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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

CURSO DE GRADUAÇÃO EM LETRAS

A CANÇÃO INTERNA

MARIANA TREVISAN SERINO

NÚMERO USP 11247483


A canção interna

“Os cantores inúteis”, de Carlos Drummond de Andrade, foi publicado no livro


A paixão medida em 1980, já na fase tardia do poeta:

1 Um pássaro flautista no quintal


2 caçoa de meu verso modernista.
3 Afinal fez-nos ambos o universo
4 aprendizes ao sol ou à garoa.

5 A canção absoluta não se escreve,


6 à falta de instrumentos não terrestres.
7 Aos mestres indagando, mas se escuta
8 pingar, de leve, a gota de silêncio.

9 Eu, pretensioso, e tu, pássaro crítico,


10 vence o mítico amor nossa vaidade:
11 Os amantes que passam, distraídos,

12 surdos a tais cantos discordantes,


13 a melodia interna é que os governa.
14 Tudo mais, em verdade, são ruídos.

O poema em questão trata-se de um soneto, apresentando a maioria das


características desta forma poética – possui catorze versos divididos em dois
quartetos e dois tercetos, com versos decassílabos heroicos. O ritmo do poema se dá
pelas sílabas tônicas presentes na sexta sílaba em cada um dos versos, como em
“flautista”, “verso”, “ambos” e “sol”, e poderiam ser uma maneira de destacar para o
leitor os pontos mais relevantes do poema e também enfatizar sua adequação à
estrutura formal que define um soneto. Porém, como nos diz Shira Wolosky:

“De fato, apesar – ou antes, dentro – dessas formas estabelecidas, o soneto


como forma poética é extremamente flexível. Há, decerto, limites para essa
flexibilidade. Por exemplo, a regra definidora do soneto é que deve ter catorze
versos. Se um poema não tem catorze versos, não é um soneto. Isso é mais
ou menos uma definição rígida. Contudo, um poema pode remeter à forma
do soneto, jogar com ela, lembrar um soneto, adicionar ou subtrair um verso”.
(WOLOSKY, 2001, p. 22).

Desta maneira, “Os cantores inúteis” foge um pouco à estrutura rígida e


tradicional do soneto por apresentar diversas rimas toantes, marcadas em itálico no
poema reproduzido acima. Enquanto os sonetos mais tradicionais apresentam rimas
segundo a estrutura abba abba cdc dcd cde cde, Drummond não segue essa
estrutura, incluindo mais de uma rima no mesmo verso, como em interna e governa,
e rimas em estrofes diferentes, como distraídos e ruídos e amantes e discordantes. O
fato de as rimas não seguirem nenhum padrão de organização em um soneto que
poderia ser definido como tradicional em todos os outros aspectos de sua estrutura
decerto mostra a intenção do autor de manter sua originalidade.
Quanto à organização do poema, temos não só a escolha lexical como também
a sintaxe como elementos importantes para a interpretação. No caso deste soneto,
nota-se uma predominância de orações diretas, que contribuem para a aparente
simplicidade do poema e também nos aproximam do que está descrito, como se
Drummond contasse uma história diretamente para o leitor. Já as orações indiretas
estão presentes nos versos 3 e 4, na segunda estrofe inteira e também no verso 10.
Ora, parece-nos claro que as orações indiretas estão presentes nos versos com mais
significados ocultos, por assim dizer, exigem análise mais minuciosa e que, não por
acaso, possuem mais figuras de linguagem.
Temos o eu lírico na forma de um poeta, que durante o poema todo está em
conflito com um pássaro “flautista”, que “caçoa” do verso modernista do poeta, e a
partir da terceira estrofe sua disputa é comparada ao amor, personificada na imagem
de um casal que passa por eles e não lhes dá atenção – para eles, o conflito entre o
eu e o pássaro expresso nos “cantos discordantes” são “ruídos”, ou seja, não são
ouvidos, não são importantes. Os amantes estão tão apaixonados que tudo ao redor
deles passa despercebido. Neste momento entendemos que o pássaro o é em seu
sentido estrito, ou seja, não se trata de uma figura de linguagem e sim de um animal
e de seu canto que é melodioso e é comparado à poesia. O sentido do poema parece
simples à primeira vista, tratando apenas da disputa entre as duas figuras e a eventual
conclusão a que chegam, mas quando analisamos a escolha lexical, podemos
depreender mais do que essa interpretação inicial nos pode mostrar.
No primeiro quarteto temos o início do conflito entre o eu lírico e o pássaro. É
importante notarmos aqui o número elevado de figuras de linguagem presentes, que
ajudam a construir o sentido do poema. Como partimos do princípio que o pássaro
citado é o próprio animal, “flautista” é uma metonímia para seu canto, ou seja, trata-
se de um pássaro cantor e aqui já podemos ver que seu canto será importante durante
todo o poema, assim como a dicotomia entre o canto do animal e os versos do poeta.
O pássaro cantor “caçoa” do verso modernista do eu lírico – temos uma
metáfora, por meio da qual vemos que o poeta sente como se o pássaro caçoasse de
seu trabalho. Ou seja, o poeta se sente humilhado pelo canto do pássaro. Nos versos
seguintes, o eu faz uma reflexão que pode ser entendida como uma justificativa,
dizendo que apesar de ele se sentir humilhado, os dois são aprendizes em seus
cantos. Nem ele nem o pássaro são capazes de serem mestres na arte do cantar e a
construção “ao sol ou à garoa” é uma metonímia que mostra ao leitor que os dois
sempre serão aprendizes – aqui, a metonímia tem o sentido de “em qualquer
situação”, provavelmente aludindo à expressão popular “faça chuva ou faça sol.”
É possível apreender melhor o sentido dos dois últimos versos da primeira
estrofe quando os relacionamos com o segundo quarteto, onde o eu lírico busca uma
“canção absoluta”, ou seja, a canção perfeita e definitiva, que não pode ser atingida
com instrumentos terrestres – o poeta e o pássaro são aprendizes porque nenhum
deles consegue chegar à canção definitiva. Aqui vemos que Drummond usa o recurso
estilístico de enjambement, por meio do qual há o transbordamento de sentido do final
de um verso para o início de outro, de maneira que os dois versos finais do primeiro
quarteto não teriam sentido completo sem os versos seguintes.
Tanto o eu lírico quanto o pássaro apenas poderiam escrever a canção
definitiva se tivessem os instrumentos que lhes permitiriam chegar à perfeição. Nos
dois versos seguintes o poeta indaga aos mestres da poesia sobre a canção absoluta,
mas tudo que obtém em resposta é o silêncio. Há enjambement entre os versos 7 e
8, uma vez que a frase se completa no verso seguinte, quando vemos que a única
resposta para indagação do poeta é o silêncio. A expressão “pingar, de leve, a gota
de silêncio”, no verso 8, é uma metáfora para a resposta que o eu lírico recebe.
Embora pareça que ele fica sem resposta, por se tratar de “silêncio”, a resposta é
justamente que a canção absoluta não poderá ser escrita. A “gota” faz referência ao
longo tempo que leva para obter essa resposta dos mestres (uma gota pinga com
lentidão). Nem o canto do poeta nem o do pássaro serão suficientes para compor essa
canção, pois esse feito é impossível. Então, por mais que o pássaro “caçoe” do verso
do poeta – que dispõe apenas de instrumentos terrestres, como as palavras e os
versos, para criar poemas – ele também não consegue chegar à canção definitiva.
No primeiro terceto, o leitor é levado de volta à disputa entre o poeta e o
pássaro – um é pretensioso, orgulhoso, e o outro “julga” o canto do poeta. Aqui, o
adjetivo “crítico”, usado para caracterizar o pássaro no verso 9, é uma personificação,
uma vez que atribui uma característica da personalidade ou comportamento humano
a um animal. É interessante ver como a personificação, tão comum na lírica e na
literatura fantástica, de fato evoca uma imagem praticamente humana do pássaro, de
maneira que o leitor quase pode vê-lo criticando o verso do eu lírico por meio de seu
próprio canto. Além disso, com o uso desta figura de linguagem, vemos que o eu lírico
ainda sente que seu canto é inferior ao canto do pássaro. Voltamos à disputa entre
essas duas figuras porque Drummond retoma a primeira estrofe ao empregar os dois
adjetivos – o eu lírico diz que o pássaro “caçoou” de seu verso modernista no verso
2, e no primeiro terceto diz que é crítico.
No verso 10, ainda no primeiro terceto, temos uma mudança que afeta a disputa
do poeta e do pássaro. Enquanto o poeta e o pássaro disputam, um casal apaixonado
passa por eles, distraídos, e nem mesmo os escutam. Aqui temos mais uma vez o uso
do enjambement do final do primeiro terceto para o início do segundo, entre os versos
11 e 12. O enjambement presente no final do poema serve como o início da última
parte do soneto e da disputa presente em todo o soneto, e sua importância reside no
fato de atuar de maneira semelhante a um novo parágrafo em prosa, introduzindo
mais um componente que indispensável para a compreensão do soneto.
O verso 12 é um dos mais importantes porque traz mais conclusões sobre o eu
e o pássaro – uma vez que a disputa dos personagens permeia o soneto todo e sem
ela não é possível depreender seu significado completo – e os “cantos discordantes”
se referem, no caso do eu lírico, à poesia escrita, e no caso do pássaro, ao canto da
natureza. Pese a termos considerado o pássaro em seu sentido estrito de animal na
primeira estrofe, no final do poema ele se torna uma metonímia, representando a
natureza com seu canto. Ou seja, o tema central do poema é a disputa entre a poesia
e a natureza, que são superados pelo “mítico amor”, representado nos dois amantes
que passam pelo poeta e pelo pássaro.
Drummond nos mostra que o amor é tão poderoso que cria uma “melodia
interna” para os amantes, fazendo com que estejam tão imersos um no outro que
ficam distraídos a qualquer acontecimento no mundo externo. Tal “melodia interna”
que governa os amantes pode nos remeter ao amor platônico, onde vivem um amor
perfeito e idealizado. Poderíamos dizer que os amantes estão vivendo no mundo das
ideias proposto por Platão, onde tudo é eterno e perfeito, enquanto o poeta e pássaro
estão no mundo real, limitado e cheio de imperfeições. Por mais que o poeta e o
pássaro se esforcem, jamais conseguirão superar o amor.
O autor inicia o poema com um embate e termina, no último terceto, concluindo
que esse evento não é mais relevante, já que o amor sempre vencerá a vaidade da
disputa entre a poesia e a natureza. Esse é o sentido que obtemos dos ruídos no
último verso, como uma metonímia que representa tudo que ocorre ao redor dos
amantes, cujo amor é tão poderoso que impede que se concentrem em qualquer coisa
além do que sentem um pelo outro. Nesse sentido, o amor é o barulho, e todo o resto
são ruídos.
Se o propósito do poeta – e do pássaro – é tocar e emocionar as pessoas, e
nem mesmo conseguem ser ouvidos, qual é a utilidade de seus ofícios? Aqui
entendemos a razão de serem “cantores inúteis”, justificando o título do poema. Desta
maneira, o que resta ao poeta e ao pássaro, além da realização de que seus esforços
são frustrados frente à superioridade do amor, é apenas a vaidade da disputa entre a
poesia e a natureza.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

WOLOSKY, Shira. The Art of Poetry: How to Read a Poem. New York: Oxford
University Press, 2001.

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