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Alberto Caeiro, o «mestre», em torno do qual se determinam os outros heterónimos, nasceu

em Abril de 1889 em Lisboa, mas viveu grande parte da sua vida numa quinta no Ribatejo onde
viria a conhecer Álvaro de Campos. A sua educação cingiu-se à instrução primária, o que
combina com a simplicidade e naturalidade de que ele próprio se reclama. Louro, de olhos
azuis, estatura média, um pouco mais baixo que Ricardo Reis, é dotado de uma aparência
muito diferente dos outros dois heterónimos. É também frágil, embora não o aparente muito,
e morreu, precocemente (tuberculoso), em 1915. O mestre é aquele de cuja biografia menos
se ocupou Fernando Pessoa. A sua vida foram os seus poemas, como disse Ricardo Reis: «A
vida de Caeiro não pode narrar-se pois que não há nela mais de que narrar. Seus poemas são o
que houve nele de vida. Em tudo o mais não houve incidentes, nem há história».(in Páginas
Íntimas e Auto Interpretação, p.330).

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(Diz A. de Campos): Nunca vi triste o meu mestre Caeiro. Não sei se estava triste
quando morreu, ou nos dias antes. Seria possível sabê-lo, mas a verdade é que nunca
ousei perguntar aos que assistiram à morte qualquer coisa da morte ou de como ele a
teve.

Em todo o caso, foi uma das angústias da minha vida — das angústias reais em meio de
tantas que têm sido fictícias — que Caeiro morresse sem eu estar ao pé dele. Isto é
estúpido mas humano, e é assim.

Eu estava em Inglaterra. O próprio Ricardo Reis não estava em Lisboa; estava de volta
no Brasil. Estava o Fernando Pessoa, mas é como se não estivesse. O Fernando Pessoa
sente as coisas mas não se mexe, nem mesmo por dentro.

Nada me consola de não ter estado em Lisboa nesse dia, a não ser aquela consolação
que pensar no meu mestre Caeiro espontaneamente me dá. Ninguém é inconsolável ao
pé da memória de Caeiro, ou dos seus versos; e a própria ideia do nada — a mais
pavorosa de todas se se pensa com a sensibilidade — tem, na obra e na recordação do
meu mestre querido, qualquer coisa de luminoso e de alto, como o sol sobre as neves
dos píncaros inatingíveis.

1931

Textos de Crítica e de Intervenção . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.

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A morte não tem importância nenhuma.

«A realidade não precisa de mim.»


Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
7-11-1915

“Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota


explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946
(10ª ed. 1993).

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Ricardo Reis: Morte


Reis teme a morte porque teme o desconhecido.

Fernando Pessoa: Morte


Pessoa encara a morte com a mesma singeleza do mestre: «Morrer é só não ser visto.»

Álvaro de Campos: Morte


«Mestre, Alberto Caeiro, que eu conheci no princípio e a quem depois abandonei...»

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Existem dois Álvaro de Campos, um antes e outro depois


do contato com Caeiro. O próprio Pessoa aponta a modificação na poética
de Campos na famosa carta em que discute a gênese dos heterônimos:

Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema


‘antigo’ do Álvaro de Campos – um poema de como
Álvaro de Campos seria antes de conhecer Caeiro e
ter caído sob a sua influência. (Pessoa , 1976, p. 97)

Por outro lado, dentro da ficção pessoana, também como já foi dito no
início deste trabalho, Campos considerou seu encontro com Caeiro como
uma fecundação, que, aparentando ser nada no momento há de “vir a ser
tudo nos resultados” (Pessoa, 1976, p. 107).

A “morte” do mestre Caeiro em 1915 (segundo as datas indicadas


por Fernando Pessoa, ele teria nascido em 1889, em Lisboa) provocou o
surgimento de pelo menos dois textos marcantes da autoria de Álvaro de
Campos. O primeiro, de onde se extraiu a citação acima, chamado “Notas
para a recordação do meu mestre Caeiro”, em que Campos relata seu
primeiro encontro com Alberto Caeiro, com Ricardo Reis e uma discussão que
tivera com o mestre sobre o materialismo.
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Caeiro (1889-1915) é o Mestre, inclusive do próprio Pessoa ortónimo. Nasceu em Lisboa e
aí morreu, tuberculoso, em 1915, embora a maior parte da sua vida tenha decorrido numa
quinta no Ribatejo, onde foram escritos quase todos os seus poemas, os do livro O
Guardador de Rebanhos, os de O Pastor Amoroso e os Poemas Inconjuntos, sendo os do
último período da sua vida escritos em Lisboa, quando se encontrava já gravemente
doente (daí, segundo Pessoa, a “novidade um pouco estranha ao carácter geral da
obra”). Sem profissão e pouco instruído (teria apenas a instrução primária), e, por isso,
“escrevendo mal o português”, órfão desde muito cedo, vivia de pequenos rendimentos,
com uma tia-avó. Caeiro era, segundo ele próprio, “o único poeta da Natureza”,
procurando viver a exterioridade das sensações e recusando a metafísica, caracterizando-
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se pelo seu panteísmo e sensacionismo que, de modo diferente, Álvaro de Campos e
Ricardo Reis iriam assimilar.

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