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EDITORA
UnB
Editora Universidade de Brasília
Diretor Henryk Siewierski
Diretor-Executivo Syivio Quezado
EDITORA
UnB
Equipe editorial
Supervisão editorialRejane de Meneses
Acompanhamento editorial Sonja Cavalcanti
Daniele Thiebaut
Preparação de originais e revisão
Projeto gráfico e capaJoe Rodrigues
Diagramação final Heonir Soares Valentim
Acompanhamento gráfico Elmano Rodrigues Pinheiro
Crédito das imagens Fotos gentilmente cedidas pelo Arquivo
Público do Distrito Federal
Desenhos Desenhos feitos em CAD por Levi Batista
de Carvalho sofreram atualização de
programação visual feita por Joe Rodrigues
18 Introdução
64 Capítulo 1 - Os trabalhadores
262 Conclusão
270 Referências
Prefácio
Prefácio
Duplas memórias
BJfi » * 1
16
Prefácio
dando início a uma série de publicações em homenagem aos 50
anos da inauguração de Brasília. Durante a preparação deste livro,
resolvi incluir fotografias da época, algumas das quais tomadas por
Mário Fontenelle, fotógrafo da Presidência da República, a cuja
verdadeira visão etnográfica se deve a existência de muitas das me
lhores fotos da construção da cidade. As fotos formam parte do
acervo do Arquivo Público do Distrito Federal no qual trabalham
pessoas como Flávia Cohen, cujo entusiasmo pela história da cida
de se percebe imediatamente e facilita muito o trabalho do pesqui
sador. Agradeço ao Arquivo Público do Distrito Federal a licença
para utilizar esse material. O mapa do DF e os croquis que também
ilustram o volume foram gentilmente preparados por Levi Batista
de Carvalho, pioneiro da construção da cidade, que também se
entusiasmou com o livro. Por iniciativa própria, Levi Batista de
Carvalho se transformou em pesquisador e conseguiu croquis de
outras áreas (como de uma na qual se localizava a Novacap) que es
tão reproduzidos mais adiante. Durante o período em que me dedi-
quei a esta publicação, continuei como professor do Departamento
de Antropologia da Universidade de Brasília e como pesquisador do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq).
André Malraux, o célebre escritor francês, em sua visita às obras
da cidade, chamou Brasília de “A Capital da Esperança”. Felizes as
línguas em que uma mera mudança de artigo permite a um autor
alterar todo o significado de uma designação.
17
Introdução
1
Introdução
22
Introdução ■)
23
0 capital da esperança
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0 capital da esperança
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)
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■)
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)
31
0 capital da esperança
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0 capital da esperança
if
forças político-econômicas emergem intensamente. Ganha a eleição,
por JK e Jango, sobrevêm realmente em novembro de 1955 uma ten
tativa de golpe identificado com forças políticas e militares ligadas
a interesses estrangeiros em um momento em que o nacionalismo
era uma grande questão ideológica. Graças à intervenção do general
Lott, a legalidade, com o conseqüente direito de posse aos eleitos, é
mantida (veja, por exemplo, SKIDMORE, 1975, especialmente da
página 188 a 198, e BENEVIDES, 1976, p. 23-24). Skidmore chega a
afirmar que “poucos presidentes brasileiros tomaram posse sob con
dições políticas tão pouco auspiciosas como Juscelino Kubitschek”
(1975, p. 203). Remarquemos o fato de que a posse do novo governo
é associada à mobilização das “forças nacionalistas, antigolpistas e
antiimperialistas”. Para a esquerda, o nacionalismo era uma forma
de luta contra o imperialismo. A polêmica entre “nacionalistas” e
“entreguistas” era de tal ordem que no Congresso Nacional se for
mou uma Frente Parlamentar Nacionalista, apoiada pelas chamadas
forças populares (sindicatos, União Nacional dos Estudantes, por
exemplo), que fiscalizava questões como a penetração do capital es
trangeiro, a permissão para o território de Fernando de Noronha se
transformar em base de teleguiados norte-americanos, a exportação
de minérios (com destaque para os atômicos) e a defesa da Petrobrás.
A importância da questão também se refletia no número de artigos
escritos em jornais, bem como em revistas de intelectuais, como a
Revista Brasiliense que, em seus números 12, 14, 23 e 24, de 1957 e
1959, trazia contribuições sobre o tema de autores como Fernando
Henrique Cardoso, Otávio Ianni e Caio Prado.
34
Introdução
2 A literatura a este respeito é razoavelmente extensa. Remeto o leitor, por exemplo, ao livro
já mencionado de Maria Victória de M. Benevides (1976) e aos livros Ideologia do Desenvolvi
mento: Brasil JK-JQ (1977), de Miriam Limoeiro Cardoso; e ISEB: fábrica de ideologias (1977),
de Caio Navarro de Toledo.
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0 capital da esperança
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Introdução
a Constituição e não vejo razão por que esse dispositivo seja ignorado. Se
for eleito, construirei a nova capital e farei a mudança da sede do governo”
(KUBITSCHEK, 1975, p. 7-8).
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0 capital da esperança
Pais fundadores: JK, Lúcio Costa, Israel Pinheiro e Oscar Niemeyer examinando o projeto da
Praça dos Três Poderes, novembro de 1958. Foto: Mário Fontenelle
Introdução
39
0 capital da esperança
Para dar substância a esse quadro, o material mais útil foi a história
oficial do país. A própria história da idéia da transferência da capital
para o interior era facilmente capaz de ser remetida, pelo menos, ao
século XVIII com os inconfidentes e sua intenção de mudar a capital
para Barbacena. Vejamos como isto se deu.
construção, já que houve antes dela pelo menos duas outras mis
sas celebradas em maio ou junho de 1956 {DIÁRIO DE BRASÍLIA,
1956/1957, p. 31-32) pelo bispo Dom Abel Ribeiro e, em 24 de
março de 1957, no Santuário Dom Bosco. Esta última aparece no
Diário de Brasília sob o eufemismo de Primeira Missa vespertina de
Brasília (idem, p. 74). Reproduzo, em seguida, um trecho em que
Juscelino descreve a Primeira Missa:
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0 capital da esperança
E continua:
Após a cerimônia, teve lugar a homenagem em que os índios carajás [trans
portados da Ilha do Bananal pela FAB] desejavam me prestar. Foi um espetá
culo tocante e digno de registro. Os silvícolas ofertaram-me lanças, bodurnas,
tacapes e flechas. O cacique fez-me uma saudação, chamando-me de ‘Grande
Chefe’, e enquanto a assistência aplaudia, os demais índios gritavam. Olhando
em torno, deslumbrei-me com o contraste oferecido por aquela concentração
humana. De um lado, os carajás vestidos de penas, e de outro, as elegantes
da sociedade carioca exibindo as últimas criações dos costureiros de Paris.
Brasília já nascia como um fator de aglutinação dos desníveis nacionais. Os
dois pólos da vida ali se encontravam, dando origem à nova etapa na evolução
do país. E, pairando sobre todos, uma projeção democrática de nivelamento,
enovelava-se a poeira vermelha - a característica do mundo novo que estava
em gestação (idem, p. 78).
Ambigüidade jurídica
Brasília foi construída com um enorme capital que o Estado decidiu
investir em determinado ponto, política e economicamente estratégi
co, do território nacional. Em realidade, para efetuar os trabalhos de
um grande projeto é comum estabelecer-se uma grande companhia
estatal que gerencia toda a obra e empreita os serviços de diversas
companhias particulares que participarão da construção. Estas obras
como geralmente são destinadas, ao menos hipoteticamente, a pro
mover o “desenvolvimento” do país, ou de uma região se realizam
em pontos relativamente isolados do território nacional. Inclusive
porque uma de suas funções, como sabemos, é estimular com sua
presença a integração de uma área a sistemas regionais e nacionais
mais amplos. Um órgão federal, então, recorta o terreno e passa a
realizar os trabalhos concretos para a instalação dos requisitos ne
cessários ao desempenho da obra. Dado o volume do empreendi
mento, a companhia governamental, ao ser criada, já nasce com um
Introdução
47
0 capital da esperança
pelo rápido andamento desta Lei no Congresso Nacional foi um
deputado da oposição, da UDN de Goiás (bastante interessada na
transferência da capital). Por outro lado, é bom notar, como chama
a atenção Maria Victoria Benevides (1976, ver, por exemplo, seu ca
pítulo V), em seu trabalho sobre o governo Kubitschek, a existência
de uma tendência concentradora de poder no Executivo mediante a
criação de várias empresas e grupos de trabalho relativamente au
tônomos do Poder Legislativo. Segundo Benevides, há que acentuar
“o papel do Executivo, que assume gradativamente todas as funções
referentes à política econômica, principalmente em detrimento do
Legislativo, o qual não participa praticamente do processo decisó-
rio” (BENEVIDES, 1976, p. 208).
Assinatura da lei que fixa a data de mudança para a nova capital. Rio de Janeiro,
1a de outubro dp 19S7
Introdução
(...]
§ 6a - Um terço dos membros do Conselho de Administração da Diretoria e
do Conselho Fiscal será escolhido em lista tríplice de nomes indicados pela
Diretoria Nacional do maior partido político que integrar a corrente de oposi
ção no Congresso Nacional (DIÁRIO DE BRASÍLIA, 1956/1957, p. 171).
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0 capital da esperança
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Introdução
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0 capital da esperança
54
Introdução
trabalho. Quer dizer, sob o ponto de vista legal, a lei civil era aplicada pelo
Juiz de Direito, casamento, questões de ... enfim, qualquer outra questão seria
dirimida ou decidida pela Justiça goiana até 21 de abril de 1960, quando foi
criada então a Justiça ordinária. Agora, logicamente a Justiça de Goiás teria
que ter jurisdição sobre o Distrito Federal, sob pena de ficar inteiramente, essa
região, acéfala, sem nenhuma prestação jurisdicional.
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0 capital da esperança
No mês de janeiro de 57, conversava com o Dr. Israel Pinheiro, em seu gabi
nete de trabalho no Rio de Janeiro, quando surgiu a idéia de ser instalado um
policiamento oficioso em Brasília, para manter vigilância sobre o material
pesado das companhias que se achava espalhado pelo acampamento, pois,
já havia ocorrido alguns casos de furto. Ficou, então, estabelecida a criação
da “Divisão de Segurança Pública da Novacap”, isso aconteceu no dia 20 de
fevereiro de 1957 (JORNAL DE BRASÍLIA, 23 abr. 1978, p. 28).
56
Introdução
57
0 capital da esperança
-Judiava com nego. Eu vi eles pegar um cearense que roubou na Vila Amauri
e correu praquela beira de largo (lago) afora e eles pegaram estrada afora aí e
foram cercar ele lá perto do Palácio da Alvorada. E o sujeito enfrentou a polí
cia, a polícia enfrentou ele, meteu o pau, e pearam ele, e veio tirando ele piado
até aqui na delegacia que ... meteram o couro, viu (operário de manutenção
de máquinas).
58
Introdução
4 0 Diário da Noite, do Rio de Janeiro, em 28 de maio de 1958, publica uma matéria com a
seguinte manchete: "Brasília, um paraíso dos estelionatários". As implicações da ambigüida
de jurídica no tocante às questões trabalhistas serão vistas no Capítulo 3.
59
0 capital da esperança
No entanto, no livro de um ex-diretor da Novacap sobre a história
da cidade encontramos a seguinte passagem:
Outra questão que logo afloraria, e que teria repercussões mais ime
diatas no dia-a-dia do território da construção, era aquela que diz
respeito ao pagamento de impostos pelo comércio da área. Como
se verá, o não pagamento de impostos foi uma das maneiras en
contradas para incentivar o afluxo de comerciantes bem como seu
estabelecimento na Cidade Livre, Núcleo Bandeirante. No entanto,
por causa do grande volume de negócios realizados, tornou-se in
teressante taxar essas transações comerciais e o governo do Estado
de Goiás, tentando manipular a ambigüidade jurídica do território,
passou a pretender exercer direitos fiscais na área. Os comercian
tes do Núcleo Bandeirante, que já contavam com uma Associação
Comercial, protestaram vigorosamente, ameaçando inclusive reali
zar greves. Vejamos o que diz sobre a questão um dos jornais da
cidade na época:
61
0 capital da esperança
Brasília, fato que merece irrestritos aplausos, está ainda sob a orientação do
Governo do Estado de Goiás, porque como dissemos isto aqui ainda é Goiás.
[...] As greves programadas, que encontram apoio da Associação Comercial,
não constituem o meio adequado para a solução do problema. Estas greves
não afetarão à Novacap nem ao governo de Goiás, e sim ao povo de Brasília,
aos habitantes desta cidade que sofrerão as conseqüências de tais atos. [...]
Fazemos o apelo em nome do povo aos dirigentes da Associação Comercial de
Brasília, no sentido de ser prontamente normalizada esta situação, para que
a população pioneira não sofra as conseqüências das greves programadas.
(A TRIBUNA, Núcleo Bandeirante, n° 16, 25 ago. 1958).
62
Introdução
funcionalidade para a produção de um grande projeto só pode ser
entendida no âmbito de uma polaridade permitida pela ambigüidade
jurídica: de um lado, o maior controle que se podia exercer sobre a
população, de outro, o desrespeito à legislação trabalhista.
Capítulo 1
Os trabalhadores
Capítulo 1 | Os trabalhadores
0 pequeno avião ajudou a trazer os primeiros que chegavam. Fazenda do Gama (1956-1960)
69
0 transporte aéreo é essencial à colonização de novas áreas.
Aeroporto de Brasília (1957-1960)
Plano Piloto
Novacap
Capítulo 1 | Os trabalhadores
73
Gjníidngõiândid
Aeroporio-
B F'l-i.140
Plainaltina Cidade Livre
Plano PiFoto
- 6-elo Horizonte
Anápolis
Capítulo 1 | Os trabalhadores
77
0 capital da esperança
O afluxo desorganizado
Tudo indica que esse tipo de afluxo foi predominante nos primeiros
momentos da construção de Brasília, quando a área ainda se encon
trava bastante isolada. O acesso ao local era, então, de tal forma
difícil que os primeiros trabalhadores a se dirigirem para o territó
rio para realizar os trabalhos iniciais de construção de alojamentos,
depósitos, campo de pouso, vinham quase exclusivamente de áreas
circunvizinhas, sobretudo do Estado de Goiás. Esses trabalhos ini
ciais não implicavam a presença de um número muito grande de
trabalhadores. Era necessário construir, além de alguns primeiros
prédios vinculados às atividades da Novacap, as primeiras estradas
de serviço internas ao território com suas obras relativas como pe
quenas pontes.
Lembremos também que nesta época (fins de 1956, começo de 1957)
não se conhecia qual seria o traçado da cidade. O Plano Piloto só
seria definitivamente escolhido em concurso público nacional, cujo
resultado foi decidido em março de 1957. A esta altura, os trabalhos
ligados à construção da cidade, propriamente dita, só tinham come
çado em seus aspectos logísticos. O Censo de 1959, em tabela relati
va ao “lugar e situação do domicílio anterior”, deixa ver claramente
que a composição da população do território foi, desde o princípio,
marcada pela predominância de goianos e, logo em seguida, de mi
neiros (IBGE, 1959, p. 98-99, e também p. 52).
São os primeiros operários que vêm ao território para tarefas espe
cíficas que passam a veicular, nos seus locais de origem, a existência
do grande projeto e, por conseguinte, a grande necessidade de tra
balhadores para a sua realização. Assim, muitos operários não se
Capítulo 1 | Os trabalhadores
Porque ele [um amigo] ganhou muito dinheiro aí, que a companhia pagou
muito bem pago, muito dinheiro. Bom, aí ele ficou lá em Goiânia assim, que
ele era carpinteiro muito bom, né. Aí vortou. Quando um dia ele chega lá na
oficina: rapaz, aquela Cidade Livre começou e eu vortei pra lá, tou trabalhan
do lá, então lá tem muito serviço. Você quer ir trabalhar lá? Aí eu falei assim:
rapaz, eu vou (carpinteiro).
É claro que a afirmação “só chegar que tinha serviço nas compa
nhia” necessita ser relativizada, sobretudo porque, como veremos
mais adiante, existiam requisitos que, via formas de recrutamento
e seleção, definiam as características do conjunto de operários que,
em termos gerais, eram engajados na obra. Se era grande a necessi
dade por serventes, os trabalhadores menos qualificados dentro da
construção civil, a procura por profissionais era relativamente maior,
o que facilitava ainda mais, para esses trabalhadores, a entrada em
empregos.
Nessa época era fácil arrumar emprego. Me ocuparam como apontador fiscal.
Quem soubesse ler e escrever, naquela época eles ocupavam como apontador,
fiscal. Tivesse uma certa facilidade de escrever qualquer coisa, né. Tinha mui
ta falta de mão-de-obra, e falta de encarregado de obra, que conhecesse de
obra, essa coisa toda (apontador).
Os carpinteiro que fazia soalho de peroba era só arguns. Porque tinha muitos
homens que trabalhava mas num sabiam fazer um soalho de peroba, aquele
soalho bem feito. Ele (um patrão) mandou eu fazer. Falou: ó, pois você que vai
fazer isso pra mim, é o único que vai dar conta de fazer porque todos que eu
mandei fazer aqui num presta. Fiquei fazendo (carpinteiro).
Este método podia também ser utilizado em outros locais como, por
exemplo, nas proximidades dos canteiros de obras:
Coisa que não fartou aqui foi trabalho. Fartou trabalhador, mas trabalho não.
A gente via nas obras, nos alto-falantes por aí o pessoal anunciando: precisa-se
trabalhador e tal. Esses alto-falantes de parque, de cinema, em cima do carro
justamente para fazer esses convite (operário de manutenção de máquinas).
O a fluxo organizado
É este tipo de afluxo, com suas formas próprias de recrutamento,
encaminhamento, seleção e controle dos operários, que acaba por
definir, por sua contribuição decisiva na formação da população
do território da construção, os traços básicos da força de trabalho
que se engajou na obra de Brasília. Temos de entender as funções
desempenhadas pelo órgão do Estado que tinha as atribuições de
regularizar o afluxo, a chegada e a seleção de operários, bem como
a inserção deles na atividade produtiva. Tratava-se do Instituto
Nacional de Imigração e Colonização (Inic), situado na Velhacap,
nas proximidades da Cidade Livre.
O Inic instala-se no território da construção apenas no final de 1957
quando já havia um mercado de trabalho relativo a uma população
de aproximadamente 18 mil pessoas (IBGE, 1959, p. 3-4). O nú
mero de trabalhadores que afluía para o local tornava obrigatória a
sua presença para atender “ao crescente movimento de candidatos
a emprego nas obras de construção da futura capital” (DIÁRIO
DE BRASÍLIA, 1956/1957, 1960, p. 132). Operando nacional
mente, contava em sua estrutura com Postos de Colocação, Postos
de Distribuição e Hospedarias de Trânsito que formavam cadeias
de recepção e encaminhamento de trabalhadores e se localizavam,
preferencialmente, em locais estratégiços como entroncamentos ro
doviários e ferroviários. Para desempenhar suas funções regulado
ras no tocante à formação da população trabalhadora em Brasília,
o Inic, em atuação conjunta com a Novacap, contava com um Posto
Auxiliar em Anápolis, cidade que desempenhava importantes fun
ções vis-à-vis o território da construção. Aqueles que chegavam
através desta cidade goiana já haviam passado por uma triagem
inicial e vinham de certo modo encaminhados.
85
0 capital da esperança
Tinha o Inic que dava a gente aqui (em Anápolis) um cartão de apresenta
ção. Você chegava lá apresentava ao Inic de lá. Entende? Dava ao Inic lá em
Brasília. E lá de acordo com a sua profissão eles mandavam pra determinadas
localidades de serviços de determinada obra.
86
Capítulo 1 | Os trabalhadores
Cheguei e fui ver onde tinha vaga lá no Inic. Todo mundo tinha que tirar esse
cartão. Tudo era ligeiro. Dentro de três dias ele já tava prontinho. O Inic era
na Velhacap. O caminhão deixava a gente na frente dele. Eu disse: olha, che
guei do Rio agora. Como é que tá aí? o sr. tem vaga aí pra carpinteiro? Aí ele
disse: tenho. O sr. quer fazer exame lá? Eu disse: faço. Tinha que pegar uma
tábua de cedro toda torta e deixar prontinha. Aí eu deixei tudo pronto. O sr.
já tá com a carteira? O sr. pode arranjar a sua acomodação e daí há dois dias
o sr. vem aqui (carpinteiro).
Cabe frisar que os trabalhadores que viessem tanto por meio do aflu-
xo desorganizado quanto do afluxo organizado, submetiam-se igual
mente ao Instituto Nacional de Imigração e Colonização nas suas
funções de seleção, documentação e inserção na atividade produtiva.
Essas atribuições do Inic, portanto, atravessavam as duas categorias
analíticas que construí, ressalvando-se os casos de trabalhadores in
dividuais que vinham para Brasília transferidos por companhias nas
quais já trabalhavam anteriormente.
Já o servente, ou melhor, o pretendente a servente, isto é o trabalha
dor que, em geral, chegava diretamente de uma condição camponesa
para inserir-se neste mercado de trabalho, encontrava trabalho pas
sando também pelo Inic. Mas atravessava um processo mais lento e
menos seguro que o dos profissionais, basicamente por formar um
contingente de trabalhadores muito maior e por não contar ainda
com atributos tanto em termos de treinamento, quanto jurídicos
para melhor colocar sua força de trabalho no mercado:
Não, eu num tinha não (carteira de trabalho). A gente quando vem da lavoura
num traz nada. Aqui que foi tirado tudo. Traz só o registro de nascimento,
87
0 capital da esperança
Notícia de Goiânia anuncia que não está sendo permitida a entrada de flagela
dos nordestinos em Brasília. [...] Essa providência visa proibir a avalancha de
pessoas e a construção de favelas, bem como a invasão de lotes da Novacap.
Centenas de famílias estão ao relento, proibidas de ingressos na área de
Brasília. [...] os flagelados chegam nas proximidades da área da Novacap e
encontram soldados armados que lhes impedem a entrada (A HORA, São
Paulo, 14 jun. 1958).
Geralmente os que vêm para a nova Capital, o fazem atraídos pela necessária
publicidade em torno de Brasília. Para tanto, já contamos inclusive, com uma
emissora de rádio, de farta penetração em todo o Brasil. E não são poucos os
forasteiros que aqui chegam diariamente, notadamente operários procedentes
de regiões flageladas do país, que esperam encontrar em Brasília o amparo
que lhes falta nos estados de origem. Acontece que toda essa massa humana
que se dirige para a “Obra do Século” está sendo espantada. Sim, espantada
sob a alegação de que não possuímos ainda condições de acomodação para
as levas de trabalhadores que se destinam a Brasília. Dessa forma, é muito
comum vermos a polícia da Novacap impedindo a entrada de famílias ope
rárias na nova capital, com explicações que, verdadeiramente não satisfazem
(A TRIBUNA, Brasília, Núcleo Bandeirante, 2 out. 1958).
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0 capital da esperança
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Capítulo 1 | Os trabalhadores
Agora, cearense aqui veio 30 e tantos caminhão de cearense pra trabaiá aqui
em Brasília. A Espiral (nome fictício de construtora) mandou buscar, que era
o engenheiro da Espiral que era o dono das obras, que era cearense e que
mandava os caminhão ir ver. E quem num podia vir ele trazia pra trabaiar
aqui em Brasília (servente).
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Capítulo 1 | Os trabalhadores
Vocábulo que se tornou mais vulgar a partir da construção de Brasília, pois foi
nessa fase da nova capital que veio a nu a anatomia do comércio de braço escra
vo em Brasília [...] A carência de braços no Centro-Oeste se tornou mais aguda
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0 capital da esperança
Conseqüências demográficas
Já contamos com uma visão suficientemente ampla das formas de re
crutamento e seleção. Os tipos de constrangimentos objetivos em que
implicavam levaram a qualidades específicas na formação e composi
ção da população do território da construção de Brasília. Destaquemos
aíguns aspectos centrais fornecidos pelo Censo Experimental de 1959.
Em uma população total de 64.314 habitantes, aproximadamen
te 90% eram migrantes. O contingente de pessoas economicamen
te ativas (35.201), sendo maior em relação às não economicamente
ativas, constitui, segundo o Censo, “fenômeno peculiar às condições
de Brasília, nesta fase de seu desenvolvimento” (IBGE, 1959, p. 54).
Deste contingente, 19.149 pessoas estavam ocupadas diretamente na
construção civil. Aqui cabe citar um trecho do texto do Censo:
Capítulo 1 | Os trabalhadores
95
0 capital da esperança
A grande maioria das pessoas imigradas para Brasília provinha de áreas urba
nas. A proporção entre as pessoas procedentes de cidades ou vilas e as do meio
rural era de 4 para 1, desprezada a quota residual (1,8% do total) concernente
às que nada declaram a respeito (IBGE, 1959, p. 49).
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Capítulo 1 | Os trabalhadores
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0 capital da esperança
A família pode ser definida como unidade social onde se realiza a reprodução
do trabalhador. Dizer unidade de reprodução implica dizer unidade de consu
mo - não o chamado consumo produtivo, mas o consumo propriamente dito,
aquele através do qual o trabalhador repõe a energia consumida pelo capital e
no qual a mercadoria se realiza como valor de uso. A família assegura o con
sumo de duas maneiras diversas: de um lado, colocando no mercado de tra
balho alguns de seus membros, que vendem sua força de trabalho em troca de
salário com o qual compram mercadorias. Na medida em que, como é comum
nas famílias proletárias, as necessidades de consumo não podem ser satisfeitas
apenas com o salário do chefe de família mas exigem também o emprego da
esposa ou dos filhos, a família se organiza como unidade de rendimentos, isto
é, grupo no qual a formação de um fundo coletivo através da soma de salários
individuais permite assegurar um determinado padrão de consumo. De outro
lado, o consumo é assegurado através de uma atividade produtiva auxiliar
que se dá fora dos moldes da produção capitalista e que consiste, essencial
mente, em preparar, modificar, preservar e consertar mercadorias adquiridas
98
Capítulo 1 | Os trabalhadores
100
Capítulo 1 | Os trabalhadores
101
0 capital da esperança
Eu senti que a vida de solteiro aqui naquela época seria muito boa, mas muito
difícil. O sujeito solteiro não tinha com que divertir. Era tudo cheio demais,
tumultuado. Então acho que a parte do sujeito casado era mais interessante.
O sujeito casado tinha a casa dele para comer, para dormir. Lar feliz. Agora o
solteiro tinha que enfrentar a cantina, aquele horário, a comida. Às veze falta
va lavadeira, o sujeito tinha que lavar a roupa dele (operador de máquina).
103
0 capital da esperança
As piores horas de trabalho eram das dez às seis da manhã porque com chuva
ou sem chuva tinha que pegar as máquinas pra dar pros operadores às sete e
meia, oito horas da manhã. Eles paravam às dez horas da noite. Agora o povo
da manutenção de máquina não tinha hora, era de enfiada. Carpinteiro era de
enfiada também. Quem era casado vinha tudo dormir. Dava dez horas, vinha
tudo dormir. Agora os solteiro ficava embaixo da chuva. Os casado tiveram
boca rica aqui. Quem teve boa vida aqui foram os casado porque tinham a
casa deles (operário de manutenção de máquinas).
Em que pese que de fato o operário sem família estava sujeito a uma
subordinação maior, algumas formulações operárias que explicam
os privilégios de alguns trabalhadores pelo fato de terem famílias ne
cessitam ser relativizadas. A situação familiar cruza-se com a lógica
interna ao ramo da construção civil no sentido de que os serventes
são os novos trabalhadores que ingressam no setor, podendo-se su
por, grosso modo, uma coincidência entre a juventude do operário
e sua condição de servente. Nas suas trajetórias individuais de en
velhecimento social vão subindo na hierarquia interna por meio da
aprendizagem de profissões dentro das obras. Este paralelismo entre
o “crescimento” internamente à atividade produtiva e o envelheci
mento social do indivíduo em todas as esferas da sua vida social
(constituição de um grupo doméstico e tudo que isto implica, por
exemplo) pode levar a confusões de interpretações entre alguns ope
rários, no sentido de que podem confundir um relativo bem estar de
uma pessoa mais velha, já na condição de profissional, encarregado
de turma, ou até mestre de obras, com o fato de ela ter família e não
com o fato de estar em uma posição da hierarquia da construção
civil que lhe dá um maior poder de barganha junto à administração
das construtoras, poder este definido na esfera da produção.
105
0 capital da esperança
Não é acaso que essa análise sobre a questão familiar privilegie suas
vinculações com a questão da habitação. O fio condutor da manu
tenção desta situação familiar dos trabalhadores parece ser um diá
logo entre a perspectiva dos operários e aquela dos interessados na
produção da grande obra, no caso Novacap e companhias particu
lares, que oscila entre dois temas básicos: a questão da habitação
para as famílias proletárias e sua implicação lógica que é a fixação
desse contingente no território da construção (com suas decorrên
cias, como o crescimento do volume de serviços urbanos, da criação
e oferta diferenciada de empregos, por exemplo). No entanto, o pano
de fundo que se choca com tudo isto é a temporariedade implícita
na forma de produção de um grande projeto que sempre possui seu
momento de desmobilização, geralmente marcado por sua inaugu
ração. Neste momento, a grande quantidade de empregos existentes
deixa de existir nas proporções em que repentinamente surgiu. Estes
trabalhadores, agora excedentes, não encontram mais empregos no
território da construção. Parte deles reflui para seus locais de origem,
parte destina-se a outros grandes projetos em execução, enquanto
outros se dirigem à procura de distintos mercados de trabalho que os
absorvam. Contudo, um segmento permanece na área constituindo
um “problema social”, pois que compreende um número considerável
de desempregados pressionando por empregos ou, no caso concreto
de Brasília, ocupando áreas rurais periféricas (veja, por exemplo, no
semanário Liga, de 23 de janeiro de 1963, p. 6, a matéria “Posseiros
de Taguatinga enfrentam Inic na lei e o enfrentarão na marra”. In:
JULIÃO, 1969). A não-fixação da massa de trabalhadores que par
ticipa de um grande projeto, característica sistêmica desta forma de
produção, se expressa e viabiliza, em grande medida, por meio da
repressão à presença de famílias, pois elas são um fator de sedenta-
rização enquanto atuam como unidades de reprodução da força de
trabalho e da vida social.
Em 57 foi que começou a vir muita gente. Cinquenta e sete a gente num podia
nem sair na rua (ri). [- Por quê?] Ah, os home pegava a gente (ri). É. Nessa
época tinha umas três mulhé aqui em Brasília, né? Então nós ajuntava as três
mulhé e ia de noite lá pra beira do córrego, de noite, lavar roupa, mas tinha que
os hôme ficar lá perto porque (ri) ... invadia, sabe? Às vezes eu saía assim na
porta da rua que tinha um restaurante, era bem na esquina, né, eu saía assim
na porta pra olhar assim, né, pegar um ar livre. Aí os hôme vinha agarrava no
braço da gente saía puxando pela rua abaixo (ri). Nós gritava aí os hôme saía
correndo pra acudir, eu vou te falar uma coisa (ri), ô lugar terrível.
Só peão. Aqui só morava peão. Quando vinha mulher aqui [no acampamento]
todo mundo ... era uma gritaiada maior do mundo, uma berradeira, era grito,
era assobia, isso e aquilo outro. As mulher num queria vir praqui não. Família
num queria vir praqui não. Num tinha muié, num tinha nada. Num tinha
coisa nenhuma de muié. Vinha umas nega véia lá de Luziânia, de Formosa
[cidades goianas próximas] naquele 28 [rótulo operário para o anexo do
Congresso Nacional], naquele ministério que tava fazendo. E fazia fila. Pega,
agarrava na mão d’um, um em cima e o outro esperando. Era no cerrado,
porque aquilo era tudo cerrado.
108
Capítulo 1 | Os trabalhadores
operário era homem sozinho. Então por isso houve a necessidade. Aí é que às
veze sempre dava umas confusãozinha porque mulher, jogo, cachaça, nunca
deixava de dar alguma confusão (comerciante da Cidade Livre).
Aqui em Brasília era muito difícil pra se trabalhar, era gente demais, você num
achava uma pessoa pra te ajudar, uma mulher, por exemplo, né? Porque as
mulher aí era contada. Quem tinha uma mulher aí era rei. Mulher era só mes
mo... era a minha, a mulher do Pereira, e a do velho lá do Guará, que chegou
na época, a Dona Teca, e... era poucas. E cada um tava cuidando do seu, né?
Então, olha, eu inventei a comprar capado em Luziânia pra vender pro SAPS
(restaurante coletivo) da Novacap... Eu matava três, quatro capados. Dez,
doze arrouba. E caçava um que queria a barrigada, pra limpar ela pra mode
de ficar com a barrigada, num achava. Jogava fora. Você veja bem.
- Por quê?
- Uai, porque ninguém... num tinha mulher. Num tinha ninguém que cui
dava disso. Num tinha tempo pra isso. A mulher que tinha aí era uma lava
deira. Cê vê, uma barrigada de um porco de doze arroubas ela dá meia lata
de banha, né, e ainda tem fussura esse negócio todo pro pessoal comer. Eu
pegava jogava fora. Tá vendo?
111
0 capital da esperança
ensinar. Fez muito profissional, Brasília teve esse lado também, foi um apren
dizado, foi uma escola de aprendizagem. Formou muita gente tecnicamente
assim na construção civil (pedreiro).
Aqui em Brasília, 95% do pessoal, aprenderam aqui mesmo, trabalhando
como servente, passaram a profissional... O problema é a pessoa ser inteli
gente (servente).
113
0 capital da esperança
encarregado, apontador fiscal. Pra fichar. Aí, o sujeito ganhava mais dinheiro
(capataz de arrebite).
115
0 capital da esperança
Onde tais redes [de parentes para dar apoio e assistência em momentos de
dificuldades] não estão presentes ou são relativamente fracas, é comum as
pessoas tentarem improvisar redes substitutas de cooperação recíproca. Um
instrumento ideológico poderoso para criar tais relações é o regionalismo. Na
neotérica sociedade de Brasília, o estado ou cidade de origem dos migrantes é
uma parte importante da identidade social (EPSTEIN, 1973, p. 135).
2 Para mim, a primeira "estratificação"da obra com a qual se defronta o trabalhador é a estru
tura objetiva determinada pela divisão do trabalho própria ao setor, que já está dada e na qual
se insere compulsoriamente o operário "antes mesmo que outras se evidenciem".
117
0 capital da esperança
No caso de Brasília, não parece nada aleatório o fato que uma das
primeiras festas populares surgidas no território da construção fosse
uma em que as pessoas se organizavam em torno dos seus estados
de origem, em barracas para consumir comidas e bebidas típicas e
relembrar nostalgicamente suas terras natais:
- Então nós estando aqui resolvemo fazer festa também pra divertir o nosso
povo e que tivesse alguma utilidade. Então nós começamo aqui a festa junina
com três barracas: a barraca de São Paulo, a barraca de Goiânia e a barraca
do Piauí.
119
0 capital da esperança
Quem ficou mais na Novacap foi casado que veio com família. Porque a
Novacap teria mais segurança do que qualquer outra firma.
121
0 capital da esperança
•»
o
Capítulo 1 | Os trabalhadores
í )
Com este quadro geral de características centrais da formação e da
composição do operariado que trabalhou na “obra do século”, di-
rijamo-nos a mais um ponto nuclear para o entendimento da expe
riência dos trabalhadores: o acampamento.
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123
Capítulo 2 | O acampamento
127
I
0 capital da esperança
A obrigatoriedade do acampamento, que em um primeiro momento
I
poder ser considerada como um investimento de capital fixo do tipo
I não-produtivo (LEITE LOPES, 1976, p. 110), no desenrolar dos tra
balhos demonstra sua grande funcionalidade para a manutenção das
características mais amplas necessárias à exploração inusitada que
I
ocorre internamente em um grande projeto. Relembremos que, no
caso da construção de Brasília, os capitalistas individuais, represen
a tados pelas diversas empreiteiras, não tiveram que computar em seus
gastos as despesas com a construção de acampamentos, uma vez que
foram assumidas pelo Estado via Novacap. O presidente desta com
I
panhia governamental ao explicar o relacionamento mantido com as
l companhias privadas afirmou:
Acresce ainda a vantagem, pelas condições peculiares das construções em
í Brasília, que os acampamentos, que representam percentagem apreciável no
I custo das obras, são de propriedade da Novacap, que os utiliza para outros
serviços sem necessidade de novo investimento para esse fim (DIÁRIO DE
I
BRASÍLIA, 1959, p. 274).
I
Leite Lopes e Machado da Silva (1979, p. 13-14), ao analisarem o
que designam situação de fábrica com vila operária, apontam para
l
uma situação de completa dependência do capital que se refere
I
não somente àquela que se estabelece entre o produtor direto e o seu patrão
1
ao nível do trabalho, mas também à que se estabelece, entre esses mesmos
I atores, ao nível da moradia; não somente, portanto, em relação à produção,
II
Acampamento da construção do Palácio da Alvorada (1958-1959)
130
Capítulo 2 | 0 acampamento
131
Croqui de um
acampamento da época
Casas profissionais com família
Alojamentos serventes sem família
□□□□□□ Alojamentos serventes sem família
Alojamentos profissionais sem família
□ □□□□□□ Administração
Açougue
5 O Cantina
Estacionamento
Cinema
Armazém
Farmácia
Casas de profissionais (encarregados)
Clube dos operários
Igreja
Gerador
Clube dos engenheiros
Médico e dentista
Alojamento para funcionários
Casas de engenheiros
Casas:
mestre-de-obra
administradores
encarregados
chefes
engenheiros
Reservatório d'água
Engenheiros
Casa do proprietário da firma
Lago Paranoa Entrada
Palácio Alvorada
Praça dos Três Poderes
Plano Pilo-
Capítulo 2 | O acampamento
133
0 capital da esperança
134
Capítulo 2 | 0 acampamento
135
0 capital da esperança
- Minha cama era numerada. A minha cama era 46. Eu chegava lá, botava
aqueles lençolzinho que eu trouxe lá do Norte, todo branquinho. Eu dormia
uma noite nessa, na outra noite eu olhava, eu tinha nojo. Sabe por quê? O per-
I cevejo já tinha me chupado tanto que o lençol tava todo vermelho de sangue.
I [...] Eu não dormia não - ficava a noite todinha com a luz acesa, olhando eles
em cima dos outros chupando os outros. [...] E eu olhando eles chupando os
outro. O cara morto de trabalhar, lavava só os pés, os braço, as mãos, o rosto.
I Coragem de tomar banho ele não tinha, porque era a água fria. [...] Mas o
I cansaço era tão grande que ele trabalhava, dava tudo dele, o dia e a noite, o
pedaço da noite. E o resto da noite o percevejo chupava o sangue dele.
jó
Cortes
Alojamentos de profissionais sem família
1 A categoria chefes pode incluir desde o chefe do acampamento (seu administrador prin
cipal) até funcionários graduados da administração do escritório da companhia. No setor de
casas de encarregados (que obviamente são profissionais), eventualmente podería ser encon
trado algum profissional que teve acesso ao local por meio da manipulação de relações pessoais
com indivíduos que lhe pudessem liberar o acesso a este espaço.
138
Capítulo 2 | 0 acampamento
Operários em fila no canteiro de obras da Superquadra Sul 105. Foto: Mário Fontenelle
Capítulo 2 | O acampamento
143
I
144
J
Capítulo 2 | O acampamento
Além disso, para ele, o “fato básico das instituições totais” é o “con
trole de muitas necessidades humanas pela organização burocrática
de grupos completos dc pessoas”, o que necessariamente implica vi
gilância, portanto, presença de indivíduos com funções de vigias, de
guardas. Certamente devido ao caráter das instituições que Goffman
estudou, algumas generalizações que estão implícitas em sua defini
ção podem ser questionáveis em análises de casos concretos. No to
cante ao acampamento de um grande projeto da construção civil há
que relativizar certos pontos. Primeiramente, nem todos os aspectos
da vida são realizadc ’ no mesmo local e sob uma única autoridade,
visto que a atividade produtiva dos trabalha lores é obviamente efe
tuada fora do acampamento e algumas atividades de lazer também.
No entanto, devido ao vínculo orgânico mantido entre acampamen
to e canteiro de obras e à grande ausência de tempc livre, o acampa
mento pode ser considerado como uma extensão do canteiro (por se
ajustar às determinações deste), ou pode ainda ser considerado como
uma forma agigantada dos alojamentos existentes em obras indivi
dualizadas e que aqui, sim, compartilham a mesma unidade espacial
da atividade produtiva. Deve-se notar também que a entrada e saída
145
0 capital da esperança
dos indivíduos, se bem controlada, não é formalmente impedida
como acontece no caso do internado.
Por outro lado, as famílias, ainda que em número bastante redu
zido e isoladas de suas redes de parentesco mais extensas, estão
presentes e sabemos que Goffman as considera incompatíveis com
as instituições totais (op. cit., p. 22). Entretanto, a presença de fa
mílias não incompatibiliza a caracterização da forma de moradia
acampamento como instituição total, uma vez que aí se encontram
em número reduzido, o que acaba gerando várias especificidades
para seu cotidiano nestes locais. Uma delas, e básica, refere-se a
restrições ao comportamento dos seus membros femininos, dada a
grande desproporção entre homens e mulheres nos acampamentos.
O depoimento que segue é um exemplo onde se combina o poder
do chefe do acampamento de dirimir conflitos pessoais dos mora
dores, com a questão da relação entre gêneros no acampamento,
que era bastante controlada pelo temor de que o grande número
de trabalhadores sem família pudesse redundar em ataques sexuais
às filhas ou esposas dos controladores da produção. E claro que a
próxima fala deve ser entendida também em um contexto onde a
representação sobre as mulheres está bastante permeada por no
ções de “honra”, “castidade” e “virgindade”:
Tinha confusão aqui diariamente. Carlão [chefe do acampamento] porque
era quente. Andava com uma camionete aí [...] quarquer coisa eles corria
na casa dele ali ... Tinha um sujeito que comeu uma moça perto daquele
armazém ali. Ele morava aqui. Aí o guarda com vergonha de falar aquilo
e programar... Um dia o guarda explicou um veio lá. O guarda chorando:
ô fia da puta [imita o guarda chorando], aqui perto de mim e tal e coisa.
A moça saiu aqui pra baixo chorando e o rapaz. Aí logo ele corre lá e chama
o Carlão. Carlão desceu com a camionete aqui pra baixo fedendo azeite. Aí
falou com o rapaz: como é seu sévergonha, você comeu, num comeu? Então
cê casa, viu, cê vai casar, aqui num é assim não, comeu cê tem que casar, uai.
Largar a moça à toa, num fica não. Cê vai casar ou num vai? - Não, eu caso.
Então tá certo. E ocê num foge não hem? Se fugir nós te busca. Carlão era o
quente (operário de manutenção de máquinas).
146
4
Capítulo 2 | O acampamento
149
Capítulo 3
O trabalho
Capítulo 3 | O trabalho
il
mínimos do Estado de São Paulo variavam de Cr$ 3,2 mil até Cr$
3,7 mil (A VOZ OPERÁRIA, ns 497, 13 dez. 1958).
Assim, o salário mínimo da área em que se realizava a construção
não representava um forte atrativo para trabalhadores de várias
partes do país. Desta forma, o atrativo econômico do território da
construção foi, para os trabalhadores, a possibilidade imediata de
agregar aos seus rendimentos um grande número de horas a serem
pagas, o que tornava as quantias recebidas no computo final salá
rios incomuns para a construção civil. Diz um juiz do trabalho com
uma grande experiência na região, antes mesmo da construção de
Brasília:
O ritmo imposto para a construção da cidade criou aqui um sistema de tra
i
balho inusitado no resto do país. E até desumano. Porque todo trabalho da
maioria dos operários da construção civil era feito na base da tarefa. Eles
ganhavam altíssimos salários. Houve operário pedreiro que ganhava o meu
salário de juiz do trabalho.
154
i
Capítulo 3 | 0 trabalho
O volume do trabalho
“Aqui foi tocado dia e noite, ninguém dormia. Ninguém, ninguém aqui” (ope
rário de manutenção de máquinas).
Mas, sôr, é a coisa mais bonita quem viu Brasília começar igual nós vimo,
era um trem bonito demais. O corre-corre. Olha, não dormia, num tinha., cê
podia acordar, cê deitava e dormia, acordava assim, era assim ó: [reproduz ru
mor de atividade intensa], aquele baruio. Direto. Porque num parava não. Era
o caminhão corria a noite todinha e peão na rua de toda maneira, um saindo
pro serviço, o outro chegando, o outro chegando num sei daonde. O outro
saindo. Mas era um corre-corre danado e o pessoal trabaiando. Trabaiava
155
II 0 capital da esperança
noite e dia. Num tinha essa hora que você abria o ouvido assim você num
escutava o martelo bater, o caminhão correr, o trator zoar (carpinteiro).
Nessa construção de bloco aí era direto. Aí num tinha dia e noite, era direto.
A gente deitava tava escutando martelo a noite inteirinha. Martelo, serro
te, escutando, ouvindo o serrote serrar a noite inteira, o martelo e tudo [ri]
(servente).
Qualquer hora da noite que você chegava em Brasília a impressão que você
tinha é que era de dia, porque o barulho de martelo trabalhando - pá, pá,
pá. Era a mesma coisa tá de dia ou de noite que tinha a turma, as turma que
virava. Tinha as turma da noite e além disso tinha as turma que tava fazendo
virada. Então era, era um suor até divirtido, pra falar você a verdade, era um
troço que eu nunca vi na minha vida nem sei se vou ver, um ritmo de trabalho
daquele tipo. Não é isso? Era até bonito (pedreiro).
156
F
Superquadras Sul 108 e 208, com a Igrejinha Nossa Senhora de Fátima (1958-1960)
O povo aqui num vinha do trabaio. O povo aqui trabaiava um dia, uma noite,
uma noite ia até... Era controlado, parava dez horas da noite. Mas quem parava
dez horas da noite era os chefe. Operário mesmo num parava. Principalmente
picareteiro. Picareteiro e pazeiro às vez já tinha trabaiado aquelas hora toda
aí vin ha um tal, os fiscal e falava: não, vamo trabaiá um pouco, vamo trabaiá
mais um pouco e ganhar tantas hora. Aí os coitado metia o peito a trabaiá,
continuando. Tomando café e aqueles comprimido perventivo, né, pra não
dormir.
157
0 capital da esperança
A contrapartida, nos discursos dos operários, da totalização re
alizada pela atividade produtiva era a abundância de dinheiro.
Quando se referiam ao montante de dinheiro que circulava no ter
ritório, em geral, afirmavam enfaticamente que dinheiro era “o que
não faltava e corria demais”:
Quando chegou aqui em Brasília, dinheiro era panhado com gancho. Num
é? Então nós criado lá em Goiânia que pro mode de rumar três conto num
arrumava, né, chegou aqui e viu aquela quantidade de gente, de dinheiro cor
rendo. E tinha muita facilidade de dinheiro, era aquele corre-corre medonho.
Mas rapaz! Corria dinheiro num era brincadeira não. Ocê vê, mulhé tava bo
tando dinheiro no banco. Mulhé [sua esposa] que nunca tinha visto dinheiro
(carpinteiro).
Rapaz, dinheiro aqui eu vou te falar procê: corria, dinheiro [enfático]. Era um
ouro. Ó, eu vou te falar pra você: eu nunca vi um movimento na minha vida
como eu vi aqui nesse, nesse Bandeirante (carpinteiro).
158
Capítulo 3 | 0 trabalho
A vida era chegar e dormir. Chegava, vinha o carro deixar pro armoço, ar-
moçava, iam s’embora. Quando era de tarde vinham, jantavam, tomava um
banho, jantava ia dormir. É. Não tinha esse negócio de boa vida não. Aqui
num tinha dia de folga não. Nem no domingo aqui num parava não. Aqui
parava no domingo quem queria. Mas quem vinha a trabalho num parava
porque domingo era dois dias. E feriado era dois dias. Quem ia parar? Quem
veio ganhar dinheiro num tinha isso não (servente).
Então tinha que trabaiá das seis do dia, o dia, a noite, e trabaiava no outro dia
talvez, e até dez horas da outra noite. E aí eu vinha dormir. Dormia das dez
até seis da manhã e pegava novamente. Domingo eu parava, dia de domingo
aqui, duas horas da tarde. Feriado ninguém tinha. Feriado isso aí num tinha
domingo, num tinha feriado, era direto. Isso num tinha nada disso. (...) Mas
naquele tempo da construção de Brasília ninguém tirava férias não. Ninguém
dava férias (...) Vendia as férias (operário de manutenção de máquinas).
161
0 capital da esperança
162
Capítulo 3 | O trabalho
Acidente sempre constantemente tava tendo. Sempre foi fatal. Naquela época
o trabalho era muito perigoso. Acidente de trabalho o senhor sabe que até
hoje é muito difícil de evitar. Principalmente naquela época que todo mundo
trabalhava apressado, na correria, então acontecia muito acidente. Teve vários
acidentes de morte. A gente sabia que existia muito acidente, mas a respeito de
morte a gente ouvia falar muito, mas num dava tempo de saber se era verdade
mesmo. Tinha tanto acidente assim pela correria, por muita pressa e era muita
gente junta. E ainda tinha muitos coitado que nem sabia o que tava fazendo.
Tava chegando do norte num sabia e aí vinha aquele problema de acidente.
O sujeito era inexperiente e mais com a correria, a maneira de fazer a
capital.
- Que é isso?
- Abajur é uma cerca que você faz por fora, faz uma cerca pra poder não cair
nada, né. Pra cair num tablado, né isso? E ali não tinha nada. Então era sol-
tinho. Inclusive o teste que fazia ali era o sujeito andar em cima de uma viga
de 15 centimetrozinho, andar nela com uns dez metros de altura. O sujeito
passasse nela, passava no teste. Podia ser ele analfabeto. Aí ele ia trabalhar na
montagem. Pagavam três vezes mais do que um pedreiro ganhava. Mas tam
bém o sujeito tava correndo o risco, qualquer hora... O caboclo ali, por exem
plo arribitando uns prego, uns parafuso, uns arribite grosso, com a marreta,
ele batendo lá em cima. Desequilibrou pronto. Caía lá embaixo. Já jogava no
caminhão, levava lá pro necrotério lá (pedreiro).
-Eu era fazedor de caixão na Novacap. Tinha dia que morria 20, 30. Às veze
eu tava dormindo e chegava uma camionete: vambora pra carpintaria. E o
pau quebrava lá. Era eu que mexia com a máquina, então morria lá uns cara
na construção e então me chamavam pra fazer caixão. Então eu ia. Não cus
tava. Era quase todo dia que eu fazia caixão. Eu já fazia e empilhava pra não
me chatearem. Ali no 28, despencou um elevador que foi nove de uma vez.
E naquela época o cemitério era em Luziânia (carpinteiro).
- Eu tenho um primo que até hoje tá aleijado que caiu do 28, com seis. Ele
conseguiu escapar e os outros seis morreram. Ele ficou não sei quantos dias
em coma. E a mulher dele lá no Nordeste ésperando ele mandar dinheiro e
morrendo de fome. A muié do engenheiro, muito boa, mandou um enxoval
completo pra ela. Ele aposentou. Foi se tratar no Rio. E quando voltou pra cá
todo aleijado foi aposentado (esposa de comerciante).
167
0 capital da esperança
Esses home vieram morto de lá, sem condições. Já deram tudo que tinha que
dar lá no Norte, chega aqui acaba de morrer. Um cara desse chega, eu es-
trompo ele aqui ele morre, aí a mulher dele fica esperando que o meu marido
mande dinheiro lá. Cadê? Manda! Ele já morreu. Eu matei ele!
Dos rapaz que guentou aqui, igual eu, Virgulino e o tal Caduca, num saiu um
prestando. O Caduca é doente. E atrapaiado. Tá no INPS. O tal Virgulino, um
pretinho, que é dos três que guentou o serviço na mão mesmo segura, aqui, adoe
ceu, coitadinho, e foi pro Piauí. Até hoje eu lembro disso o coração dói. Porque é
de se doer. Seu companheiro firme ali e ser desvalido. [...] Mas sofria. Sofria que
todo mundo saiu doente. Carpinteiro ali dentro daquele túnel (da Rodoviária), ali
foi chuva, rapaz, que tava chovendo foi a noite toda, e caindo água, o sujeito com
aquelas capa de lona ali batendo pranchão, pra fazer aquele túnel da rodoviária
(operário de manutenção de máquinas).
Mas naquela época o sujeito se rebentava. Tinha pouca gente e o contrato cer
to pra nova capital tinha que ser real, não podia fugir da carta. Tinha que ser,
tinha que inaugurar de qualquer maneira, tinha que inaugurar de qualquer
maneira, tinha que ser inaugurado Brasília. E então todo mundo trabalhava
(capataz de arrebite).
Tinha gente que dormia com a tábua nas costa pra que não fosse pego no
flagra, encostava numa coluna... você olhava... Eu cansei da minha turma,
169
0 capital da esperança
passar por ele, velhinho, tinha um velhinho da Paraíba que trabalhava co
migo, de Monteiro - não tem um cidade de Monteiro? - 64 anos de idade,
dormindo com uma tábua nas costa. Eu chorei! De desgosto (carpinteiro).
170
Capítulo 3 | O trabalho
171
0 capital da esperança
Ao mesmo tempo, a definição de cálculo econômico que José Sérgio
Leite Lopes dá é bastante útil:
As operações mentais dos operários, ligadas à sua prática econômica cotidia
na, pelas quais eles se orientam para tomar atitudes referentes à inter-relação
entre o tempo de trabalho e o esforço despendido durante esse tempo, por um
lado, e, por outro, a sua renda e sua subsistência (que se constituem do salário
do operário, mas também das “concessões não monetárias” de que usufruem
ou podem vir a usufruir) (LEITE LOPES, 1976, p. 75).
172
Capítulo 3 | 0 trabalho
173
0 capital da esperança
- Todo mundo que trabalhava aqui naquela época tinha carteira assinada?
- Pela firma tinha carteira assinada. Agora, pelos empleiteiros, que chama
gato, não tinha carteira assinada. Por exemplo: uma firma que nem a Oval,
ela tinha o empleiteiro hidráulico, parte de água, né? Tinha empleiteiro da
parte elétrica, esses aí, esses empleiteiros, arrumava operário sem fichar...
Tinha um fulano de tal S... M..., esse foi o pior carrasco pra humanidade aqui
de Brasília. Ele ficou três semana sem pagar os operário - pagava por semana,
não é?... O começo de Brasília era a coisa mais triste do mundo, porque hoje se
tem um gato trabalha com 50 home, ele já tá com medo, né? E naquela época,
trabalhava com mil home sem medo (servente).
174
Capítulo 3 | O trabalho
delatação por 500 horas de serviço, né? Eu trabalhava com 36 home. Pegava
uma delatação de bloco por 564 horas. Eu tirava em 225 horas, 230 hora.
- E o pessoal trabalhava mais?
- Trabalhava mais porque aí ele mandava já pegar outra tarefa para eles au
mentar, né? Então ali eles trabalhava mais, trabalhava na hora que quer, por
que ninguém manda neles. Isso é o que o operário gosta: é não receber grito,
né? Não tem ninguém gritando: faça isso, deixe isso, faz aquilo. Cê faz um
operário ficar louquinho, é você começar a mandar ele fazer uma coisa: deixa
isso aqui, faz aquilo. Então os operário que eu trabalhava com eles fazia isso:
terminava antes do prazo, mandava eu pegar outra, e o dinheiro é mais. Eles
mesmo exigia: pede tarefa que é melhor.
- Quem?
- Os operário. Os carpinteiro, os servente... porque aí é só você que manda.
Não tem mais gente mandando em nós, né?
- Aí o sr. pedia pra quem?
- Eu pedia pro engenheiro, pra esse meu mestre, esse que me passou a encar
regado, ele me dava tarefa. [...] Eu ganhava da firma pra mandar neles, né?
Então, era interessante eles fazer isso, né? Eles chegava... fulano, dividia tan
tos, carpinteiro ganha tanto, servente ganha tanto, tem tantas horas. Dividia,
entre eles tudinho, o carpinteiro ganhando mais, o servente menos, né? Mas
um servente ganhava naquela época... tinha servente que o salário de nove
conto e sessenta ele tirava oito e vinte por semana, por causa de tarefa, né?
Porque eles fazia mesmo, eles trabalhava com amor mesmo, com prazer (car
pinteiro, encarregado de turma).
176
Capítulo 3 | O trabalho
A jornada de trabalho
Vemos que o universo produtivo no qual o trabalhador se inseria era
dominado por formas de exploração da força de trabalho expressas
na grande presença de horas extras, viradas, tarefas e empreitadas,
o que de fato tornava o salário pago ao trabalhador relativamente
maior. A combinação dos interesses dos empreiteiros por um ritmo
acentuado de trabalho com os interesses dos operários por maiores
salários foi o principal fator a possibilitar a instauração do “ritmo
Brasília” e o domínio absoluto do universo do trabalho no período
deste estudo.
Não existe ponto mais privilegiado para percebermos esta conjunção
do que a própria representação feita sóbre a jornada de trabalho de
então. De imediato, nas entrevistas, chama a atenção o número de
horas trabalhadas diariamente que, em geral, oscila entre um míni
mo de 12 e um máximo de 22 horas. A exploração da força de traba
lho parece variar entre as diferentes companhias. Não obstante, uma
vez que havia para o operário a possibilidade de se engajar várias
vezes em viradas ou tarefas (afora a presença constante das horas
extras) era quase obrigatória a adesão a jornadas muito extensas,
como sugere o depoimento deste servente:
177
0 capital da esperança
- Quem queria descansar. É quem queria descansar. Num tinha esse negócio
não. É quem queria descansar. Eu vi muito cabra doido que trabaiou os seis
dias da semana.
- Seis dias? Direto?
- Seis dias. Trabaiava. Porque trabaiava três noites e trabaiava três dias. Eu vi
muito cabra doido que trabaiou os seis dia da semana.
Horas de não-trabalho* 06 02 06 02 06 00 10 32
(* Inclui períodos usados para se locomover para o trabalho, alimentar, banhar, dormir e
cinco horas livres no domingo.)
179
0 capital da esperança
180
Capítulo 3 | 0 trabalho
183
0 capital da esperança
- Por que tem gente que diz que naquela época não tinha esse negócio de dife
rença não, que era todo mundo a mesma coisa?
185
0 Presidente da República reforçava a "democracia de fronteira"
- Não, o sujeito não distinguia porque ali era o seguinte, não tinha o clube
para dizer... Não tinha o soçaite, também não tinha, né. Então lá os enge
nheiro morava no acampamento deles, não é isso [refere-se aqui à parte do
acampamento destinada aos engenheiros], Você via o engenheiro tava do mes
mo jeito que o operário, vestido de calça esporte, de bota e tudo, né. Não via
assim... [bem vestido].
i
Todos, de alguma maneira, estavam engajados na obra ou a ela rela
cionados. Segmentos ociosos, dependentes diretamente da explora
ção da força de trabalho, não existiam em proporções comparáveis
, às de uma situação urbana estável:
Todo mundo trabalhava. Não era só... tinha o engenheiro, não pense que o
i engenheiro tinha boa vida não. Ele também dava duro, ele também tinha que
i tá lá na obra. Era, todo mundo tava lá. Agora tinha outros que tinha outras
i vantagem, vantagem de emprego, o elemento de escritório. Mas o próprio
engenheiro mesmo se rebentava também (capataz de arrebite).
J 186
J
Capítulo 3 | 0 trabalho
187
0 formal e o informal conviviam no mesmo espaço
188
Capítulo 3 | O trabalho
Visitais institucionais
No território da construção, o pano de fundo da ideologia da grande
obra onde estavam engajados os “pioneiros” vinha também acompa
nhado por um tipo de atuação concreta realizada com contornos que
nitidamente apontam para a tentativa de aumentar o nível de explo
ração da força de trabalho. Neste plano incluíam-se as quase mitoló-
Ígicas visitas que fazia Juscelino Kubitschek às obras e à Cidade Livre
(A GAZETA, São Paulo, 7 maio 1958):
O Presidente, com seu sorriso largo, cumprimenta a todos sem tomar conhe
cimento dessas frases que ouve em cada obra, cinco a seis vezes. Todos lhes
querem muito bem e ele, ali, não é o Presidente da República mas o chefe da
Era o tipo da pessoa, tão querida que nem Juscelino Kubitschek, né. Na inau
guração daqueles bloco de apartamento, ele desceu lá, no dia do churrasco,
comeu churrasco, junto com a gente, abraçou todo mundo... pediu pra nin
guém lavar as mão pra ir cumprimentar ele, né? (carpinteiro).
Juscelino andava na obra, ele mais uns cinco assessores, só. Ele não anda
va acompanhado de batedor, essa coisa toda, polícia. Meia-noite, isso eu vi,
ele chegar ali, ele mais dois carros, três carros, pessoas nos outros carros ele
apeava fazia a rodinha lá com os mestres-de-obra e tudo.
- E o pessoal gostava dele?
- Gostava. Se um peão quisesse conversar com ele, ele conversava com o peão
lá na obra. Eu vi ele conversar muito com peão lá na obra. Então era um ho
mem desse tipo (pedreiro).
Durante dois anos, fiz 225 viagens desse gênero. Sentia-me bem, vivendo
a emoção de assistir ao nascimento de uma metrópole, só tornada possível
pelo espírito de determinação que me é característico. [...] Cada obra osten
tava uma tabuleta, com os dizeres: “Iniciada no dia tal. Será concluída no
dial tal”. Conversava com os operários, lembrando-lhes a necessidade de
que a cidade ficasse pronta no prazo pré-fixado. A advertência era positiva,
mas cordial, e quase sempre levada a efeito através desse diálogo: “Como é,
meu velho, vai me dar essa obra na data marcada?” Um largo sorriso ilu
minava o rosto do operário. E a resposta vinha pronta, como se já estivesse
192
Capítulo 3 | 0 trabalho
desde muito na ponta da língua: “É claro, presidente. Pra que a gente ‘tá
dando esse duro’?” Batia-lhe nas costas e fazia o teste, que era uma doutri
nação de extraordinária eficiência: “Então dá nova olhadela na tabuleta”.
O candango olhava desconfiado e eu contemplava o seu olhar, para verificar
se se dirigia, de fato, para aquele tosco quadrado de madeira. Em seguida,
encerrava o teste, pedindo-lhe que repetisse a data, para ver se ela estava de
corada. E vinha a resposta: “15 de setembro de 1957!” Sorria, batendo-lhe
de novo nas costas: “Isso, meu velho. Nesse dia, virei aqui para lhe dar um
abraço” (KUBITSCHEK, 1975, p. 81).
Um dia um peão foi falar com Juscelino: Juscelino o sr. podia dar um direito
a nós assim, assim, assado. Ah, [responde Juscelino] operário já tem muita lei,
vou dar lei nada. E no princípio, tava no duro aí das correria aí. Até peão que
tava dormindo lá no cabo da pá, aí. Juscelino pra tapear operário aí, ainda
pegou uma pá lá um dia, ajudando. Viu que o peão tava dormindo no cabo
da pá, empurrou terra dentro da valeta ainda. Ele pegou o cabo da pá e foi
empurrar. Procês verem o que é o carrancismo na mão dele. Queria ser muito
bom pra operário, mas debaixo do teto tava chicoteando (operário de manu
tenção de máquinas).
E a gente trabalhava de virar noite, virar. Isso era comum e normal lá. Ainda
mais sempre acontecia isso quando Juscelino tava pra chegar. Parece que os
mestres-de-obra ia mostrar serviço, então aí apertava a peãozada. Juscelino
marcava, Juscelino vai chegar tal dia. Então a turma já sabia, né: vamo traba
lhar até mais tarde hoje. O dia que Juscelino ia visitar a obra, a gente ficava
até meia noite. Dia de ele ir lá na obra, era dia de nego batalhar mais. [...] Às
vez Juscelino ia lá então eles resolvia fazer um serviço e dar por acabado o
serviço lá. Então acabava aquilo de qualquer jeito assim e tal só pro presidente
ver. Depois o presidente ia embora, desmanchava, a gente demolia tudo pra
fazer de outro jeito, né (pedreiro).
Data da inauguração
O denominador comum que costura diversos artifícios utilizados
para aumentar a exploração da força de trabalho no território é o
prazo da inauguração da obra como um todo (um pouco menos de
quatro anos para construir a cidade). Para o cumprimento dos prazos
parcelares, Kubitschek já nos deu informações sobre o significado de
suas visitas. E fato conhecido que o cumprimento do prazo de entre
ga acaba intensificando a exploração dos trabalhadores (BICALHO,
1978, p. 109). Nestes casos, o prazo a cumprir vincula-se ao contra
to de entrega de uma obra ou de várias obras específicas. Na constru
ção de Brasília, o prazo vinculava-se ao projeto de entrega da cidade,
pronta para operar em 21 de abril de 1960. O estabelecimento desta
data foi uma decisão política em um período governamental em que
se pretendia fazer o país avançar “50 anos em cinco”:
195
0 capital da esperança
- Isto porque, pela pressa, pela imposição do curto prazo contratual para a
entrega da obra, as empresas davam tudo por tarefa. E o operário chegava a
trabalhar 16, 18 horas por dia (juiz do trabalho).
Com essas hora, o Juscelino com a Redonda aí, firma que num tava güentan-
do tocar o serviço, a Redonda ia lá e tomava. Porque tinha que tocar e entre
gar pra negorar [inaugurar]. A firma não güentava, então entrega. Entrega.
A Redonda toca (operário de manutenção de máquinas).
Ambigüidade jurídica
Como sabemos, para a construção de um grande projeto cria-se
uma grande companhia estatal. Na prática, esta companhia passa a
atuar como se fora o Estado no território, tal seu poder ante o po
der local dos municípios, relativamente isolados, em que geralmente
ocorrem essas construções. Na Introdução, vimos como a ambigüi
dade jurídica (rótulo que utilizamos para designar esta situação onde
a responsabilidade do Estado para com os habitantes na área, de
fato, é indefinida) teve várias implicações para os candangos. No
entanto, em termos da compreensão da sua eficácia como uma forma
cuja presença legitima ou aumenta a exploração da força de traba
lho, o que mais chama a atenção é que, sendo uma obra federal, o
Estado tenha se deslocado fortemente para uma área isolada, trazen
do consigo um poderoso órgão ligado ao Executivo, mas, em última
instância e de fato, tenha deixado ausentes os órgãos cujas funções
seriam mediar o conflito entre capital e trabalho (tanto do Executivo,
Ministério do Trabalho; quanto do Judiciário, Justiça do Trabalho).
O juiz do trabalho entrevistado, com sua larga experiência na região,
recoloca aspectos centrais da situação jurídica e aponta para a inten-
cionalidade desta ausência seletiva do Estado:
- O sr. acha que há omissão do Estado, do governo federal, dentro de uma
região para a qual havia sido discutido anteriormente se teria estatuto de ter
ritório nacional?
- Você tá falando em omissão. Não. Não foi propriamente omissão. Foi talvez
uma deliberação de manter esse estado anômalo. Por exemplo, a lei não pede
que alguém trabalhe mais de dez horas por dia, eles trabalhavam 16 e 18. Só
isso é o bastante. E o governo queria que isso acontecesse.
198
Capítulo 3 | O trabalho
199
0 capital da esperança
- E a Justiça do Trabalho?
- Estava em Goiânia, Delegacia do Trabalho e Justiça do Trabalho. Mas pou
co podia fazer pelo operário nesse tempo. Porque a influência do administra
tivo, do poder político era grande. O objetivo era construir Brasília e aquilo
podia se tornar um empecilho. Qualquer coisa que o operário tentasse reivin
dicar era prejudicial às obras. Assim encaravam as empresas. Num era todas
as empresas, mas 90% assim, né (apontador).
Capítulo 3 | 0 trabalho
201
0 capital da esperança
tendo o salário por objeto. Eis o que informam operários que tive
ram experiência sindical na época:
202
Capítulo 3 | O trabalho
203
0 capital da esperança
204
Capítulo 3 | 0 trabalho
205
0 capital da esperança
movimento reivindicativo parece ter selado, para os trabalhadores
da construção civil, o término da vigência da ambigüidade jurídica
tal qual acontecia antes de abril de 1960.
206
Capítulo 3 | O trabalho
- Não, não. Apenas entregava. Eles não lutavam com ninguém. Quando a
polícia chegavam, falava: é aquele, aquele, aqueles conhecidos (pedreiro).
207
Capítulo 4 | Os conflitos
“Duas coisas que não faltaram na construção de Brasília: foi sangue e menti
ra” (depoimento de um operário, JORNAL DE BRASÍLIA, 20 e 21 abr.
1980).
Lazer
“A diversão daqui é beber cachaça. Era beber cachaça e depois ficar brabo”
(servente).
211
0 capital da esperança
Brasília era um troço, um troço espetacular. Você chegava por exemplo, fim
do mês ali pro dia dez, dia dez era dia do pagamento ... sempre eles num fa
ziam pagamento no mesmo dia. Quando uma pagava hoje, a outra pagava daí
a dois, três dias.
No fim de semana dependia muito do espírito da pessoa. Uns saíam por essas
cidades passeando, outros arrumando o quarto, passando a roupa, escreven
do pros familiares. Aí dependia muito do espírito da pessoa. Diversão aqui
era muito mínima. Diversão aqui era aquela zona no Núcleo Bandeirante ou
então um cineminha. Aqui o cara ou tinha que fazer isso ou tinha que tá tra
balhando. Às veze existia um timinho de pelada (operador de máquina).
Olha, ele não tinha pra onde ir. Então ele saía, aquela turma de cinco, seis pra
não ir menos, com medo, eles iam pra Vila Planalto ou ia pra Cidade Livre.
Mas, chegava lá, não encontrava nada que ele queria procurar, ele comprava
às vez uma calça, um calçado... e encostava logo direto num bar. A diversão
daqui sempre foi o boteco. Não tinha um lugar onde você fosse pescar, não
tinha uma bica pra você tomar um banho, uma cachoeira... Não tinha... você
parava assim, pensava, pra onde é que eu vou meu Deus? Nós vamo ali em tal
parte. Vamo tomar uma cerveja. Aí saía, era oito amigo, seis, né? Cada um
pagava duas, quando saía dali já tinha tomado praticamente umas dezesseis
garrafas de cerveja. Aí depois, não tinha ninguém bebo, tomava cada um uma
cachaça em cima. V’ambora. Aí saía (servente).
213
0 cinema era uma das poucas opções de lazer. Cidade Livre (setembro de 1959)
214
Capítulo 4 | Os conflitos
- Nada, podia beber, mas não esculhambar. Isso aqui tinha orde. Era difícil
haver uma briga. Mas aqui tinha um quartel bem ali de junto do Tamboril pra
frente ali. Ali tinha um quartel. Que eu trabalhava pertinho dele ouvia era os
berro de noite. Que era os nego na chibata (servente).
Ele [um amigo] tava lá no bar do Maracangaia tomando umas pinga lá. E a
polícia quando via o sujeito bebendo num lugar, a própria polícia, essa polícia
pegada a laço aí, insurtava o cara. Ela merma caçava com que fazer encrenca
com o sujeito, né? E ele era um cara forte, um sujeito disposto, né, e tinha um
poliça de cara chupadinha assim ó ... um branquinho, e era o mais invocado
que tinha aí dentro do Núcleo Bandeirante que ficava ali, né. Invocou com ele,
ele pegou o soldadinho e bateu. E ele tinha um colega, e aí veio mais um poliça
pra ajudar a bater nele, no tar do Severino, chamava Severino, o baiano, né?
Mas o baiano não era brincadeira não. Aí ele pegou esse sordadinho e deu
uma pisa. Deu um bocado de tapa nele e veio outro sordado e o companheiro
dele, do Severino, juntaram os dois no poliça e pegaram o poliça e deram
bastante no poliça. Aí eles correram lá na Novacap e chamaram o capitão pra
mode de vir com a poliça pra prender eles, né?
- Dona Maria: Não, mas você pode crer que as polícia daqui, quando aconte
cia isso era igualzinho quando tinha um Judas na rua, sabe? Juntava a polícia
todinha pra bater. Então nós forno lá na rua, pegamo o colega nosso truxemo
pra casa e trancamo dentro de um quarto. A polícia quebrou a janela e entrou
pra dentro, sabe? Entrou pra dentro e tirou o rapaz e bateu demais nele, sabe?
Judiaram demais das pessoas. Então aqui era... aqui não tinha lei não. Aqui
era... só o que tinha era covardia terrível. Poliça mais covarde que teve, que
existe no mundo foi essa que começou aqui (carpinteiro e esposa).
216
Q
Capítulo 4 | Os conflitos
D
Alimentação
Restaurante do SAPS i
0 capital da esperança
O SAPS também é uma coisa que interessa contar, porque aquilo foi a maior
mãe do povo, né. Era pequenininho, um galpão pequeno, aqueles bandejão,
a refeição era pequenininha, quer dizer era as bandeja grande, e a refeição o
preço que era quase nada, era uma mixaria que a gente pagava. Não sei nem
explicar o tanto que a gente pagava de pouco que era. Depois a gente adquiria
aqueles talãozinho da própria Novacap que pagava aquela refeição e descon
tava no fim do mês (servente).
O primeiro SAPS era pequeno. A gente tinha que comprar uma ficha no es
critório. Por mês. Almoçava com uma ficha e dava outra na janta. Era em
bandeja. Aí tinha briga na entrada era aquela confusão danada. Aí entrou um
tal de Dr. ... e acabou com esse SAPS velho. Fez um SAPS automático. Panela
de esmalte. Panela de feijão, de arroz. Descascador de batata. Na inauguração
do SAPS Juscelino foi lá inaugurar o SAPS novo. Descia por um lado, subia
pelo outro. Aquilo tudo na maior harmonia. Comia tanta gente. Tinha dia
que a fila ia lá no Bandeirante. Tinha briga na fila. No SAPS o doutor dizia: o
que não se comportar aqui eu mando prender. A comida era boa: batatinha,
carne, arroz, feijão, macarrão, carne de porco. Ainda podia repetir. Agora no
SAPS velho era duro. Saía muita briga porque era apertado e os nego tinha
horário, aí começava a briga. Vinha a GEB e acabava (carpinteiro).
Tomava muito era café, né. Café com... aqueles donos de boteco, eu punha
água pra fora pros donos de boteco e eles me dava café com pedaço de bolo...
eles me dava de graça. Porque num tinha água praquele povo de boteco ali por
fora, que eles morava todo naqueles barraquinho. Eu botava a mangueira por
fora ali pra eles encher água pra eles, né. Aí eu gritava um café lá, eles ia lá e
pronto me arrumava café e um bolo e num cobrava não. Eu tinha cooperação,
eu sei conviver com o povo, né? [...] Aí é aonde eu alimentava um pouco era
com bolo. Era desse jeito (operário de manutenção de máquinas).
219
0 capital da esperança
220
Talvez o exemplo extremo de total desrespeito à alimentação dos
operários tenha sido dado por este lubrificador de máquinas:
Até a porca morta que pariu aí eles mataram e puseram o peão pra comer. Os
leitão foi pra sabão, né. Carne, do jeito que caía no chão eles jogava dentro do
tacho para cozinhar.
221
0 capital da esperança
Muitas vezes eu não ia almoçar não. De manhã cedo quando saía, pegava
três pães enchia de manteiga, pegava marmelada e na hora do almoço comia.
Pra vir almoçar tinha que enfrentar a poeira dos caminhões, que a gente nem
via os caminhões, só via a nuvem de poeira. Depois quando chegava, tinha
uma fila enorme de peão para entrar na cantina e debaixo daquele sol forte.
Às vezes dava confusão, briga ... Aí eu preferia levar pão pra comer na obra e
ficar direto (carpinteiro).
Quase num morreu dois aí, pra pegar cantina, porque com pressa de comi
da chegava aquela tourada danada, e esses dois pularam de um caminhão e
outro de um ônibus. Caíram e quase morreram (operário de manutenção de
máquinas).
222
Cantina no canteiro da Superquadra Sul 108 (maio de 1958). Foto: Mário Fontenelle
223
0 capital da esperança
cartão lá. Fora os que fazia virada que voltava depois do jantar. Aí de noite
ia café lá pra eles. Café com pão e manteiga. O peão tirava quanto pão ele
queria. Ia um mundo de pão, né. Aqueles latão. Enchia os caneco. Parava a
obra e enchia todo mundo pra tomar café em redor do caminhão. Ia bóia pra
todo canto onde o povo tivesse trabalhando. Porque os que não podia vir aí
ia a bóia. Na cantina a turma da noite ficava lavando a cantina que era muito
grande. Descascando verdura. Cozinhando feijão pro outro dia. Ficava tra-
baiando descascando batata, xuxu, mandioca, o que tivesse.
Levava aqueles pão com manteiga, assim margarina, o sujeito pro resto enjoou
daquilo, jogava fora. Copo, tinha peão marvado aí, como esmartado do tipo
desses aí, ó, jogava pra lá. Eu juntei foi rosário de copo a três por dois porque
os peão enjoou daquele café. Aquele café parecia que tinha uma coisa dentro
dele que o peão enjoou. Então jogava aqueles pão pra lá com copo e tudo.
- Tinha gosto diferente. Café meio ralo, assim gosto forte, né. E o peão bibia
aquilo arritava o corpo [faz um movimento imitando uma convulsão]. Aquilo
tinha uma química naquilo.
224
Capítulo 4 | Os conflitos
225
0 capital da esperança
Se essas revoltas, por uma parte, são limitadas e não têm uma estrutura or-
ganizatória prévia, por outra constituem uma deslegitimação das autoridades
estabelecidas e têm um significado e efeitos políticos nítidos: a escolha dos
seus alvos não é arbitrária; as revoltas respondem a anseios coletivos, dados
por condições estruturais semelhantes - a condição de força de trabalho dos
usuários - e, finalmente, exigem uma definição por parte do próprio Estado
(MOISÉS; MARTINEZ-ALIER, 1977, p. 30).
227
0 capital da esperança
As formas utilizadas para tanto variaram bastante, indo desde nego
ciações diretas com os operários em situação, até a violência policial
tout court.
A atuação da Guarda Especial de Brasília era marcada por sua ca
racterística de polícia de uma companhia imediatamente interessada
no andamento das obras da capital e, por conseguinte, no controle
do operariado. No tocante aos confrontos vinculados à alimentação,
a atuação da GEB chegou a um limite extremo de violência na noite
de 8 de fevereiro de 1959, durante um carnaval. Chamada a intervir
em uma rebelião de operários no acampamento de uma construto
ra, seus policiais espancaram vários trabalhadores e mataram pelo
menos um.
Existem diversas versões desse acontecimento que a memória po
pular registrou de tal forma que quando eu indagava qual a pior
coisa que tinha acontecido na época da construção, na maioria
das vezes me relatavam os sangrentos acontecimentos da noite de
8 de fevereiro de 1959. Deste modo, sempre que formulava essa
pergunta esperava tal resposta. Foi quase impossível recuperar
com absoluta clareza o que se passou naquela noite, sobretudo
porque os detalhes do confronto foram encobertos pelas autorida
des que deram versões que, de maneira geral, contradiziam fron
talmente as informações não-oficiais. Na literatura sobre Brasília,
230
Capítulo 4 | Os conflitos
[...] Em Brasília, segundo o despacho que nos chega daquela cidade, houve um
distúrbio entre a polícia e operários, tendo morrido uma pessoa, três outras
ficado feridos (sic).
Pois bem: correu nesta cidade a notícia de que haviam sido massacrados nada
menos de quarenta pessoas! Depois, esse número baixou para treze. Outra no
tícia, já nos dava conta de que apenas nove pessoas tinham morrido, havendo
mais de quarenta feridos (sic). Tudo balela. Tudo mentira. [...] [Passam a trans
crever um telegrama enviado pelo diretor do Departamento Regional de Polícia
no território da construção, ao Secretário de Segurança de Goiás, na época]:
231
0 capital da esperança
retratos, dos buracos de bala nas tábuas dos alojamentos (eram cinco, de 100
metros de comprimento, por 50 metros de largura, cada um), quando ele tava
indo embora, cercaram ele e tomaram o filme” (JORNAL DE BRASÍLIA,
20 e 21 abr. 1980).
Aquele fato não foi apurado. Foi simplesmente abafado. Negado. Eu não es
tava aqui na época, né, eu só conheço do fato por ouvir dizer, né, por relatos
ou por informações. O que se procurou fazer foi justamente isso, né, abafar
a coisa. Aquilo foi feito inteiramente fora de qualquer lei e acima de qualquer
lei. Entre 57 e 60, praticamente, Brasília foi um acampamento de obra admi
nistrado por uma empresa. O juiz ficava do lado de fora, né, e ela que tinha
polícia aqui, tinha o poder de polícia e pronto (juiz do trabalho).
Agora providências da Novacap não houve nenhuma. Ficou tudo abafado [...]
porque aquilo transpirava assim como se não houvesse acontecido nada. Não
era permitido imprensa, nem repórter, nem nada, né. Brasília nessa época...
Aquilo ficou abafado (apontador).
233
0 capital da esperança
234
Capítulo 4 | Os conflitos
respeito para a vida humana, respeito ao ser humano. Exigia também punição
dos culpados, abrir comissão de inquérito, apurar. Mas ficou, ficou mais na
propaganda porque naquele tempo num tinha juiz, era lá em Planaltina, então
não tinha jeito de ocê...era só o protesto, né (pedreiro).
O que mais marcou foi aqui, teve uma greve também aqui na Pacheco, essa
também num vi. É a tal história que eu tou dizendo, eu ouvi contar, né, que
por causa de uma refeição dizem que saiu até morte da polícia (servente).
Habitação
236
Capítulo 4 | Os conflitos
)
)
Riacho Fundo,
Córrego do Guará
Novacap
Alojamentos
II Campo de futebol
Posto Petrobrás
CANDANGOLANDIA
Capítulo 4 | Os conflitos
r
0 capital da esperança
participando da obra, evidentemente não eram alternativa para so
lucionar a questão. Tem início o processo de “invasão” das áreas
periféricas da Cidade Livre e dos acampamentos agravando mais
ainda o problema de uma localidade já sem grande infra-estrutura
urbana. No decorrer da construção de Brasília, as “invasões” foram
comuns e se faziam notar principalmente quando, ao término de al
guma obra específica no Plano Piloto, destruíam-se os alojamentos
existentes para os trabalhadores que ficavam com a única alternativa
de engrossar a fileira dos “invasores”:
Justamente cada vez que uma companhia terminava o seu serviço, que tinha
que demolir o seu acampamento porque precisava da área livre, então surgia
as invasões. E daquela época pra cá passou a ter muito confrito, com o go
verno e o operariado. Porque o operariado precisava morar em argum lugar
porque eles não tinham condições mais pra voltar pras suas cidades de origem
e não tinha aonde ficar. Então ele tinha que partir pra uma solução e a solução
era a invasão. Mas sempre essa invasão, era contestada, como sempre foi, né
(comerciante do Núcleo Bandeirante).
Aquela parte era cerrado. Duma noite pro dia que eu tive aqui, você sabe
ali onde tem aquele viaduto que passa ali perto daquele posto de gasolina...
duma noite pro dia fizeram pra mais de 3 mil barraco ali. Uma noite pro dia.
É gente que, por exemplo, o senhor, aqui chegava, tava morando num quarto
de aluguel, numa pensão... inicia uma invasão dessa o senhor invadia também
240
o
Capítulo 4 | Os conflitos
■o
pra fazer um barraco pra você, pra num pagar aluguel. A polícia, naquele
tempo era a GEB que se chamava, a polícia chegou e mandou derrubar tudo. 9
Arrancou aquilo ali (carpinteiro). 3
9
A exemplo da Cidade Livre, para alguns, sobretudo para os carpin
teiros, a construção de barracos em “invasões” passou a ser uma
A
alternativa viável de trabalho. As “invasões” apareciam, cresciam, )
desapareciam e reapareciam, apesar da repressão policial e da tenta )
tiva de invisibilizá-las. Veja o que a imprensa publicava:
)
No último recenseamento de Brasília, a Inspetoria Regional de Estatística )
de Goiânia constatou a existência de favelas na área destinada à nossa capi
)
tal. Deixou, porém de registrá-las em seus boletins, a pedido do sr. Juscelino
Kubitschek, que receia uma onda de protestos dos deputados e senadores da
)
oposição. Apesar disso, o sr. Israel Pinheiro, em telegrama cujo texto vem sen
do mantido em sigilo, pediu ao Instituto Nacional de Imigração e Colonização
providências no sentido de evitar o deslocamento de nordestinos para a região
de Brasília, em busca de trabalho, tendo em vista a saturação de mão-de-obra.
)
Barracos de sacos de cimento
)
0 capital da esperança
242
Capítulo 4 | Os conflitos
243
O capital da esperança
Então o povo num coube mais aqui dentro do Núcleo Bandeirante aí fizeram
uma invasão dali ó, do lado da estrada ali. Fizeram uma invasão ali [a Vila
Sarah Kubitschek]. Inclusive eu morava na 4â Avenida aí, no lote do colega aí,
e pedi uma lona desse tio meu. Eu falei: vou receber um lote também na tal
de Taguatinga. Aí armei a lona lá (na Vila). Então coloquei a lona lá, botei
umas panela, umas parteleira véia lá, e botei a muié debaixo. Tá bem. E eles
vinha. Aí vinha a poliça, o sujeito do exército, né. Aí o exército lá tomando
nota do pessoal: como é que ocê chama? Cê é mulher de quem? O seu marido
é quem? E tal. Aí tomava nota. Deu o nome e tal. É casado. Aí... então tal dia
vai rançar vocês e levar pra Taguatinga. Tá bem. Eu fiquei aguardando, né. Aí
o caminhão veio. O pessoal arrancando barraco e levando. E eles foi levando
o pessoal pra Taguatinga, ali naquela beira de córrego. Chegaram me jogaram
num lugar, eu larguei minha lona. E eles receberam... uns receberam lote e
tal, os que foram que num tinha barraco, porque os que tinha barraco ia pro
lugar certo, né. Mas eu como não tinha barraco eles ficaram meio na dúvida
de entregar. Porque era uma lona (carpinteiro).
244
Capítulo 4 | Os conflitos
tentando conseguir lotes. Da noite pro dia, uma grande extensão de terra ao
lado da rodovia Anápolis-Brasília, paralelamente à Avenida Central, e a uma
quadra de distância (bem no centro, portanto) apareceu coberta de faixas:
245
li
0 capital da esperança
Afinal a prefeitura se mexeu, e veio a ordem da Novacap para a evacuação
e demolição da “Vila”. O policiamento foi reforçado, deu-se um prazo aos
invasores e, ao mesmo tempo, enfrentou-se o problema, que era a falta de
moradias, a Novacap pôs à venda lotes na Vila Taguatinga, que fora cria
da expressamente para esse fim, e situada a doze quilômetros de distân
cia do Núcleo, em mensalidades de Cr$ 200,00 (CORREIO DO POVO,
Porto Alegre, 17 ago. 1958).
247
0 capital da esperança
Vila Sarah Kubitschek uma organização que mediava os interesses
dos “invasores” negociando-os junto à administração da Novacap.
Foi necessária uma demonstração de massa na Cidade Livre, apro
veitando uma ocasião em que o Presidente da República se encontra
va no território da construção, para transformar a questão da habi
tação em uma questão política junto aos representantes do Estado.
Havia uma “comissão de representantes da comunidade”, um “gru
po organizado no comando”, indicação de que em alguma medida
essa população se organizou, preparou uma demonstração pública
utilizando inclusive faixas e cartazes de propaganda e encaminhou
suas questões por meio de lideranças que, respaldadas pelo grande
número de “invasores” e pela gravidade do problema, foram acei
tas como representantes legítimos para negociar uma solução. Deste
modo, acredito que Taguatinga, primeira cidade-satélite construída
precipuamente para solucionar uma pressão demográfica resolvendo
a questão da habitação do proletariado que aqui se encontrava, foi
resultado de um movimento político. Entretanto, existe afirmação
contrária segundo a qual a Novacap já tinha a intenção de construir
uma cidade-satélite para os trabalhadores (cf. SILVA, 1971, p. 230).
De qualquer forma, foi a mobilização popular que de fato engatilhou
o surgimento concreto de Taguatinga.
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Ninguém melhor que o Presidente sabe do sacrifício da gente que para aqui
veio formar o Núcleo Bandeirante. Por essa razão não poderia deixar de
atender àqueles que ajudaram a construir Brasília. Haverá lugar para todos.
O Núcleo Bandeirante devidamente urbanizado, ficará onde está, mesmo que
eu tenha que fazer o impossível. Esta é a melhor homenagem que o meu go
verno presta aos que me ouviram e em mim confiaram.
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operário que morava aqui, profissional. Todos que morava aqui uniu num só
ideal - fixar a cidade. Um ideal unânime, não havia ninguém em contrário.
Todos pensava do mesmo modo. E então nós partimo para o Congresso e or-
ganizamo assim uma espécie de colônia de cada Estado. Então formava assim
um líder de cada Estado e ia atrás dos deputado, dos senador, de ministro dos
seus Estado. E com isso nós lideramo e veio a fixação. Aí veio a Lei 4.020. Ela
veio no fim de 61 e foi publicada no Diário Oficial de 8 de janeiro de 1962.
Aí oficializou como cidade-satélite. De modo que é a única cidade-satélite ofi
ciada por lei assinada, sancionada pelo Congresso e assinada pelo Presidente
da República, é o Núcleo Bandeirante. Que as outras tudo foi criada por por
tarias. Na época a nossa campanha mais séria foi na saída do Juscelino e na
entrada do Jânio. Porque o Jânio quando fez a campanha política prometeu,
pra angariar voto, prometeu a transformar o Núcleo Bandeirante numa ver
dadeira Vila Maria. Mas, quando ele foi pra Presidência, ele aderiu ao mesmo
plano que tinha Israel Pinheiro - tinha saído JK, tinha saído Israel Pinheiro
e estava na frente da administração Paulo de Tarso. Paulo de Tarso também,
foi eleito pra deputado, também fez a campanha, fez a mesma promessa, mas
uma vez sendo nomeado prefeito de Brasília também aderiu, vamo dizer.
O presidente queria, vamo dizer, acabar com o Núcleo Bandeirante. Transferir
isso aqui. [...] Basta dizer o seguinte: nós conseguimo uma coisa que é difícil
de se conseguir em qualquer Congresso: conseguir a urgência, urgentíssima
pra ser votado um processo. Então nós conseguimo isso por causa do trabalho
de equipe, de liderança que nós fizemo junto aos parlamentar da nossa região.
Nós levamo e fomo vitorioso e vencemo. Então no 14 de dezembro daquele
ano de 61, que nós fomo vitorioso no Congresso, o próprio Presidente da
República veio assinar, veio com os seus ministros, com a equipe toda, veio
assinar - nós instalamo um palanque muito grande aí na Avenida Central,
palanque de madeira mas muito bem construído, coberto de toldo de lona - e
o presidente, que era o Jango na época, veio sancionar a lei aqui no Núcleo
Bandeirante. Nós fizemo uma grande festa, matamo umas 40 vaca, demo
um churrasco pra todo o povo, fizemo uma festa de arrombar. Demo muito
barril de chope, muitas caixa de guaraná, pão. Nós distribuímo pão para toda
criança, para todo povo. Fizemo uma festa que foi quase igual a da inaugura
ção de Brasília” (comerciante, Núcleo Bandeirante).
A única coisa que falta àqueles muitos postados dia e noite em frente à sub-
prefeitura (à espera de um lote em Taguatinga) ... era alguém que desse a
largada, para que fosse iniciada a ocupação de uma área qualquer. E apareceu
um: Raimundo Matias. Mineiro do interior, ele viera com a mulher e filhos
trabalhar em Brasília. Fichado na “Pacheco Fernandes”, fora um dos que es
caparam àquela escaramuça com a polícia, a mais sangrenta de toda a história
de Brasília.
Talvez até por esse motivo ele tenha tomado a decisão de liderar a “inva
são” das terras localizadas depois da passarela, “onde dava para todo mundo
morar”.
A idéia surgiu na véspera do Natal de 1959. E, no dia 4 de janeiro, teve início
a maior invasão de terras ocorrida em Brasília.
“No dia 16 eu era preso pela primeira vez e levado pela Guarda Especial de
Brasília para explicar. Mas explicar o quê?” lembra Matias. - “explicar que
eu e aquela gente toda queria morar ali?”. Depois dessa, ele foi preso mais
doze vezes.
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Na invasão que originou a Vila Mathias, como a Polícia foi solicitada a in
tervir, Matias colocou os homens em primeiro plano (dizia ele que deveriam
morrer primeiro), depois as mulheres, e por último, as crianças, colocadas
juntos a um grande mastro em que foi hasteada a Bandeira Nacional (só que
de cabeça para baixo) (idem, p. 57).
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coletivas espontâneas ou organizadas. Além das práticas de lazer vi
gentes serem vividas diferencialmente pelos trabalhadores, na medida
em que nem todos se viam necessariamente impelidos às alternativas
do álcool e da zona de prostituição, havia uma certa indiferença, em
termos coletivos, à repressão. Podemos supor que esta indiferença
advinha do caráter específico dos tipos de lazer a que nos referimos,
os quais, ao mesmo tempo em que se apresentavam de maneira qua
se exclusiva para aquela grande parcela da população marcada pela
ausência relativa de mulheres, implicavam comportamentos passíveis
de ser classificados como desviantes e cuja contrapartida era um con
trole muitas vezes não questionado.
Já os conflitos ligados à alimentação tocaram aquela parte da po
pulação trabalhadora localizada nos acampamentos e abrangeram
um número ainda maior de trabalhadores. Ocorreram em cenários
como cantinas, não propícios a comportamentos considerados des
viantes. Por outro lado, a alimentação, estando diretamente vincula
da à reprodução imediata da vida, ao se tornar uma questão atinge
um número significante de trabalhadores (justamente os totalmente
subordinados à lógica de uma grande obra através da moradia em
acampamentos), em um espaço, a cantina, cujo cotidiano é atravessa
do pela influência da esfera da produção. Além disso, a alimentação
é um aspecto da reprodução da força de trabalho cujo fornecimento
muito abaixo do que é socialmente esperado pode ser identificado
com espoliação do salário. Deste modo, essa questão permitiu a mo
bilização dos trabalhadores por meio de formas políticas não muito
bem definidas, nem organizadas, como rebeliões e quebra-quebras.
Relembremos que neste âmbito, além destas formas de resistência,
protesto e reivindicação, surgiu um violento confronto (cuja radicali
zação parte do Estado por meio da polícia) que teve como desdobra
mento o crescimento da organização dos trabalhadores no seu sindi
cato. Assim, no tocante à questão da alimentação surgiram reações
coletivas, espontâneas ou parcamente organizadas, passíveis de ser
encaminhadas politicamente.
Os problemas ligados à habitação, a partir da saturação da proposta
inicial imaginada pelo Estado, passaram a abranger quase toda a po
pulação do território da construção. Isto se deu porque a questão da
habitação penetrou inclusive as diversas casas da Cidade Livre que
várias famílias ocupavam à espera de residências próprias. Há que
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população na área, sobretudo no que diz respeito à alimentação e
habitação. As formas utilizadas pelos controladores do empreendi
mento para responder a estas questões (o acampamento e a cantina,
basicamente) ajustam-se, mais uma vez, aos interesses das ativida
des produtivas, predominantemente realizadas por um contingente
de trabalhadores jovens e desacompanhados de suas famílias. As
implicações desta subordinação extrema à esfera da produção são
várias, e se fazem sentir, por exemplo, na presença de uma gran
de zona de prostituição e nos conflitos relativos à alimentação e
habitação.
Movimentar-se no contexto das relações que rapidamente resu
mi anteriormente, e que foram detalhadamente expostas nos ca
pítulos precedentes, certamente levará a encontrar, no estudo de
grandes obras como Itaipu e Tucuruí, recorrências com a totali
dade analisada referente à construção de Brasília. Com efeito, um
dos fios que permeiam a grande subordinação existente no terri
tório de grandes obras é a repressão cotidiana do contingente de
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O isolamento na selva, as precárias condições de trabalho e a violência
dos guardas de segurança estiveram no epicentro da explosão de revol
ta registrada no último dia 4, sexta-feira Santa, no canteiro de obras da
Hidrelétrica de Tucuruí, 300 quilômetros ao sul de Belém do Pará.
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Conclusão
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Referências
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TOLEDO, Caio Navarro de. ISEB: fábrica de ideologias. São Paulo: Ática,
1977.
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