Você está na página 1de 3

ANÁLISE DO POEMA XX DE ALBERTO CAEIRO: O TEJO É MAIS BELO

QUE O RIO QUE CORRE PELA MINHA ALDEIA

Otávio de Lima1

1 O QUE É O TEJO?

O Tejo a que o poema se refere é um longo rio de 1.007 quilômetros de


extensão, situado na Península Ibérica, nascente na Espanha e que deságua no
oceano Atlântico. O Tejo entra como elemento comparativo no texto.

2 UMA INTRODUÇÃO PARADOXAL

As três primeiras linhas nos despertam uma reação de confusão perante um


início aparentemente paradoxal: o Tejo é mais belo ou não do que “o rio que corre
na minha aldeia”? A primeira linha diz que sim, a segunda, não. Abre-se espaço aqui
para algumas questões: qual é a verdadeira opinião do autor frente às duas
primeiras frases? Ela parece se expressar na segunda, que diz que “o Tejo não é
mais belo que o rio que corre na minha aldeia”, porque o final do poema Alberto
Caeiro, ao referir-se ao rio da sua aldeia, diz “quem está ao pé dele está só ao pé
dele”, dando ênfase ao contato direto que se tem com o próprio rio.

Outra linha também é marcante e podemos nos ancorar nela para dizer que o
autor afirma uma maior beleza de seu rio em detrimento do Tejo: “é mais livre e
maior o rio da minha aldeia”. Também na primeira estrofe notamos que o Tejo, para
o autor, só não é mais belo porque ele não é o rio que corre em sua aldeia,
enfatizando que o contato direto com o rio e sua relação de pertença o faz mais belo
em relação a um rio distante que ele não tem contato.

Logo, podemos concluir que a primeira linha não é uma afirmação do autor,
mas a segunda e a terceira são. O que pode ser a primeira? Talvez uma apreço
geral que o autor não compartilha, uma opinião mais difundida que ele não endosse
ou uma ideia disseminada que o obrigou a escrever um poema em contraposição.
Assim, o paradoxo é apenas aparente. Caeiro não está negando seguidamente uma
afirmação sua anterior, mas uma proposição alheia.

1Mestrando em Estudos de Linguagens pela UFMS. Bacharel em Artes Visuais e graduando em


Filosofia pela mesma instituição. Texto apresentado à disciplina Estudos de Linguagens.
3 A FRUIÇÃO ESTÉTICA DIANTE DOS RIOS: UMA ANÁLISE COMPARATIVA

O Tejo é o rio mais citado e descrito, com requintes, no poema de Caeiro.


Pela riqueza de detalhes, poderíamos dar-lhe mais importância do que o outro rio.
No entanto, há algumas linhas que sugerem um contraponto e que podemos nos
basear nelas para afirmar a preponderância do rio da aldeia.

Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia


E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Parece-nos que o desconhecimento acerca do supracitado rio, suas


características, origem e destino, o fazem mais especial: “mais livre e maior”. Aqui o
termo maior suscita a ideia de importância, não de tamanho. O saber sobre o rio da
aldeia revela uma ideia de pertença. Quanto mais gente souber dele, menos livre,
portanto, ele seria — supostamente: “mas poucos sabem qual é o rio da minha
aldeia [...] E por isso, porque pertence a menos gente,é mais livre [...].

Talvez o fato do Tejo ser mundialmente conhecido seja considerado pelo


poeta um enfado, como se o rio tivesse se “gastado”, tornado sem graça ou
esgotado sua beleza poética. Como o rio da aldeia é desconhecido, não pensado,
pode ser que isso dê mais liberdade para um contato mais profundo com o natural,
uma natureza ainda não vasculhada, fora dos livros: “Ninguém nunca pensou no que
há para além / Do rio da minha aldeia”.

A última estrofe tem apenas duas linhas

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada


Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Não há ali menções a navios, deságues em oceanos, nem os países por onde
desce e nem para onde vai. Não há alusões, nem memórias ou referências. O rio da
aldeia, pelo imediatismo do contato, é autorreferente: “quem está ao pé dele está só
ao pé dele, nada mais que isso. A fruição estética é consigo mesmo, sem sair de si
ou dele, sem buscas a outro referente figurativo. É ele e somente ele. Não há apelos
a outrem, somente um contato inefável.
Podemos ainda trazer à baila a primeira categoria fenomenológica da
semiótica peirceana, a primeiridade (firstness). A primeiridade revela-se como um
instantâneo, uma surpresa, a primeira impressão, a noção de novidade, um contato
sem referente. É a “presentidade” das coisas, o sentimento imediato, o ser enquanto
ser; está no campo da possibilidade, do não delimitado, da liberdade2.

A tautologia “quem está ao pé dele está só ao pé dele” talvez seja como


definir o objeto da metafísica: o ser enquanto ser. Parece nos impedir de fazer
qualquer elo, de criar qualquer referência ou mesmo dar asas à imaginação. É um
espaço infinito que se abre, a atemporalidade que se demarca e não parecer com
nenhum outro rio dá a ele um caráter ímpar. É um acaso que nasce desse contato,
um sentimento imediato de fugacidade, não há descrição.

O rio corre pela aldeia, mas não sabemos de onde vem, nem para onde vai.
Tal qual os versos bíblicos neotestamentários sobre o Espírito Santo: ninguém sabe
de onde vem nem para onde vai. É sopro que passa, é o rio que corre, é estar ao pé
dele estando só ao pé dele. Incomoda-nos algo que não se explica a nós, mas
quando estamos diante de uma belíssima paisagem natural, porventura também nos
incomodaria alguém exigindo explicações do que estamos vivendo nesse momento.

2
NÖTH, Winfried. Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce. 3. ed. São Paulo: Annablume, 2003. p. 63.

Você também pode gostar