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Volume I
Festas, carnavais e patrimônios negros
Copyright © 2017 Martha Abreu, Giovana Xavier, Lívia Monteiro e
Eric Brasil (organizadores)
Apresentação 7
Martha Abreu, Giovana Xavier, Lívia Monteiro e Eric Brasil
1 Este texto é um livre ensaio sobre a história dos conceitos de cultura popular e negra,
elaborado a partir de nossa experiência de pesquisa e ensino na temática.
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constituíram em objeto de estudo. Foi durante o Iluminismo, no
século XVIII, que a ideia de uma “cultura do povo” inspirou as
primeiras coletâneas. A riqueza da poesia popular, em particular,
levou pensadores como Johann Gottfried Herder a desenvolver
um enfoque universalista, no qual a cultura de cada povo teria seu
valor próprio e incomparável. O Iluminismo, na verdade, abri-
gava posturas bem diferenciadas em relação à cultura das classes
populares. Enquanto alguns filósofos e cientistas viam os campo-
neses ao seu redor como incultos e carentes de tudo, outros, como
Rousseau e Diderot, geralmente identificados com a esquerda
desse movimento amplo de ideias, viam os homens comuns com
muito mais simpatia e mesmo construíram suas utopias sobre a
suposta nobreza dos “selvagens”. Quando a divulgação das ideias
iluministas foi seguida da invasão da Europa por tropas napoleô-
nicas, esse relativismo cultural foi deixado de lado. O interesse
pela cultura popular passou a associar-se à busca das raízes de
uma identidade nacional, capaz de contribuir para a resistência
contra as invasões estrangeiras. Destarte, a apropriação da cultura
popular para fins políticos tem uma longa história.
Cunhada em meados do século XIX, a palavra inglesa
folklore (saber do povo), ao lado de seus estudiosos, nasceu nesse
novo contexto e logo passou a ser usada em outros idiomas,
inclusive em português. Os folcloristas, dessa forma, ao longo
do século XIX, procuraram conhecer os costumes populares,
as expressões dos subalternos do mundo rural e continuaram a
elevá-las ao patamar das marcas da nacionalidade contra tudo
que fosse estrangeiro. Buscaram entre os costumes dos campo-
neses – seus poemas, músicas, festas, saberes, histórias e rituais
– encontrar as marcas de uma essência diferenciadora e autên-
tica, o espírito coletivo de um “povo” em particular, instrumento
para a construção de futuras nações ou consolidação de estados-
nações já existentes.
Os camponeses pareciam, aos olhos destes intelectuais,
ter guardado, desde tempos muito remotos, a tradição que pre-
cisava ser recuperada diante das ameaças da modernidade, da
sociedade industrial e da civilização exteriores. Desinteressados
dos reais problemas sociais do campesinato e dos trabalhadores
das cidades, ambos profundamente afetados com as transforma-
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políticos na América Latina, que procuravam associar as ima-
gens reconhecidamente populares (como o samba e a capoeira)
às identidades nacionais e à legitimidade de seus governos, tam-
bém passava a ser acionada por movimentos de esquerda e de
contestação a esses regimes. A expressão cultura popular cabia
bem nas bandeiras das lutas nacionalistas e socialistas contra o
imperialismo, a dominação estrangeira e a dominação de classe
no capitalismo.
Em meio a muitas disputas, artistas, políticos, literatos,
professores, intelectuais e ativistas participavam intensamente da
construção de novos e renovados atributos ao conceito, mas sem-
pre em diálogo com as primeiras versões dos folcloristas. Por um
lado, podiam associar a cultura popular à não modernidade, ao
local do atraso e do retrógrado, onde os oprimidos necessitariam
de uma consciência mais crítica, que precisava ser despertada
por lideranças intelectuais; por outro, existiam os que atribuíam
à cultura popular a evidência do futuro positivo do país, a partir
das singularidades da nação e da capacidade de resistência dos
populares às transformações da modernidade capitalista. Para
além dos folcloristas e órgãos do Estado, o conceito de cultura
popular era encontrado entre os intelectuais do Cinema Novo,
da Teologia da Libertação, dos Centros Populares de Cultura e
entre os educadores inspirados pelos princípios de Paulo Freire.
O golpe de morte ao conceito de folclore e aos folcloris-
tas no Brasil, a partir do final dos anos 1950, viria da sociolo-
gia, campo então que se constituía na USP, sob a liderança de
Florestan Fernandes. Os folcloristas passaram a receber críticas
profundas por não terem conseguido organizar um campo cien-
tífico respeitável e por ficarem identificados às forças mais con-
servadoras de uma sociedade que rapidamente se transformava,
cheia de conflitos sociais. Para Florestan, a integração nacional
não se realizava via integração cultural, como pretendiam os
folcloristas, mas através das transformações sociais, da integra-
ção dos estratos sociais marginalizados.6 As críticas tiveram tal
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ções da revolução industrial, os folcloristas valorizaram a ori-
gem popular autêntica, as continuidades, as sobrevivências e as
tradições que pareciam teimar em permanecer nas áreas rurais
e que pretensamente guardavam o que de mais autêntico havia
da alma nacional (na verdade, correspondiam mais às manifes-
tações regionais ou locais). Em geral, e isso também se aplicava
aos folcloristas brasileiros, preocuparam-se muito mais com as
expressões populares, seus objetos, canções, danças e festas,
do que com os sujeitos sociais construtores desses patrimônios.
Quase nunca nomearam os sujeitos sociais, para além das desig-
nações genéricas de “camponeses”, “povo” ou “negros” (para o
caso dos folcloristas que utilizaram a expressão cultura negra).
Apesar de muito enfraquecidos hoje como campo de
conhecimento e atuação, o folclore e os folcloristas deixaram um
impressionante legado intelectual expresso nas inúmeras obras
que publicaram e na implementação de políticas públicas, espe-
cialmente no campo educacional. Mas talvez o maior legado
tenha sido mesmo na formatação de uma especial forma de ima-
ginação e relação com a cultura popular: as constantes associações
da cultura popular com a alma da nação. Até hoje, especialmente
no Brasil, este olhar e postura obstinada dos folcloristas de buscar
as origens, as continuidades, as tradições (inventadas ou não) e os
perigos da urbanização e modernização, perseguem e assustam
todos os que se interessam pelos estudos das culturas populares e
negras. Precisamos sempre ter muito cuidado para não embarcar-
mos, sem cuidados e críticas, na máxima dos folcloristas de que as
culturas populares estão sempre ameaçadas e em perigo. Como já
nos ensinou Canclini, as culturas populares podem ser prósperas
na modernidade.2 E como mostrou Thompson, os costumes da
plebe pré-industrial foram incorporados na cultura e nas lutas da
classe operária oitocentista inglesa.3
Os estudos de folclore no Brasil seguiram um caminho
semelhante ao da Europa. Desde Silvio Romero e Mello Moraes
2 CANCLINI, Néstor Garcia. Las culturas populares en el capitalismo. México, DF: Nueva
Imagen, 1989. 1. ed. 1982
______. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo:
EDUSP, 1997.
3 THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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Filho, no final do século XIX, a cultura popular, a poesia popular
e mais entusiasticamente a música dita popular foram apontadas
por folcloristas como expressões da identidade nacional brasileira.
Mas os intelectuais brasileiros (e também os da América Latina)
produziram uma discussão bastante original para o campo então
em construção: a cultura popular não seria apenas a expressão
autêntica do “povo” intocado do mundo rural, mas a do “povo
mestiço”, fruto do histórico encontro entre portugueses, índios e
africanos, desde os primeiros tempos da colonização.
Foi longa a carreira, no Brasil, do conceito de cultura
popular associado à ideia positiva da mestiçagem, logo acrescida
da de “democracia racial”, a partir dos anos 1940. As discussões
sobre cultura popular – e música popular – acompanhavam de
perto as dúvidas e certezas sobre os efeitos da mestiçagem racial
e cultural para a nação. Já na Primeira República, apareciam as
primeiras formulações sobre como a positiva mistura das raças e
das culturas, especialmente no campo musical e festivo, poderia
proporcionar a harmonia racial, social e nacional.4
A partir dos anos 1940, o folclore ganhou dimensões
mais oficiais com a constituição do “Movimento Folclórico Bra-
sileiro”.5 O Movimento Folclórico, principalmente entre 1947 e
1964, produziu então uma vertente significativa do pensamento
antropológico e se imbuiu de uma importante missão de constru-
ção nacional por via da integração cultural (das regiões, das clas-
ses e das raças). Grandes figuras, de diferentes tendências, desta-
caram-se no folclorismo brasileiro, entre eles, Renato Almeida,
Rossini Tavares de Lima, Artur Ramos, Luís da Câmara Cas-
cudo e Edison Carneiro (com artigo sobre ele em nosso livro).
Por reunirem intelectuais de diferentes tendências, dos
mais conservadores aos ligados às ideias comunistas, os folcloris-
tas nunca conseguiram dominar todos os sentidos possíveis atri-
buídos ao folclore e à cultura popular. A partir dos anos 1950, se
a expressão cultura popular passava a ser assumida por regimes
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repercussão que a expressão folclore hoje possui significados
negativos, assumindo até mesmo conotações ligadas ao anedó-
tico e ao ridículo.
Apesar da derrocada dos folcloristas, a expressão cultura
popular (por vezes ainda imbricada com folclore e com o seu
legado) sobreviveria no pensamento de esquerda, nas escolas,
entre agências de turismo, nas associações de folclore estaduais
e entre os próprios detentores da cultura popular. Continuariam
diversos seus usos e significados, imersos em muitas disputas aca-
dêmicas e políticas.
Até os anos 1970, na Europa, e 1980, no Brasil, pou-
cos historiadores tinham se interessado por cultura popular ou
pela existência de diferenças culturais no interior das chamadas
sociedades civilizadas, campo então ocupado por folcloristas,
antropólogos e sociólogos. A cultura dos subalternos não era
uma problemática que atraía a atenção de historiadores até os
trabalhos de E. P. Thompson, Carlo Ginzburg, Robert Darn-
ton, Peter Burke, Giovani Levi, entre outros, que então realiza-
vam importante revisão do marxismo no campo da cultura e na
construção da chamada história “vista de baixo”.7 A partir daí,
passou-se a pensar historicamente a relação entre culturas popu-
lares (ou subalternas) e dominantes, as formas de dominação e
autonomia em termos culturais construídas pelos sujeitos sociais
e históricos concretos. Até que ponto havia subordinação? Até
que ponto a cultura popular era alternativa e resistente? Como
entender a circularidade, as apropriações e os diferentes signifi-
cados das práticas culturais? Em termos tropicais, como enten-
der os sincretismos culturais e religiosos construídos pelos sujei-
tos sociais diversos, e de diferentes classes sociais, que, em doses
variáveis, demonstravam autonomia de ação e pensamento?
A pauta de pesquisa dos historiadores no Brasil se
abriria para uma série de novos problemas e questões. A his-
toriografia dos anos 1980, a partir de trabalhos de mestrado
e doutorado, incorporaria definitivamente os estudos de cul-
tura popular, tanto no período colonial, como ao longo dos
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séculos XIX e XX, nos campos da história do trabalho, na
história política e cultural.
8 “He would not bleach his Negro soul in a flood of white Americanism, for he knows
that the Negro blood has a message to the world”. (DU BOIS, W. E. B. The Souls of Black
Folk. Oxford: Oxford University Press, 2007. p. 9, 1 ed. 1903). Tradução para o portu-
guês de Heloisa Toller Gomes, As Almas da Gente Negra, Rio de Janeiro: Lacerda, 1999.
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Nina Rodrigues, em particular, interessava-se pelas
práticas religiosas dos africanos ainda vivos na sua época,
que considerava mais “puras” do que na cultura popular afro
-baiana abrangente. Devido ao seu viés racialista, inspirado
pelas teorias raciais e racistas europeias, criticava o que lhe
parecia ingenuidade dos abolicionistas, defensores das positi-
vas consequências da mestiçagem. Seu trabalho empírico pio-
neiro lhe fez entender as identidades étnicas mais específicas,
formadas no seio da cultura popular baiana – em particular no
campo religioso –, e associadas à ideia de nação (hausá, ijexá,
queto, jeje, angola, congo etc). As reflexões de Nina Rodrigues,
construídas à luz das teorias europeias e do próprio antago-
nismo interno entre essas nações, resultaram numa formulação
que subdividiu hierarquicamente a cultura negra no Brasil em
dois macrogrupos: dos mais autênticos “sudaneses” aos menos
seguidores das tradições, os “bantus”.9 Essa formulação ainda
se encontra presente nos estudos sobre cultura negra, mas vem
sendo criticada por vários antropólogos, como Beatriz Góes
Dantas e Stefania Capone.10
Mesmo Manuel Querino, apesar de mais empático
e afirmativo em relação à cultura negra do que Nina Rodri-
gues, também não escapou do saudosismo, ao descrever costu-
mes condenados a desaparecer na Bahia. O desafio era então
diagnosticar até quando sobreviveriam os traços “africanos” no
Brasil? Até a morte dos últimos africanos? De qualquer forma,
Querino, ao apresentar em 1918 seu trabalho sobre “O colono
preto como fator da civilização brasileira”, deu um passo impor-
tante para o reconhecimento de uma cultura negra distinta das
“sobrevivências” africanas.11 Edison Carneiro, por sua vez, um
dos alunos mais proeminentes de Nina Rodrigues, em mono-
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grafia pioneira, tentou fazer justiça à “contribuição bantu” ao
folclore da Bahia, que o mestre teria subestimado.12
Os prognósticos sobre a mestiçagem, racial e cultural,
geralmente vinham acompanhados das apostas no “branquea-
mento” ou no rápido desaparecimento das matrizes africanas
da cultura brasileira. Se os intelectuais reconheciam a contri-
buição, a positividade e originalidade, frequentemente confia-
vam na transformação ou diluição dos traços africanos, raciais
e culturais, no caldeirão mestiço da “alma nacional” brasileira.
O melhor caminho para se pensar a cultura negra continuaria,
por muito tempo, a ser no âmbito das “contribuições” para a
cultura popular brasileira mestiça. O debate e as polêmicas fica-
vam mesmo por conta do local, do tamanho e do peso dessas
contribuições para a construção imaginária da nação.
Entre os interessados no folclore, a obra de Artur Ramos
pode ser vista como uma das primeiras tentativas de se pensar
teoricamente a cultura negra dentro do contexto brasileiro.
Artur Ramos, com O negro brasileiro (1934), O folclore negro do Bra-
sil (1936), As culturas negras no Novo Mundo (1937), e A aculturação
negra no Brasil (1942), introduziu renovadas perspectivas de aná-
lise, desafiando as teorias pseudocientíficas que autorizavam o
racismo e as teorias sobre as desigualdades raciais e culturais. Os
africanos e seus descendentes das Américas não haviam, como
pensara o sociólogo norte-americano E. Franklin Frazier, che-
gado despossuídos de cultura, nem mesmo a escravidão havia
aniquilado o legado africano. Ramos reconhecia a importância
das “contribuições” negras e/ou africanas.
Artur Ramos teve o grande mérito de estimular o olhar
para as culturas negras no Novo Mundo, percebendo que o pro-
blema cultural e racial a ser discutido não era apenas nacional.
Nesta operação, dialogou com especialistas nos Estados Unidos e
no Caribe, como Herskovits e Fernando Ortiz, e criou um campo
respeitado de estudos e pesquisas na antropologia e no folclore.
Mesmo que apostasse no fenômeno da aculturação e da transfor-
mação cultural, Ramos começou a pensar também nas continui-
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dades, nos chamados “africanismos” e/ou “sobrevivências africa-
nas” que teimavam em permanecer no Novo Mundo, até mesmo
nos Estados Unidos, influenciando de forma profunda todos os
americanos, no campo religioso, musical e festivo. Para os que
acreditaram “num pretenso ‘branqueamento’ arianizante”, aler-
tava que nada poderia “mudar a face dos nossos destinos”.13
Outra contribuição importante foi a de Roger Bastide,
estudioso das religiões afro-brasileiras que constituiu escola no
Brasil. Bastide enfatizou o sincretismo interafricano na forma-
ção do candomblé, e estabeleceu uma distinção entre formas
africanas (que teriam mudado pouco), afro-americanas (recriação
de elementos africanos em formas novas) e negras (resposta à
escravidão sem incorporar tradições africanas). Sua pesquisa,
mais antropológica e estruturalista, aprofundou a concepção de
Ramos da cultura negra brasileira como parte de uma configu-
ração mais abrangente e atlântica.14
O amplo uso da expressão cultura popular de certa
forma eclipsou as discussões sobre cultura negra no Brasil e
incorporou o problema da negritude no guarda-chuva abran-
gente das expressões populares. Certamente, a força do mito
da democracia racial, tornado bandeira de luta dos próprios
movimentos negros, entre os anos 1930 e 1960, também difi-
cultou o foco nos problemas raciais da cultura popular. As mais
conhecidas experiências do Teatro Negro, nos anos 1940/1950,
de Abdias do Nascimento, e do Teatro Popular Brasileiro, de
Solano Trindade (com texto em nosso livro), atribuíram impor-
tante papel à música, dança e religião negras, mas, salvo engano,
não parecem ter investido profundamente na especificidade da
cultura negra no cenário cultural popular brasileiro. Mas, sem
dúvida, atuaram de forma contundente no combate ao racismo
no campo artístico e na denúncia da repressão aos candomblés e
centros de umbanda, na defesa da população negra, em termos
econômicos, políticos e culturais.
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Cultura negra e pauta política contemporânea
Certamente não foi mera coincidência que, a partir da
década de 1980, com a abertura política, a reestruturação dos
movimentos negros e o combate sistemático ao mito da demo-
cracia racial, o conceito de cultura negra tenha cada vez mais
ficado em evidência, concorrendo ou mesmo substituindo o con-
ceito de cultura popular.15 Cultura popular não daria mais conta
de outros desafios políticos colocados pelos movimentos cultu-
rais de combate ao racismo e da naturalizada ideia de um Brasil
mestiço, integrado racial e culturalmente. A discussão da domi-
nação de classe, na qual o conceito de cultura popular cabia
confortavelmente, não mais dava conta das lutas de combate ao
racismo no Brasil.
Assim, o conceito de cultura negra, ao lado do de cultura
afro-brasileira, passou a cumprir o papel de não apenas enfati-
zar a “contribuição” africana, mas de argumentar que esta havia
sido dominante para a maioria das manifestações consideradas
“tipicamente brasileiras”, como o samba ou a capoeira. A redis-
cussão dos africanismos no Brasil, ou da “extensão” das culturas
africanas nas práticas culturais de setores negros e populares,
tornou-se uma nova pauta de pesquisa de antropólogos, sociólo-
gos e historiadores.16 Não mais sob a ótica das “expressões cul-
turais” negras ou afro-brasileiras, mas sim a partir da ação de
sujeitos sociais concretos que recriam os patrimônios herdados
em diálogo com novos desafios e situações históricas concretas.
Em meio a esses debates, novas abordagens têm criti-
cado a tendência de definições essencializadas da cultura negra,
valorizando, como fazem Stuart Hall e Paul Gilroy, o quanto as
identidades culturais são políticas e dependentes das lutas mais
amplas contra o racismo e pela implementação de políticas de
reparação. Os clássicos dos cultural studies têm mostrado o quanto
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são problemáticos esses conceitos reificados do “popular”, suge-
rindo análises diferenciadas segundo as várias fases históricas: o
“folclore” das sociedades pré-industriais, a cultura popular das
classes trabalhadoras dos séculos XIX e XX, e a cultura de mas-
sas da segunda metade do século XX em diante.17 O conceito de
“Atlântico Negro” foi desenvolvido por Gilroy justamente para
superar o essencialismo América versus África e (re)introduzir a
ideia de negritude transatlântica e de diáspora africana.18
Certamente, o documento mais emblemático para mos-
trar os novos tempos de valorização da cultura negra (e da popu-
lação negra) é a lei que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino
de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas do país
(Lei 10.639, de 2004). Nas “Diretrizes curriculares nacionais para
a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história
e da cultura afro-brasileira e africana”, que regulam e dispõem
sobre a lei, fica evidente o novo contexto de produção e disputa
em torno do conceito de cultura negra. A cultura negra, ou afro
-brasileira, termo oficializado na lei, provavelmente em função
das preocupações com a valorização das matrizes culturais não
europeias,19 passa a fazer parte de um movimento maior de afir-
mação de direitos dos afrodescendentes, do reconhecimento e
valorização de sua cultura e história. A preocupação do docu-
mento é com a história e a cultura da população negra.
Claro que esta guinada conceitual e política não resolve
todos os impasses e desafios que a adjetivação da cultura, como
cultura negra ou afro-brasileira, pode trazer, tais como pensar
17 HALL, Stuart. “Notes on Deconstructing ‘the popular’”. In: SAMUEL, Raphael (Ed.).
People’s History and Socialist Theory. London: Routledge & Kegan Paul, 1981. p. 227-240.
______. “Notas sobre a desconstrução do popular”. In: ______. Da Diáspora: identidades
e mediações culturais. Organização Liv Sovik. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília:
UNESCO no Brasil, 2003. p. 247-264.
18 GILROY, P. O Atlântico Negro. Rio de Janeiro: UCAM/Ed. 34, 2001.
19 Vale uma investigação mais aprofundada sobre os usos atuais dos conceitos de cul-
tura negra e afro-brasileira. Se os termos podem ser encontrados como intercambiáveis,
houve uma deliberada preferência no documento das “Diretrizes” por cultura afro-bra-
sileira. A expressão cultura negra raramente é encontrada no texto. Mais comuns são
expressões “respeito às pessoas negras, sua cultura e história”, “história e cultura dos
negros”. Em geral, no texto das Diretrizes, as pessoas e a população são negras; a cultura
é afro-brasileira. Na Lei 10.639 são encontradas as duas expressões: cultura negra e
cultura afro-brasileira.
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apenas nas continuidades africanas, abrindo mão dos trânsitos
culturais e recriações implementadas pelos africanos e seus des-
cendentes no Brasil. Se a valorização das continuidades pode
facilitar as avaliações sobre a resistência, corre-se o risco de des-
prezar o potencial de criatividade e transformação dos sujeitos
sociais negros, herdeiros do patrimônio africano. Da mesma
forma, o vasto campo de produção de formas de cultura popu-
lar no Brasil, na atualidade, não pode mais ser classificado como
“tradicional”, “nativo”, muito menos “oral”, como nos tempos
de Mello Moraes, Nina Rodrigues ou mesmo Artur Ramos. Os
detentores da cultura popular/cultura negra hoje participam
também da cultura de massas, da escrita, e do universo digi-
tal na internet. As fronteiras entre as categorias “tradicional” e
“moderno”, “popular” e “negro” ou “afro-brasileiro” são por-
tanto embaraçadas e pouco precisas. O que Karin Barber escre-
veu para a cultura popular africana também pode ser aplicado
ao Brasil: “[…] the conceptions of ‘popular’ circulating today
are not just contested and ambivalent, simultaneously descrip-
tive and evaluative, but also historically layered and subdivided,
carrying with them residues of regret for worlds we have lost”.20
Sem dúvida, são inúmeros os desafios para os que se inte-
ressam em trabalhar com cultura negra na História, na pesquisa
e no ensino. Como escapar dos reducionismos e essencialismos
e, ao mesmo tempo, combater o racismo a partir da valorização
da cultura negra, ou das culturas negras no plural? O próprio
Stuart Hall sugeriu que uma boa possibilidade talvez seja diri-
gir “a nossa atenção criativa para a diversidade e não para a
homogeneidade da experiência negra”, apesar da evidente dis-
tinção de um conjunto de experiências negras comuns,21 histo-
ricamente datadas, como a diáspora, o racismo e a escravidão.
20 BARBER, Karin. Introduction. In: ______ (Ed.). Readings in African Popular Culture.
Oxford: James Currey& Indiana University Press, 1997. p. 3. (“… as concepções do
‘popular’ que circulam hoje não são apenas contestadas e ambivalentes, descritivas ao
mesmo tempo que avaliativas, mas também historicamente superpostas e subdivididas,
carregando com elas os resíduos da nostalgia dos mundos que perdemos”).
21 HALL, Stuart. “Que negro é esse na cultura negra?”. In: ______. Da Diáspora: iden-
tidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Bra-
sília: UNESCO no Brasil, 2003. p. 346.
GILROY, P. O Atlântico Negro. Rio de Janeiro: UCAM/Ed. 34, 2001.
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Cultura popular negra é “um lugar contraditório”, um
“espaço de contestação estratégica” que vale a pena enfrentar.22
Os capítulos deste livro são um convite a essa empreitada e pre-
tendem ser uma contribuição para esses debates e questões, a luz
de novos trabalhos de pesquisa dos historiadores.
22 HALL, Stuart. “What is this ‘Black’ in Black Popular Culture?”. Social Justice, v. 20,
n. ½, p. 104-114, 1993.
______. “Que negro é esse na cultura negra?”. In: ______. Da Diáspora: identidades
e mediações culturais. Organização Liv Sovik. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília:
UNESCO no Brasil, 2003. p. 335-349.
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