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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA

O PORTO:
ENSAIO SOBRE O POEMA “TORNA-VIAGEM” DE
ANA MARTINS MARQUES

DIOGO CARVALHO DOS SANTOS – N° USP: 11324134


ISABELLE DA SILVA BESERRA – N° USP: 11249791

SÃO PAULO
2019
TORNA-VIAGEM

1 meço mares

2 singro sereias

3 cego ciclopes

4 perco penélopes

5 cerco circes

6 serei meu

7 próprio

8 porto
Ana Martins Marques é uma poetisa de Minas Gerais, graduada em Letras pela
UFMG, com doutorado em Literatura Comparada pela mesma universidade. Entre seus
cinco trabalhos – dois desses escritos com outros poetas – Da arte das armadilhas é sua
segunda publicação e contém o poema objeto deste ensaio.
Marques iniciou sua carreira sendo bem recebida pela crítica literária e ganhando
diversos prêmios. Em 2007 e 2008, foi vencedora do prêmio Cidade de Belo Horizonte,
nas categorias “autor estreante de poesia” e “poesia”. Da arte das armadilhas, publicado
em 2011, manteve o sucesso da autora entre a crítica e garantiu o prêmio Biblioteca
Nacional de Literatura no ano de seu lançamento.
O livro possui 55 poemas – enquanto A vida submarina, cerca de 110 – e é
dividido em duas seções: “Interiores” e “Da arte das Armadilhas”, contendo poemas
breves, poucos ultrapassando a primeira página.
Ana usa uma linguagem relativamente simples de compreender em seus poemas,
especialmente quando lidos superficialmente. Porém, do ponto de vista semântico, são
textos profundos, com diversas camadas, que são exploradas a partir de seus
significados – as imagens que poderiam surgir ao leitor – especialmente por meio de
associações complexas, mas sucintas, demonstrando a maturidade e a sensibilidade da
poetisa em expressar o lirismo.
Em seus livros, existem “imagens” recorrentes: uma série de poemas dedicados
a objetos cotidianos, que poderiam deixar o leitor confortável, fazendo com que a poesia
soasse aconchegante. Alguns de seus poemas chegam a manter diálogos entre si em
livros diferentes – o caso de “poema de não amor” em O livro das semelhanças e
“poema de amor” no livro anterior. Ainda, Da arte das armadilhas (segunda metade do
livro de mesmo nome) explora sentimentos e situações que podem se tornar perigosos –
no amor e em quaisquer outros sentimentos líricos.
Torna-viagem é o 25° poema da segunda metade do livro e é posicionado no
início de uma sequência de poemas com referências ao mar: À beira-mar e Naufrágio.
No primeiro, escreve sobre possibilidades, sempre no subjuntivo, enquanto no segundo
já abre a subjetividade da 2ª pessoa do plural (nós, nossos) falando sobre cenários de
uma eventual despedida entre amores. Torna-viagem, portanto, diferencia-se
especialmente pela escolha do tempo verbal e do tom que se dá as ações propostas pelo
texto. Nele, o eu lírico age com mais exatidão, afirmando uma posição de controle que
expressa confiança e certeza – como um porto, portanto, da obra de Ana.
1
A intertextualidade na escrita de Ana Martins Marques é observada em inúmeros
aspectos da obra que contém esse poema, vagando entre citações diretas e diálogos
intrínsecos em seus versos. O livro “Da arte das armadilhas” reúne uma coletânea de
poemas sobre o cotidiano – objetos, cenas e momentos que o ser humano convive no
meio em que é inserido e pelo qual o leitor poderia identificar-se – que exprimem o
caráter lírico ao aprofundarem-se nos sentimentos e na subjetividade a partir do simples,
do que é comum. Há, portanto, um passeio entre os objetos do aspecto macro: a casa, os
cômodos e os móveis (Interiores), até o micro: o intrínseco do eu lírico (Da arte das
armadilhas). Ana o faz de maneira a representar os sentimentos e suas intensidades.
Torna-viagem faz parte da segunda metade do livro – denominada “Da arte das
armadilhas” – e dialoga centralmente com aspectos da mitologia grega, consolidando a
paixão pelo clássico de Marques, que utiliza os personagens, as ações e os aspectos
variados dos clássicos gregos em sua poesia1. Portanto, saber do que se trata a história
de Odisseu e a épica – retratada na obra “Odisséia”, de Homero – é necessário para que
o poema exprima mais claramente a interpretação alcançada neste ensaio literário,
compreendendo nuances e momentos que associam os versos de Ana aos
acontecimentos do clássico.
O enunciado faz parte do universo marítimo que o poema exprime: Torna-viagem,
termo pouco usado atualmente, expressa o retorno de um viajante (que explora diferentes
mares, no sentido de navegar) ao porto de onde partiu inicialmente – nesse ponto, é
explorada a “chegada” do sujeito – o eu lírico – no porto, ao fim do poema. O texto faz
uma enumeração de verbos no presente do indicativo, com exceção do antepenúltimo
verso no futuro do presente, em 1ª pessoa do singular, que indicam ações ocorridas no
exato momento em que se lê o poema, causando a sensação de movimento e, ao final,
de uma quebra de sequência: meço [...]/singro[...]/cego [...]/cerco [...]/perco [...]/serei
meu/ próprio/ porto.
Os personagens citados em Torna-viagem são criações de Homero que possuem
características próprias, atribuídas a eles por meio do clássico grego. O que Ana faz no
poema é utilizar da imagem dessas figuras – que poderia estar presente no imaginário do
leitor – para criar analogias. O mar, as sereias, um ciclope, Penélope e Circe são, em

1
Somente em “Da arte das armadilhas” há, ao todo, seis poemas que utilizam personagens e fatores dos
clássicos – Ícaros (1) e (2), Carta a Safo, Mitológicas, Penélope e Torna-viagem. Penélope (esposa de
Odisseu), por exemplo, aparece em seis poemas de dois livros: A vida submarina (2009) e Da arte das
armadilhas (2011).
suma, alegorias construídas com base no que representam na história de Odisseu.
Se é conhecida a obra homérica por parte de quem lê o poema, é um texto que
parece expressar do que se trata, porém, como toda obra literária, é necessário que se
analise todos os aspectos construídos, de forma a desmembrar suas entrelinhas, a fim de
alcançar uma interpretação plausível.

A distribuição dos versos no poema revela sua forma, isto é, a maneira como é
lido funde-se para a compreensão do que se trata a escrita. Torna-viagem possui versos
livres, distribuídos distantes uns dos outros, que indicam intervalos entre si. Lê-se,
portanto, com pausas, mas não de forma lenta, mas sim gradativamente: uma sucessão
de ações ocorridas em sequência – meço mares/ singro sereias/ cego ciclopes/ perco
penélopes/ cerco circes – que são quebradas com o verbo ser no futuro do presente –
serei meu/ próprio/ porto.
O poema curto, portanto, oferece uma imagem desbravadora: uma série de ações
que demonstram confiança, especialmente por tratar-se da primeira pessoa do singular.
A repetição do som construída pela enumeração dos verbos seguidos, assim como o
cavalgamento formado pela quebra da linha de raciocínio no antepenúltimo verso, causa
sensação de cronologia, uma espécie de ordem que se repete e se propõe às ações:
primeiro, meço os mares para, então, singrar sereias e assim por diante.
Além disso, o diálogo entre o poema e a obra de Homero é feito por meio das
imagens apresentadas pelos personagens do clássico dentro do poema. A história do
guerreiro grego que deve enfrentar os mares é reconhecida por meio das referências na
linguagem poética da autora: as menções a Circe, Penélope, sereias e um ciclope,
personagens fundamentais da narrativa homérica, além do cenário: o mar, iniciado no 1º
verso, que é, também, onde o herói grego deve enfrentar suas batalhas.
Na obra, Odisseu – personagem principal e origem do nome “Odisséia” –
embarca em uma viagem de volta para sua casa, em Ítaca, após o fim da guerra de
Tróia. Na épica, a trajetória do herói pelos mares da Grécia é celebrada por encontros e
conflitos com os personagens citados em Torna-viagem, para que, no fim, seja possível
o reencontro com Penélope, sua esposa. Dessa forma, o poema apresenta o sentido de
viagem marítima: a navegação de Odisseu pelos mares gregos é citada como a aventura,
também, do eu lírico na vida.
O uso dos verbos com os personagens épicos, trazendo sentido ao texto por meio
da semelhança – são ligados fielmente às relações de Odisseu com cada um deles –
configura o estilo metafórico do poema. A autora cria as diferentes interpretações a
partir dos símbolos dos termos. As sereias, assim como o ciclope e Circe, representam
as adversidades que podem estar no caminho: o mar, aparecendo, no poema, como algo
a ser “medido” – /meço mares/ – ou seja, viajo por eles, faço-os estrada. Penélope,
portanto, como a esposa de Odisseu, é colocada como o amor: /perco penélopes/ – perco
amores.
Dessa forma, Ana usa do sentido figurado espontâneo para expressar sua poesia:
ao ligar os termos do poema à história com a qual dialoga, é natural que sejam
associados tais personagens ao que eles representam à Odisseu: conflitos, amores e
trajetória.
O porto de Ítaca, que é utilizado como o destino final de Odisseu em “Odisséia”,
em Torna-viagem aparece para o eu lírico contrapondo um lugar físico específico: aqui,
nas palavras de Ana, há um expressar de independência: o porto é o eu lírico em si, nada
externo a ele.
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O uso do sentido figurado na enunciação dos verbos faz parte da imagem poética
que a autora expressa: são conexões entre os verbos que impõem uma compreensão
além do sentido literal da palavra.
1 meço mares

2 singro sereias

3 cego ciclopes

4 perco penélopes

5 cerco circes

[...]
Figurativamente, entende-se que as interpretações devem surgir além das literais:
o eu lírico não mede – do verbo medir – os mares pelos quais viaja, nem singra sereias.
No dicionário literal, “singrar” significa: “Navegar à vela; velejar. Navegar em uma
direção determinada: singrar para o porto”. A sereia não pode ser singrada, pois não é
navegável, como os meios de transporte marítimos. Ou seja, o termo /singro sereias/ não
faz sentido fora do poema. Na épica grega, os piratas e viajantes tinham grande medo de
sereias, chegando a prender-se nas velas dos barcos para evitarem ser encantados por
seu canto. No poema, no entanto, a fala expressa a determinação do sujeito em
atravessar seus medos e fugir das tentações – as sereias para Odisseu e o que pode ser
ruim para o eu lírico, em Torna-viagem. Em /cego ciclopes/, o pensamento é sobre
libertação, quebrar as correntes que mantém o eu lírico preso, declarando independência
ao fazê-lo. Assim como em “Odisséia”, Odisseu precisa enfrentar o ciclope que o
aprisiona para que consiga fugir da caverna em que permanece com sua equipe de
guerreiros.
O ato de perder Penélopes é visto, também, a partir da história clássica. Na
guerra e na viagem que o herói enfrenta, Penélope, sua esposa, é abandonada em casa,
ainda que não propositalmente. Representando o amor, como já mencionado, o eu lírico
entende que, para que a trajetória seja cumprida – o conhecimento dos mares, em sua
medida – é implícito que amores sejam perdidos pelo caminho.
A menção à Circe, no entanto, merece mais atenção. Na épica, Odisseu acabou
na Ilha de Eana, lar de tal feiticeira. Após seus homens saírem para exploração da ilha e
serem transformados em porcos, Odisseu viu-se obrigado a tentar salvar as vidas de seus
companheiros, então seu amigo Eurícolo deu-lhe um broto chamado “Moli” que
possuía o poder de fazer os homens resistirem às bruxarias. Na conversa com Circe, ela
tentou enfeitiçá-lo, mas Odisseu resistiu, empunhando sua espada e a fazendo cair de
joelhos implorando por misericórdia. No fim, ele a fez recitar um juramento solene que
prometia libertar seus homens, cercando-a, deixando-a sem saída. Destarte, este verso é
sobre impor-se, não cruzar os braços diante de uma derrota, demonstrando a capacidade
de recuperar-se e agir após crises, despertando, assim, o lado guerreiro e batalhador do
eu lírico, que se recusa a desistir.
Diante do que foi supracitado, Torna-viagem pode ser considerado um poema
sobre a vida: corriqueiramente apresentada na poesia como uma viagem – com
representações do nascimento, do presente e do futuro. A trajetória de Odisseu nos
mares em que precisa passar para cumprir o desafio final de chegar em Ítaca é o ponto
de analogia da viagem do eu lírico pela vida dele mesmo:
1 meço mares

2 singro sereias

3 cego ciclopes

4 perco penélopes

5 cerco circes

Trata, portanto, da independência a partir do momento em que consegue


enfrentar as adversidades sozinho, voltando a si mesmo:
6 serei meu

7 próprio

8 porto

Em “Odisséia”, Odisseu perde o que o torna humano ao aprofundar-se nos mares


desconhecidos. Ainda que, ao fim, consiga lembrar-se de suas origens e leva a cultura
grega aos povos que conhece, é a desumanização do personagem devido a sua trajetória
que impulsiona a sua volta para casa e para a esposa, de volta a si mesmo a partir deles. O
eu lírico de Torna-viagem, no entanto, é independente de convenções. Não é necessária
uma casa, um amor, um retorno externo como porto, como o destino final. Somente ele
mesmo, o sujeito.
O mar, portanto, e os personagens épicos fazem parte de uma construção feita por
Ana para falar sobre independência. O assunto – a épica “Odisséia” – trata, com elegância
e metáforas explícitas de forma sensível e inteligente, o tema da autonomia que foi
conquistada dentro do poema. Autonomia essa de enfrentar e conquistar os caminhos,
sejam esses quais forem, sem que seja necessária uma motivação além da própria vontade
do eu lírico. “/serei meu/ próprio/porto [...]” finaliza a obra porque define que não há nada
além de si mesmo.
Esse poema retrata bem a subjetividade no estilo poético do livro. Ana, na maioria
de seus poemas, fala sobre o coletivo: o ‘nós’, ‘nosso’ e ‘somos’ – usando, inclusive, a 3ª
pessoa com frequência –, raramente um ‘eu’. Então, de forma implícita, o poema, além de
ser sobre o porto pessoal, é também sobre ser o porto do livro, onde encontra-se a
unicidade, sendo o único a falar exclusivamente sobre independência, é um momento de
privacidade, de autoconhecimento, onde sente-se livre e pronto para falar sobre si.

4
Manual Bandeira classifica a poesia como uma combinação de palavras capazes de
causar emoções2. Em Torna-viagem, Ana Martins Marques combina os versos de maneira
a alinhá-los por meio da classe gramatical – verbos na 1ª pessoa do singular – formando,
no imaginário de quem lê o poema, a sensação de controle. O eu que está oculto antes de
cada verso é capaz de controlar suas ações e seu destino. Dessa forma, é feita a ligação
entre o subconsciente da poetisa e subconsciente do leitor: é criada uma aventura, uma
história semelhante àquela com a qual o poema dialoga, mas dessa vez sobre o eu lírico e
o leitor.
De acordo com David Hume3, existem parâmetros que devem ser seguidos para
que seja definido um texto literário como bom ou ruim. O padrão, no caso, é avaliado
além do que apenas a sensação que o poema pode causar no leitor, como citado
anteriormente. Trata, no entanto, do bom senso e da sensibilidade para perceber o quão
impactante e bela pode ser uma obra. Torna-viagem é um poema de construção: as ações
são realizadas lentamente até formarem uma conclusão final com os últimos três versos:
6 serei meu

7 próprio

8 porto

2
Poesia e Verso, Rio de Janeiro, 1975.
3
O padrão do gosto (Ensaios morais, políticos e literários), Escócia, 1973.
Logo, Ana utiliza de diversos mecanismos semânticos e metafóricos para dialogar
com a obra grega e o faz de maneira a aprofundar-se nos sentimentos do sujeito e do
interlocutor. É essa ponte que caracteriza Torna-viagem como um poema belo e bem
trabalhado: a sensibilidade de Ana na escolha das palavras e a forma como as conectou
para formar uma conversa entre o clássico e o atual. É uma obra contemporânea capaz de
resgatar o ancestral literário de forma a tocar quem o lê logo à primeira vista: o mar e os
personagens, assim como a aventura de Odisseu, estão implícitos e são capazes de
transpassar os versos até o subconsciente de quem o lê.
Em suma, é uma obra bela construída de forma sensível e inteligente a partir do
que propões o texto lírico: é subjetiva, é expressiva e conecta o sujeito ao receptor do
poema.

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