a ilha de
Cuba desafia os Estados Unidos, provocando-nos a repetir a história e dar uma
lição aos cubanos invadindo seu país. Por razões históricas (originalmente devido
à intervenção soviética) sete presidentes dos Estados Unidos deixaram passar a
oportunidade.
Mas o que acontecerá se Fidel Castro morrer ou ficar incapacitado?
(Estou presumindo aqui que não haverá alteração significativa nas relações entre
os Estados Unidos e Cuba antes da saída de Fidel). Se Cuba se vir de repente sem
o homem que tem sido indispensável à revolução? Aparentemente, Fidel não fez
qualquer preparação realista para sua sucessão. Pelo contrário, ele tem sistemati­
camente solapado todo possível sucessor, assegurando-se de que ninguém riva­
lize com ele em poder e posição. Raul Castro, seu irmão mais novo, é um caso
típico. Embora designado oficialmente seu sucessor, poucos acreditam que tenha
a estatura ou a legitimidade para ocupar o lugar do irmão. Mais ainda, nem Fidel
nem seu círculo criou mecanismo confiável para decidir a sucessão. Ao invés,
Fidel desempenha o papel do tradicional caudilho latino-americano, maximi­
zando seu poder pessoal. A diferença de outros caudilhos latino-americanos é
que Fidel usou seu poder para impor uma fórmula ideológica marxista, enquanto
o caudilho típico procurava maximizar sua fortuna pessoal enquanto preservava
uma estrutura social hierárquica.
A saída de Fidel irá, obviamente, criar um vácuo. Presumo que seguir­
se-á a desordem pública, inclusive com conflitos armados, à medida que as ,

pressões internas da sociedade cubana, há muito contidas, vierem à luz. E lícito


esperar um confronto entre os seguidores fiéis a Castro e os que estão ansiosos
por encerrar o regime de estilo fidelista. Greves, ocupações por manifestantes e
passeatas seriam a seqüência lógica. Crescendo a desordem, a polícia e o exército

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podem não ter alternativa senão o uso da força. Cenas de caos seriam exibidas
pela CNN a todo o mundo. Estaria em risco o futuro de Cuba. Iria ela continuar
socialista, ou voltaria ao campo capitalista? Poderia muito bem resultar daí a
guerra civil.
O público dos Estados Unidos acharia difícil ficar de lado assistindo ao
desenrolar de tais eventos. A idéia formada há um século sobre Cuba iria agora
influenciar os eventos. Aqui precisamos outro lembrete sobre como essa idéia
sobre Cuba se desenvolveu. Ela inclui hábitos mentais que vêm de muito atrás
no século XIX, desde T homas Jefferson, que escreveu em 1823 que "a anexação
de Cuba aos Estados Unidos é exatamente o que falta para completar nosso poder
23
como nação, levando-o ao ponto de seu interesse extremo". O presidente J ames
Polk fez uma oferta para compra de Cuba à Espanha por US$ lOO milhões em
1848. O presidente Franklin Pierce aumentou a oferta para US$130 milhões, mas
a Espanha mostrou-se refratária. Esta relutância levou três proeminentes
diplomatas americanos a recomendar, em 1854, a tomada de Cuba (sua mensagem
foi denominada "Ostend Manifesto").
No âmago deste incidente estava o fato de que Cuba se havia tornado o
centro da luta em torno da escravidão, pois os políticos sulistas esperavam anexar
a ilha e com isto aumentar o peso, na união, dos estados que mantinham a
escravidão. A revolta cubana de 1895 deu aos patriotas americanos outra opor­
tunidade de desopilar seus fígados contra a Espanha - vilã histórica aos olhos
americanos. Quando os Estados Unidos intervieram na guerra, o Congresso
americano já havia declarado, através da emenda Teller, que não tinham ambições
territoriais em Cuba. Mas esta retórica não impediu que impusessem uma
ocupação militar em Cuba após a guerra. Quando o exército dos Estados Unidos
deixou a ilha em 1902, o governo cubano, supostamente independente, sabia que
tinha rédea curta. A emenda Plan, de autoria americana, inserida na recém­
escrita constituição cubana, dava aos Estados Unidos o direito de intervir "para
preservação da independência cubana [sic!], manutenção de um governo ade­
quado à proteção da vida, da propriedade e da liberdade individual, e ao cumpri­
mento das obrigações referentes a Cuba impostas aos Estados Unidos pelo
Tratado de Paris, que agora deveriam ser assumidas e cumpridas pelo governo
24
cubano". Washington invocou repetidas vezes este poder nas décadas sub­
seqüentes. O caso mais significativo deu-se em 1933, ano que marca a queda da
longa ditadura de Gerardo Machado. O Departamento de Estado dos Estados
Unidos e o embaixador Sumner Welles coordenaram a sucessão. Primeiro,
manobraram para desviar uma iminente revolução socialista liderada por es­
tudantes universitários. O homem-forte que tinha o endosso de Washington para
o cargo era Fulgencio Batista, um ex-sargento do exército que ficou bastante
satisfeito em alinhar-se com o poderio dos Estados Unidos para "salvar" seu pais

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da ameaça de desordem social. Ao longo de seus subseqüentes trinta e seis anos


de domínio sobre a política cubana, Batista permaneceu um cliente fiel de Tio
Sam. De seu lado, assegurou lealdade aos Estados Unidos na Segunda Guerra
Mundial e reafirmou esta lealdade durante os primeiros anos da Guerra Fria. Sua
longa carreira, com o indispensável apoio dos Estados Unidos, chegou ao fim
quando Fidel entrou com seus guerrilheiros em Havana, em janeiro de 1959.
Como observou um dos principais historiadores das relações entre Estados
Unidos e Cuba, "os Estado Unidos haviam aprisionado Cuba em uma rede
imperial que se fechara no século XX com a ajuda da intervencionista emenda
25
Plart e o governo de braço forte de Fulgencio Batista".
Cedo a revolução despertou a suspeita e, logo, a inimizade de Washing­
ton. Um plano para apadrinhar uma invasão de um exército exilado (à moda do
golpe apadrinhado pelos Estados Unidos em 1954 na Guatemala) já estava sendo
preparado em 1960. O objetivo era "provocar a substituição do regime de Castro
por outro, mais devotado aos verdadeiros interesses do povo cubano e mais
aceitável para os Estados Unidos, de maneira tal que se evitasse qualquer
26
aparência de intervenção americana". Em 1961 o recém-eleito John Kennedy
endossou o plano. Seu assombroso fracasso na Baía dos Porcos abalou a confiança
dos irmãos Kennedy, levando a ClA a planejar numerosas tentativas malsucedi­
das de assassinato contra Castro. Esses fiascos levaram apenas a uma crescente
ridicularização de Tio Sam por Fidel e sua máquina de propaganda.
Os cubanos tiraram o máximo proveito da derrota americana. Em uma
conversa confidencial em agosto de 1961, Che Guevara disse a um dos assessores
mais próxímos do presidente Kennedy, Richard Goodwin (segundo Goodwin)
que ele "quisera agradecer-nos muito pela invasão - que ela havia sido uma
grande vitória política para eles - havia permitido que se consolidassem - e os
27
transformaram, de um pequeno país abusado, em um igual". Dezessete anos
mais tarde Fidel ainda explorava a derrota dos Estados Unidos na Baía dos
Porcos: "como puderam imaginar que um exército mercenário bastaria para
controlar nosso país? Como puderam ter tanto desprezo pelo heroísmo e in­
28
teligência de nossa nação?,, O efeito mais importante nos Estados Unidos do
sucesso do desafio de Cuba foi aumentar a frustração nos círculos políticos
amencanos.

O desafio revolucionário de Cuba aos Estados Unidos ficou claro na


conferência de Punta dei Este, em agosto de 1961, para ratificação da Aliança
para o Progresso, quando, em seu discurso, Che Guevara invocou o nacionalista
cultural Rodá que "expressa, através de seu Ariel, a violenta luta e as contradições
dos povos latino-americanos contra a nação que há cinqüenta anos já interferia
29
em nossa economia e em nossa liberdade política". E, então, Che atirou na cara
da delegação americana as acusações que os americanos faziam com tanta

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freqüência à América Latina. Os Estados Unidos planejavam, disse ele, colocar


"toda a cultura da América Latina a serviço dos planos de propaganda do
imperialismo, para demonstrar que a fome de nossos povos não é fome alguma,
30
mas preguiça. Magnífico!,, Esta a frustração que persiste na década de 90 e que
entrará novamente em cena quando os Estados Unidos reagirem ao desapare­
cimento de Fidel.

Por que Washington não será capaz de resistir a fazer nova intervenção

Para aqueles que argumentam que os Estados Unidos já ultrapassaram a


era das "canhoneiras" ou da diplomacia intervencionista, vale fazer uma revisão
da história recente. Desde o lançamento da Aliança para o Progresso em 1961
(mesmo ano do fiasco na Baía dos Porcos) os Estados Unidos jamais hesitaram
em enviar tropas a países "assolados por problemas" na bacia do Caribe:
31
República Dominicana (1965), Granada (1983), Panamá (1989), e Haiti (1994).
Bilhões de dólares americanos foram despejados para financiar exércitos, oficiais
ou não, na Nicarágua e em EI Salvador na década de 80. Por que deveríamos
esperar agora que Cuba ficasse isenta do intervencionismo que há muito domina
a atitude dos Estados Unidos para com o Caribe?
A pressão para uma intervenção em Cuba quando Fidel se for virá de
muitos lados. O mais inflexível será o dos exilados cubanos nos Estados Unidos,
motivados tanto por ganho pessoal quanto por fervor ideológico. Os mais
extremados entre eles exigirão a devolução de suas propriedades confiscadas, que
consistem em imensas mansões (hoje em estado de abandono), extensas pro­
priedades rurais e inúmeros edificios de escritórios (que hoje abrigam burocratas
revolucionários). Exigirão também que todo vestígio da revolução seja apagado
- dos livros escolares marxistas às FAR (Forças Armadas da Revolução). O
veículo já pronto dos exilados é a CANF, Cuban American National Foundation
que mantém - mesmo sem contar agora com seu fundador,�orge Mas Canosa­
um grande número de seguidores em Miami e Nova Jérsei.
Elementos de peso nos Estados Unidos também se manifestaráo pedindo
uma volta a Cuba. Na linha de frente estarão políticos como o senador Jesse
Helms e fOlInadores de opinião como Robert Novak, argumentando que pre­
cisamos ajudar Cuba a se livrar das amarras do comunismo. Mas os liberais não
ficarão muito atrás, argumentando que teremos de evitar a perda de vidas
33
enquanto (uma vez mais) ensinamos aos cubanos os mistérios da democracia.
Os menos ansiosos em acorrer a esta cruzada, provavelmente, serão os profissio­
nais que mais têm a perder: o Pentágono. Para observar evidência deste ponto,
basta ver a recente recomendação do comandante do Comando Sul dos Estados
Unidos, para que os Estados Unidos retirem suas tropas que ainda permanecem

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34
no Haiti por motivos de preocupação com a "proteção da força". Há poucas
dúvidas sobre o fato de que a questão de nossa posição frente à Cuba pós-Fidel
será tema altamente controvertido que será definido através do processo político
doméstico nos Estados Unidos. Quais são os atores-chave, e o que os motivará?
Os políticos americanos, especialmente os de Washington, estarão di­
vididos. Muitos, como no passado, simpatizarão com os exilados cubanos ex­
tremistas e seus representantes no Congresso, que exigirão que os Estados Unidos
façam retroceder o relógio em Cuba. Outros estarão abertos aos argumentos de
que a saída de Fidel cria uma nova oportunidade para a política externa norte­
americana. Contudo, há sinais de fadiga no Congresso diante de intervenções
atOladas como as da Bósnia e do Haiti, e a que agora se contempla no Kosovo. E
a autoconfiante campanha de "exportação" da democracia americana já perdeu
um pouco de seu fervor no Capitólio. Esta análise termina por dizer que ainda
há uma possibilidade razoável de que um intervencionismo Cr'dSSO não venha a
prevalecer no meio político.
Quem pode agir para moderar o ímpeto intervencionista? Um grupo­
chave será o dos empresários. O lobby dos homens de negócio americanos tem
agido repetidas vezes em prol do relaxamento do embargo. A maioria parece
pronta a retomar o comércio com Cuba sem exigir um acerto prévio dos pedidos
de indenização pelas propriedades nacionalizadas pela Revolução. Esses em­
presários usarão o poderoso argumento de indicar a China, um país com quem
Washington anseia comerciar apesar de sua ideologia ostensivamente comunista.
A ideologia, porém, não será um fator irrelevante na Cuba pós-Fi deI.

Há outro cenário possível?

Quais cubanos se beneficiariam com uma intervenção americana? Isto é


outra forma de perguntar se a Revolução será revertida. Far-se-á retroceder o
35
relógio, voltando, de um socialismo inoperante a um capitalismo sem freios?
Irá Cuba transformar-se em outro alvo para aplicaçao dos princífi�s econômicos
3
neoliberais que hoje governam o restante da América Latina? E de se esperar
que desapareça o aparato de planejamento central, mas iriam os Estados Unidos
ajudar a desmantelar a sociedade cubana relativamente igualitária, com seus
generosos serviços sociais nas áreas de saúde e educação e a paridade relativa de
renda pessoal (ao menos nas fontes oficiais)?
O modelo social igualitário angariou originalmente a inimizade dos
Estados Unidos ostensivamente porque Cuba se havia tornado um protetorado
soviético, adotando os modelos da União Soviética e do Leste Europeu de
organização militar e política e fomentando a revolução armada fora de suas
fronteiras. Com o fim do império soviético, Cuba já não tem a importância da

458
Os Estados Unidos e a América Latilla

Guerra Fria, que levou o presidente Kennedy em 1961 a chamar a América Latina
37
de "a área mais perigosa do mundo".
Pode este fato levar-nos a sugerir que poderia haver outro cenário para a
Cuba pós-Castro? Imaginemos por um momento que os Estados Unidos não
sejam mais prisioneiros de seu passado. Poderia a atribulada história das relações
entre os Estados Unidos e Cuba estar prestes a entrar em uma fase distinta?
Poderia Washington não estar mais "condenada à repetição", nas palavras de um
38
ex-insider do processo de formulação de políticas para a América Latina?
Para que este cenário alternativo seja realista, várias premissas importantes
precisam materializar-se. Primeiro, o governo e a elite dos Estados Unidos teriam
de reconhecer que Cuba já não é (na medida em que algum dia o foi) urna ameaça à
39
segurança dos Estados Unidos Assim como a ameaça dos mísseis em 1962 não
passa de uma lembrança, a risco de uma revolução exportável há muito deixou
de existir. De acordo com esta premissa, Cuba saiu do campo da rivalidade entre
40
as superpotências e pode ser vista agora em uma perspectiva pós-Gueua Fria.
A segunda premissa enfoca a mudança ocorrida dentro da comunidade
dos exilados cubanos nos Estados Unidos. As quatro décadas que se passaram
desde que a maioria dos exilados deixou a ilha produziram uma nova geração de
cubano-americanos, muitos dos quais não simpatizam com a retórica revanchista
dos exilados mais velhos. A geração mais nova busca reconciliar-se com suas
raízes cubanas, independentemente de ideologias e reivindicações de pro­
priedades. Essas vozes vêm crescendo há anos. Urna das primeiras iniciou a
publicação de um periódico,Arielo, em 1974, que incluía os escritos de acadêmi­
cos exilados de peso, como Lourdes Casais e Marifelli Pérez-Stable, que pro­
curavam alguma outra abordagem da questão que não a visão reacionária dos
exilados da Cuban-American National Foundation. Outra intelectual nascida em
Cuba e baseada na América, Ruth Behar, publicou em 1993 uma espessa antologia
chamada Bridges 10 Cuba (Pontes para Cuba), em que buscou "desmantelar, de
uma vez por todas, os estereótipos, dos ilhotas corno subordinados de um Estado
marxista submetidos a lavagem cerebral, e dos imigrantes como vermes desal­
41
mados sem qualquer preocupação com justiça social". Um exemplo mais
recente vem de um professor católico de filosofia em Miami que lançou este
chamamento: ''O presente e o futuro de Cuba têm de ser alcançados por meios
pacíficos, pelo diálogo. São indispensáveis paciência, insifhl sobre o passado,
4
visão de longo prazo e vontade democrática sustentada". A questão crucial é
como mobilizar esta opinião, especialmente no confronto com os exilados mais
conservadoresY Se esta nova geração pressionar por moderação poderá neutrali-
zar os extremistas.

Urna terceira premissa é que Washington estaria disposta a deixar que


Cuba encontre seu próprio caminho na criação de uma sociedade pós-fidelista.

459
estudos híst6ricos • 1999 - 24

Esta é a condição mais dificil de imaginar, porque presume que o governo dos
Estados Unidos renegaria sua longa tradição de uso da intervenção como forma
de manter a hegemonia no Caribe. Poderiam os atuais formuladores de política
em Washington contemplar manterem-se de fora de uma ilha desestabilizada "a
apenas noventa milhas" de nossas costas?

*****

Assim, o momento da sucessão de Fidel será um teste crucial na história


das relações dos Estados Unidos com a América Latina. Será o momento de
decidir se os Estados Unidos seguirão, mais uma vez, a trilha de T heodore
Roosevelt e do general Leonard Wood, que ajudaram a salvar os cubanos da
Espanha para colocá-los no caminho da civilização à la Tio Sam. Esta foi a trilha
que levou os Estados Unidos a empossar Fulgencio Batista e, mais tarde, a
organizar as intermináveis incursões dos exilados em Cuba na década de 60. Ou
será este o momento de deter a mão pesada? De saber se os Estados Unidos
tolerariam uma política de "negligência benevolente"?
Há outro fator em jogo, aqui. A sociedade americana passou por mudança
significativa desde o início do impasse entre os Estados Unidos e Cuba. A
imigração maciça da América Latina, especialmente do México, América Central
e Caribe, transformou muitas das grandes cidades dos Estados Unidos em
concentrações significativas de nativos latino-americanos e população de fala
espanhola. Esta força social relativamente nova já está influenciando a política
em todos os níveis. Ao lado dos exilados anticastristas extremistas, como irão
esses milhões afetar a política dos Estados Unidos para com a América Latina?
Poderia estar desaparecendo o antigo preconceito americano contra esta região?
E o que dizer da atitude dos americanos "tradicionais"? Um pequeno
indicador que o acaso talvez nos tenha trazido pode ser o caso de um vendedor
de computadores de Detroit que se apaixonou por merengue e salsa, música que,
para sua grande surpresa, era tocada por um conjunto de dominicanos. Mais tarde
ele compareceu ao casamento de um dos elementos do grupo, que o festejaram
como "nosso fã número um". "Talvez tenha nascido no país errado", lamentou-se
44
o vendedor. Poderiam estar se amortecendo aqueles valores anglo-protestantes,
especialmente a arrogância que os acompanhava? Em março de 1999 o presidente
Clinton, durante uma visita à América Central, disse "lamentar" o pesado
envolvimento dos militares americanos e da ClA na terrível repressão governa­
mental levada a cabo nas décadas de 70 e 80. Trata-se, pelo menos, de um início
no caminho da renúncia a este tipo de intervencionismo sinistro que os Estados
Unidos praticaram até recentemente.

460
Os Estados U1Iidos e a América Lati1la

O valor mais importante em pauta será o respeito pelo direito de outra


sociedade escolher seu próprio finuro. Este é um valor que nosso país aprendeu
a aplicar nas relações com o México nos anos 30, ainda que as tentações posteri­
ores de violá-lo tenham sido freqüentes. Este compromisso não evitou, nem
mal-entendidos, nem atritos. Mas, ao menos, impediu uma intervenção aberta.
Fidel Castro está com 74 anos de idade. Rumores sobre um possível
problema de saúde circulam constantemente em Havana. Outros líderes latino­
americanos que estiveram com ele recentemente informam que ele está cada vez
mais rígido, e que os preparativos para sua sucessão, na medida em que existirem,
são, surpreendentemente, pouco discutidos. Fidel é prisioneiro de uma dobra no
tempo. Devem os Estados Unidos, quando confrontados com o momento da
verdade nas relações cubano-americanas, sofrer o mesmo destino? Se, por acaso,
Washington optar por uma negligência benevolente, poderá inaugurar uma nova
era nas relações do hemisfério. Pode ser que nela não sejam eliminados todos os
desentendimentos, mas poderiam ao menos ser corrigidas as lentes através das
quais olhamos a América Latina durante o último século.

No t a s

1. A. J. P.Taylor,A pmonol hisrory (Nova 6. José Martí, TheAmerica afJosé Ma rri,


Iorque, Atheneum, 1983). traduzido por Juan de Onis (Nova
Iorque,TheNoondayPress, 1953),p.
2. John Quincy Adams a HughNelson,
28 de abril de 1823, in Wonhinglon
149-150.
ChaunceyFord ed., Th. wrirings afJahn 7. A melhor fonte de consulta para esses
QuincyAdams,7 vais. (Nova Iorque, eventos é Luis A.Pérez Jr., Cuba bel'U.leetl
1913-17),7:372-73, conforme citação in empires.1878-1902 (pinsburgh, The
Louis A.Pérez J r. Th. War af 1898 University ofPinsburgh Press, 1983).
(Chapel HiII, The University ofNorth
CarolinaPress, 1998), p. 4. 8. Pérez, The W'<lrof 1898,p. 6.
3. A melhor análise deste fenômeno é a 9. Extraído do diário de J. Q. Adams, 24
de Victor Bulmer-Thomas, 17zc cconomic de dezembro de 1779 a 7 de janeiro 1780,
history af LatinAmerica since independence Diary ofJohn QuincyAdams, Roben J.
(Cambridge,Cambridge University Taylor e MarcFriedlaender eds., 2 vols.
Press, 1994). (Cambridge, Harvard UniversityPress,
4. Samuel P. Hunttington, "The lonely 1998),p. 5.
superpower", ForeignAffairs,
1999, p. 47-48. 10.Citado em ibidem, p. 13.

5. Susan KaufrnanPurcell, "Cuba", in 11.Conforme citado no Mr. Polk'sArmy


Economic sancrions andAmerican de Richard Bruce Winders (College
dipÚJmacy, editado por RichardN. Haass Station, Texas A&M UniversityPress,
( . . .Council ofForeign Relations), p. 35. 1997),p.183.

461
estudos hist6ricos • 1999 - 24

12. Hubert H. Bancroft, Hislory ofMexico, 24. U. S. Slalules ai Large, 2 1 : 897-898,


1824-1861, 6 vols. (The History Company conforme citação ill Pére" The War of
Publisher.;, SãoFrancisco, 1 883-1888), 1898, p. 5.
vaI. 5, conforme citado no The Mexican
25. Thomas G. Pater.;on, " The limits of
War editado por Ramón Eduardo Ruiz
hegemony: the United States and the
(Nova Iorque, American Problems
Cuban Revolution", publicado pelo Latin
Srudies-Holt, Rinehart e Winston, 1963),
American StudiesConsortium ofNew
p. 85.
England, 1996, p.l.
13. Congressiollal Globe, 14 de junho de
26. Documento daCIA de 1 6 de março
1854, Anexo, p. 853, conforme citado in de 1960, reproduzido in Jon Elliston, Psy
Schoulu, Benealh lhe United SWles, p. 40.
war 01l Cuba ( Hoboken, Ocean Press,
14. Schoultz, Benealh lhe Uniled Slales, p. 1999), p. 16.
71-72. 27. Richard Goodwin, "Memorando para
15. Ibid., p. 77. o presidente" de 22 de agosto de 1961,
reproduzido in Che GuetJOra and lhe FBI,
16. Li[e ofThomas Ha71 BenlOn de
editado por Michael Ramer e Michael
Theodore Roosevelt ( Boston, Houghton
Steven Smith ( Hoboken, Ocean Press,
Mifflin, 1886), p. 175-176, conforme
1997), p. 79.
citação in ibidem, p. 78.
28. FidelCastro, 111 defe/lSe ofsocialism:
1 7.Citado emThomas E. Skidmore e
' fOllr speeches on lhe 30lh anniversary oflhe
Peter H. Smith, Modem Lalin America (3
Cuban Revo/ulion (Nova Iorque,
ed.,Nova Iorque, Oxford University
Pathfinder Press, 1989), p. 12.
Press, 1992), p. 4, onde estão indicadas as
fontes do estudo. 29. O discurso está reproduzido in Che
Guevara anti rhe Cuban Revolurion:
18. Anuro Uslar Pierri, "The other
umlings and speeches ofErneslO Che
America", traduzido por AndIéeConrad,
Guevara, editado por David
in Lalin American essays, editado por IIan
DeulSchmann ( Sidnei, Pathfinder Press,
Stavans (Nova Iorque, Oxford Univer.;ity
1987), p. 265.
Press), p. 210.Primeiro publicado em
Reuiew 14, primavera de 1975, p. 4247. 30. Ibid., p. 286.

1 9. Lawrence E. Harrison, The 31. A análise mais abrangente desta


Pan-American dream ( Boulder, Wesrview política recente noCanbe é, de William
Press, 1997), p. 24. M. Leogrande, Our UWII backyard (Chapel
Hill, The Univer.;ity ofNorth Carolina
20. José Enrique Rodó,Ariel, traduzido
Press, 1998).
por Margaret Sayer.; Peden ( Austin,
Univer.;ity o f Texas Press, 1988), p. 79. 32. A poderosa voz dos exilados cubanos
linhas-duras é aCANF. Ela mantém um
21. CarlosFuentes, prólogo do Ariel de
ativo programa de assuntos públicos e
Rodó, p. 16
não esconde seu antigo desejo de ver a
22. Eduardo Prado,A ilusáo americana derrubada do socialismo emCuba. Para
( Rio de Janeiro,Civilização Brasileira, uma publicação representativa ( que
1933), p. 1 7 1 . apareceu ás vésperas do colapso da ajuda
23.Thomas Jeffer.;on a James Monroe, 23 soviética àCuba) ver Tuwards a ncw
US-Cuba policy, publicado pelaCuban
de junho de 1823, in H. A. Washington
ed., The works ofThamas Jefferson, 9 vols.
AmericanNationalFoundation, 1988.
(Nova Iorque, 1883), 7:300, conforme 33. Podemos ter uma idéia da opinião do
citado in Pére" The War of 1898, p. 5. establishmenl no relatório bipartidãrio do

462
Os Estados Ullidos e a Amélica Latilla

Conneil on Foreign Relarions. O 38. A referência é a Robert A. Pastor,


relatório afirma que os Estados Unidos Condemned to repetirio1l: lhe United Slates
devem se esforçar para "criar as melhores Gnd NícaraguG (Princeron, Princeton
condições possíveis para uma transição University Press, 1987).
pacífica em Cuba e o surgimento de uma 39. Em novembro de 1997 a United
Cuba democrática, próspera e livre no
States Defense Intelligence Agency
século XXI" . Significativamente, esta emitiu um relatório em que concluía:
afirmativa não faz qualquer referência ao
uNo momento Cuba não representa uma
tipo de sistema econômico que o governo ameaça militar significativa para os
dos Estados Unidos irá apoiar em uma
Estados Unidos ou para outros países da
Cuba pós-Castro. Tal questão é evitada
região". O relatório enfatizava os pesados
em todo o relatório, que foi reproduzido
cortes no orçamento militar cubano e a
no US-Cuban relatiolls in lhe 21st cemwy
impossibilidade de mamer os
publicado pelo Council on Foreign
equipamentos militares. Este relatório
Relations (Nova Iorque, 1999), p. 27. Na
encontra-se reproduzido in US-Cuban
seqüência, o relatório tranqüiliza seus
relatiolls in lhe 21st cenlllry, publicado pelo
leimres (por mais incrível que possa
Council on Foreign Relations (Nova
parecer) dizendo que "o povo americano
Iorque, 1999), p. 72.
não tcm qualquer interesse em interferir
na soberania, independência ou 40. Para um exemplo das várias tentativas
identidade nacional cubanas", Tal de repensar a política dos Estados Unidos
declaração sugere uma milagrosa em relação a Cuba em uma direção mais
conversão de um século de políticas no progressista, ver Gillian Gunn, Cuba in
sentido contrária. 1rG/lSition: optionsfor US policy (Nova
Iorque, The Twentieth Cemury Fund
34. The Washington Post, 13 de março de Press, 1993). Outro exemplo de tal
1999. revisão, tanto do lado dos Estados
Unidos quanto de Cuba, é "Cuba:
35. A questão de uma política econômica adapting to a post-soviet world", in
pós-castrista é analisada in Eliana NACIA Report oll lhe Americas , vol.
Cardoso e Ann Helwege, Cuba afier XXIX, no. 3, verão de 1994.
commmism.(Cambridge, The .MIT Press,
41. Ruth Behar, CClntroduction", Michigall
1992).
Quarterly Review. A Special lssue: Bridges
36. Para um jornalista de tendência la Cuba. vol. XXXIII, no. 3, verão 1994.
conservadora já existem sinais de 42. Um exemplo desta opinião corrente é
crescente influência capitalista em Cuba: Eloy Gutiérrez-Menoyo, ex-oponente
"muitos cubanos, tan�o no governo armado de Castro no exílio e que passou
quanto fora dele, são hoje capitalistas agora a defender negociações com o
enrustidos". Mary Anasrasia O'Grady, regime cubano. Sua organização publica
"In Cuba these days. A good communisl um informativo: Cambio Cubarw:
is hard to find", The Wall SlTeetJoumal, Oposici6n Sensata.
19 de março de 1999.
43. José A. Solis Silva, "Democracy;
dialogue, and the Cuban community", in
37. A política latino-americana de
Poslmodem Notes, vol. 1, no. 1, outono de
Kennedy é objeta de análise crítica in
1990.
Stephen G. Rabe, The most dangerous area
in lhe world (Chapel Hill, The University 44. "Crossover dreams", Newsweek, 4 de
ofNonh Carolina Press, 1999). novembro de 1991.

463

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