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Desenvolvimento fisico e psicomotor depois dos dois anos JESUS PALACIOS, ROSARIO CUBERO, ALFONSO LUQUE E JOAQUIN MORA No Capitulo 2, expusemos as caracteris- ticas e leis do precesso de crescimento, os tra- 05 mais marcantes desse processo ao longo dos dois primeiros anos da vida humana e tam- bém o conceito de psicomotricidade; aprovei- tamos para analisarmos alguns pormenores do desenvolvimento psicomotor nos dois primei- Tos anos, Agora continuaremos com os proces- sos de crescimento e de desenvolvimento psicomotor exatamente como ocorrem apés os dois anos até 0 infcio do ensino fundamental, momento a partir do qual as mudangas sao cada vex menos significativas até a chegada da puberdade. Na faixa etaria que trataremos agora, o aspecto mais relevante esta ligado a extensao € ao refinamento do controle sobre o corpo e seus movimentos; podemos, por isso, afirmar que estamos diante de uma etapa de grande importancia para o desenvolvimento psicomotor, na qual ocorrem notaveis transfor- magées tanto no Ambito pratico (da acao) quanto no simbélico (da representacAo). Comegaremos analisando os dados bdsicos do crescimento em peso e altura, tal como fize- mos no Capitulo 2, ressaltando a seguir os prin- cipais progressos produzidos no controle ena uti- lizagao do proprio corpo nas diversas atividades em que se envolvem as criangas nessa faixa etéria. Vamos nos deter por um momento no estabeleci- mento da preferéncia lateral para analisarmos, depois, mais detalhadamente, tudo 0 que se re- fere aos aspectos envolvides na elaboragao do esquema corporal. Finalmente, concluiremos com uma andlise sobre a utilizacéio que as criancas fazem de suas crescentes habilidades motoras para a realizacao de duas produgoes graficas de grande relevancia, como sao o desenhoe a escri- ta, F claro que tanto o desenho quanto a escrita envolvem muito mais do que controle do movi- mento; nao resta diivida de que os fatores de de- senvolvimento cognitive séo importantes em ambas as atividades, assim como de que o dese- nho também é uma expressdo de estados emocio- nais e de estilos de personalidade. Mas em fun- Gao de tanto o desenho quanto a escrita terem ‘um componente de controle motor de primeira magnitude, aproveitaremos para fazer, nessa par- tedo capitulo, uma exposicdo de alguns de seus componentes evolutivos. ACURVA DO CRESCIMENTO DEPOIS DOS DOIS ANOS Durante os anos pré-escolares, as crian- as nao deixam de aumentar regularmente sua altura e seu peso, embora a velocidade do cres- cimento seja mais lenta do que nos primeiros anos. Em média, a partir dos wés anos, as crian- gas crescem de 5 a 6 cm por ano e aumentam seu peso de 2 a 3 kg por ano, de forma muito regular e estavel. Com a chegada da puberda- de, a velocidade do crescimento aumenta um pouco, tornando-se lenta a partir daf até sua parada definitiva pouco depois. A Figura 6.1 apresenta as curvas de crescimento estaturo- 128 COLL, MARCHESI, PALACIOS & COLS. Meninas: 2.a 18 anos Estatura Peso 2 4 jo 1 12 18 14 15 16 17 18 Cm190—f 190m 180: 180 170 470 160: 160 150: 150 140 140 130 90Kg 120: 85 20 110: 7 aoe) 70 90: 65 60 80: 55 Kg 50: 50 4% 45 40 40 35 95 30 30 25 25 20: 20 15: 15 é Idade (Anos) a 29 4 6 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 FIGURA 6.1 Curvas de crescimento em altura @ aumento de peso em meninas e meninos de 2 a 18 anos. Fonte; Hernandez et al., 1988, ponderal dos 2 aos 18 anos, com dados petcentilados que ilustram muito claramente amagnitude das diferengas interindividuais. Conforme ocorria nos dois primeiros anos, mas com mais razio agora, é necessario fazer referéncia ao dimorfismo sexual, isto &, ao perfil diverso que as cuirvas de crescimento tém no caso das meninas e dos meninos. Até 08 sete anos, aproximadamente, os meninos mantém em relacao as meninas a ligeira van- tagem, ja citada a respeito dos dois primeiros anos: 03 meninos medem alguns centimetros a mais do que as meninas. A altura e o peso médios se igualam nesse perfodo. (aos sete anos, 120 cm e 23-24 kg), mas as meninas co- mecam a ter no peso uma ligeira vantagem de Meninos: 2 a 18 anos Estatura Peso 3 4 5 Cmi90- 180: 170 160: 150= 140: 130: 120: n0= 100 80: Kq50 40: 95 30. 25 20: 15: 10: Idadi £8 4 5 67g 9 FIGURA 6.1 (Continuagao) 1 ou 2 quilos. A partir dos nove anos, a média das meninas é superior a dos meninos tanto em altura quanto-em peso; assim, aos 11 anos, elas esto na frente deles nos dois aspectos. Aos 13 anos, no entanto, a altura média volta @ ser a mesma (152 em), embora as meninas conservem uma ligeira vantagem no peso. Aos 129 DESENVOLVIMENTO PSICOLOGIGO E EDUCACAO, V1 py ee ee 8, 90cm 180 170 4160 150 140 90Kg 85 80 75 70 65 60 55 60 45 40 35 30 25 20 15 le (Anos) if 10 11 12 13 14 15 16 17 18 15 anos, os meninos comecacam a ter uma vantagem média definitiva: a altura média de- las é de 160 cm e seu peso 53 kg, enquanto eles alcangam 165 cm e 56 kg. Se analisarmos os dados aos 18 anos, podemos constatar que elas tiveram mudangas apenas a partir dos 15 anos (média: 161 cm e 54 kg), enquanto eles 130 COLL, MARCHES!, PALACIOS & COLS. continuaram crescendo e aumentando de peso (média: 176 cm e 67 kg), Em resumo, partin- do de uma ligeira vantagem estaturo-ponderal por parte dos meninos, nessas idades, pode- mos observar que a meninas tomam a dian- teira durante um ou dois anos para, logo de- pois, serem claramente superadas pelos me- ninos, pois eles continuam aumentando seu tamanho e seu peso enquanto elas apenas so- frem pequenas mudancas. Contudo, ndo podemos nos esquecer de que estamos falando de valores médios; natu- ralmente, sempre poderemos encontrar uma menina de 16 anos mais alta do que um meni- no da mesma idade. Os dados médios, no en- tanto, nos falam de alguns perfis de estatura e de peso que se tornam diferentes antes da che- gada da puberdade e se acentuam com as mu- dangas corporais a elas associadas, E claro que as mudancas corporais que ocorrem na puberdade vio muito além do au- mento de peso e de altura, A puberdade signi- fica uma revolugao corporal sobretudo no que se refere aos caracteres sexuais, tanto os pri- marios (érg’os sexuais) como os secundarios (pélos, voz, formas corporais, ete.). Essas mu- dangas e suas implicagdes psicoldgicas sao abor- dadas detalhadamente no Capitulo 16. O CONTROLE DO CORPOE DA ATIVIDADE PSICOMOTORA Conforme foi comentado no Capitulo 2, embora uma parte importante do crescimento do cérebro ocorra na etapa pré-natal e depois nos dois primeiros anos de vida, nas idades sobre as quais falaremos (e, em alguns aspec- tos, em idades posteriores) continuam ocorren- do mudaneas no cérebro, algumas das quais tém importantes repereussdes para a psicomo- tricidade ¢ para ontras fungées psicolégicas, como os processos cognitivos de que se falarara no capitulo seguinte. No mais, os progressos que sao observados nessas idades obedecem a leis gorais somelhantes ds jd analisadas para os dois primeiros anos, mas aparecem novas rea- lidades como conseqiiéncia da maturagao. Ana- lisaremos primeiro esses diversos aspectos para, posterioremente, considerarmos os progressos coneretos que ocorrem no controle da ativida- de psicomotora. Bases e caracteristicas gerais do progresso psicomotor Para nao repetirmos argumentos j4 men- cionados no Capitulo 2 sobre o crescimento do cérebro, basta nos lembrarmos de que 0 pro- cesso de formaciio e posterior “poda” de sinap- se, que nas regides visuais do cérebro ficou es- tabilizada em valores adultos na primeira in- fancia, funciona com uma lentidao muito mais notavel no caso do cértex pré-frontal, que tio crucial importancia tem em aspectos tao basi- cos @ ctiticos para os humanos, como o plane- jamento e o controle das condutas complexas ‘eo comando da maquinaria cognitiva. Vamos pensar, por exemplo, no que ocorre no caso da atengao. Inicialmente controlada por estrutu- ras cerebrais subcorticais, a0 longo de todo esse periodo ira ficando cada vez mais sob 0 con- trole pré-frontal, com o que vai se tornando mais voluntaria, mais mantida, menos insté- vel, mais consciente: cada vez se presta mais atengéio no que se quer prestar ¢, o que é mais importante, se pode mudar de foco de aten¢ao quando assim se quiser; no entanto, um domi- nio completo dos processos de atengdo nao ocorrer até alguns anos depois. Vamos pensar em capacidades cognitivas finas ligadas a0 con- role do proprio pensamento, da manutengao de metas, da elaboragao de planos e da com- provacao da eficdcia de sua execucéio; nese caso, embora durante os anos dos quais estamos falando ocorram importantes ayangos (conforme sera mostrado no capitulo seguin- te), muitos dos mais destacados irao ocorrer nos anos em que se seguem ao comeco do en- sino fundamental, e alguns ocorrerao mais tar- de, dando suporte para melhorias nos proces- 408 cognitivos observados na adolescéncia. As mudangas nesses anos afetam também 05 processos de mielinizagao, conforme foi in- dicado no Capitulo 2. A rapidez com que ocor- re a maturagdo para as capacidades visuais contrasta novamerite com a maior lentidao em relacdo com outras fungdes; assim, a mieliniza- co dos newrénios motcres continuard ocor- rendo até os quatro ou cinco anos, e a das re- gi6es do sistema nervoso relacionadas 4 aten- cao e ao resto dos processos cognitivos conti- nuara ocorrendo até a puberdade. Ja que o processo de mielinizacao é de grande impor- tancia para a eficdcia na transmissao e na cir- culacao da informacao no interior do cérebro, os avangos que ocorrerem em sua maturacio serao traduzidos em melhorias no controle motor (sobretudo nas idades que agora consi- deramos) e na eficdcia do funcionamento cognitivo (sobretudo nas idades posteriores). No mais, os progressos sobre os quais fa- laremos seguiem as ja conhecidas leis céfalo- caudal e proximo-distal. O bom controle que antes existia para 03 bracos sera aperfeigoado ¢ levado agora para as pernas (lei céfalo-cau- dal). Além disso, o controle ira pouco a pouco alcangando as partes mais distantes do eixo corporal, torando possivel um manejo fino dos musculos que controlam 6 movimento do pu- nho e dos dedos (lei préximo-distal). Portan- to, os progressos afetardio tanto a motricidade grossa (grandes muisculos do corpo) como a motricidade fina (pequenos muisculos da mao). Boa parte das mais importantes mudan- gas que ocorrem durante esses anos no desen- volvimento psicomotor est relacionada ao pro- gresso em duas frentes aparentemente contra- ditérias entre si: a independéncia e a coorde- nagiomotora, A independéncia é a capacidade para controlar separadamente cada segmento motor; assim, conseguir fazer um movimento telativamente complexo com uma mao sem mover a outra, ou sem colocar ao mesmo tem- po a lingua para fora ou fazer caretas é um exemplo de independéncia. Segurar um lapis entre os dedos indicador, polegar e médio, en- quanto os dois dedos restantes se adaptam & superficie do papel e a outra mao segura rela- xadamente o papel quando se escreve é outro ‘exemplo. Esse processo de segmentacio e in- dependéncia nio é conseguido por completo ‘a maioria das criangas até os sete ou oito anos. A coordenagiio supée um proceso aparen- ‘temente oposto. Padroes motores originalmen- ‘te independentes se encadeiam e se associam, formando movimentos compostos muito mais complexos do que os originais. Mas o mais des- tacdvel da coordenacio ¢ que a seqiiéncia se automatiza, permitindo sua execugao sem que 9 sujeito tenha de estar gastando nela recur- sos de atenciio. Subir e descer escadas apoian- do uma mao no corrimio e segurando com a outra um copo de Agua, abotoar a camisa en- quanto se verifica se estamos ou nao pentea dos, pular corda prestando mais atencio na musica que se canta do que na execugao dos pulos siio exemplos de coordenacio de ativida- des e desua crescente automatizagao. Podemos encontrar um bom exemplo do beneficio dessa capacidade depois dos seis anos, quando ja se é capaz. de escrever, prestando muita atencao a0 que se escreve e nfio em como se escreve (no item “A escrita”, deste mesmo capitulo, esse as- pecto ¢ analisado mais detalhadamente). Acaminho do dominio psicomotor No que se refere ao controle da atividade corporal, algumas das mudangas mais impor- tantes nessas idades afetam 0 que poderfamos denominar “psicomotricidade invisivel’; sao aspectos dificeis de serem obsevados a primei- ra vista na maior parte dos casos, mas que afe- tam aspectos cruciais do desenvolvimento psicomotor. Referiremos-nos breyemente & estruturacao do espaco e do tempo e ao con- trole do ténus, do equilibrio e da respiracao. Posteriormente, iremos nos centrar nas mani- festacées do controle psicomotor, que, em ge- ral, so mais visiveis nessas idades. ‘Vimos, no Capitulo 2, 0 interesse e a im- portancia da tonicidade muscular eo grau de ten- so existente em cada momento no interior de nossos miisculos. Parte do controle ténico é involuntério.e esta Tigado @ atividade inramus- cular espontéinea e a seu controle neurclégico, ¢ outra parte dessa tonicidade é suscetivel de con- trolé voluntario, como pode provar o fatode que podemos relaxar ou tensionar os miisculos es- pontaneamente. As criancas vao aprendendo, ) mediante suas experiéncias com os objetos. com | os quais se relacionam, a ajustar seu tonus mus- ( cular as exigéncias de cada situagao, de manei~ 132 COLL, MARCHES, PALACIOS 4 COLS. ra que a tensdo muscular utilizada para tentar mover sua cama no é a mesma para levantar uma bexiga que acaba de cair de sua mao. Esse ajuste é importante, pois néio sé garante uma maior adequagao da agao a seu cbjetive, como também tem uma vertente de representacio e de controle voluntario do préprio corpo. Na medida em que afeta grandes grupos musculares, tonus repercute no controle postural e na maior ou menor extensibilidade das extremidades. O controle da tonicidade muscular também é importante, porque, atra- vés de complexos mecanismos neurolégicos, © ténus se relaciona, por um lado, com a ma- nutengao da atengiio e, por outro, com omun- do das emocées ¢ da personalidade. No que serefere & relagio com a atengao, a hipertonia muscular dificulta a manutencao da atengio, enquanto o relaxamento tende a facilitd-la. Um certo fundo ténico, no entanto, é preciso para manter um estado de alerta e de ativa- cdo. Aprender a controlar a tonicidade mus- cular é, portanto, facilitar a aprendizagem do controle da atengéio, No que se refere & cone- xo emocées-ténus, é uma relago bem co- nhecida por meio da qual as tensdes emocio- nais s4o traduzidas em tensGes musculares. A aprendizagem do relaxamento também é im- portante nesse terreno. - Sobre o equitibrio, dizemos que ele é faci- litado no primeiro ano pelo crescimento do cerebelo e que, além disso, é condicio de nos- so movimento e de nossas acées, Gracas ao fato de sermos capazes de manter nosso corpo em equilibrio, podemos liberar para a ago partes do corpo que, de outra maneira, estariam con- tintamente comprometidas na manutengao de uma postura estavel, Imaginemos simplesmen- te o inedmodo que seria ter de escrever e, a0 mesmo tempo, investir energia e atencao (e ‘bragos e méos!) na manutenciio do equilibrio, ou ter de caminhar e, ao mesmo tempo, esfor- gar-se para recuperar © equilibrio apés cada mudanga de posicao. Nossas autonomia funcio- nal e independéncia motora dependem da ma- mutengao de um equilfbrio que, como ocorre com os diversos componentes psicomotores que estamos considerando, esti sob o controle de mecanismos neuroldgicos, mas sem que isso implique impossibilidade de controle conscien- te. Se habitualmente nao somos conscientes de que esse controle existe, é porque o adquiri- mos cedo e sem dificuldades. Sobre o controle respiratério podemos di- zer algumas coisas parecidas com as que aca- bamos de mencionar para os dois aspectos jé analisados: ¢ uma importante fungio corporal sujeita a um controle automatico por parte do sistema nervoso, 6 que néo implica que a res- piracéio nao possa também ser submetida a um controle voluntério. Tal controle é importante, porque, como no caso do ténus muscular, a respiragio estd relacionada aos processos da atengao e das emogées, © controle respiraté- rio implica conhecer como se respira e contro- lar conscientemente (até onde isso for possi- vel) o ritmo e a profundidade da respiragao. Aestruturasdio do espago esta relaciona- da com a consciéncia das coordenadas nas quais nosso corpo se move e nas quais trans- corre nossa aco (Rossel, 1967). Desde os pla- nos espaciais mais elementares (para cima- para baixo, para frente-para tras) até os mais complexos de aprender (direita-esquerda), as criangas tém de ir representando seu corpo no contexto do cendrio espacial em que trans- corre sua vida, sendo capazes de organizar sua ago em fungao de parametros como perto- longe, dentro-fora, curto-longo, ete. Quando so capazes de utilizar essas nogées na acéo, esto em condigées de iniciar sua aprendiza- gem de nogdes espaciais, o que significa que ‘© espaco é dominado antes no nivel de acéo do que de representacdo. Para tomar conscién- cia da importincia de wma correta estru- turagdo do espaco, basta ir ao Item “A escri- ta”, deste mesmo capitulo, para ver o que é dito a esse respeito. Algo semelhante ocorre com a estruttragéio do tempo. A crianga situa sua aco e suas rotinas em alguns ciclos de sono-vigilia, de antes-depois, de manhé-tarde- noite, de ontem-hoje-amanha, de dias da se- mana-dias do fim de semana e é capaz de fa- zer isso em sua atividade muito antes de re- presentar simbolicamente essas nogdes. Por ‘outro lado, as nogées temporais siio ainda mais dificeis de dominar do que as espaciais, pois enquanto as relagdes espaciais sfio perceptiva- mente evidentes, as relacdes temporais somen- te existem pelas conexdes que se estabelecem mentalmente entre elas, por isso o desenvolvi- mento dos conceitos temporais é mais tardio do que o dos espaciais. Depois vem o que poderiamos denomi- nar “psicomotricidade visivel”, isto é, aquelas conquistas psicomotoras que observamos na atividade motora, que nao enyolvem tanto substrato para a realizacao de acgdes, como ‘corre com os aspectos que acabamos de ana- lisar, mas as proprias aces e sua correta rea- lizagdo, © Quadro 6.1 traz alguns dos princi pais avangos concretos que ocorrem entre os dois e os seis anos, embora seja conveniente voltar a chamar a atencao sobre o fato de que ocalendario de aquisigées e de avancos que aparece em tal quadro nao representa senao as idades médias em que as conquistas men- cionadas tendem a ocorrer. Nas destrezas descritas, podemos obser- var 05 avangos que ocorrem tanto na aquisigaio de destrezas motoras globais, que afetam amo- QUADRO DESENVOLVIMENTO PSICOLOGICO E EDUCAGAO, V1 133 tricidade grossa e o controle postural (ver, por exemplo, os progressos na corrida e seu con- trole), como na aquisigdo de destrezas segmen- tadas, que afetam a motricidade fina e 0 con- ole éculo-manual (ver, por exemplo, o pro- gresso no uso de instrumentos). Também po- demos observar a tendéncia a uma progressiva independéncia e diferenciagao dos movimentos, assim como a um controle e uma coordenacao cada ver mais afinados (ver, por exemplo, a pas- sagem de andar em um triciclo a andar de bici- cleta, ou os progressos no grafismo, sobre os quais falaremos mais adiante). Também deve- mos chamar a atengao para o fato de que mui- tos dos progressos nessa parte mais visivel da psicomotricidade estiio baseados nas conquis- tas &s quais haviamos feito referéncia um pou- co antes: 0 progressivo controle do equilibrio fica testemunhado, par exemplo, na passagem que vai de se manter durante alguns segundos sobre um pé s6 (dois a trés anos), a dar dois 6.1 Aquisicao de destrezas motoras no periode de dois a seis anos 2-3 anos Corer, em contraposigtio a0 andar rapido do segundo ano. * Manter-se durante alguns segundos sobre um pé 66. + Jogar uma bola com a mao sem mover os pés do lugar. + Utlizar a colher para comer. + Fazer garatujas. 3-4 anos Subir escada’s sem apoio, colocando um s6 pé em cada degrau, Andar alguns passos mancando. Pularentte 40 @ 50 em de distancia. Andar de trciclo, Usartesouras para recortar papel. Escovar os dentes. Vestir uma camisa. Abotoar @ desabotoar botdes. Desenhar linhas @ fazer desenhos com contornes. Copiar um circulo, 4-5 anos Descer escadas com desenvoltura e sem apoio, Celocando um pé em cada degrau. Gorter mancando (cinco pulos, aproximadamente).. Salar entre 60 @ 80 om de distancia. Maior controle pata comegar a correr, parar @ gitar. 56 ‘Andar sobre uma barra de equilibrio. Bom controle da comida: arrancar, parar e girar. Saltar uns 30 om em altura @ cerca de 1 m de distancia. * Langar e pegar bolas como criangas mais velhas. Cortar uma linha com tesouras. Dobrar papel, usar pungao para furar, colorir formas simples. Utiizar © garfo para comer. Vestir-se sem ajuda, Copiar um quadrado. anos Aprender a andar de bicicleta @ a patinar. Marchar ao ritmo de sons. Usar faca, martelo, chave de fenda Escrever alguns niimeros ¢ letras. Copiar um triangulo e, posteriarments, um losango. ee eee 134 COLL, MARCHES!, PALACIOS & coLs. ou trés pulos mancando (trés a quatro anos), a ampliar o namero de pulos (quatro a cinco anos) a ser capaz de caminhar sobre uma barra de equilibtio ea aprender a andar de bicicleta (cinco a seis anos). Embora nao tenha a ver com o desenvol- vimento psicomotor, vale a penamencionarra- pidamente outro fato que atesta o crescente controle que as criancas conseguem sobre 0 corpo nessas idacles: o controle dos esfincteres. As eriancas tém acesso a esse controle habitual. mente entre dois e trés anos, controlando as fezes antes da urina e se controlando de dia (um ano e meio a dois anos) antes de passar a se controlar durante a noite (dois e trés anos, como fica dito). Mas as variagées entre umas criangas ¢ outras siio muito marcadas (em con- junto, parece que as meninas sio capazes de se controlar um pouco antes do que os meni- nos), assim como entre os pais na forma de introduzir o controle. Como principio geral, pa- rece preferivel nao introduzit 0 treinamento Precocemente, pois a crianga pode nao possuir ocontrole necessitrio, e as relagdes com os adul- tos podem tomar-se desnecessariamente ten- sas, Sem diivida, treinar a erianga quando ela esta chegando & maturidade fisiolégica para controlar os esfincteres nao é 0 mesmo que treind-la quando ainda falta muito para conse- guia, assim como fazer esse treinamento a partir de um clima lidico ¢ relaxado nao é 0 mesmo do que fazé-lo a partir de um clima catregado de pressao emocional. ESTABELECIMENTO DO DOMINIO LATERAL DIREITO-ESQUERDO Embora 0 corpo humano seja morfolo- sicamente simétrico, com a metade esquerda siméttica a direita, do ponto de vista funcional é daramente assimétrico, de maneira que a maior parte das pessoas utiliza 0 braco e a per- na direitos do corpo muito mais do que os mesmos membros simétricos do hemicorpo es- querdo; algo parecido, mas menos evidente ¢ menos conhecido, ocorre com os olhos, dos quais um é dominante sobre 0 outro. As preferéncias laterais a que estamos nos refe- tindo podem ser homogéneas (ese é destro de olho, de brago e perna, ou canhoto de otho, brago e perna), ou cruzadas (e se é, por exem- plo, canhoto de olho e destro de braco e per- na). Quando ocorte a lateralidade eruzada, 0 mais freqiiente & que braco e perna estejam homogeneamente lateralizados (destros ou canhotos), e que o olho esteja cruzado em re- lacao a eles. Cerca de 10% das pessoas sio ca- nhotas, e a predominancia é dos homens em relagéo as mulheres. As pessoas ambidestras, com semelhante capacidade funcional em am. bos hemicorpos, so casos excepcionais. Na maior parte das pessoas, o hemisfé- tio dominante é 0 esquerdo, ja que 0 controle do cérebro sobre o movimento é contralateral Co hemisfério esquerdo controla os movimen- tos no hemicorpo direito, ¢ o hemisfério reito controla 0 hemicorpo esquerdo); essa é arazdo pela qual ser destro é o mais habitual. Por que, entéo, 10% das pessoas so canho- tas? Porque nelas o hemisfério dominante é 0 direito, seja por razbes hereditatias, seja por fatores relacionados a vida fetal; entre esses. iiltimos, foram mencionadas a exposicao pré- natal a horménios que afetam a maturacio do feto, assim como a postura do proprio feto no titero materno (Orlebeke, Knol, Koopmans € Boomsma, 1996). Portanto, ¢ se canhoto porque o cérebro apresenta uma domindncia hemisférica direita desde o inicio de sua con- formagdo, ou ainda porque essa dominancia & adquirida posteriormente, De qualquer ma- neira, modificar a preferéncia lateral da crian- ga 6 uma violéncia que nao afeta um simples habito ou mania, mas que entra em contradi- g80 com a organizacao estrutural basica de seu cérebro, No caso de algumas criancas, a preferén- cia lateral aparece claramente diferenciada jé na primeira infaincia. Outras criancas, no en- tanto, continuam com um certo nivel de inde- finigao durante os anos pré-escolares. Geral- mente, a lateralizacdo é produzida entre os trés e 08 seis anos, Se nao houve uma defini- <0 espontanea, convém lateralizar a crianga em um ou outrolado em torno dos cinco anos, enaturalmente antes que esteja envolvida na aprendizagem da escrita, Para isso, o melhor é partir de um diagnéstico que oriente para que lado ¢ preciso lateralizar (ver, por exem- plo, 0 teste de Auzias, 1975). No caso de pa- recer dar no mesmo, porque a crianca tem boas possibilidades tanto com um como com outro lado, talvez seja mais aconselhavel lateralizar para a direita, pois existem muitos aspectos instrumentais que em nossa cultura esto organizados em funcio dos destros, en- tre os quais podemos destacar a propria es- crita e sua orientacao da esquerda para a di- reita, No entanto, deve ficar claro que 0 fato de set canhoto nao esté associado a nenhum problema, ¢ nao ha nenhema razio pela qual isso deva ser evitado. Felizmente, em nossa cultura, os preconceitos contra o fato de ser canhoto que impunham o destro como nor- ma, com a sinonimia entre destro e habil, em contraposic&o a sinonimia esquerda (canho- to) e indbil, ja foram superados. Como norma geral em relagio & laterali- dade, se a crianca nao apresenta nenhum pro- blema, o melhor é nao intervir. Quando tiver de fazé-lo, essa intervenciio deve ser cuidado- sa, estar guiada pelo conhecimento das carac- teristicas da crianga, endo ocorrer, se possivel, nem antes dos quatro anos nem depois dos cin- co anos e meio. © ESQUEMA CORPORAL: SEUS COMPONENTES E SUA CONSTRUGAO ‘Até aqui insistimos, sobretuco, nos aspec- tos prixicos da motricidade, Gonvém agora dar atengio aos aspectos mais simbélicos, mas en- tendendo bem que sao indissocidveis e que nao podemos falar de representagao do corpo sem nos referirmos as atividades que com ele so realizadas ¢ ao contexto espacial e temporal em que essas atividades ocorrem, O conceito de esquema corporal se refere A representagiio que temos de nosso corpo, dos diferentes segmentos corporais, de suas possi- bilidades de movimento e de aca, assim como de suas diversas limitacdes. Essa complexa re- presentacdo vai sendo construida lentamente como conseqiténcia das experiéncias que rea- Kizamos com 0 corpo e das vivencias que dele temos; gragas a tal representagio, conhecemos nosso corpo e somos capazes de ajustar em cada DESENVOLVIMENTO PsicoLoaic E EDUCAGAO, vi 135 momento nossa agio motora a nossos propo- sitos (Mora e Palacios, 1990). Imagine-se nessas diversas situag6es: um amigo diz. que voce tem uma mancha bem de- baixo do queixo; estando sentado, o lapis cai entre seus pés, ¢, sem mover a cadeira, procu- raalcangé-lo, guiando-se pelo som que o lapis produz ao cair ou pela visdo que teve da posi- go do lapis antes de se abaixar; o despertador toca estridente de manhi cedo e vocé precisa desliga-lo urgentemente, vocé quer jogar um papel dentro de uma lixeira que esté a uma certa distancia e tem de decidir no atose vai se aproximar da lixeira ow se vai atiré-lo do lugar em que esta, Nessas situacdes, e em outras muito semethantes que poderfamos utilizar comoexemplos, so produzidos comportamen- tos rapidos e nfio-meditados em resposta as dé mandas da situagao: levar a m&o exatamente debaixo do queixo, flexionar o tronco ¢ dirigit a mfo ao lugar em que o lapis est (enquanto se mantém © olhar fixo no interlocutor), levar diretamente o dedo indicador ao interruptor do despertador, aproximar-se um pouco da li- xeira e jogar o papel dentro dela, Como é evi dente, estamos nos aproveitando continuamen- te de ter uma representacio bem articulada de nosso corpo e de suas relacdes com 0 ambien- te, Se ndo fosse assim, a realizacio de nossa atividade motora iria se ver continuamente entorpecida, ¢ estariamos sempre envolvidos em penosas tentativas e eros motores. Como se chega a possuir uma represen: tagfio do esquema corporal e das relaces cor- po-meio tao refinada e complexa? Através de um longo processo de tentativas e de erros, de ajuste progressivo da acao do corpo aos esti- mulos do meio e aos propésitos da ago; um processo.em que a imagem corporal inicial, em- brionéria e pouco precisa, vai ajustando-se e refinando-se em fungio das experiéncias pelas quais se vai passando. O que isso significa €, entre outras coisas, que o esquema corporal nao é uma questao de tudo ou nada, mas de uma construcdo progressiva em que novos ele- mentos vao sendo acrescentados como conse- qiténcia da maturagao e das aprendizagens que vio sendo realizadas. : Esses elementos com os quais se constréi © esquema corporal sao de naturezas distin- 1936 COLL, MARCHES!, PALACIOS & COLS. tas: perceptivas, motoras, cognitivas e lingiiis- ticas. A percepgao nos oferece evidéncias so- bre 0s diferentes segmentos corporais, tanto 0s referentes a nosso préprio corpo como ao corpo de outros; também nos oferece toda a informagio sobre o meio em que estamos imersos e sobre o ajuste de nossa agio as dis- tancias, direcdes, etc. O movimento nos ofere- ce informagées sobre nossas possibilidades de agao, sobre o alcance e as limitages de nosso corpo e de sua atividade e sobre as possibilida- des concretas de diferentes partes de nosso corpo. O desenvolvimento cognitivo nos per- mite integrar todas essas informagées em uma representagio coerente e integrada, dando lu- gara uma consciéncia denés mesmos, no prin- cipio, mais indiferenciada e sincrética e, pos- teriormente mais refinada e individualizada, tal como foi mostrado no final do Capitulo 3 na andlise da seqiiéncia que leva & aquisicao da consciéncia de si mesmo; conseguida em torno de um ano e meio, sera necessdrio acres- centar ainda a essa consciéncia de si que ainda nao é outra coisa seno “eu sou essa pessoa, diferente das demais pessoas”, muitos matizes € perfis concretos, parte dos quais se relacio- nam com a estrutura do corpo e suas possibili- dades de acao sobre o meio, A linguagem, por fim, é uma poderosa ferramenta que ajuda a individualizar as diferentes partes do corpo com seus rétulos verbais; atras das palavras (olhos, mos, dedos, cotovelo, etc.) se escondem con- ceitos que informam sobre o corpo e 0 organi- zam em torno de uma identidade cada vez mais diferenciada. Na raiz do esquema corporal se encon- tram todos os elementos anteriores e mais um de grande relevancia para sua construgao: a experiéncia social, As maos que acariciam o corpo do bebé, os bracos que o ninam, as pala- vras que nomeiam as partes de seu corpo, os pedidos para ele que indique a cabeca, os olhos, ete,, os jogos com que se estimula que ele lan- ce e pegue, as interagdes diante do espelho, a incitacao A imitacao, o ver com seus pais fotos ou videos em que a crianga se vé de diferentes Angulos e de costas, a observagao dos adultos e de outras criancas, etc, tudo isso sfio compo- nentes essenciais da experiéncia social que é tao relevante para a construcao do esquema corporal, tal como Wallon insistiu ja hd muitos anos (Wallon, 1946). Com os vimes anteriores é feito 0 cesto do esquema corporal. Se para precisar mais 0 conceito temos de destacar algum componen- te dos citados, temos de dizer que o esquema corporal é, sobretudo, um conjunto de repre- sentagdes simbélicas. A trama de percepgoes, de movimentos ¢ de conceitos verbais é ar- quivada como representagao do corpo em re- lagao ao espago circundante e nos eixos de simetria que definem o mesmo corpo dentro desse espago, Um esquema corporal bem es- tabelecido supée conhecer a imagem do pré- prio corpo, saber que esse corpo faz parte da identidade de uma pessoa; perceber cada par- te, mas sem perder a sensagio de unidade; conhecer as diferentes posigées que o corpo vai adotando e, finalmente, antecipar (traba- Ihando com representagdes) todas as novas posig6es que podem ser adotadas, assim como as conseqiiéncias que essas posigder e seqiién- cias de movimentos podem ter sobre 0 mes- mo corpo ou sobre o ambiente. Tudo isso serd preciso para levar com éxito até o interior da lixeira a bola de papel que comegdvamos a atirar alguns pardgrafos antes. Falar de como entender 0 conceito de es- quema corporal ndo nos deve deixar esquecer de algo de suma importancia: que sua constru- gfiondo é feita de uma vez, mas por um proces- so de melhoria gradual e de integracao de ex- periéncias que é necessariamente lento. Dos dois 05 seis anos, a construcio do esquema corpo- ral esté em plena elaboracao: as criangas au- mentam a qualidade e a discriminagao percep- tiva em relagdo a seu corpo e enriquecem o re- pertério de elementos conhecidos e de articula- Gao entre eles; o desenvolvimento das habilida- des motoras a que antes fizemos referéncia fa- cilita a exploracao do ambiente e a ago nele e sobre ele. Contudo, uma verdadeira construcao do eu-corporal nao ocorre, aproximadamente, até os cinco anos, quando os diversos elemen- tos se articulam e se integram conscientemente no todo, 0 movimento comeca a se “refletir’, e o processo de lateralizacao proporciona referen- tes estaveis. Os eixos corporais comecam a ser sentidos, e o mundo pode ser organizado com referéncia a posi¢&io do corpo: 0 que fica em frente ¢ © que fica atrés, & direita e & esquerda, cima e embaixo, O processo de construedo do esquema corporal culminard dos 7 acs 12 anos, com a potencializagao das representagdes mentais sobre 0 espago e o tempo, J se integram ple- namente sensagdio e movimento, o corpo pode ser descrite com preciso e eficccia tanto com apalavra como com o desenho, Para chegar aqui, foi preciso percorrer um longo caminho com trés grandes etapas: a primeira, de explo- ragao de si mesmo e observacao dos demais; a segunda, de tomada de consciéncia do préprio corpo e suas possibilidades e limitacées; a ter- ceira, de coordenagao, estruturacio e integra- ¢80 em uma representaco global e coerente. AEVOLUGAO DO GESTO GRAFICO E0 DESENVOLVIMENTO DA GRAFOMOTRICIDADE Do ponto de vista psicomotor, o dominio progressive do gesto griifico obedece a dupla influéncia de fatores maturativos ¢ sociais. Real- mente, tal e como se mostra no Quadro 6.1 nos comentdrios que fizemos sobre seu contet- do, a grafomotricidade é uma das habilidades cujo controle vai refinando-se ao longo desses ‘anos no sentido dos avangos maturativos que pemmitem ganhar destrezas tanto globais (o con- tole postural, por exemplo), como segmenta- es (motticidade fina, coordenagdo éculo-ma- ual). Mas, por outro lado, a partir do momen- tore que as ctiangas sio capazes de realizar ‘Stas prinieiras producées graficas, 0 entorno _ Sécial exerce uma enorme influéncia na mode. lagem das destrezas grafomotoras: dando ou ‘ao oportunidades para praticé-las, incentivan- “do mais ou menos a produgéio ou a reproducao de desenhos ou de letras, treinando no manejo ‘dos instrumentos de desenho e de escrita, inter- ido o significado das produgées graficas, = Como resultado dessa instrugéo mais ot explicita, as criangas vao adquirindo um plo repertdrio de destrezas especializadas, ivocamente culturais, de alto valor instru- tal per seu cardter tepresentacional. Sera exercicio dessas destrezas que aprenderao a ciar suas producdes como “desenho” ou 137 DESENVOLVIMENTO PSIGOLOGICO E EDUCAQAD, Vt “eserita’, A seguir, abordamos separadamente essas questdes, mas sendo bem conscientes de que tanto uma como a outra n&o se esgotam na consideragéo desses aspectos. O desenho Embora, como assinalam Thomas e Silk (1990), seja dificil precisar limites temporais, €normalmente a partir dos 18 meses que as criangas descobrem que podem iracar “pega- das” sobre superficies, utilizando instrumentos, como 0 lapis. T&o logo como descobrem a te- lagio causa-efeito existente entre seus gestos e 0s tragos que ficam, mostram tendéncia em pintar pelo prazer de mover seus bracos e stias mos e de observar o resultado de sua ativida- de, Esses primeiros tracos sao linhas retas fei- tas com todo o brago em movimento, sendo.a articulagao do ombro 0 ponto de partida, Como um bom exemplo do progresso proximo-distal, aparecerao depois tragos “em varredura”, uma espécie de ziguezague que jA mostra a inter. vengao da articulago do cotovelo, mas com 0 punho e os dedos ainda rigidos. Lim pouco antes dos dois anos, comegario a aparecer for- mas cirenlares que ja implicam a articulagio do punho. Esses primeiras tragos nao tém in- tengao representativa e nao obedecem a um planejamento prévio; so, fundamentalmente, um ato motor Préximo dos dois anos e meio e trés anos, ao mesmo tempo em que progrediram na exe- cugdo de setts tracos ena combinacao de for- mas retas ¢ circulares, as criangas comecam a relacionar suas produgées grificas com obje- tos e pessoas: sdoas garatujas. Embora, algu- mas vezes, as criangas possam anunciar que véo desenhar algo determinado, freqiiente- mente nao existe um planejamento prévio & realizagéo do desenho, mas uma interpreta- go, uma vez que o tenham completado e em uum contexto em que os adultos se interessem por eles. Freeman (1980, 1987) se referiu & flexibilidade com que as criancas interpretam seus desenhos nesses momentos de seu desen- volvimento e assinalou como, em algumas oca- sides, mudam a interpretagio no decorrer da elaboracao da garatuja ou como, passado al- 138 COLL, MARCHES|, PALACIOS & CoLS. guns momentos, podem atribuir-Ihe um novo significado, Em torno dos trés anos, os progressos no controle dculo-manual, no uso da articulagio do punho e no controle um pouco maior dos movimentos dos dedos sero traduzidas em um melhor controle do trago; criangas entre trés e quatro anos, realmente, j4 se tornam capazes de controlar o ponto de partida e de chegada do trago, de combinar diversos tracos para ob- ter uma figura ou reproduzir um objeto (com- binar circulo e retas para desenhar um sol, por exemplo). Além disso, aparece a consciéncia de estar desenhando, e a garatuja comeca a adquirir uma funcao intencionalmente repre- sentativa, razées pelas quais jé é possivel falar de desemhos até mesmo se o ntimero de tracos ainda for limitado e a repeticao e sobreposigao de formas forem freqiientes. Surgem nessa ida- de as primeiras representacdes da figura hu- mana, chamadas as vezes de “girinos”, repre- sentagées constituidas por um circulo do qual saem alguns riscos; embora o circulo adquira 05 tracos do rosto pelo esbogo de olhos, nariz.e boca desenhados em seu interior, vale também para 0 corpo inteiro, ja que dele saem as linhas que representam bragos e pernas (ver o pri- meiro desenho da Figura 6.2). Enquanto isso, progridem 0 controle e a coordenagio dos movimentos, cbtendo-se formas cada vez mais bem resolvidas em orientagio, tamanho, am- plitude e curvatura. Os progressos que ocorrem no desenho fieam bem evidentes pelos avancos no dese- nho da figura humana (Barrett e Eames, 1996; Goodnow, 1977). O “girino” inicial comeca a se diferenciar: aparece o corpo, representado por um circulo adicional sob a cabeca ou por um tridngulo, como no segundo desenho da Figura 6.2; diferenciam-se bragos de maos e pernas de pés, com os dedos desenhados, se- gundo 0 esquema de raios de sol. Logo, sio acrescentados novos elementos; bragos e per- nas so representados com linhas parelelas, o corpo aparece realizando alguma ago ou re- lacionado com algum objeto (ver terceiro de- senho da Figura 6.2). Nessa etapa, sao freqiien- tes os desenhos cujo estilo foi qualificado por Luquet (1927), h4 muitos anos, como “realis- mointelectual”. Séoimagens nas quais as crian- as mostram coisas ou cenas de acordo com o que sabem ou conhecem delas, mais do que como nos ofereceria uma fotografia. Podem, por exemplo, pintar o corpo de uma pessoa visto através de suas roupas, o que se conhece como desenhos “transparentes” ou de “raioX”. Isso nao quer dizer que quem desenha veja as coisas dessa maneira, obviamente; apenas bus- cam mais a expressividade do que o realismo. No desenvolvimento do desenho entre os cinco e os oito anos, as criangas tém de resol- ver outros desafios como a elaboragio de um maior ntimero de detalhes, a coordenagio de diferentes partes ou componentes de seus de- senhos e o desenvolvimento de imagens pro- gressivamente mais realistas (0 denominado “tealismo visual”) e com um maior grau de complexidade, Progressivamente, ao longo dessa evolucao, os desenhos vao incorporando mais detalhes tanto relativos ao rosto (sobran- celhas, orelhas, cilios) como ao resto do corpo edaroupa, assim como de outros complemen- tos. O progresso é bem ilustrado no quarto no quinto desenho contidona Figura 6.2, que, em seu conjunto, ilustra os progressos que es- tivemos comentando através do desenho da pessoa humana realizado pela mesma menina desde os trés até os sete anos, Naturalmente, os desenhos das criangas nao se limitam a figura humana, Em primeiro lugar, porque a partir dos quatro ou cinco anos a figura humana nfo aparece sozinha, mas acompanhada de objetos, de animais ou de outras pessoas; posteriormente, as coisas de- senhadas deixam de ser estiticas e sao repre- sentadas realizando ages ou interacdes. As fi- guras também podem aparecer em uma paisa- gem, marcada primeiro por uma linha de chao ou algo que indica o céu (nuvens, sol, etc.), paisagem que, com o passar do tempo, vai sen- do preenchida de elementos, transformando- se em um verdadeiro fundo sobre o qual se destacam as figuras centrais. Em segundo lu- at, porque as criangas desenham também ob- jetos e situagées que para elas so familiares e que se prestam as capacidades representativas de que dispéem em cada momento; em princi- pio, é tipico, por exemplo, o desenho de um carro composto de um par de cfrculos que re- presenta rodas e uma linha ovalada que repre- DESENVOLVIMENTO PSICOLOGICO E EDUCAGAO, V.1 FIGURA 6.2.0 desenho da figura humana por Paula aos 3, 4, genta o resto do veiculo. Entretanto, em rela- oa esses objetos ¢ ds sittuagdes em que apa- tecem representados, a ldgica evolutiva & si ‘ilar A descrita sobre 0 desenho da figura hu- mana: esquematismo inicial, realismo intelec- tual, realismo vistial, desenhos em contextos € representando ages ou interagdes, cada vez com mais detalhes e melhor técnica. ‘Além das consideragdes evolutivas ante- sores, devemos acrescentar que a informagio que aparece representada em um desenho de- pende tanto do conhecimento e dos sentimen- tos que as criancas tém sobre um tema dete: ‘ninado como da interpretagio e da selecao que fazem sobre quais aspectos aparecem em seus “desenhos, assim como de suas eapacidades para jealizar uma representacdo em que se mostra “uma visio determinada (Thomas e Silk, 1990) Bese a razdo pela qual os desenhos infantis “im sido considerados importantes por sett va- jor como indicadores do desenvolvimento in- ielectual ¢ evolutivo das criangas como ele- entos para a avaliagao da personalidade e oestado emocional. No trabalho clinico, os senhos, além de serem utilizados para 0 liagndstico de transtornos psicolégicos, sao wonsiderados importantes por seus fins tera- péuticos, de acordo com a hipdtese de que a expressio das emogées traz beneficios para a nide mental, A idéia subjacente em todas s3a5 propostas é de que os desenhos das as sfio uma expresso da inteligéncia anil, dos conceitos infantis ¢ da forma co- Imo se interpreta e se conhece 0 mundo nes- asidades, assim como também sto a expres- oon projegao dos estados emocionais e psi- 139 6e7 anos. quicos. A despeito do anterior, ¢ no que se tefere ao uso do desenho com fins diagnésti- cos, é preciso ser cautelaso e no utilizar © desenho como medida tinica (e, naturalmen- te, nao utilizar somente um desenho); para se perceber as cautelas que se deve ter ao usar ‘essa forramenta grafica tio til e expressiva, basta pensar que uma mesma crianga pode fazer produc&es muito diferentes ao longo de um mesmo dia (Goodnow, 1977). Finalmente, ndo podemos deixar de men- cionar as possibilidades educativas que tem © desenho, dado seu papel como manifestagao das capacidades criativas das criangas. Com 0 intuito de tirar do desenho um partido educa: tivo, devemos aproveitar ao maximo a etapa da educagio infantil, pois, a partir dos seis ou sete anos, as criangas comegam a ser menos produtivas e seus desenhos estao cada vez.mais Gominados por um aff realista, o que, por ot- tro lado, nao impede que continue sendo pos- sivel e desejavel a educacdo artistica a partir dessa idade. Aescrita Apesar da importincia da alfabetizagio na aquisigiio do saber cultural eapesar da aten- gio que a escola presta & aquisicao da escrita, é muito pouco o que se pesquisou sobre 0s as- pectos motores da escrita e os fatores que fa ‘vorecem ou dificultam uma escrita manual efi- ciente, A grande quantidade de literatura so- bre aquisi¢do, ensino e avaliagio da escrita da atengao primordial aos aspectos funcionais da 140 COLL, MARCHESI, PALACIOS & COLS. composigao escrita e nfo a suas destrezas ins- trumentais. Condemarin e Chadwick (1990) distin- gem trés etapas no desenvolvimento da escri- ta manuscrita: a etapa pré-caligrdfica, que abrange todo 0 periodo de aquisigio de des- trezas graficas especializadas, desde que a ga- ratuja tenta ser uma letra até o dominio da caligrafia; com freqiiéncia, o traco é trémulo ou inseguro, falta regularidade no tamanho e nainclinagao, as linhas apresentam ondulagdes ea ligacdo das letras é imprecisa. Alcanca-se a etapa caligrdfica infantil quando 0 aprendiz do- mina as destrezas motoras necessérias para produzir uma escrita ordenada e clara; nessa etapa, as formas so muito convencionais, ¢ a letra ndo esta personalizada. A etapa pds- caligrdfica se consegue depois da adolescéncia, quando se define um estilo ealigrafico pessoal € quando os aspectos instrumentais da eserita esto claramente subordinados & funcionalida- de da composigao escrita. No inicio da etapa pré-caligrafica, as pri- meiras letras que tipicamente as criangas ten- tam desenhar costumam ser do tipo “circulo”, “risco” ou “pente”, formas que s6 vagamente remetem a modelos que possam ter visto, mas que revelam que a crianga analisou a forma das letras e extraiu um de seus principais tra- 0s: que as letras sao construidas combinando tracos curtos, sejam uma reta e um circulo, se- jam varias retas (ver a primeira amostra da es- crita na Figura 6.3). Nessa garatuja inicial, que “brinca de ser como” escrita, influi o tipo de experiéncia que as criangas tenham com os modelos de escrita; aquelas que tiverem opor- tunidade de observar a eserita manual dos adultos tenderao & garatuja linear, um trago mais ou menos ondulado, talvez com alguma espiral ou algum Angulo, enquanto aquelas familiarizadas com a letra impressa ou para aquelas a quem os adultos mostraram a escri ta.com maitisculas comecardo desenhandole- tras soltas, em principio nao-alinhadas e de- pois juntas, como que formando palavras. As oportunidades de pratica e de acéio dos adul- tos determinam o ritmo em que esses tracos iniciais evoluem para formas mais convencio- nais de escrita. Ainda dentro dessa etapa pré-caligréfica, devem ser consideradas as produgGes escritas que ja tém uma maior semelhanca com os tra- gos da escrita e com a forma das letras, mas que ainda remetem a uma situagio em que se desenha letras muito mais do que se escreve; assim ocorre com a segunda ea terceira amos- ua de escrita da Figura 6.3, em que Paula de: senhou seu nome (que est4 acostumada a ver escrito, que as vezes se pede para que ela mes- ma escreva e que ela costuma fazer como uma parte a mais de seus desenhos). O progressivo dominio no controle, na coordenacao e na precisio dos movimentos implicados no trago das diferentes letras aju- da o aprendiz a diferenciar, a memorizar ea automatizar o padr&o motor correspondente a cada uma delas. Esse padrao, que recebe 0 nome de “alégrafo”, inclui a seqiiéncia de mo- vimentos, a diregao desses movimentos, 0 ta- manho proporcional dos diversos elementos e sua posigao no resultado final. O aldgrafo contém a informagao sobre as caracteristicas essenciais do tragado de cada letra e suas pos- siveis variagdes (mindscula-maitiseula). Cada frsaoat SO/)\% Peo pee Gaul FIGURA 6.3 Da etapa pré-caligrafica a caligrafia infantil, aldgrafo se adapta também as condicdes fisi- cas da escrita, que vém dadas pelas caracte- risticas do instrumento de escrita e do supor- te; 0s movimentos nao sao os mesmos, por exemplo, se escrevermos com lapis em um pa- pel, com giz em um quadro-negro, com um pedago de madeira na areia ou com pincel ato- mico em uma superficie curva. O repertério de alégrafos nos permite desenvolver, de ma- neira continuada, fluida e automatica, as gra- fias, ox movimentos da escrita que resultam no trago, permitindo ao escritor centrar sua atengao na composigao do texto e nao nos movimentos que deve executar. Quando as letras comegam a ser formas estaveis, diferenciadas e reconheciveis, o re- pertério de aldgrafos da crianga costuma ser ainda muito limitado, com apenas algumas poucas letras que se repetem sobre 0 papel. Essas primeiras letras freqiientemente siio pro- venientes de seu nome, ja que teve muitas opor- tunidades de ver sua forma escrita e pode tam- bém ter visto como um adulto a escrevia para elas (Garton e Pratt, 1989). A medida que se aproxima a idade escolar, os adultos vao dan- do mais énfase A preciso e qualidade dos tra- sos, @ as criangas vio sendo capazes de res- ponder a essas maiores exigéncias, como po- demos ver na evolucao da escrita do nome de Paula (Figura 6.3). A énfase na caligrafia se intensifica quando as criangas iniciam 0 ensi- no fundamental. A escrita caligréfica se caracteriza pela regularidade e pela fluidez. Toro e Cervera (1980) propdem dez indicadores para avaliar a qualidade da grafia: ajuste do tamanho da letra, regularidade no tamanho, oscilagao ou ‘tremor no traco, horizontalidade das linhas, re- gularidade no interalinhamento, proporcio entre zonas (corpo central X extremos superio- res ou inferiores), sobreposicao de letras, liga- cio natural ou uniao entre letras consecutivas, distorcdes nas tragos curvos das letras e regu- laridade na direc&o dos tracados verticais. Mas, embora 0 dominio eficiente das habilidades graficas seja imprescindivel para 0 acesso a esctita, éimportante assinalar que alcancar essa caligrafia regular e fluida nao equivale a saber escrevet: Escrever também é uma destreza fun- DESENVOLVIMENTO PSICOLOGICO E EDUCAGAO, v1 141 cional-comunicativa e uma destreza lingiiisti- ca. Portanto, a aptendizagem da escrita nfo é uma simples aprendizagem motora: supde, por um lado, a aquisicaio de um cédigo, de um sis- tema de sinais graficos convencionais que per- mite a comunicacéio, porque representam sig- nificados precisos e, por outro, a capacidade (e a vontade) para compér textos coerentes com esse cédigo. Isto é, além dos requisitos mo- tores, na aprendizagem da escrita pesam sig- nificativamente os componentes cognitivos e motivacionais. O fato de que aos cinco ou seis anos, as criangas possam, em geral, ter acesso aos tra~ gos da escrita nao significa que até essa idade nao se possa fazer nada em relaco ao treina- mento para a eserita, nem que tal treinamento tenha de ser iniciado necessariamente nessa idade, porque o controle fino ainda nao esta bem-estabelecido em muitas criancas, ¢ por- que eserever nao significa somente fazer tra- cos de uma forma determinada, mas também construir a capacidade para estabelecer rela- bes entre 0 trago grafico e o significado, que podem exigir mais tempo do que a aquisi¢ao da habilidade motora. Estudos citados por Garton e¢ Pratt (1989) indicam que se as crian- cas que ainda nao adquiriram as destrezas perceptivo-motoras necessarias para produzir as formas das letras com a qualidade que se costuma esperar delas forem submetidas a pe- nosos exercicios de cépia para os quais nao dispdem de habilidade nem de controle motor, estardo sendo expostas a uma tensdo que, em muitos casos, ira se traduzir em sentimentos de incompeténcia e em atitudes de rejeigia para tudo o que representa a escola. Embora seja arriscado fazer afirmacées gerais em funcao da grande variabilidade que existe entre algumas criangas e outras, tanto nos aspectos motores como nos cognitivos e na motivacdo, podemos dizer que, em geral, é pre- ferivel introduzir 0 ensino da eserita propria- mente dita um pouco mais tarde e que, em caso de divida, parece mais aconselhavel esperar do que cotrer, sobretudo considerando que essa espeta pode ser bastante aproveitada construti- ‘vamente para consolidar as bases motoras, cog- nitivas e motivacionais da escrita.

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