Você está na página 1de 3

04/09/2018 Blade Runner, o caçador de andróides

Blade Runner, o caçador de andróides


problemasfilosoficos.blogspot.com/2015/04/blade-runner-o-cacador-de-androides.html

Este é o terceiro texto de uma série


que estou escrevendo para uma
disciplina da Graduação em
Filosofia da UFPR denominada
Filosofia e Cinema, em que procuro
exercitar a reflexão acerca dos
problemas filosóficos por meio de
filmes. Creio que filmes podem ser
bons meios de apresentação de
problemas filosóficos na medida em
que apresentam situações que
desafiam nossas crenças Replicante Roy Batty,
fundamentais e, assim, interpretado por Rutger Hauer
desencadeiam a reflexão filosófica.
Os textos dessa série são destinados
àqueles que já assistiram os respectivos filmes, pois contêm revelações sobre seus respectivos
enredos.
O filme Blade Runner, do diretor Ridley Scott (baseado no livro Do androids dream of electric
sheep? [Andróides sonham com ovelhas elétricas?], de Phillip K. Dick), foi filmado em 1982, mas
a história se passa na Los Angeles de 2019, mais de trinta anos depois, num futuro sombrio,
em que os Estados Unidos está tomado pela cultura oriental. Alguns anos antes disso, uma
corporação cria seres artificiais, andróides orgânicos, quase idênticos aos seres humanos, os
replicantes, para trabalharem como escravos na exploração e colonização fora da Terra. A
última geração é mais forte e mais inteligente que os humanos médios. Depois de uma
revolta dos replicantes, surge um grupo de caçadores de replicantes chamado Blade Runner.
Os Blade Runners têm autorização para matar os replicantes e o ato de matá-los é chamado
de afastamento ou aposentadoria (retirement). Deckard, o protagonista do filme, é chamado
pela polícia para trabalhar como Balde Runner e matar quatro replicantes que estão em Los
Angeles.

As questões filosóficas fundamentais que o filme coloca são sobre a natureza humana (a
questão central da antropologia filosófica) e sobre os critérios para que um ser seja digno de
consideração moral. Tendemos a pensar que nós, humanos, somos muito diferentes de
computadores e/ou robôs; tão diferentes que estes não poderiam ser considerados humanos
ou, mesmo sendo muito parecidos, por não serem humanos, não poderiam ter o mesmo
estatuto ético que os humanos têm. Nos parece repugnante a idéia de sermos comparados a
seres artificiais como as máquinas, pois nos sentimos metafisicamente diferentes delas e, por
causa dessa diferença metafísica, moralmente superiores.

Ora, se pensarmos nas máquinas, computadores e robôs que temos agora, essa repugnância
não é de todo injustificada. Eles realmente são não apenas fisicamente muito diferentes de
nós, mas seu comportamento também é muito diferente. Nenhuma de nossas máquinas tem o
comportamento tão complexo quanto o nosso, mesmo que sejam mais fortes e/ou consigam

https://www.printfriendly.com/p/g/h5REK6 1/3
04/09/2018 Blade Runner, o caçador de andróides

realizar algumas tarefas mais rapidamente e de forma mais precisa que nós. Não parece
haver boas razões para se atribuir mentes às nossas máquinas, e, portanto, tampouco
emoções, sentimentos, sensações, atitudes proposicionais, com crenças, desejos, etc.

Entretanto, que nossas máquinas sejam assim parece ser uma situação puramente
contingente, que se deve ao estado do nosso conhecimento e de nossa tecnologia usados
para fabricar máquinas. O que o filme sugere é que seres artificiais cujo comportamento é tão
complexo quanto o dos seres humanos são possíveis. São seres capazes de falar, raciocinar,
resolver problemas, fazer planos, desejar, crer, temer, sonhar, ter sensações, sentimentos e
emoções. Mais que isso: são seres artificiais feitos de material orgânico artificial.

Alguém poderia dizer que estes seres apenas simulam o comportamento de um ser com
mente, que agem como se tivessem mente, mas de fato não têm. Todavia, que justificação
temos para crer nisso? O que nos faz crer que nós mesmos temos mente? Alguém poderia
dizer: eu sei que tenho mente porque tenho consciência do conteúdo da minha mente, mas
não posso ter esse acesso à mente de um ser artificial! Todavia, se não ter acesso à mente de
um ser artificial como uma pessoa tem à sua própria (supondo que faz sentido falar aqui em
acesso) é razão suficiente para que essa pessoa negue a atribuição de mente a um ser
artificial, então isso é razão suficiente para que essa pessoa negue a atribuição de mente aos
demais seres humanos, pois ela tampouco tem acesso à mente dos demais seres humanos
como tem à sua própria. Atribuímos mente aos demais principalmente baseados no seu
comportamento, mas também baseados no conhecimento da relação entre esse
comportamento e o funcionamento do nosso organismo. Se o organismo dos replicantes é no
mínimo análogo ao nosso e seu comportamento é tão complexo quanto o nosso, que razão
temos pra negar mentes a eles que não é igualmente suficiente para negar mente aos demais
seres humanos?

Mas se não temos razão para não atribuir aos replicantes toda sorte de estados e processos
mentais que atribuímos a outros seres humanos, que justificativa há para que sejam tratados
como são no filme Blade Runner? Que justificativa há para escravizá-los e matá-los como
quem joga um computador velho no lixo? Apenas o fato de terem sido criados por seres
humanos? O simples fato de serem artificiais? Que justificativa há para tratá-los como
moralmente inferiores? No filme, nenhuma dessas perguntas é respondida explicitamente.
Parece que a resposta implícita é: os replicantes são moralmente inferiores porque são
artificiais. Mas essa não parece uma resposta aceitável.

O que está operante nessa discussão é um conceito de ser humano que não é biológico. O
conceito biológico de ser humano não é problemático. Ser humano, no sentido biológico, é
aquele ser vivo que possui um certo DNA. O sentido não-biológico de ser humano é aquele
que usamos quando dizemos, por exemplo, que uma pessoa é mais humana que outra, ou
quando dizemos que certos animais não-humanos (no sentido biológico) parecem mais
humanos (no sentido não-biológico) que os próprios humanos. Esse conceito de ser humano
é aplicado com base em critérios comportamentais, especialmente baseado no
comportamento que expressa sentimentos, emoções e atitudes morais. Um ser humano, nesse
sentido, não necessita ter o nosso DNA. Ser humano, nesse sentido, é ter atitudes morais e/ou
ser digno de consideração moral. Vinculamos assim a humanidade da moralidade porque o
ser humano (no sentido biológico) é o nosso exemplo paradigmático de ser dotado de
atitudes morais e/ou digno de consideração moral. Mas o replicante Roy mostrou empatia e
compaixão quando, na última hora, salvou Deckard da morte. O que mais é necessário para
considerá-lo, reconhecê-lo, como humano, como digno de consideração moral?
https://www.printfriendly.com/p/g/h5REK6 2/3
04/09/2018 Blade Runner, o caçador de andróides

A pergunta fundamental aqui é: quais são os critérios para se considerar um ser como digno
de consideração moral? Parece que ser um ser com nosso DNA não é uma condição
necessária. Tais critérios, sejam quais forem, se aplicam a seres artificiais e a animais não-
humanos (no sentido biológico)? Veganos em geral tem como principal premissa para
justificar seu veganismo a tese que tais critérios se aplicam a animais não-humanos. Se isso é
o caso, não-veganos seriam incoerentes ao sustentar o especismo, a tese que nós, da espécie
humana (no sentido biológico), temos privilégios morais que animais não-humanos não têm.
Em Blade Runner, os humanos sustentam um tipo de especismo em relação aos replicantes:
nós humanos (no sentido biológico) temos privilégios morais que replicantes não têm. Mas
esse ou qualquer especismo está justificado?

Há uma diferença entre a versão do filme que foi exibida no cinema e a última versão,
totalmente editada por Scott. Na última versão há uma cena acrescentada em que Deckard
parece sonhar com um unicórnio. No final, quando Deckar volta à sua casa para buscar Rachel
e fugir com ela, ele encontra um origami de um unicórnio no chão em frente à porta. Quem
deixou o origami foi o policial Gaff, que sabia que Rachel era uma replicante. Como ele sabia
do sonho de Deckard? Isso sugere que o sonho de Deckard é um implante e que ele, por isso,
é um replicante. Isso é reforçado por duas cenas anteriores do filme. Em uma, Deckard evade
à pergunta de Rachel sobre se ele já tinha se submetido ao teste que detecta replicantes. Em
outra, ao chegar ao topo do edifício onde Roy morreu, Gaff diz a Deckard: "Você fez um
trabalho de homem, senhor!" Isso reforça a tese que Deckard não é um homem, um ser
humano. Scott afirmou explicitamente em 2002 que Deckard é um replicante e nisso o filme
se difere do livro, em que não há dúvidas que Deckard é humano. Gaff sabe que ambos são
replicantes e os deixa fugir, provavelmente porque não via nenhuma razão moral para fazer o
que se supunha que ele fizesse  nesse caso: matar ambos. Mas qual a relevância filosófica
disso? Isso reforça ainda mais a tese que ser ou não humano (no sentido biológico) é
irrelevante para ser digno de consideração moral.

https://www.printfriendly.com/p/g/h5REK6 3/3

Você também pode gostar