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Otávio de Lima1
1 O QUE É O TEJO?
Outra linha também é marcante e podemos nos ancorar nela para dizer que o
autor afirma uma maior beleza de seu rio em detrimento do Tejo: “é mais livre e
maior o rio da minha aldeia”. Também na primeira estrofe notamos que o Tejo, para
o autor, só não é mais belo porque ele não é o rio que corre em sua aldeia,
enfatizando que o contato direto com o rio e sua relação de pertença o faz mais belo
em relação a um rio distante que ele não tem contato.
Logo, podemos concluir que a primeira linha não é uma afirmação do autor,
mas a segunda e a terceira são. O que pode ser a primeira? Talvez uma apreço
geral que o autor não compartilha, uma opinião mais difundida que ele não endosse
ou uma ideia disseminada que o obrigou a escrever um poema em contraposição.
Assim, o paradoxo é apenas aparente. Caeiro não está negando seguidamente uma
afirmação sua anterior, mas uma proposição alheia.
Não há ali menções a navios, deságues em oceanos, nem os países por onde
desce e nem para onde vai. Não há alusões, nem memórias ou referências. O rio da
aldeia, pelo imediatismo do contato, é autorreferente: “quem está ao pé dele está só
ao pé dele, nada mais que isso. A fruição estética é consigo mesmo, sem sair de si
ou dele, sem buscas a outro referente figurativo. É ele e somente ele. Não há apelos
a outrem, somente um contato inefável.
Podemos ainda trazer à baila a primeira categoria fenomenológica da
semiótica peirceana, a primeiridade (firstness). A primeiridade revela-se como um
instantâneo, uma surpresa, a primeira impressão, a noção de novidade, um contato
sem referente. É a “presentidade” das coisas, o sentimento imediato, o ser enquanto
ser; está no campo da possibilidade, do não delimitado, da liberdade2.
O rio corre pela aldeia, mas não sabemos de onde vem, nem para onde vai.
Tal qual os versos bíblicos neotestamentários sobre o Espírito Santo: ninguém sabe
de onde vem nem para onde vai. É sopro que passa, é o rio que corre, é estar ao pé
dele estando só ao pé dele. Incomoda-nos algo que não se explica a nós, mas
quando estamos diante de uma belíssima paisagem natural, porventura também nos
incomodaria alguém exigindo explicações do que estamos vivendo nesse momento.
2
NÖTH, Winfried. Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce. 3. ed. São Paulo: Annablume, 2003. p. 63.