Você está na página 1de 8

A O riginalidade de G ilberto Freyre

R oberto DaM atta

M o rto G ilb erto F rey re, c h eg a a h o ra de Sociólogos e a n tro p ó lo g o s n ã o e n g en d ra m


a v a lia r sua o b ra . E q u e o b ra é essa? Q u ais a re alid a d e e m p írica, m as q u a n d o são
as suas p rin cip ais c a ra cte rística s? Q u a l é geniais, in v e n ta m m odos especiais d e p e r­
o c en tro d e su a o rig in a lid a d e? O n d e ela cebê-la e torná-la lite rá ria . O u seja: são
d ifere e c o n fere com os esfo rço s in te lec ­ capazes d e tra n s fo rm a r o caótico so frim en ­
tu ais d o s seus co n te m p o râ n e o s? D e q u e to d iário , q u a se sem p re v ivido com o algo
m odo ela m arc a e div id e etap as n a S ocio­ sem fo rm a, fu n d o , o rien taç ã o o u se n tid o ,
logia b ra sile ira e n o nosso esfo rço de auto- n u m a narrativa. N u m “ o b je to ” q u e tem
in te rp re ta ç ã o c o m p reen siv a? in ício , m e io e fim ; n u m a “h istó ria ” cujo
P assad o o m o m e n to ten e b ro so d a m o rte significado v a i além das determ inações
e d a v e rg o n h o sa d isp u ta p e lo cadáver, sem ânticas d a d as pelo s códigos q u e o rien ­
q u a n d o os conh ecid o s c an ib ais b o ta m as ta m o senso-com um e a re fle x iv id a d e do
u n h a s d e fo ra, estam os m e lh o r p re p a ra d o s m u n d o c otidiano. M as o q u e foi q u e G il­
p a ra d istin g u ir a c a rn e q u e pa ssa d o s ossos b e rto Freyre v iu q u a n d o se d e b ru ç o u sobre
q u e ficam . A experiência tra z u m in u si­ o B rasil? Q u e n a rra tiv a in v en to u q u a n d o
tad o e n te n d im e n to d e u m a in stitu içã o integ ro u os eventos d a n ossa h istó ria com
m u ito co n h ec id a d a A n tro p o lo g ia Social: os da nossa v id a c o n te m p o râ n e a ?
os e n te rro s d u p lo s o u secu n d ário s. C om ­ G ilb erto Freyre foi u m g ra n d e n a rra d o r,
preen d em o s, a fin a l, q u e é preciso e n te rra r n ã o só p o rq u e “ escrevia m u ito b e m ” ; ou
c ertas pessoas d u p lam e n te e q u e a segunda escrevia b e m p o rq u e era — a fin a l de con­
vez é o m om ento em q u e a sociedade do tas — u m "sociólogo d e d ire ita ” e, com o
m o rto re p ro d u z sua m em ó ria, m en o s p o r tal, p e n sa v a m elh o r em term os d e “ fo rm a ”
causa d a com oção inicial d a m o rte , de q u e do q u e d e “ su b stâ n c ia ” o u “ c o n te ú d o ” . 1 O u
da n e cessid ad e físic a de te r que d isp o r do p o rq u e — sendo v aidoso e áv id o de elogios
c o rp o ; m as p e lo q u e e la deseja p e rp e tu a r — se c o n sid erav a “ e sc rito r” . 2 M as p o rq u e
escolheu fa la r do B rasil de u m a c erta p e rs­
do m o rto . O e n te rro se c u n d ário , assim , é
p e ctiv a, d e d e n tro de u m a d a d a m o ld u ra .
a o casião d a avaliação social do m orto.
E o ângulo escolhido fo i ju stam e n te aq u ele
M om ento em q u e desejam os sa b e r se o q u e m ais p e rtu rb a , p o sto q u e ju n ta o bio­
seu re tra to po d e p e rm a n ec e r o v a la d o e gráfico e o ex istencial; com o h istó rico , o
salien te n a sala-de-visita d e nossas casas lite rário e o in te lec tu a l. Se u m ríg id o u n i­
ou te rá q u e a m a re la r e ser ro íd o pelas verso c o n ceitu ai e ra (e a in d a é o grande
tra ç a s . . . esco n d erijo d e to d o s os “ cien tistas so c iais”
Será d e sta p e rsp ec tiv a q u e irei re aliz a r q u e fa la m d e to te n s e tem as, de e stru tu ra s
algum as consid eraçõ es so b re a o b ra d e G il­ e categorias cien tíficas, e v ita n d o , com o o
b e rto Freyre. D ia b o a c ru z, fa la r de si m esm os e d e suas

BIB, R io de Ja n e iro , n . 24, p p . 3-10, 2 ° sem estre d e 1987 3


sociedades; o “ m éto d o e n sa ístic o ” escolhi­ sign ificativ am en te in titu la d o : “ do p o n to d e
d o p o r Freyre, o b rig a o a u to r a colocar-se vista d o n a tiv o ” (fro tn n a tiv e p o in t o f
(com seu sistem a d e valores) no c en tro vie w ) o n d e se discute com o se deve re a ­
m esm o d a n a rra tiv a . A qui não ge fala m ais liz a r u m a e tn o g ra fia epistem ologicam ente
de B rasil com o se o “ b ra s il” fosse um sa tisfató ria. P a ra G e ertz , isso se ria a lc an ­
espécim e n a tu ra l, m as se d iscu rsa so b re a ç a d o d e sd e q u e n ã o se p erd esse d e vista
“ re alid a d e b ra sile ira ” , to m an d o -a com o o diálogo (o u , com o diz ele, u m diciletical
um a m o ra lid a d e com a q u a l se tem in te­ tdlking) e n tre o “ m ais lo calizad o dos d e ta ­
resses p a te n te s e q u e en g lo b a o escrito r. lhes locais e a m ais g lo b aliza d a das estru ­
O e nsaísta, assim jam a is assum e aquela tu ra s g lo b ais” (cf. G e ertz , 1983:59). A idéia
a titu d e “ d e sin te ressa d a ”, “ d ista n te ” ou é excelente. Só q u e e la aca b a “ n ativizan-
“ c ie n tífica ” , d ia n te do se u tem a. A o c o n trá ­ d o ” o n a tiv o , já q u e se d e le ita com o e stu ­
rio, ele está sem p re a seu lad o : p o r e le e do c u id a d o so (e reb u scad o ) das categorias
com ele. R e alm en te, ensaio ten d e se m p re a locais, m as n e m se q u e r p e n sa em d isc u tir
tra v a r u m a d u ra b a ta lh a c o n tra o exótico, o significado sociológico d a s “ e stru tu ra s
sen d o u m a re cu sa do “ discu rso to tê m ic o ” , g lo b ais” . S erão elas o ta l “ e sp írito h u m a ­
esse e n re d o in a u g u ra d o pelas v e rte n te s m ais n o ” — o “ h ó sp e d e ” n ã o con v id ad o d a o b ra
ra d ic alm en te “ c ien tificistas” d a A n tro p o lo ­ de L évi-Strauss, q u e chega q u a n d o o etnó-
gia Social (ou C u ltu ra l) inglesa, fran cesa grafo estava ju sta m e n te p re o c u p a d o em
e n o rte-am erican a, q u e im aginava o p e sq u i­ e stu d a r B ororos, N a m b iq u a ra s e P au listas?
sa d o r se n tad o n u m a p o ltro n a , m esm o O u se rá q u e tu d o isso “ in o ce n tem en te ”
q u a n d o ele p assav a anos n a “ trib o ” . A qui, pre ssu p õ e a id éia d e u m o b se rv a d o r u n iv er­
c o n fo rm e se sabe, tu d o fu n c io n a p a ra m a n ­ sal, e te rn o , e q ü id ista n te e p e rfe ito ? U m
ter a d istân c ia e se r u m e le m en to caute- cid a d ão do m u n d o , acim a de q u a lq u e r sus­
riz a d o r das po ssib ilid ad es d e p ro d u z ir um peita (e jam ais d u sc u tid o ), q u e seria tão
discurso am bíguo, d ram ático e sensual — “ u n iv e rsa l” q u a n to R ousseau (q u e fa la v a
à G ilb e rto Freyre. U m texto q u e conform e francês), H egel q u e e ra alem ão, H o b b e s
nos e n sin a B a k h tin , fa la em m u ita s vozes q u e escrevia em inglês e C liffo rd G eertz
e p a ra m u ita gente. É co lo n iz ad o r e “ de q u e é n o rte-am erican o ? 3
fo ra ” (na m ed id a em q u e seu a u to r d ia­ O p o n to d e v ista n a tiv o d e G eertz, está
loga com m estres e colegas q u e p ro d u z em in teressad o so m en te em fa la r do “ n a tiv o ” ,
nos c en tro s in te lec tu a is do O c id en te, on d e p o u p a n d o siste m a tic am e n te o sujeito que
estu d o u ); m as é tam b é m u m tex to sofrido fa la , esse “ u n iv e rsa liz a d o r” q u e p re te n d e
e “ d e d e n tro ” (já q u e seu a u to r fala p a ra o p e ra r fo ra do m u n d o e das categorias
si m esm o com o m em b ro d a sociedade que histó ricas e c u ltu rais. A v e rd a d e ira “ p ro v a ”
e stu d a). É u m texto q u e p re te n d e ser “ ver­ das etn o g rafias n ã o e staria a p en a s n u m
d a d e ” e “ p o d e r” (p o rq u e se su p õ e c ie n tí­ co n h ecim en to e x te rio r, re su lta d o d e u m a
fico e re su lta d o de p esq u isas), m as que m a rra d a d ialé tica e n tre o h ip e rlo c a l e o
n ã o a b a n d o n a suas p re te n sõ e s de se r “lite ­
su p e ru n iv ersa l, com o q u e r G e ertz , m as n a
rá rio ” e, p o rta n to , “ p o lítico ” e “ n a c io n a l”
revelação d a m e n ta lid a d e q u e to d o etnó-
(sem o q u e n ã o te ria a m e n o r o p o rtu n id a d e
d e ser co n sid erad o pelas elites de sua terra ). g rafo tra z d e n tro deí si. H á u m N u e r visto
O discu rso antro p o ló g ico e científico p o r u m inglês q u e ta lv e z seja m ais reve­
clássico, p o ré m , é u m a fa la “ to tê m ic a ” e la d o r do q u e o N u e r “ re a l” e “ a fric a n o ” ,
classificadora. F ala d e fo ra p a ra d en tro , “ e stu d a d o ” p o r E v an s-P ritc h ard . U m a h e r­
p o rq u e acim a d e tu d o , deseja “ p ô r o rdem m en êu tica n ã o deve fa la r so m en te d e re g ra s
no m u n d o ”. P ara ta n to , tal discurso não capazes d e p ro d u z ir tra d u ç ã o e e n te n d i­
po d e c o n ta r consigo m esm o com o ta l: tem m ento. E la deve e star, tam b é m , re fe rid a à
q u e se r u m discurso m o rto . M as p a ra de sc o b erta d e q u e, te n ta n d o fa la r do lu g ar
m o rrer, h á que se n e u tra liz a r o e sc rito r e do o u tro , p ro d u z im o s teste m u n h o s e re v e ­
o b jetific ar e “ n a tiv iz a r” p a ra sem p re os lações d e n ó s m esm os. E sse fa ia r “o b je ­
nativ o s. O p e raç ã o im p o rta n te q u e no p lan o tiv a d o ” , do o u tro , tam b ém , nos re v ela e
das C iências N a tu ra is c o rre sp o n d e à clássica nos h a b ilita a e n x erg a r o nosso sistem a
se p a ra ç ão e n tre “ sujeito e o b je to ” . M as nas de classificação com o u m espaço localizado
C iências H u m a n as, o n d e sujeito e objeto e c la ram e n te a rb itrá rio . D e n tro dele, agora
estão, c o n fo rm e o b serv o u L évi-Strauss, podem os v e r, h á u m “ n a tiv o ” u n iv ersali­
num a m esm a escala, isso se faz “ u n iv ersa ­ z a d o r e c osm opolita q u e n a d a m ais é do
liz a n d o ” o a u to r e , sim u lta n ea m e n te, “ loca­ q u e u m o u tro su je ito , tam b ém , c u ltu ra l e
liz a n d o ” os n a tiv o s. O q u e im e d iatam e n te h isto ric a m e n te c o n stru íd o . A o c o n trá rio do
lem b ra o fam oso ensaio de C liffo rd G e ertz , q u e d iz G e ertz , u m a h istó ria d a fe itiça ria ,

4
e sc rita p o r u m fe itice iro , é tão ap risio n a d a q u isa d o r e stu d a sua p ró p ria sociedade, de
pelos h o rizo n tes m en ta is do e s c r i t o r .. . certo m o d o re aliz a a e x p eriên c ia do fe iti­
q u a n to W itc h c ra jt, ü r a c le s a n d M agic ceiro d e G e ertz , ap risio n a d o que está pela
A m o n g th e A z a n d e é u m livro ap risio n ad o fala e pelo peso d o s valores que sua escri­
pelo sistem a de categorias d e E vans-Prit- ta descobre, e stu d a e c erta m e n te tem o
c h a rd . O u n iv ersalism o p e rm ite v e r c ertas p o d e r d e ex o rcizar. A q u i, é c erto , c o rre ­
coisas, m as tal com o aco n tece com um a m os o risco de ter so m en te o “ p o n to de
visão localizada, tam bém , n ã o p e rm ite v ista do n a tiv o ” m as p a rec e q u e sem essa
en x erg a r tu d o . 4 p e rsp ec tiv a , n ã o h á tran sfo rm a çã o o u m u­
d a n ça . . .
— II — Pen so q u e G ilb e rto F rey re perceb eu isso
n o seu tra b a lh o . C e rta m en te p o rq u e foi
Pois bem , é, a m eu v e r, e sta posição um v iaja n te p recoce e, com o tal, viu o
ensaística, auto-reflexiva e decid id am en te, B rasil prim eiro de fo ra (com o objeto c o n ­
de d e n tro , q u e tipifica a Sociologia d e G il­ c eitu ai e p o r m eio de o u tra s linguagens)
b e rto Freyre. P osição co n sc ie n te m en te as­ e, p o ste rio rm en te , d e v o lta a o R ecife, quis
su m id a, com o q u e p a ra e q u ilib ra r o norte- re tq m a r o B rasil c o n creto e sensível, p re ­
-am ericanism o e o europeísm o q u e, p a ra ­ te n d e n d o c o m p le m e n ta r as duas versões. É
doxal e d iale tica m en te fo ram tão im p o r­ pelo m e n o s assim q u e se p o d e le r sua a u to ­
tan te s p a ra a fo rm aç ão de G ilb e rto Freyre b io g rafia, T e m p o M o rto e O u tro s T em p o s,
com o e studioso (ou e stu d an te) d a sociedade o n d e G ilb erto fa z u m esfo rço p a ra assim i­
bra sile ira . R ealm en te, n u m a passagem do la r e re co lo ca r d e n tro do B rasil (e de sua
p refácio à p rim e ira edição d e C asa G rande v id a) os longos anos q u e v iv eu n o ex te­
& Senzala (p u b lic a d o em 1933), e n co n tra ­ rio r. D e ste m o d o , ele n ã o assum e a posi­
m os essa consciência ensaística que, a m eu ção triv ia l d e u m in te lec tu a l b ra sile iro
ver, a n te c ip a a p e rtu rb a d o ra re la tiv iza ç ão assim ilado pela “ c u ltu r a ” fran c e sa ou am e­
e stru tu ra lista . N e la, G ilb e rto Freyre a firm a rican a. M as, ao c o n trá rio , e m b o ra ten d o
que fa ze r S ociologia n ã o é d esco b rir recei­ v iv id o n o s E stad o s U n id o s dos 18 aos 22
tas m as, é “ q u e re r nos c o m p le ta r: é o u tro anos; e e n tre P aris, L o n d res e O x fo rd dos
m eio d e procurar-se o "te m p o p e rd id o ” . 22 aos 23 anos, q u a n d o re to rn a ao B rasil
O u tro m eio d e nos sentirm os n o s ou tro s e a R ecife, G ilb erto Freyre v o lta a in d a
— nos q u e v iera m antes d e n ó s ( . . . ) . “ É m ais b ra sile iro , so m an d o u m a experiência
um p assad o q u e se e stu d a to ca n d o em in te lec tu a l c erta m e n te m o d e rn a , in d iv id u a ­
nervos; u m p assad o que e m e n d a com a lista e cosm opolita, ao desejo d e re to m a r
vida de cada u m ; u m a a v e n tu ra de sensi­ u m a ligação sensível com o R ecife, o N o r­
b ilid a d e, n ã o a p en a s u m esforço de p e s­ deste e o B rasil. C reio q u e é essa relação
quisa pelo s a rq u iv o s” . difícil e com p lex a e n tre o intelectu al e o
O u seja, fa z e r u m a Sociologia do B rasil sensível, o d e d e n tro e o de fo ra , o vivido
n ã o seria apenas um exercício in telectu al. e o c o n ceitu alizad o , o local e o un iv ersal,
Isso seria v e rd a d e iro p a ra u m p ra tic a n te o q u e re q u e r tra d u ç ã o e aq u ilo que faz
de um “ discu rso to tê m ic o ” . P a ra um ensaís­ p a rte do a r q u e se re sp ira q u e G ilb erto
ta brasileiro q u e fala do B rasil, porém , há F rey re q u e r e stu d a r e, ev en tu alm en te , e q u i­
algo fu n d a m e n ta l q u e G ilb e rto F rey re p e r­ lib ra r, em sua obra. N ela, não tem os nem
cebeu com o básico p a ra a t a r e f a .5 Q u ero tira d as n a cio n alistas nem a q u ela a titu d e
m e re fe rir ao fa to de que falam o s do B rasil liv resca, tão c o m u m n o s nossos intelec­
n u m plan o de c o n tin u id a d e em ocional: tuais m al-viajados q u e se resu m e em a p li­
u sa n d o a m esm a lín g u a q u e todos falam car ao B rasil, fó rm u la s feitas “ lá fo ra ” .
e p o d e n d o se n tir p o r d e n tro a p ro b lem á ­ T am b ém n ã o tem o s u m a visão a lta m e n te
tica d a sociedade e d a n a ç ã o .0 O p ro b le ­ n e g ativ a do B rasil, q u a n d o se c o n fu n d e,
m a básico talvez, é que som os o b rigados co n fo rm e já sugeri, a sociedade com a
a to m ar consciência em ocional d a c o n tin u i­ n acão e, às vezes, com o regim e.
d ad e p a ra , em seguida, te n ta r o sa lto in te ­ Sem d ú v id a , essa e x p eriên c ia crítica e
lec tu al n a d e sc o n tin u id ad e . U m a o p e raç ão precoce d a “ viagem ” 7 p e rm itiu q u e G ilb er­
c o m p lica d a q u e discu ti sim p lificad am en te to desenvolvesse u m a e scrita sem p e d a n ­
com a fó rm u la do “ tra n sfo rm a r o p ró x i­ tism o, d e sen v o lv en d o u m a Sociologia do
m o em d ista n te ” , no m eu liv ro R elativi- B rasil q u e é o rig in a l n a sua tem ática, a b o r­
za n d o , m as q u e ten h o p o sto em p rá tic a d a n d o a so cied ad e atrav és d e categorias
no s m eus ensaios so b re o B rasil. n a tiv a s, n ã o a p a rtir de p ressu p o sto s teó ri­
M as já é tem p o d e re fle tir m ais d e tid a ­ cos freq ü e n tem e n te m al-assim ilados. O re ­
m en te n o fa to d e q u e, q u a n d o u m pes­ su ltad o é u m re tra to do B rasil q u e é reco-
n h ecid o a té m esm o pelos seus leitores. T ão T a l le itu ra do B rasil só p o d e ser possí­
re co n h e cid o q u e m u ita s vezes c o n fu n d ira m vel, n a m e d id a em q u e se faz u m a ra d i­
suas reflexões com m e ra o p in ião lite rária, cal se p a ra ç ão e n tre Biologia e C ultura, con­
a n ed ó tica ou p o rn o g ráfic a. 8 form e a ce n tu a v a G ilb e rto em Casa G ra n d e
& Senzala , q u a n d o diz:
— III —
T u d o isso destaca a o b ra d e G ilb erto “ A p re n d i a c o n sid e ra r fu n d a m e n ta l a
F rey re n o c en á rio in te lec tu a l brasileiro. d ifere n ça e n tre raça e cu ltu ra ; a d isc ri­
P a ra ta n to , b a sta lem b ra r q u e n a v ira d a do m in a r e n tre os e feito s d e relações p u ra ­
scculo, se falav a do B rasil atra v és de u m a m en te g enéticas e os d e influências
linguagem p a ra m é d ic a .9 N a concepção de sociais, d e h e ra n ç a c u ltu ra l e de m eio.
e n tã o , o a tra so do B rasil d e co rria d a fam o ­ N e ste critério de d ifere n cia çã o fu n d a ­
sa m istu ra d e raças q u e e ra to m a d a com o m en ta l e n tre ra ç a e c u ltu ra assen ta to d o
a p rin c ip a l c ara cte rística d a nossa fo rm a ­ o p lan o d este ensaio. T am bém no da
ção. R ealm en te, e ra m ais fácil fa la r de d iferen ciação e n tre h e re d ita rie d a d e de
“ in ferio rid a d e s ra ciais” (d ad as n a o rd e m d a ra ç a e h e re d ita rie d a d e d e fa m ília .”
n a tu re z a ), d o q u e d e dom in açõ es sociais,
políticas e econôm icas (d ad as n a o rd e m d a O ra , n u m m eio in te lec tu a l que a té hoje
h istó ria e d a c u ltu ra )! A p a rtir, p o rta n to , a in d a n ã o sab e b e m d istin g u ir essas d im e n ­
de u m a c ria tiv a , m as m ed ío cre “ fá b u la das sões d a re a lid a d e so c io ló g ic a .11 vale re s­
três ra ç a s”, falava-se d a sociedade brasilei­ sa lta r q u e fo i c erta m e n te a o b ra de G il­
ra a tra v és d e u m a d in âm ica p u ra m e n te bio­ b e rto F rey re a q u e p rim e iro a rticu lo u essa
lógica. C om o se n o B rasil n ã o houvessem h istó ria q u e to d o b ra sile iro gosta de con­
sen h o res e escravos, nem c o n tro les h ie rá r­ ta r p a ra si m esm o; a sa b e r: q u e som os u m a
quicos q u e m o ld av am os códigos lib erais c u ltu ra “ m estiça” e “ m is tu ra d a ” , u m m odo
e capitalistas d e um m odo especial, fa ze n ­ d e fa la r q u e fica e n tre os conceitos (o de
do com q u e tu d o se co n fo rm asse à lógica “ ra ç a ” e o d e “ c u ltu ra ”), c o stu ra n d o e
do “ sab e com q uem e stá fa la n d o ? ” e do p re fe rin d o am b ig u a m e n te os d o is . . .
“je itin h o ” . 10 P en sav a-se o B rasil com o M as o p ro jeto ensaístico d e G ilb erto
u m a sociedade cujos m ales fa ziam n a sua Freyre o b rig a, tam b ém , a u tiliz a r nov o s
biologia, n ã o n a su a c u ltu ra e e stru tu ra d e m ateriais. N ã o só os d o cu m en to s clássicos
po d er. N ão v o u v o lta r a denu n cia r essa do h isto ria d o r, m as, tam b é m , os arq u iv o s
“ fá b u la d a s três ra ç a s” , re p e tin d o o que de fam ília, as n a rra tiv a s de v ia ja n te s, os
já fiz no m eu liv ro , R ela tiv iza n d o . M as é a n ú n cio s de jo rn a l, as c a rta s e as m em ó ­
p reciso d ize r q u e em Casa G ra n d e & S e n ­ rias pessoais; além dos v alo res q u e a socie­
zala, G ilb e rto Freyre re aliz a u m a d e m a rch e d a d e a tu a liz a em todos os seus níveis de
p a ra d o x a l, n e m sem pre p e rc e b id a pelos re alização . A ssim fa z e n d o , G ilb erto Freyre
críticos. É q u e, n a q u e le liv ro , e le reveste deixa d e s e r o e le m en to m ed ic aliz a d o r e
de v e rd a d e a “ fá b u la das três ra ç a s” , ao d isc ip lin ad o r do seu p ró p rio sistem a, um
m esm o tem p o que in icia sua dem olição p a p el irresistível dos in telectu ais em nosso
crítica , to m a n d o a “ m estiçagem ” m u ito m ais P aís. N a su a o b ra n ã o se fa la do Brasil
com o u m p rocesso situ ad o n o código histó- com o u m m édico fa la do seu p a c ie n te (a
rico -c u ltu ra l, do q u e n o q u a d ro d e u m a exem plo do que fez N in a R o d rig u es), nem
linguagem ra cial. E m Casa G rande & S e n ­ com o u m eng en h eiro fa la de u m a o b ra
zala, p o rta n to , a “ m estiçag em " ap arece (com o faz E uclides d a C u n h a ), nem com o
d e n tro d a lógica do a m bíguo e d o p a ra ­ um ju ris ta fala d e suas leis (com o faz O li­
d oxal. A g o ra , o B rasil n ã o e ra “ m estiço” ,
v e ira V ia n n a ); ou u m econom ista d e suas
p o rq u e e stav a sujeito a u m a re a l e b io ló ­
cifras.
gica “ m istu ra d e ra ç a s” , m as p o rq u e era
M as p o r te r escolhido o m éto d o ensaís­
u m a sociedade “ c u ltu ra lm e n te m estiç a ” ; um
sistem a q u e se m an ifestav a “m is tu ra n d o ” tico. G ilb e rto Freyre re cu sa um discurso
in stitu içõ es sociais q u e em o u tro s lugares essencialm ente n o rm ativ o , m ed ic aliz a d o r d a
e e m o u tro s tem p o s, estavam rigidam ente sua sociedade. A ssim , em vez de seguir o
se p arad o s. C om o re su lta d o , o “ m estiç o ” cam in h o dos ra cistas h istó ric o s (com o N in a
pô d e se r visto com o u m elem ento positivo: R odrigues e O liv eira V ia n n a) ou dos m ate­
com o valor social. D este p o n to d e v ista, a rialistas v ito ria n o s (com o D a rc y R ib eiro ),
c o n tra d iç ã o q u e o “m estiç o ” acentua em q u e sem pre falam do que nos fa lta e de
to d o o lu g ar, pa ssa a ser su g erid a com o um com o p o d eríam o s te r sido, ele fa la do
p o n to c en tral do sistem a de v alo res d a so­ Brasil q u e é E sse B rasil q u e existe antes
c ie d ad e b ra sile ira . de n ó s e q u e, a desp eito d e n ossa v o n ta d e .

6
c o n tin u a rá depois de nós. E sse B rasil q u s cied ad e b ra sile ira (re c u p e ra n d o o tem po
é nosso, m as não foi in v e n ta d o p o r nós. q u e dela p e rd e u ), e u m a to ta l m io p ia pelo
P o r tu d o isso, a S ociologia d e G ilb erto c o n ju n to in stitu cio n al e co n stitu c io n a l desta
Freyre lib e ro u a tem á tica dos estu d o s b ra ­ m esm a sociedade. A ssim , a o b ra de G il­
sileiros e o brigou o estu d o do m u n d o d iá ­ b erto Freyre se c o n c e n tra q u a se q u e exclu­
rio. A gora se rá p reciso d e sc o b rir com o siv a m e n te n o estu d o d a c asa e d a fam ília.
o p e ram essas relaçõ es de a tra çã o e re p u l­ C om o se o B rasil fosse u m co n ju n to de
são e n tre pessoas situ a d a s e m posições p o la ­ g ru p o s fam iliares em lu ta p o r um p o d e r
res do sistem a (com o os sen h o res e esc ra ­ caseiro ou p a te rn o . O b c ec a d o pela socie­
vos); ou c e rta s n o rm as q u e se escrevem d a d e, ele se e sq u ece de e x a m in a r o B rasil-
em co nstituições ideais (as leis do E stado) -N ação e tu d o o q u e em nosso sistem a se
e as re g ra s q u e se inscrevem n a s nossas d efin e com o p e rte n c e n d o ao “ m u n d o d a
vidas (as leis não esc ritas o u conscientes r u a ”. É ra ro , p o rta n to , e n c o n tra r em sua
q u e go v ern am o p a re n te sc o , o co m p ad rio , o b ra , a lgum a reflexão m ais d e tid a so b re o
a am izad e e o sistem a d e relações pessoais). q u a d ro co n stitu c io n a l e o aparato legal da
T u d o , e n tã o , po d e ser leg itim a m e n te e stu ­ sociedade b ra sile ira , c o m suas fo rm as de
d a d o . N ã o precisam o s fo c aliz a r som ente as g overno e de coerção ju ríd ic a. P a ra esse
co n stitu içõ es, as d o e n ça s, os n ú m ero s ou o G ilb e rto Freyre sem p re v iaja n te e sa u d o ­
/-d in h eiro para sa b er q u e um a sociedade se so, n ã o h á um B rasíí-E stado e u m Brasíí-
í m an ifesta atra v és d e m uitos “ m éd iu n s” e -G o v ern o . H á , isso sim , u m B rasil sem pre
\ q u e fa ze r b o a S ociologia é e sta r p re p a ra d o C asa G ra n d e ou S o b ra d o : u m B rasil sem ­
p a ra d e sc o b rir o n d e o sistem a p o d e se p re sociedade. U m B rasil que é m o d o de
re v elar de m odo m ais d isfarçad o e in su s­ se r e fa la r, co m e r, g o z ar e viver.
peito. T alv ez seja p o r isso q u e n e sta o b ra se
Foi p o r ter trilh a d o esse cam in h o que e n c o n tre u m a co m b in ação tã o c o n tra d itó ­
G ilb e rto F rey re p ô d e s e r p io n eiro e ino­ ria (e tão “ m estiç a ” ) de riq u íssim as o b se r­
v a d o r ao e stu d a r os m odos de fa la r dos vações sobre o m o d o d e v id a e as “ infor-
escravos (a n te cip a n d o as análises d a m o d e r­ m a lid a d e s” que d efin em o estilo b ra sile iro
n a S óciolingüística); o espaço n o b re e d e viver; ao la d o de u m a ausência d e crí­
p o b re das m o rad a s d e en g en h o d e sua tic a do E stado N a c io n a l com tu d o o que
te rra ; as p rá tic a s sexuais, os ju ram en to s e tem de v io le n ta d o r e m aligno: seus d ita d o ­
as expressões d e b lasfêm ia e o p ró b io ; a res, seus regim es p olíticos e seu p o d e r de
c o zin h a e a c o m id a. E c erta m e n te m o stro u d om in ação . A o a d m ira r e q u e re r re cu p e ­
u m a sen sib ilid ad e excepcional q u a n d o e n ­ r a r o tem p o p e rd id o longe de sua socie­
x ergou o m édico su b stitu in d o o p a d re nos
d a d e, G ilb e rto se esquece d a re alid a d e
so b rad o s do B rasil p ré-re p u b lic a n o e q u a n ­
estatal e a dm inistrativa. U m a visão sensual
do v iu jo rn ais v e n d e n d o escravos, em vez
de serv irem com o in stru m e n to s de lib e r­ d o B rasil, to rn a invisível o d u ro a p arelh o
d a d e no B r a s il.12 fo rm al e in stitu c io n a l. A som a disto tu d o ,
A c o n trib u iç ã o da obra d e G ilb e rto é u m a o b ra original e m istu ra d a com o seu
Freyre foi, assim , a de re a liz a r u m valo r. a u to r: de u m la d o , p e rd id a n u m a v a id a d e
U m a escolha q u e é pessoal e q u e exprim e d o e n tia e quase p e rv ersa m en te a tra íd a pelo
aspectos cruciais d e su a e x p eriên c ia d e v id a elogio e pelo p o d e r; e, do o u tro , e te rn a ­
com o um brasileiro q u e, n a v ira d a do sé­ m en te fa scin a d a e a tra íd a pelo p equeno
c ulo, viv eu n o s g randes cen tro s d e p ro ­ m u n d o dos h om ens co m u n s, dos desejos
d ução in te lec tu a l d o s E stad o s U nidos e d a secreto s e dos gestos h u m ild es. E ssas coisas
E u ro p a. T alv ez te n h a sido isso q u e des­ q u e , a fin a l de c o n ta s, d efinem os tem pos
p e rto u nele u m a fom e insaciável p ela so­ e as cu ltu ras.

N otas

1. C o n v ém le m b ra r que um m esm o a u to r po d e s e r castigado p o r su a “fo rm a ” (caso de


G ilb e rto n o s anos ‘60) e elogiado p o r seu “ c o n te ú d o ” ; e q u e essa re la çã o , p o d e v a ria r ao
longo d e um d ado m o m e n to h istó rico . Jorge A m ado e ra elogiado p o r seus “ c o n te ú d o s”
(“ co rajo so s” e “ p o lítico s” ) p elas m esm as “ pessoas p o lític a s” q u e h o je d e p lo ra m su a lite­
ra tu ra , d e “ fácil e n te n d im e n to ” e a u te n tic a m e n te p o p u la r; logo u m a lite ra tu ra “ fá c il”
no m odo d e le r desses c rítico s. V ale n o ta r com o tu d o isso é c o n te x tu a i, p o rq u e a le itu ra
de u m A u to r com o “ fá c il” ou “ d ifíc il” e stá p ro fu n d a m e n te re la c io n a d a ao m o d o com o

7
ele se d e fin e e é defin id o p o litica m en te (A lm eida [1979] seguindo B ou rd ieu , e stu d o u as
condições políticas d e p ro d u ç ão e recepção d a o b ra d e Jorge A m ad o ). É p re cisa m e n te a
d efinição c u ltu ra lm e n te p o lítica q u e p e rm ite a ap ree n sã o d e u m a o b ra com o sendo dico-
to m iz ad a e m “ fo rm a ” e “ c o n te ú d o ” . Isso p o sto , p o d em o s d ize r que n o caso do B rasil,
a distin ção é vigente em todos os nív eis da sociedade p o rq u e ela p e rm ite h ie ra rq u iz a r
m ais fa cilm e n te o b ra s e pessoas d e a co rd o com u m a dialética d e “ p o p u lariza ç ão / eliti-
z aç ão ” . A ssim , q u a n to m ais avant-gard, m enos inteligível e m ais a tra e n te p a ra c erto tipo
de in te lec tu a l q u e te m v e rd a d e iro d esp rezo p e lo p o p u la r, n o sen tid o d e q u e o p o p u la r
c o n fig u ra o re in a d o d a ig u ald a d e e d a “ c o m o d ificação ” d a v id a social, q u a n d o o m ercad o
d om ina tu d o e, com o re su lta d o , to d o s são iguais p e ra n te a m erc a d o ria e o m ercad o (cf.
P olanyi, 1980). A ssim , certos tem as “ p o p u la re s” são “ ta b u s ” . N o caso do B rasil, penso
so b re tu d o n a fam ília, n a s festas populares, nas crenças religiosas e n a v id a diária em
geral. A im p o rtâ n cia social destes tem as, b e m com o su a p o sição estratég ica n a e stru tu ra
d e p o d e r do sistem a b ra sile iro , faz com q u e sejam objeto d e u m d u p lo “ se n tim e n to ” :
ao m esm o tem p o q u e atraem , posto q u e são fu n d a m e n ta is n a esfera c o tid ian a , eles tam bém
rep elem , p o rq u e seu d e sv e n d am en to crítico e q u iv ale a p ô r o R ei n u , re v elan d o u m a
com plexa lin h a de p o d e res e de com pensações sociais c o n stru íd a s pelo sistem a. O re su lta d o
d esta c o n tra d iç ã o é a p iad a , o c arn av al, o “ deixa-disso” e o u tra s m an ifestaçõ es relacionais
que c o n cilian d o opostos, in v e n ta m u m a “ terc eira m argem do rio ” e a d iam c ertam e n te a
m u d an ç a social lib e ra l ou bu rg u esa (cf. o m eu A Casa & a R u a ). P o r tu d o isso, essa
tem á tica e stá fa d a d a a ser to m a d a com o fácil dem ais pelos críticos; a m enos — é claro
— q u e o a u to r fa le d ela p o r m eio d e “ m é d iu n s” com plicados, u sa n d o um jarg ão pesado,
difícil ou m isterio so — u m a lín g u a especial o u se c re ta, c o n fo rm e d iria V a n G en n ep . N ão
será p o r isso q u e um a. m esm a id éia vale m ais em fran cês de P aris, ou em inglês d e
O x fo rd do que em b ra sile iro de R ecife ou B ah ia? P ode-se, e n tã o c o n d e n a r u m a u to r
ta n to pela fo rm a q u a n to pelo c o n te ú d o , desde q u e se m a n te n h a o m u n d o in te lec tu a l
liv re de igu alitarism o e sem p re g o v e rn ad o p e la h i e r a r q u ia ....

2.. U m a categoria o p o sta a de “ sociólogo” ; n este c o n te x to e q u iv a len te a cientista. N esta


visão ingênua, p o sitiv ista e id ea liz ad a do tra b a lh o do “ e sc rito r” , ele n ã o te ria c o m p ro ­
m issos com a lógica dos “ a rg u m e n to s” , “ d e m o n stra çõ e s” e “ p a rad ig m a s” . C laro q u e a
o b ra dos escritores desm ente isso, pois re v ela com o. tam b ém , eles têm leald ad es com
m odelos, situações, a rg u m en to s e t c . . . S erá q u e a d iferen ça c o n tin u a sen d o a q u ela que
“ s e p a ra ” o p e n sa m en to selvagem (q u e o p e ra p o r m eio d e signos) e u m p e n sa m e n to c u lti­
va d o (q u e o p e ra p o r m eio de conceitos) com o q u e ria C laude L év i-S trau ss a in d a d e n tro do
q u a d ro p o sitiv ista tra d ic io n a l?

3. E ssas “ línguas u n iv e rsa is” e stão tão estab elecid as que seus fa la n te s se esquecem que
as possuem ! A ssim , só q uem te m “ lín g u a ” e c u ltu ra (ou seja: o q u e é lo calizad o , sin g u ­
la r, exótico e valioso com o o b jeto d e in te rp re ta ç ã o ) são os nativ o s. B asta p e n sa r que
g ra n d e p a rte do que se ch am a (em inglês!) d e scholarship, é sim plesm ente in te rp reta çã o
d e tex to s d e u m a lín g u a p a ra o u tra , p a ra v e r com o te n h o ra zã o . O p o n to é q u e todos
fa la m u sa n d o u m estilo, de algum lugar. V eja-se o tra b a lh o d e R o b e rto K a n t d e L im a,
A n tro p o lo g ia da A ca d e m ia : ou, q u a n d o os ín d io s so m o s nós, L im a, 1984; p a ra c o n sid e ­
rações im p o rta n te s so b re essa q u e stão .

4. D ir-se-ía q u e estou p restes a esc o rre g a r no solipsism o. P e n so , e n tre ta n to , q u e n ã o


p o d em o s e sc ap a r do fa to de que som os h isto ria d o re s d e h istó ria s, n a rra d o re s d e en red o s
q u e se n a rra m a si m esm os, cria d o res d e m ito s d e m itologias. E ssa qu estão d a “ relati-
v iza çã o ” do nosso p ró p rio sistem a de categ o rias se im põe, com o u m p ro b lem a c ru cial
d o e stru tu ra lism o (e d a A n tro p o lo g ia C u ltu ra l em geral) e n ã o vejo com o n ã o e n fre n ­
tá-lo. A liás, poucos tiv e ram coragem de fazê-lo, n a b o a esteira d e D u rk h e im (das F orm as
E lem en ta res da V id a R eligiosa) e d e M auss. A m eu v e r, so m en te dois con tem p o rân eo s
têm a ta ca d o d e fren te essa q u e stão q u e, d e fa to , jaz n o c en tro d e u m a c rítica , a p ró p ria
idéia d e “ ciência m o d e rn a ” : M ichel F o u c a u lt e, p e lo lad o m ais a n tropológico e c o m p a ra ­
tivo, L ouis D u m o n t. N ão deve se r p o r acaso q u e am bos são d e sp rezad o s, resp ectiv am en te,
à d ire ita e à esq u e rd a .

5. A ntes q u e, tam b ém , m e acu sem d e nacionalism o d esv airad o , deixe-m e d ize r que o
m esm o p o n to é v á lid o q u a n d o u m fran c ê s escreve so b re a F ra n ç a , u m russo so b re a
R ússia e u m am erican o so b re os E stados U nidos. A q u i, a S ociologia é an álise e docum ento.
teste m u n h o e m até ria -p rim a , sendo sim u lta n ea m e n te cn g lo b a d o ra c e n g lo b a d a p e la socie­
d ad e.
6. C reio q u e é fu n d a m e n ta l d istin g u ir esp ecialistas q u e “ le ra m ” o Brasil pela p e rsp ec ­
tiv a d a “ n a çã o b ra sile ira ” (u m a e n tid a d e sociológica especial, q u e engloba tan to o
“ E sta d o ” q u a n to o “ g o v e rn o ” e q u e tem com o u n id a d e sócio-política m ín im a, o “ in d i­
v íd u o ” com o v a lo r e c en tro m o ral); e pela sociedade q u e, ao c o n trá rio , é relacional e
e stá c o n stitu íd a d e u n id a d e s m u ito m ais inconscientes com o a “ v iz in h a n ç a ” c a “ fa m ília ”.
E co n o m istas, c ie n tista s p o lítico s e h isto ria d o res e stu d a m a “ n a ç ã o ”, ra ra m e n te fa la n d o
(ou q u e re n d o c o m p re en d e r) a “ so c ie d a d e ”. A ntropólogos c u ltu ra is fazem o o posto;
e n q u a n to h isto ria d o res sociais e críticos lite rário s o scilam sem sa b e r e n tre um a e o u tra
e n tid a d e. A d istin ç ã o e n tre “ n a ç ã o ” e “ so cied ad e” com o u n id ad e s sociológicas d istin ta s,
é im p o rta n te , m as fo i a p en as e sb o ç ad a em algum a A n tro p o lo g ia c o n te m p o râ n e a, ap esar
de D eT o cq u ev ille e de M areei M auss (cf. M auss, 1972 [1920-21] e D a M a tta , 1979;
1987-88). Q u a n d o n ã o tem os consciência d a d istin ç ã o , criticam os m u ita s vezes a socie­
d a d e quandQ o nosso v e rd a d e iro alvo é a n ação o u a té m esm o o regim e q u e a g overna.
O u fazem os o c o n trá rio , c ritic a n d o a n ação q u a n d o o p ro b lem a está n a sociedade. C e rta ­
m en te q u e g ra n d e p a rte d a p ro d u ç ã o sociológica m o d ern a diz resp eito a p ro b lem as n a cio ­
n a is q u e, em v irtu d e d a im p o rtâ n cia p o lítica d a e n tid a d e social (a nação) ten d e a c irc u n s­
crev er e d e lim ita r a discussão, d e ix a n d o m u ita s vezes de lado p ro b lem as críticos situados
n a sociedade. E m geral, q u a n d o h á essa relação d ire ta e n tre q uem escreve e o sistem a
so b re o q u a l se escreve, sociedade e n ação surgem n u m p lan o d e difícil se p aração . Creio
q u e se p o d e d ize r q u e C aio P ra d o escreveu m ais so b re a n ação do q u e so b re a socie­
d a d e b ra sile ira . C om G ilb e rto F rey re o c o rre o o p o sto . D e fa to , pode-se dizer, sem m ed o
do exagero q u e ele foi c o n se rv a d o r (e a té m esm o reacio n ário ) e screvendo so b re a nação,
e c ria tiv o re fo rm a d o r q u a n d o lia nossa sociedade. A g ran d e vantagem d o s estu d o s fe ito s
p o r “ estran g e iro s” é a n itid e z com q u e tais e n tid a d e s p o d em a p are ce r n o s seus estudos.
N ão p o rq u e ten h a m consciência d a im p o rtâ n c ia teó rica da d istin ç ã o , m as p o rq u e tem
u m d istan c iam en to q u e p e rm ite “ p in ç a r” o que q u e rem “ v e r” sem m aio res envolvim entos
em ocionais, sociais e políticos.

7. P a ra a im p o rtâ n c ia d a “ viagem ” com o u m “ m é to d o ” que p e rm ite d e sc o b rir o deslo­


c am en to e a re la tiv iza ç ão , e stim u lan d o a sen sib ilid ad e antro p o ló g ica, veja-se o clássico
d e C lau d e L éyi-Strauss, T ristes Trópicos.

8. O p ró p rio G ilb erto Freyre m e re la to u q u e, em 1933, q u a n d o Casa G ra n d e & S enzala


fo i p u b lic a d o , h o u v e u m m o v im e n to p a ra q u e im a r o liv ro sob a alegação d e q u e era
po rn o g ráfico . In te re ssa n te , n este c o n te x to , o b se rv ar os re p a ro s p u rita n o s feitos p o r A fonso
A rinos d e M elo F ra n c o , a Casa G ra n d e & Senzala, a re clam a r u m a fa lta de “ dignidade'"'
d a linguagem d e F rey re (F onseca, 1985:84). Foi com um p ro ib ir o liv ro com o “ m u ito
fo rte ” p a ra g e n te d e m in h a g eração. E stá claro q u e o liv ro ch ocava p o rq u e se c o n stitu ía
u m a v e rd a d e ira “ d e n ú n c ia ” das p rá tic a s ín tim as d a s elites do m in an tes, m as u m a d e n ú n cia
escrita p e lo lad o de d en tro .

9. P rim eiro u m a linguagem m édica, d ep o is u m a linguagem ju ríd ic a e p o lítica (é a í que


está a im p o rtâ n c ia dos “ B a ch a réis” , com o e specialistas em re la c io n a r a e stru tu ra legal
com as v o n tad es dos segm entos d o m in a n tes e dos D ita d o re s); fin alm en te, u m a linguagem
h istórico-econôm ica d a d a pe la s v á ria s econom ias p o lítica s vigentes, a e sq u e rd a o u a
direita. M as, n o ta bene, o B rasil e stá se m p re d o e n te l
10. P a ra u m e stu d o das im plicações sociais e políticas do “ jeitin h o b ra sile iro ”, veja-se
o im p o rta n te estu d o d e L ivia N eves de H o la n d a B arbosa, O je itin h o Brasileiro, R io d e
Ja n e iro , M useu N a cio n a l, 1986. O “ sabe com qu em está fa la n d o ? ” fo i e stu d ad o p o r m im
em C arnavais, M alandros e H eróis.
11. P a ra d e m o n stra r q u e isso n ã o é m e ra re tó ric a e q u e a id éia d e “ ra ç a ” e stá p ro fu n ­
d a m e n te in tro je ta d a n a ideologia b ra sile ira , tom e-se o exem plo d e um ideólogo trêfego
q u e pa ssa p o r in te le c tu a l in o v ad o r e veja-se o liv ro de D arcy R ib eiro , T eo ria do Brasil
(1972). N este tex to , o a u to r re to m a , sem se d a r c o n ta a v e lh a term in o lo g ia ra c ista , a
sociedades com o “ p o v o s” q u e teriam “ m atrize s é tn ic as” d ifere n cia d as; q u e, p o r su a vez,
so freriam de processos p ro fu n d o s de “ c ald ea m en to ” . C om isso ta l “ teoria do B ra sil” ,
re fa z em 1972, o p e rcu rso ra c ista do sec. X IX brasileiro.

9
12. T a l com o o c o rre u com os co m p u ta d o re s q u e fo ram p io n eiram e n te u sa d o s n o B rasil
p e la p olícia p o lítica e d e f r o n te ira . . .

R eferê n cia s B ibliográficas

A lm eida, A lfredo W ag n er B erno de


1979. Jorge A m a d o : P olítica e L iteratura. R io de Ja n e iro , C am pus.

B akhtin, M ikhail
1981. P roblem as da P oética d e D o sto ié vski. R io de Jan eiro , F o ren se U n iv e rsitá ria .
D aM atta, R o b e rto
1979. C arnavais, M alandros e H eróis: Para u m a Sociologia do D ilem a Brasileiro.
R io d e Janeiro, G u a n a b a ra .
1987. A Casa & a R u a . R io de Ja n e iro , G u a n a b a ra .
1988. W h e re to L ook fo r C hange: th e Sociological Im p o rta n c e o f th e C oncepts
o f “ n a tio n ” a n d “ so c iety " in U n d e rstan d in g B razil. M s.

Freyre, G ilb erto


1975. T e m p o M o rto e O u tro s T e m p o s. R io d e Ja n e iro , José O lym pio E d.

F onseca, E d so n N e ry da
1985. Casa G ra n d e & S e n za la e a C ritica Brasileira. A rtigos re u n id o s e com en tad o s
p o r E dson N ery d a F onseca. R ecife, C o m p an h ia E d . d e P e rn a m b u c o .

G e ertz , C liffo rd
1983. L ocal K n o w led g e : F urther E ssays in In te r p re tiv e A n th ro p o lo g y . N e w Y o rk ,
Basic B ooks.

H ola n d a B arbosa, L iv ia N e ve s
1986? O Jeitin h o Brasileiro: U m E stu d o d e Id e n tid a d e Social. M useu N a cio n a l,
P ro g ram a de P ó s-G ra d u aç ão em A n tro p o lo g ia S ocial, R io d e Jan eiro .

L évi-Strauss, C laude
1957. T riste s T ró p ico s. São P a u lo , E d ito ra A n h em b i.
1962. L a P ensée Sauvage. P a ris, P ion.

L im a, R o b e rto K a n t d e
1984. A n tro p o lo g ia da A ca d em ia ; ou Q u a n d o os ín d io s S o m o s N ó s. R io, U niversi­
d a d e F e d e ral F lu m in en se, E d . V ozes.

M auss, M arcel
1912. “ L a N a c ió n ”, in O b ra s 111. B arcelona, B arrai.

P olanyi, K arl
1980. T h e G reat T ra n sfo rm a tio n . B oston, B eacon P ress, 1957.

R ib eiro , D a rcy
1972. T eo ria do Brasil. R io d e Ja n e iro , P a z e T erra .

10

Você também pode gostar