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O MUNDO QUE

O PORTUGUÊS CRIOU
POR ANTÔNIO SÉRGIO*

Se as relevantes conferências de Gilberto Freyre aparecessem edita- (*) Extraído de O mundo que o
português criou— aspectos das
das em Portugal, n ã o seria coisa absolutamente impossível q u e algum relações sociais do Brasil com
Portugal e as colônias portu-
mais distraído entre os leitores portugueses concebesse a idéia de q u e o guesas. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1940 (coleção Do-
m e u prefácio poderia ser u m a espécie de apresentação, se b e m q u e o cumentos Brasileiros, vol. 28).
autor seja hoje entre nós um escritor já célebre entre o grande público, e
n ã o só admirado pelos especialistas; impressas no Brasil, pelo contrário,
serão as conferências e o conferencista q u e apresentarão o prefácio e o
prefaciador.
Quis pois a amabilidade de Gilberto Freyre tornar-me c o n h e c i d o dos
leitores do Brasil, e decidiu embarcar-me nas Conferências na Europa para
u m a viagem entre o público da sua pátria.
Sinto-me ir de passeio sobre as águas plácidas, à p o p a do iate de um
lorde amável, e a ruminar n u m problema: q u e farei neste caso? q u e me
caberá dizer?
Se tivesse sentimentos de nacionalista, e se merecesse a honra de me
tornar alguém c o m o h o m e m representativo dos portugueses, de si se
apresentava a solução do caso: empreenderia agradecer a Gilberto Freyre,
em n o m e da gente do m e u país, o sólido prestígio q u e d e r a m os seus livros
à nossa capacidade de colonização, c o m a preclara autoridade q u e
conquistaram. Os q u e me c o n h e c e m , todavia, logo perceberiam q u e tal
atitude ( q u e seria na maior parte d o s m e u s conterrâneos cabalmente
sincera e verdadeira) desfrisaria um tanto c o m o m e u feitio. Não, n ã o me
penso sob a categoria do nacional: e se perante um espanhol ou um
escandinavo n ã o me ocorre colocar-me c o m o português, c o m o me sentiria
de diversa estirpe q u a n d o aquele q u e defronto é um escritor brasileiro,
súdito lingüístico de el-rei Camões?
Por outro lado, p r e t e n d e r formular em sua própria pátria um qualquer
juízo sobre Gilberto Freyre afigura-se-me empresa inteiramente vácua, e
um tanto ridícula de ingenuidade. A tal respeito, aos leitores do Brasil já foi
dito o q u e c u m p r e pelos críticos c o m p e t e n t e s q u e ali n ã o faltam; e t a m b é m
desta banda do O c e a n o Atlântico se escreveram sobre os livros do
historiador-sociólogo apreciações sagazes e de cabal justiça, a q u e eu n a d a

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acrescentaria q u e tivesse préstimo. Portanto, resta-me fazer o q u e t e n h o


feito até hoje: exercer a função de t o d o b o m ignorante, q u e é dar ensejo às
investigações alheias, c o m submeter o e n u n c i a d o das suas próprias dúvidas
às pessoas idôneas para resolvê-las.
Com tal objetivo, deverei começar p o r vos avocar ao espírito q u e das
mais doutrinais e de maior relevo entre as feições da obra de Gilberto Freyre
é talvez a intensidade de luz claríssima de distinção intelectual, de precisão
científica, c o m q u e definiu o aspecto de criação social da obra dos portu-
gueses no Brasil. Ora, a essa lição juntou ele u m a outra: a da busca da
explicação de tal f e n ô m e n o , ou seja, a das características de psicologia
rácica, e de etnocultura, e de geografia histórica (digamo-lo assim) q u e nos
conferiram capacidade para tal façanha. Porém, a amplidão e originalidade
da criação portuguesa no c a m p o propriamente social-econômico em
regiões tropicais da América do Sul contrasta c o m a modéstia do q u e
fazemos na Europa nesse m e s m o domínio das realizações crematísticas,
com todas as conseqüências q u e daí p r o m a n a m : e n ã o é de estranhar q u e
os leitores do sociólogo transitem do p r o b l e m a do português no Brasil para
o problema do p o r t u g u ê s em Portugal, e q u e alguns se inclinem a adotar
no segundo o reverso da solução q u e no primeiro ele deu. Para os q u e
assim procederem, o êxito do português na colonização do Brasil provirá
de certo n ú m e r o de qualidades intrínsecas q u e o tornaram mais apto a
triunfar nos trópicos q u e os restantes p o v o s habitadores da Europa: e
suporão q u e essas mesmas qualidades intrínsecas o teriam contrariado no
ambiente e u r o p e u , i m p e d i n d o - o de se achar nestes t e m p o s de hoje ao nível
dos mais progressivos e dos mais prósperos. Assim, já vi q u e m ligasse c o m
a de Casa-grande & senzala a teoria sustentada p o r um admirador desse
livro, q u e é dos maiores ensaístas do Brasil atual: Almir de Andrade. A
primeira dúvida, p o r isso, q u e me permito submeter aos leitores brasileiros
(a começar pelos dois mestres a q u e acabei de aludir, evidentíssimamente)
é se a interessante teoria de Almir de Andrade se p o d e r á c o a d u n a r c o m a
de Casa-grande & senzala; e, d a d o q u e não, se alguma hipótese se p o d e r á
propor explicativa do inêxito do português na Europa, s e m prejuízo da
doutrina de Gilberto Freyre.
Para isso, r e s u m a m o s esta última:

A singular predisposição do português para a colonização híbrida e


escravocrata explica-a em grande parte o seu passado étnico, ou
antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África. Nem
intransigentemente de uma nem de outra, mas das duas. A influência
africana fervendo sob a européia e dando um acre requeime à vida
sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro correndo
por uma grande população brancarana, quando não predominando
em regiões ainda hoje de gente escrava; o ar da África, um ar quente,
oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura as
durezas germânicas; corrompendo a dureza doutrinária e moral da

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LEITURAS DE GILBERTO FREYRE

Igreja medieval; tirando os ossos aos cristianismo, ao feudalismo, à


arquitetura gótica, à disciplina canônica, ao direito visigótico, ao
latim, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando mas sem
governar: governando antes a África.

A miscibilidade, a mobilidade, a aclimabilidade — conjunto de


qualidades q u e se radicou n o s nossos no ambiente peninsular originário —
conferiam-lhes c a p a c i d a d e para a colonização n o s trópicos. Favoreceu-os,
em suma, na obra de colonização na Sul-América, a característica plastici-
dade da sua índole, a qual dimanava de u m a singular riqueza de anteceden-
tes étnicos e de cultura; e caberia acentuar q u e os colonizadores do Brasil,
nos séculos de Q u i n h e n t o s e de Seiscentos, foram na maioria portugueses
típicos, e portanto mestiços: n e m os dólico-louros de Oliveira Viana, n e m
t a m p o u c o os judeus de Werner Sombart, n e m ainda os moçárabes de
Debané, senão q u e portugueses a q u e chamaria eólios um espírito
d o m i n a d o pelas reminiscências gregas: de complexa ascendência, de
cultura mista. Nessa origem compósita, todavia, valeria especialmente para
o nosso caso o p r e d o m í n i o da cultura e do sangue do mouro, do qual se
derivaram para o colonizador do Brasil os dotes e fatores de capacidade
técnica no relativo à p r o d u ç ã o e à utilização da cana.
Tomaríamos aí a explicação do fato q u e nos aparece iluminado c o m
u m a luz tão viva na obra magistral de Gilberto Freyre:

... o certo é que os portugueses triunfaram onde outros europeus


falharam: de formação portuguesa é a primeira sociedade moderna
constituída nos trópicos com características nacionais e qualidades
de permanência. Qualidades que no Brasil madrugaram, em vez de
se retardarem, como nas possessões tropicais de ingleses, franceses e
holandeses. Outros europeus, estes brancos puros, dólico-louros habi-
tantes de clima frio, ao primeiro contato com a América equatorial
sucumbiriam ou perderiam a energia colonizadora, a tensão moral,
a própria saúde física, mesmo a mais rija, como os puritanos coloni-
zadores de Old Providence, os quais, da mesma fibra que os pioneiros
da Nova Inglaterra, na ilha tropical se deixaram espapaçar nuns
dissolutos e moleirões. Não foi outro o resultado da emigração de
loyalistas ingleses da Geórgia, e de outros novos estados da União
Americana, para as ilhas Bahamas, duros ingleses que o clima
tropical em menos de cem anos amolegou em poor white trash. O
português, não; por todas aquelas felizes predisposições de raça, de
mesologia e de cultura a que nos referimos, não só conseguiu vencer
as condições de clima e de solo desfavoráveis ao estabelecimento de
europeus nos trópicos, como suprir a extrema penúria de gente branca
para a tarefa colonizadora, unindo-se com mulher de cor... O coloni-
zador português do Brasil foi o primeiro, de entre os colonizadores

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modernos, a deslocar a base da colonização tropical da pura extração


de riqueza mineral, vegetal ou animal— o ouro, a prata, a madeira,
o âmbar, o marfim — p a r a a de criação local de riqueza.

Ora b e m . P a r e c e ó b v i o e fácil, ao p r i m e i r o relance, o ligarmos a


doutrina d e Gilberto Freyre c o m a teoria d e q u e o s d o t e s q u e n o s serviram
nos trópicos s ã o os m e s m o s q u e na E u r o p a n o s desserviram; e será lícito
p e n s a r m o s q u e n o s inclina p a r a a í u m interessantíssimo e n s a i o d e Almir d e
Andrade s o b r e "O c o l o n i z a d o r p o r t u g u ê s e o s e u caráter", n o s Aspectos da
cultura brasileira, livro delicioso e de p u b l i c a ç ã o r e c e n t e . A c e i t a n d o e
aplaudindo c o m a a d m i r a ç ã o q u e m e r e c e m a o r i e n t a ç ã o e as teses de
Gilberto Freyre, diz ele q u e a c a p a c i d a d e do c o l o n i z a d o r p o r t u g u ê s foi
devida "à s u a p r ó p r i a f o r m a ç ã o psicológica e social, b a s t a n t e distanciada
dos traços c o m u n s às o u t r a s s o c i e d a d e s da E u r o p a , b e m antieuropéia n a s
suas raízes mais e s p o n t â n e a s e mais profundas"; e acentua:

... creio mesmo que até hoje não se definiu com suficiente clareza esse
desajustamento profundo do caráter português em relação ao am-
biente europeu que o envolve. Talvez esse desajustamento explique
todo esse movimento de decadência e de enfraquecimento contínuo,
que encheu mais de quatro séculos da história de Portugal, e que,
provavelmente, não foi mais do que uma asfixia lenta das energias
recônditas do povo português, inadaptadas ao ambiente cultural
europeu e esmagadas pelos seus tentáculos dominadores e hostis. Na
verdade, não há nada mais antieuropeu do que a psicologia do
português e do que a sua própria vida social, em tudo o que ainda não
sofreu a influência definitiva das outras culturas européias... Os seus
méritos de colonizador consistiram precisamente nos seus defeitos
como nação européia, considerada do ponto de vista europeu. Foi a
instabilidade dos seus ideais políticos, sociais e morais, a flutuação
das suas tendências contraditórias, a falta de rigidez dos seus princí-
pios, que lhe permitiram penetrar, sem grandes prevenções de espírito,
no meio brasileiro, aproveitar os elementos nativos, amoldar-se às
exigências do novo meio, compreender as suas verdadeiras necessida-
des, e criar, afinal, com elementos originais, típicos do novo meio
social, novas formas de cultura, genuinamente brasileira desde as
suas origens mais remotas.

O último d o s p e r í o d o s de q u e dei traslado c o n d u z - n o s a u m a idéia da


maior importância, q u e já fora a c e n t u a d a p o r Gilberto Freyre e q u e eu
próprio s u b l i n h a r a n o s m e u s Ensaios: a da plasticidade de espírito da n o s s a
gente. É p e l a afirmação d e s s e d o t e p s í q u i c o q u e c o m e ç a o e n s a i o de Almir
d e A n d r a d e e m q u e a v u l t a m a s linhas q u e transcrevo acima:

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O português aparece na colonização do Brasil como uma figura da


maior plasticidade, que o meio novo modelou de acordo com as suas
exigências próprias. Essa plasticidade foi a causa da falência do
português na Europa, mas foi o segredo da sua vitória nas colônias do
ultramar.

E para o fim:

... os resultados desse encontro da cultura ameríndia com um coloni-


zador tão plástico e tão aberto a toda sorte de influências foram os
mais inesperados e inéditos na história das colonizações européias.
Gilberto Freyre procurou caracterizá-los [...]. Gilberto Freyre foi, sem
dúvida, o primeiro sociólogo que entre nós colocou em seus verdadei-
ros termos o problema da adaptação do colonizador português às
condições de vida da sua colônia americana. É de notar sobretudo a
penetração com que analisou o caráter da colonização portuguesa no
Brasil e seus resultados, assim como o desassombro com que reconhe-
ceu e apontou os verdadeiros méritos do colonizador, que residem
justamente ali onde a crítica correntia e a intransigência intelectua-
lista dos observadores superficiais têm concentrado todas as suas
condenações e menosprezos ao povo português: na sua flutuação
intelectual e moral, no caráter vago, indeciso e contemporizador das
suas tendências indefinidas, sem princípios rígidos, sem normas
intransigentes de conduta.

Em suma,

o português de hoje, como o de ontem, é um mundo de tendências


antagônicas que se desconhecem a si mesmas [...]. A melhor, a mais
típica, a mais feliz das criações da alma portuguesa, a sua música
popular, o fado dos acentos nostálgicos e da saudade sem fim, reflete
essa ansiedade dos caminhos perdidos, essa procura eterna de um
ponto de apoio, de uma diretriz e de um ideal que não se encontra
nunca.

De t o d o me d i s p e n s o de pedir vênia aos leitores pelo estirado das


transcrições de q u e lhes dei regalo. Persuado-me, ao contrário, de q u e lhes
mereço alvíssaras, p e l o g o z o da releitura de tão belas páginas. E a seguir
interrogo: o sentenciarmos a respeito da grei portuguesa q u e ela é
inajustável à cultura européia n ã o será negar-lhe a plasticidade de espírito
em q u e vimos a causa da sua a d a p t a ç ã o aos trópicos? O considerá-la "aberta

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a toda sorte de influências" n ã o r e d u n d a em inibir-nos de a c o n c e b e r


cerrada à influência do gênio e da civilização da Europa? A não-inadapta-
bilidade a n e n h u m a coisa, o d o t e de n ã o ser anti coisa alguma, n ã o será a
própria definição exata desse m e s m o conceito de plasticidade? Plásticos,
como seremos n ó s antieuropeus? Pois um ente de "tendências antagôni-
cas", indefinido e plástico, p o d e r á resistir a u m a p r o p e n s ã o das suas c o m
resistência definida e decisiva, manifestando um só dos seus p e n d o r e s
contrários, e n ã o q u a l q u e r outro dos q u e t a m b é m o impulsam? Não vimos
ditamado na Casa-grande & senzala q u e o português é "indefinido entre a
Europa e a África, nem intransigentemente de uma nem da outra, mas das
duas"?. Não haverá nas idéias de Almir de Andrade qualquer coisa de
incompatível c o m as de Gilberto Freyre?
Como se vê, o conjunto destas perguntas v e m a disparar na seguinte:
admitido o plástico do caráter da Grei, determinante do êxito q u e ela
alcançou no Brasil, n ã o n o s releva abster-nos, p o r isso m e s m o , de buscar
a causa do seu insucesso na Europa em qualidades intrínsecas do portu-
guês? Não estaremos obrigados, p o r conseguinte, a sinalar c o m o réu do
nosso destino e u r o p e u o d a d o c o m p l e m e n t a r e correlativo do h o m e m , isto
é, o ambiente físico em q u e ele nasceu?
Ai de mim! Formulador de perguntas, a tal interrogação hei de
responder c o m outras: n ã o seria acaso nas regiões do Brasil q u e o
português encontrou pela primeira vez condições de ambiente francamen-
te propícias para um g ê n e r o d e t e r m i n a d o de cultura básica 1 ? (1) Chamo neste caso culturas
básicas as cujos produtos são
A hipótese q u e agora s u b m e t o aos doutos é a de q u e os fatores de valor primário para a sus-
tentação da vida do homem,
agroclímicos da nossa metrópole n ã o nos d ã o condicionamento franca- ou que têm assegurada uma
mente benéfico a n e n h u m a casta de cultura básica q u e p u d e s s e ministrar grande venda. Tal foi sempre
o trigo; tal foi o açúcar no
fundamento sólido a q u a l q u e r pujante criação social, s e n d o q u e o m e s m o século XVII.
se não p o d e dizer das regiões da Europa de além-Pireneus, o n d e vivem
povos q u e e x c e d e r a m o nosso p o r aquilo q u e conseguiram em seus
próprios lares. Admitida a hipótese, poder-se-ia dizer: p o r ser desse m o d o ,
desde o princípio da nossa história q u e a n d a m o s b u s c a n d o nos recursos do
oceano, no sal, na pesca e no comércio marítimo, as possibilidades de
subsistência e de e s p l e n d o r e s de vida de q u e s e m p r e a nossa terra se nos
mostrou avara; p o r ser desse m o d o , ao absoluto insucesso da legislação
agrícola correspondeu um êxito de repercussão mundial das leis portugue-
sas de navegação e de tráfico; p o r ser desse m o d o , teimamos em "arar" as
vastidões oceânicas (para e m p r e g a r o verbo de Camões nos Lusíadas), pois
que nunca passariam de um r e n d i m e n t o mínimo os esforços q u e envidás-
semos no arar das glebas; p o r ser desse m o d o , m e r e c e m o s q u e n o s
chamassem aquele "peito ilustre" (voltando ao Camões) "a q u e m N e t u n o e
Marte obedeceram", já q u e no condicionamento q u e nos c o u b e em sorte,
Ceres, Cibele, P o m o n a e Flora só p o d e r i a m dar-nos u m a obediência dúbia,
quando n ã o a desobediência mais declarada e enérgica.
Mau condicionamento? Estou em crer q u e sim.
O primeiro tropeço são as precipitações atmosféricas. Não é a
quantidade anual da chuva o q u e aflige o português no território pátrio,

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mas a sua distribuição pelos diferentes meses. Sofremos de deficiência de


chuva estival para as plantas herbáceas q u e no t e m p o q u e n t e realizam o
principal do seu crescimento, e à escassez da chuva durante o estio
adiciona-se a intensíssima e v a p o r a ç ã o nessa quadra. A evaporação da água,
durante julho e agosto, e nos territórios situados ao sul do Tejo, atinge a
grandeza (se a n ã o e x c e d e ) de toda a chuva anual respectiva. Somente o
Noroeste — em junho, julho e agosto — tem índice de aridez maior do q u e
10; esse índice é em Lisboa de 2,7; em Beja de 3; em Lagos de 1 (obtém-se
tal índice, c o m o vós sabeis, dividindo a pluviosidade pela temperatura,
acrescida esta do n ú m e r o 10). Em três quartos do nosso país sofremos de
um verão excessivamente árido. Para além dos Pireneus, muitíssimo ao
invés, tanto no Noroeste c o m o no centro da Europa ocorre o f e n ô m e n o
precisamente contrário, pois q u e aí a chuva é sobretudo no verão, n ã o
h a v e n d o portanto necessidade de rega, ao passo q u e o português, no
território e u r o p e u , ou rega os c a m p o s durante o estio ( q u a n d o haja c o m
quê) ou se vê privado nessa m e s m a quadra de culturas arvenses e
hortícolas 2 . De anos torturados pela completa secura há e x e m p l o s catastró- (2) Examinados ao microscó-
pio, os filamentos de lã dos
ficos na nossa história, s e n d o freqüentes os do século XV. Ao lado disso, países europeus de chuva re-
sofremos invernos de n ã o m e n o r infortúnio, c o m chuveiros inundantes e gularmente distribuída mani-
festam uma grossura unifor-
torrenciais (é o q u e s u c e d e agora, q u a n d o escrevo estas laudas). Para o me; os da lã portuguesa, pelo
contrário, apresentam estran-
trigo são desfavoráveis o terreno e o clima; o incerto das primaveras gulamentos, correspondentes
às épocas secas, de pastos mais
prejudica as frutas; e p e l o q u e respeita à p r o d u ç ã o silvícola, n ã o temos pobres. Isto sem embargo de
transumância.
condições de ambiente físico para n e n h u m a das essências superiormente
ricas. Em p l e n o inverno, a seguir a um t e m p o tenebroso e ríspido, ressurtem
dias de primavera esplêndida. "Este clima nosso" (dizia-me u m a vez um
lavrador patrício) "está a t o d o m o m e n t o a e n g a n a r as plantas"; e para os
h o m e n s de lavoura de Portugal inteiro há sobejos motivos de repetir as
queixas do vilão da Romagem dos agravados: "Que chove q u a n d o eu n ã o
q u e r o / E faz um sol das estrelas/ q u a n d o alguma chuva e s p e r o . / Ora alaga
o s e m e a d o , / Ora seca q u a n t o hi há".
A excessiva secura do n o s s o verão, q u e tanto nos prejudica no labor
da terra, é-nos pelo contrário e x t r e m a m e n t e propícia no q u e diz respeito à
p r o d u ç ã o do sal. Daí a importância q u e esse p r o d u t o alcançou no sistema
econômico da nossa gente na é p o c a anterior à das explorações do ultramar;
daí a firmeza da tradição antiga de ser o sal português o de maior valia; daí
o distinguir-se o p o r t u g u ê s medievo, entre todos os povos do continente
europeu, c o m o atrevido p e s c a d o r e c o m o p r o d u t o r de sal. A do sal é a única
das criações crematísticas p a r a q u e existem condições de favor b e m franco
no ambiente metropolitano da nossa grei, tão boas c o m o o eram para a
produção do açúcar aquelas q u e mais tarde nos veio a dar o Brasil; e o
aspecto e brancura dos p r o d u t o s insinua u m a imagem a q u e n ã o sei fugir,
e para cujo preciosismo vos rogarei indulto: considerados pela importância
na nossa vida econômica, o sal foi o açúcar do português da metrópole n o s
t e m p o s anteriores ao da e x p a n s ã o marítima, e o açúcar foi o sal do
português dos trópicos no terceiro século dessa mesma e x p a n s ã o . Se n ã o
me iludo, é muito suscetível de descaminhar o espírito aquela designação

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de "monarquia agrária" adotada p o r J o ã o Lúcio de Azevedo para a primeira


época da nossa história. Ao q u e p e n d o a crer, as condições agroclímicas da
nossa metrópole n ã o lhe permitiriam a vitalidade q u e ela e n t ã o ostentou se
assentasse n u m alicerce exclusivamente agrário, ou muito p r e d o m i n a n t e -
mente de natureza agrária. B e m ao avesso, p e r g u n t o - m e se o q u e havia de
prometedor e tônico no organismo social da nossa estirpe lhe n ã o vinha
então essencialmente do sal, do comércio marítimo, da atividade da pesca...
Mas importa agregar, em primeiro de tudo, q u e a riqueza oriunda do sal e
da pesca n ã o poderia impulsionar o país inteiro; e logo depois, q u e o sal
não manteve na e c o n o m i a m o d e r n a a importância q u e lhe c o u b e na I d a d e
Média. Se a h o u v e s s e mantido, acaso ao Portugal dos m o d e r n o s t e m p o s o
achássemos tão ajustado no conjunto da Europa q u a n t o o esteve o do
tempo de um D. Denis.
O sal era necessário para salgar o peixe, e o peixe salgado avultou
muitíssimo na alimentação dos povos da Idade Média: foi p o r isso
mercadoria da maior importância e fator e c o n ô m i c o de excepcional
momento no sistema de trocas d o s portugueses. Usavam procurá-lo c o m o
maior e m p e n h o as gentes ribeirinhas do Mar do Norte. As costas deste mar,
com efeito, oferecem-se riquíssimas de b o m p e s c a d o , em especial n o s
bancos sobre q u e n a d a o a r e n q u e ; as águas marítimas, p o r é m , são de fraca
salinidade em tais paragens, e o frio e a u m i d a d e setentrionais i m p e d e m a
evaporação bastante ativa; p o r conseguinte, faltam os requisitos para a
salicicultura. Estabeleceu-se p o r isso um intercâmbio intenso entre esses
povos pescadores do Norte — escandinavos, neerlandeses, escoceses,
ingleses, irlandeses etc. — e as terras ocidentais em q u e a evaporação é
viva, e o n d e se p o d e p o r isso produzir o sal. Nos Países Baixos (o g r a n d e
centro da pescaria européia) tão grave era o problema da importação do sal
que pelas flutuações no p r e ç o dele se previam as crises da economia.
Objeto, então, de c o p i o s o tráfico, servia de frete de retorno aos navios
estrangeiros q u e nos visitavam. As cortes de Elvas de 1361 exaltam o valor
do comércio do sal no sistema e c o n ô m i c o da nossa gente:

item ao que diziam no qüinquagésimo artigo — comenta o rei — que


bem sabíamos quanto o frete do sal é cumpridoiro e necessário aos
nossos senhorios, porque por ele recudiam à nossa terra muitos
mantimentos, e a nós muita prol, e muitos de muitas partes de fora de
nossos reinos, quando aí havia avondamento, dele carregavam naves
e outros navios para outras terras, de que nós tiramos grandes
dízimos...

De salinas estabelecidas na nossa costa se fala em d o c u m e n t o s de 929


e 978, a b u n d a n d o os dos primórdios da monarquia sobre salinas estabele-
cidas nas margens do Lima, do Cavado, do Ave, do rio de Leça, do Douro,
do Mondego, do Vouga. As do termo de Alcácer-do-Sal foram muito

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LEITURAS DE GILBERTO FREYRE

famosas sob a d o m i n a ç ã o dos mouros. Nos forais concedidos aos conse-


lhos do Algarve, D. Afonso III reservava para a Coroa o todo das salinas q u e
já ali existiam e as q u e viessem a construir-se posteriormente, b e m c o m o o
monopólio da v e n d a do sal. No t e m p o de D. J o ã o I, era tanta a p r o d u ç ã o
das marinhas de Faro q u e o m o n a r c a c o n c e d e u a mercadores estrangeiros
a licença de exportação de sal algarvio. As salinas q u e se alongam pelo
Ribatejo outrossim p r o c e d e m de remotas eras. No reinado de D. F e r n a n d o
(1367-83), conta Fernão Lopes q u e "estavam à carga no rio de Sacavém e
à ponta do Montijo, da parte do Ribatejo, 67 navios em cada lugar,
carregando de sal e de vinhos". Depois da conquista da praça de Ceuta
(1415), o v e d o r da fazenda de D. J o ã o I, J o ã o Afonso de Alenquer,

considerando as mui grandes despesas que el-rei tinha feitas, e como


lhe era necessário ainda despender no frete de todos aqueles navios [os
que tinham servido na expedição] tanto que foi na cidade de Lisboa
mandou comprar para el-rei todo o sal que havia por toda aquela
terra, o qual houve assaz de bem barato, por razão da imposição; e
quando lhe os mestres dos navios requeriam frete, fazia-lhes pergunta
se lhes prazeria de haverem o sal em preço de sua paga; os quais todos
juntamente foram contentes, considerando como lhes seria melhor
levarem seus navios carregados de alguma mercadoria que levarem o
dinheiro, que ligeiramente poderiam gastar; e assim foram todos mui
bem pagos, com pouco custo de el-rei (Azurara).

A p r o d u ç ã o agrícola, p e l o contrário, a n d o u s e m p r e abaixo das


necessidades, devido em b o a parte àquele m e s m o fato q u e causava a
excelência da p r o d u ç ã o salina: a secura excessiva do n o s s o estio; e daí um
resultado q u e se me afigura interessante, pela lógica simplicidade c o m q u e
relaciona os fatos: c o m o sobejo do sal q u e nos dava o m a r se comprava o
trigo q u e nos negava a terra. Na Idade Média, os tabuleiros das salinas e as
embarcações da pesca foram as casas da m o e d a do n o s s o p o v o : pois c o m
sal e c o m peixe se comprava pão, q u e do estrangeiro nos vinha. Em 1635,
requereram ao g o v e r n o os mercadores de Lisboa a entrada de 22 navios de
trigo, os quais em retorno tomariam sal; e em 1651 sugeriu o rei à Câmara
de Lisboa q u e se escrevesse às cidades hanseáticas alemãs, a fim de lhes
oferecer quaisquer vantagens para q u e nos m a n d a s s e m p ã o e m a b u n d â n -
cia, e tentando-se q u e p o r ele nos aceitassem o sal. Estava-se no m e i o do
século XVII; a intensidade da procura já n ã o era a mesma; já o sal n ã o
lograva na e c o n o m i a européia o privilégio q u e tivera na Idade Média; b e m
maior importância era e n t ã o a do açúcar...
C o m o se sabe, p e l o tratado de 20 de outubro de 1353, entre Eduar-
do III da Inglaterra e os burgueses do Porto e de Lisboa, tiveram estes
autorização para irem exercer a indústria da pesca nas costas dos domínios
daquele monarca. Por esses tempos, navegávamos o peixe até o Levante,

34 NOVOS ESTUDOS N.° 56


ANTÔNIO SÉRGIO

em concorrência álacre c o m os demais e u r o p e u s ; muitos comerciantes do


nosso país freqüentavam os portos da Inglaterra e da França; e na é p o c a
seguinte da e x p a n s ã o marítima, no século de A l b u q u e r q u e e de Luís de
Camões, n ã o foram p o u c o s os professores portugueses q u e em universida-
des estrangeiras regeram cursos. Não hesitaremos um p o u c o , perante estes
fatos, em admitir c o m o p r o v a d o q u e a nossa índole se n ã o adelgaça ao
gênio da civilização da Europa? E seria excessivo p r o p o r a hipótese de que,
em certas é p o c a s da nossa história, dos e u r o p e u s mais e u r o p e u s entre os
habitadores da Europa foram talvez os comerciantes e pescadores portu-
gueses, nada h a v e n d o acaso de maior c u n h o e u r o p e u q u e a legislação
marítima de D. Fernando?
Desde o princípio, fôramos compelidos a recorrer ao mar: p o r q u e a
terra, mal-regada e p o b r e , e de relevo ingratíssimo na m e t a d e norte, n u n c a
nos daria suficiência agrícola, n e m matérias-primas de cabal importância
com que lográssemos manter u m a g r a n d e indústria. As feições agroclímicas
da nossa pátria são muitíssimo inferiores às da França e da Inglaterra, às da
Alemanha e de Flandres; e n ã o nos encontramos até hoje c o m carvão b o m
e acessível, e n ã o temos ferro... Forçoso, portanto, o acudir ao o c e a n o , às
regiões longínquas; p o r é m , s e m um sólido alicerce de p r o d u ç ã o na
metrópole ( p r o d u ç ã o agrícola ou extração de minério, q u e sustente u m a
indústria) toda p r o s p e r i d a d e será instável.
Nesse caso, eis-nos c o n d e n a d o s para t o d o o sempre? Não afirmo tal
coisa: p o r q u e já a ciência do n o s s o t e m p o nos permite a esperança de
correções profundas nas condições desfavoráveis do ambiente físico. Mas
faz-se mister q u e esse p r o b l e m a e o da renda sejam tidos c o m o básicos nos
nossos planos políticos, e n ã o as p r o p a g a n d a s e as estradas de luxo, os
saldos orçamentais e as c o m e m o r a ç õ e s históricas.
Seria exorbitar do m e u t e m a de agora o alongar-me nas minúcias
dessa correção do ambiente, d e s d e a e x e c u ç ã o de grandes obras de
hidráulica e da sistemática arborização do terreno pátrio até a ereção de
centrais hidroelétricas (sem excluir as térmicas) q u e permitissem a instala-
ção de reservatórios altos de o n d e a água desceria a irrigar os c a m p o s e
possibilitassem o e m p r e g o da b o m b a elétrica em n u m e r o s o s p o ç o s q u e se
poderiam abrir; mas d e v o acrescentar q u e aos do ambiente físico se
acrescentam os óbices de u m a outra espécie: os da estrutura e c o n ô m i c o -
social da Grei. Os trabalhadores da terra, c o m efeito, p a g a m aos senhorios
uma renda excessiva, q u e os n ã o deixa sair de u m a penúria extrema: e tais
trabalhadores, c o m o é b e m sabido, constituem a maioria da p o p u l a ç ã o da
metrópole. Reparai: constituem a maioria da p o p u l a ç ã o da metrópole.
Ora, antes de atribuirmos a qualidades intrínsecas a decadência atual
do nosso povo, n ã o convirá q u e p e n s e m o s nas repercussões sociais q u e
resultam da falta de p o d e r de compra na classe mais numerosa da p o p u l a ç ã o
de um Estado?
Visiono para o futuro a socialização da renda; n ã o é isso p o r é m o
que agora importa, mas tão só o p r o b l e m a do seu montante. Ora, s u c e d e
que em Portugal o excessivo da renda n e m deixa ao desgraçado q u e

MARÇO DE 2000 35
LEITURAS DE GILBERTO FREYRE

e m p r e e n d e a lavoura, freqüentes vezes, o próprio valor do simples salário


correspondente ao trabalho q u e ele fez na terra. Por outras palavras: o
q u e fica ao rendeiro, satisfeita a renda, é n ã o raro inferior ao q u e teria
cobrado se trabalhasse a jornal p o r conta alheia. Admitida a apropriação
individual da renda, deveríamos considerar c o m o s e n d o justa a q u e
incluísse o juro do capital fundiário (glebas, casas de habitação, celeiro,
estábulos, obras de irrigação, plantações etc.), a c o m p e n s a ç ã o pela d e p r e -
ciação q u e este vai sofrendo e as contribuições q u e incidem na proprie-
dade: a mais disso, p o r é m , o capitalista arroga-se a importância total (ou,
pelo menos, considerável parte) do c h a m a d o lucro de exploração; e das
três parcelas q u e c o m justiça inteira deveriam caber ao p e q u e n o rendeiro
(a saber: o salário, a c o m p e n s a ç ã o do risco, o lucro proveniente da
exploração) n e m c o m o simples salário chega o p o b r e a ficar, em n u m e -
rosos casos...
Depois, adicionem-se a isto os garrotes da usura. José Agostinho de
Macedo escrevia em 1818:

Seriam mui úteis aos povos as sociedades de agricultura se estas se


encaminhassem a ajudar os tristes lavradores; se em anos mofinos e
escassos lhes subministrassem as sementes para a futura lavoura e
animassem com fundos os miseráveis que não têm com que cultivar a
terra, pagando-se depois sem aquelas escandalosas usuras com que se
costuma pôr o pé no pescoço dos infelizes.

Escandalosas usuras: o q u e neste passo nos apresenta o Macedo é um


transe do agrícola q u e perdura ainda. Em Portugal os lavradores evitam as
instituições de crédito, p o r q u e (diz um d o c u m e n t o oficial recentíssimo)
"para se obter um empréstimo, p o r mais insignificante q u e seja, são tantas
as formalidades e exigências, q u e os interessados preferem recorrer à
usura". Resultado:
(3) É com retórica histórico-
patrioteira que se pretende en-
tre nós galvanizar o povo. Ex-
Como os juros absorvem, freqüentemente, os lucros líquidos da explo- celentíssimo recurso para fugir
ao problema, atordoando o mí-
ração, o lavrador, ilaqueado de dificuldades, não consegue imprimir sero. O de que ele precisa é da
diminuição das rendas, de faci-
às suas culturas a expansão e o tratamento que lhes daria se dispusesse lidades de crédito, de melhora-
mentos hidráulicos, de energia
de facilidades financeiras, empregando o mínimo de adubos quími- barata, de assistência técnica,
da organização cooperativa
cos (trechos do inquérito do Comissariado do Desemprego, publica- para a compra e para a venda,
da repressão das explorações e
do em 1938). das especulações de que tem
sido vítima, até que chegue o
momento de lhe poderem dar
mais: a planificação de conjun-
to do seu viver econômico,
Há pois essa "asfixia lenta das energias recônditas" do n o s s o p o v o , e para o máximo rendimento e a
máxima vantagem social, sem
aqueles "tentáculos d o m i n a d o r e s e hostis", de q u e nos fala o livro de Almir prejuízo da liberdade do ho-
mem tanto na escolha daquilo
de Andrade: m a s provirão eles do "ambiente europeu", c o m o q u e r a que compra como na escolha
da profissão que quer seguir.
doutrina do prestigioso ensaísta 3 ?

36 NOVOS ESTUDOS N.° 56


ANTÔNIO SÉRGIO

Combinem-se c o m estes males sociais os q u e resultam das condições


do nosso solo, da distribuição nocivíssima das nossas chuvas, e ver-se-á p o r
que definha n u m a indigência a g u d a o p r o d u t o r agrícola em Portugal.
Quase nada lhe fica para c o m p r a r qualquer coisa, a esse h o m e m paupér-
rimo, limitando-se a usar o q u e ele próprio faz: p o r conseqüência, n e m o
comércio n e m as indústrias fabris têm aqui possibilidade de se expandir
com ímpeto, p o r falta de um mínimo de capacidade de compra na classe
mais numerosa da nação. Q u a n d o esta vive c o m tal aperto, está inapta a
pagar uma tributação copiosa, e n ã o logra o Estado, p o r isso m e s m o ,
alcançar os recursos q u e lhe são necessários para os serviços públicos de
maior valia, para os q u e tocam ao progresso e à e d u c a ç ã o do p o v o . Por
derradeiro, um país o n d e o mister de lavrar a terra é o seguido pela maioria
dos seus habitantes, mas q u e n ã o chega a granjear u m a p r o d u ç ã o agrícola
que o habilite a dispensar importações excessivas e lhe permita v e n d e r às
demais nações matérias de primeira necessidade para estas, tal país, íamos
nós dizendo, sofre as conseqüências do desfavor dos câmbios. E c o m o
contragolpe da indigência rústica, um Estado na incapacidade de p o d e r
auferir, da classe mais n u m e r o s a da sua gente, as receitas bastantes para a
dotar de escolas, n ã o dá ao p o v o a cultura técnica q u e lhe consentiria
melhorar a p r o d u ç ã o das glebas. Um círculo de misérias em ações
recíprocas, q u e a atmosfera e o solo nos têm imposto (além dos vícios de
estrutura social) e q u e domina o destino da nossa grei. Em Portugal, a
penúria do trabalhador agrícola determina a fraqueza de t u d o mais.
Ora bem: n ã o teríamos aí u m a explicação aceitável da decadência da
estirpe no seu solo pátrio, d i s p e n s a n d o - n o s de recorrer à insinuante
hipótese de u m a p s i q u e nebulosa da nossa gente? Com efeito, hipótese é
essa que n ã o vejo aceita p o r observadores dos h o m e n s dos nossos campos.
Sugerem-na s e m dúvida os langores do fado: mas será o fado, b e m vistas
as coisas, u m a música típica popular portuguesa? Não será só a música de (4) As origens do fado deverão
certos bairros, de bairros lisboetas de gente indecisa, c o m o são os das buscar-se, ao que nos dizem
os doutos, entre os escravos
escórias dos grandes portos dos países marítimos de t o d o o mundo 4 ? negros do Brasil. Do fado-mú-
sica o antecessor direto é o
E q u a n t o ao êxito do português no Brasil? Já vos disse a pergunta q u e lundum, afro-brasileiro, impor-
tado em Portugal pelos fins do
me sugere o caso: n ã o seria no Brasil q u e o português encontrou, pela século XVIII; o fado-dança sur-
giu no Brasil nos princípios do
primeira vez, condições de ambiente francamente propícias para tirar da XIX, e veio para Lisboa quan-
do a corte regressou do Rio,
terra uma cultura básica ( d e v e n d a assegurada, de favor no mercado)? Bem em 1821. A população dos
sei que os obstáculos n ã o e r a m aí p e q u e n o s , n e m em fraco n ú m e r o ; tais nossos campos, no entanto,
não mostra permeabilidade
obstáculos, todavia, n ã o estavam nos fatores essenciais produtivos, c o m o estética a essa lamentável can-
tilena, só típica de alguns bair-
aqueles q u e na metrópole nos flagelavam; n ã o vinham da falta e do excesso ros infectos da capital, e que
deveu a celebridade a uma
da chuva; t a m p o u c o da irregularidade incontrastável do clima, ou da mórbida, efêmera e capricho-
sa inclinação do conde de Vi-
extrema ingratidão da natureza do solo: estribavam em fatores circunstan- mioso por uma rameira canta-
dora do fado (a Severa) aí
ciais para o p r o d u t o , q u e n ã o e r a m insuperáveis para o português do pelos anos de 1840. Keyser-
ling, tão apreciador dos cantos
tempo, com os recursos da técnica daquela época. No Brasil, a estabilidade do nosso povo, só teve des-
dém para o repulsivo fado, e
da cultura da cana-de-açúcar, no extremo Nordeste e na região do nem por sombras lhe ocorreu
Recôncavo, explica-se p o r condições particularmente benéficas assim do tomá-lo como canto popular
de Portugal. Brasileiros e por-
solo c o m o da atmosfera, e assim das águas c o m o da situação geográfica, tugueses devemos dar-lhe,
decididamente, o pontapé fi-
como Gilberto Freyre o d e m o n s t r o u a preceito nesse livro admirável pela nal que ele bem merece.

MARÇO DE 2000 37
LEITURAS DE GILBERTO FREYRE

urdidura clássica, h a r m o n i o s o e u n o , q u e é o seu Nordeste. Q u a n t o ao solo,


o q u e nos dava de presente essa região brasileira era a fecunda substância
do massapê; as chuvas, o v e n t o e a ação solar adequavam-se a primor à
cultura da cana; e os rios sisudos e de fiel percurso foram operários
disciplinados dos e n g e n h o s de água, boas vias de transporte e servidores
domésticos, divertindo as crianças, c o n v i d a n d o ao banho... Q u e diferença
com o solo torturado e p o b r e de tão grande parte do nosso lar europeu 5 ! (5) "As condições de pobreza
Com a nossa irregularidade na distribuição das chuvas, tão nociva aos constitucional que caracteri-
zam em larga zona o solo agrí-
rústicos! Com os rios caprichosos e de caudais extremos, reduzindo-se a cola português" são as pala-
vras de Mário de Azevedo Go-
zero sob os calores do estio, e destruindo e i n u n d a n d o sob os chuveirões mes em A situação econômica
da agricultura portuguesa. No
do inverno! respeitante à irregularidade das
nossas chuvas, ver os trabalhos
Facilidades de terreno e de condições de clima no q u e toca ao de Ezequiel de Campos.
crescimento da própria planta, e t a m b é m facilidades de energia hidráulica
para a necessária elaboração do seu produto: eis o q u e o português foi
encontrar no Brasil; eis o q u e a sorte lhe recusou na Europa. O q u e havia
de adverso nas regiões d o s trópicos consistia nos obstáculos à aclimação
dos h o m e n s e à criação de um organismo social-econômico c o m q u e se
pudesse triunfar na exploração da cana, e para vencer esses óbices é q u e
lhe serviu o ser plástico, qualidade q u e na metrópole se manifestara já: no
trato dos mercadores q u e se derramavam pela Europa; na facilidade c o m
q u e assimilava as criações estrangeiras; na resolução dos problemas do
descobrimento marítimo; nas relações estabelecidas pelas costas da África...
Se no seu próprio território o português tivesse, para u m a cultura básica,
para um p r o d u t o essencial, as facilidades q u e no seu têm outros p o v o s
brancos, ou aqueles q u e para a cana lhe presenteou o Brasil, acaso se veria
em outro nível agora, c o m o p o v o partícipe da civilização da Europa.
Será assim c o m o eu digo? Estará aí a verdade? A mim cabe a pergunta;
o r e s p o n d e r é para os sábios. Só formulo um problema, u m a interrogação,
u m a hipótese, c o m o simples a p ê n d i c e de um admirador curioso a um dos
temas da obra de Gilberto Freyre.

Lisboa, 31 de janeiro de 1940

38 NOVOS ESTUDOS N.° 56

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