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860 FÓRUM FORUM

Saúde e povos indígenas no Brasil: notas sobre


alguns temas equívocos na política atual

Health and indigenous peoples in Brazil: notes on


some current policy mistakes

Salud y pueblos indígenas en Brasil: notas sobre


algunos temas equívocos en la política actual

Marina Denise Cardoso 1

Abstract Resumo

1 Centro de Educação This article aims to analyze health policies for O objetivo deste texto é analisar as políticas de
e Ciências Humanas,
Universidade Federal de São
indigenous peoples in Brazil with reference to saúde para os povos indígenas no Brasil, tendo
Carlos, São Carlos, Brasil. the 1988 National Constitution and its conse- como marco a Constituição Federal de 1988 e os
quences for their healthcare. Three components seus desdobramentos para o atendimento médi-
Correspondência
M. D. Cardoso are central to this analysis: the management co-assistencial destas populações. Destacam-se
Centro de Educação model, based on the concepts of “autonomy” três eixos norteadores para esta análise: o proje-
e Ciências Humanas,
and “social control”, but essentially express- to gestor, balizado pelas noções de “autonomia”
Universidade Federal de São
Carlos. ing the forms of indigenous representation and e “controle social”, mas que traduz certo modo
Rod. Washington Luís Km participation in public policies; the concept of de organização das formas de representação e
235, São Carlos, SP
“differential care” for establishing an inclusive participação indígenas no plano das políticas
13565-905, Brasil.
mdcardoso@uol.com.br (but operationally normative) healthcare model; públicas estatais; o pressuposto da noção da
and the relationship between the management “atenção diferenciada” para a construção de um
model for indigenous healthcare and indigenous modelo assistencial inclusivo, mas operacional-
therapeutic practices. mente normativo; e, por fim, a relação entre o
modelo gestor de atenção à saúde indígena e as
Health of Indigenous Peoples; Health Policy; próprias práticas terapêuticas indígenas.
Public Policies
Saúde de Populações Indígenas; Política de
Saúde; Políticas Públicas

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 30(4):860-866, abr, 2014 http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00027814


SAÚDE E POVOS INDÍGENAS: EQUÍVOCOS NA POLÍTICA ATUAL 861

Introdução tantes governamentais) para a coordenação do


conjunto das ações em saúde nas áreas distritais,
Trata-se de refletir neste texto sobre o campo das por meio da formação dos Conselhos de Saúde,
políticas de saúde dirigidas para as populações o que caracterizaria a promoção do que passou
indígenas no Brasil, tendo como marco a Consti- então a ser chamado “controle social”; ou seja,
tuição Federal de 1988, e as subsequentes elabo- a participação da sociedade civil, por meio das
rações das políticas públicas para o atendimento suas representações, na gestão das políticas pú-
médico assistencial destas populações. Tal mar- blicas, para o acompanhamento da execução das
co não é aleatório, pois trata-se do reconheci- ações em saúde e para o atendimento das reivin-
mento por parte do Estado brasileiro dos direitos dicações coletivamente priorizadas e definidas
e das especificidades das populações indígenas no âmbito das diversas instâncias de representa-
no país, assim como a sua inserção no bojo das ção (local, distrital, regional), tal como disposto
reformas no sistema nacional de saúde, sob a na Resolução no 333/2003 4.
forma da criação de um Subsistema de Atenção O projeto de criação dos DSEIs é formulado
à Saúde Indígena, o que só aconteceu em 1999, segundo os termos dessa proposta. Os DSEIs de-
com a criação dos Distritos Sanitários Especiais veriam levar ainda em consideração, para a sua
Indígenas (DSEI). organização, as áreas territoriais indígenas sob a
O projeto de criação dos DSEIs procurou as- sua responsabilidade, assim como as necessida-
segurar, por meio de parcerias das instituições des de infraestrutura e de recursos humanos pa-
públicas com organizações indígenas e outras da ra a operacionalização das ações em saúde, por
sociedade civil, a promoção da assistência médi- meio da criação das Equipes Multidisciplinares
ca e odontológica para essas populações, cujas de Saúde Indígena (EMSIs), a serem lotadas em
políticas e diretrizes seriam estabelecidas pelo cada Unidade Básica de Saúde, e da promoção do
Ministério da Saúde, e suas ações executadas pe- programa de formação dos Agentes Indígenas de
la Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), tal Saúde (AISs), por meio da capacitação de agentes
como disposto, respectivamente, nos artigos 2 e nativos para atuarem nesse âmbito em suas pró-
3 do Decreto no 3.156 1, de 27 de agosto de 1999, prias comunidades 1,2,5.
ratificado, posteriormente, pela Lei no 9.836/99 2, Foi também assegurada a participação indí-
de 23 de setembro de 1999, que estabelece o Sub- gena nas instâncias de representação colegiadas,
sistema de Atenção à Saúde Indígena no âmbito como os Conselhos Municipais, Estaduais e Na-
do Sistema Único de Saúde (SUS). cional de Saúde [que também tem uma comis-
Por meio desse projeto procurou-se, por um são específica para tratar dos temas referentes
lado, contemplar as reivindicações das lideran- à saúde indígena: a Comissão Intersetorial de
ças e movimentos indígenas que assegurassem Saúde Indígena (CISI)], assim como a forma-
a necessidade de formular um subsistema de ção dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena
saúde específico para atender estas populações, (CONDISIs), que se organizam, desde 2006, pela
cuja assistência estava até então sob a alçada da instituição do Fórum Permanente de Presidentes
Fundação Nacional do Índio (FUNAI); por ou- dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena, e os
tro, a sua formulação insere-se no bojo da en- Conselhos Locais de Saúde Indígena para acom-
tão chamada Reforma Sanitária Brasileira (RSB), panhar a execução do Plano Distrital de Saúde
que dispõe sobre os princípios e diretrizes para Indígena nos DSEIs, exercendo, sob esta forma,
a criação do SUS e a aprovação da Lei Orgânica o “controle social” das ações em saúde indígena,
da Saúde. tal como disposto na legislação sobre a atenção à
Os princípios e diretrizes dessa proposta se saúde indígena já em vigor 1,2,4.
pautavam na ampliação do conceito de saúde, Foram criados 34 DSEIs (hoje, potencialmen-
assim como na universalização e integralização te Unidades Gestoras “autônomas”), instituídos
do conjunto das ações e serviços de saúde pú- de acordo com áreas territoriais indígenas dife-
blica. Foi nesse contexto que foi formulada a renciadas, mas seguindo o modelo descentrali-
proposta de distritalização dos serviços de saú- zado e hierarquizado do SUS: unidades de saú-
de, como unidades operacionais e administra- de nas comunidades indígenas, polos-base em
tivas mínimas do sistema de saúde, por meio territórios indígenas que deveriam comportar as
da formulação de um modelo de atenção ope- EMSIs e as Casas de Saúde Indígena (CASAIs),
racionalmente baseado no controle preventivo criadas em áreas estratégicas juntas à localização
e gestor da saúde de determinados grupos po- dos DSEIs ou em outros centros urbanos de refe-
pulacionais 3. rência para receber pacientes indígenas encami-
Pressupôs, ainda, a criação de instâncias co- nhados para exames e tratamentos de casos de
legiadas (e paritárias entre usuários, profissio- média e alta complexidades.
nais de saúde, prestadores de serviço e represen-

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Desde o final de 2010, entretanto, esse sub- tal ainda parece ser o modelo que atenderia a
sistema passou a ser subordinado diretamente especificidade requerida para as ações em saú-
ao Ministério da Saúde, por meio do Decreto no de indígena, pois simultaneamente garantiria o
7.336 6, que oficializa a criação da Secretaria Es- “subsistema específico”, mas articulado com o
pecial de Saúde Indígena (SESAI), na estrutura do sistema nacional por meio das agências do Mi-
Ministério da Saúde. nistério da Saúde (tal como a atual SESAI). Sua
O que este texto vem abordar, para além das consolidação, entretanto, ainda é devedora não
mudanças institucionais que alteraram ao longo só de um modelo assistencial, como aponta o
dos anos a gestão da então criada Política Na- relatório, mas também de um modelo organiza-
cional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas cional efetivo, marcado por conflitos e falta de
(PNASPI) no âmbito da Política Nacional de Saú- integração entre instâncias institucionais para
de 5, é o modo da sua operacionalização, tendo a sua plena operacionalização; fraca cobertura
como eixos condutores as noções de “autono- das áreas territoriais indígenas (que divergem
mia”, “controle social” e o tema da “atenção di- consideravelmente de tamanho, composição
ferenciada”, tal como vêm sendo abordados na étnica, formas e meios de acesso às comunida-
formulação e na condução desta política. des); falta de infraestrutura física e de recursos
humanos para a formação das equipes gestoras
e multiprofissionais locais, articuladas com o
Autonomia para quem? Controle social complexo médico-hospitalar da rede assisten-
e controle político no âmbito da Política cial do SUS, o que se espelha nos dados dispo-
Nacional de Saúde Indígena níveis sobre a situação de saúde das populações
indígenas no Brasil.
Um relatório relativamente recente de avaliação De acordo com os últimos dados censitários
da política de saúde para as populações indíge- do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísti-
nas no Brasil aponta que se o processo de distri- ca (IBGE; Censo Demográfico 2010. http://www.
talização da saúde nas áreas indígenas aconteceu ibge.gov.br, acessado em 28/Jun/2011), referen-
de forma diferenciada de uma região para outra tes a 2010, a população autodeclarada indíge-
no país, os problemas, entretanto, parecem ser na no Brasil está em torno 817 mil pessoas, re-
recorrentes. De modo geral, afirma-se que “... o presentando 0,42% da população total do país,
modelo assistencial implantado nos distritos se- registrando-se um aumento de 11% em relação
gue a lógica da produção de serviços, centrado aos dados do censo de 2000. Os dados dispo-
na concepção médico-curativa e na tecnifica- níveis sobre natalidade e mortalidade indicam
cão da assistência”, sendo que “... os indicado- que a taxa de natalidade havia crescido em torno
res mostram que não tem conseguido atender às de 1,3%, mas mantinha-se abaixo da taxa geral
necessidades e resolver os principais problemas para o país (em torno de 20%). A taxa de morta-
de saúde”, prevalecendo “a concepção topográfi- lidade infantil foi reduzida em 27%, passando de
co-burocrática do distrito sanitário (como espaço 74,61% em 2000 para 53,11 em 2005, mas apa-
geográfico, populacional e administrativo onde rentemente permanece estagnada, e a taxa de
são coordenados os estabelecimentos e servi- mortalidade geral passou de 7,1% para 4,77% no
ços), em detrimento da lógica das necessidades mesmo período 8.
e problemas de saúde e a necessidade de reorga- Dentre os agravos mais frequentes estão as
nização das práticas e processos de trabalho, de doenças infecciosas e parasitárias (22,48%), do
modo que sejam inseridas num processo social aparelho respiratório (22,78%) e “sintomas, si-
pela melhora das condições de saúde, ou seja, o nais e achados anormais” que respondem por
Distrito Sanitário Especial Indígena ainda é con- 25,65% da morbidade na população indígena
cebido como um modelo organizacional e não no Brasil no período de 2003 a 2005 8. O I In-
como modelo assistencial” 7 (p. 100-1, grifos nos- quérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos
sos). O relatório também aponta que há um alto Indígenas 9 revela que os índices de desnutrição
índice de demanda por consultas especializadas em crianças indígenas menores de 60 meses de
e internações hospitalares que também indica- idade e em mulheres indígenas de 14 a 49 anos
riam “a baixa resolutividade das ações prestadas no Brasil continuam altos e superiores à mé-
em algumas regiões”, assim como uma ênfase no dia da população brasileira em geral, tal como
consumo de medicamentos por parte das popu- reportado também no texto que faz parte des-
lações indígenas. te Fórum. Tais indicadores demonstram que o
Depreende-se, assim, que o chamado Sub- modelo médico assistencial para as populações
sistema de Atenção à Saúde Indígena ainda não indígenas no Brasil ainda é precário, mesmo pa-
se encontra plenamente consolidado no país, ra a execução das ações básicas em saúde para
apesar da criação dos DSEIs. O modelo distri- estas populações, predominando um cenário

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de doenças carenciais e de controle infecto- genas em um sistema de atenção descentraliza-


parasitário. do, hierarquizado e “universal”. Por essa razão,
Também a participação das populações in- algumas lideranças indígenas expressam a sua
dígenas na formulação, planejamento, gestão e preocupação em relação a esse ponto, pois o pro-
avaliação das ações em saúde por meio da sua cesso de unificação da assistência por meio da
representação nos diversos Conselhos é precá- crescente municipalização dos recursos para a
ria, os conselhos distritais e locais pouco opera- saúde indígena pode vir a significar a perda da
cionais, apesar da legislação em vigor, tal como “autonomia autogestora” e da “especificidade da
vem sendo apontado em pesquisas sobre o te- assistência”, que alguns grupos conseguiram ou
ma 10,11,12. lograram conseguir, pelo menos de acordo com
Durante os primeiros anos que se seguiram à o modo como estas populações compreendem
criação dos DSEIs, a forma de operacionalização o processo; ou seja, como tendo o controle au-
predominante do modelo gestor realizada pela togestionário das ações em saúde por parte das
FUNASA foi por meio do repasse dos recursos próprias populações e organizações indígenas.
governamentais aos municípios, ou a contrata- Do ponto de vista dos executores ( atualmen-
ção de ONGs que já operavam em áreas indíge- te, a SESAI) a questão da “autonomia” é funda-
nas, ou foram instituídas para tal, para formular mentalmente “gestora”, constituindo um dos
ou executar as ações em saúde indígena. Tal fa- grandes problemas para a própria administração
to propiciou que uma rede mínima fosse sendo do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. O
estabelecida e, em certas localidades, também caráter centralizador da gestão e os requerimen-
propiciou a formação e o fortalecimento de tos técnico-funcionais necessários para o ple-
Associações Indígenas que chamaram a si esse no reconhecimento dos DSEIs como “unidades
encargo. Optou-se, assim, pela chamada “tercei- gestoras” dificultam sobremaneira o processo,
rização” do gerenciamento e execução das ações gerando dúvidas sobre a propalada “autonomia”
da saúde indígena, o que trouxe à tona uma sutil dos DSEIs para a realização das suas atribuições
dicotomia entre “controle político” e “controle institucionais na consecução da Política Nacio-
social” (nos termos da acepção corrente das po- nal de Saúde Indígena, tal como reportado por
líticas públicas). Luiza Garnelo & Aldemir Maquiné (2012, comu-
Por um lado, o Estado “transfere” a responsa- nicação pessoal).
bilidade pelo gerenciamento e execução dessas Foram recentemente modificados pela
ações a outras entidades; ou seja, em certo sen- SESAI os próprios critérios para a contratação
tido, “perdendo o controle político” (e a sua con- das agências de prestação de serviços em saúde
dução institucional unificada) sobre o processo indígena, fazendo com que as associações indí-
em favor de entidades não governamentais. Por genas ou certas organizações indigenistas não
outro, esse processo foi visto, por algumas asso- mais pudessem realizar ou ter o controle sobre
ciações e lideranças indígenas, como a forma de a assistência médica prestada em área, pela exi-
assumir não só o “controle social”, mas o “contro- gência do Certificado de Entidade Beneficente
le político” propriamente dito dos recursos e da de Assistência Social (CEBAS) para participarem
gestão dos programas e da assistência em saúde, do edital de chamamento público, realizado pe-
tal como reportado em algumas regiões 10,12,13. lo Ministério da Saúde em outubro de 2011, a
Para algumas populações indígenas é sobre essa fim de contratar instituições para atuarem na
base que a questão da “autonomia” é colocada. área de saúde indígena. Somente três entidades
O processo crescente de regularização, con- privadas sem fins lucrativos (consideradas filan-
trole da gestão de recursos e gerenciamento da trópicas) estão conveniadas, atualmente, com o
prestação de serviços das chamadas “convenia- Ministério da Saúde para a realização de ações
das” pela então FUNASA, assim como o processo complementares em saúde indígena: a Missão
de “municipalização” igualmente crescente da Evangélica Caiuá, a Associação Paulista para o
saúde indígena, com transferência de recursos Desenvolvimento da Medicina (SPDM) e o Ins-
substanciais aos municípios que triplicaram a tituto de Medicina Integral Prof. Fernando Fi-
partir de 2007 – algo em torno de 155 milhões gueira (IMIP).
para 369 municípios, segundo dados apontados Se há, neste momento, a tendência crescente
por Araújo 12 –, mostram o modo como este pro- de assumir o pleno controle gestor e político do
cesso é revertido; ou seja, trata-se efetivamente Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, frag-
de “resgatar a condução política e unificada” da mentado anteriormente em múltiplas organiza-
gestão e execução de ações em saúde indígena ções e associações, há, ainda, a necessidade da
nos DSEIs e no SUS, procurando complemen- terceirização das ações em saúde pelas dificul-
tar, por meio da municipalização dos recursos, dades legais e administrativas de contratação de
a unificação da assistência às populações indí- servidores, quer técnico-administrativos quer

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de profissionais da área de saúde, por meio de saúde indígenas e o modelo assistencial 14. O
concurso público para atuarem na área de saúde que se observa, entretanto, é que essa articula-
indígena, que ficaram a cargo dessas instituições. ção ainda não foi promovida, a não ser por meio
O problema da saúde indígena esbarra, as- de projetos ou iniciativas localizadas, mas tem
sim, na questão organizacional (e, por isto tam- sido uma fonte constante de controvérsias so-
bém assistencial). Talvez por essa razão a questão bre o seu real significado e os desdobramentos
organizacional tem precedido a assistencial do subsequentes para a sua efetiva implantação no
ponto de vista dos gestores, particularmente no contexto do SUS.
que concerne à baixa resolutividade das ações Do ponto de vista dos gestores, promover a
em saúde nos distritos sanitários indígenas, mar- “atenção diferenciada” no âmbito do SUS po-
cadas por carências de profissionais habilitados deria gerar não só conflitos na assistência a ser
para atender à população local; alta rotatividade prestada, mas também poderia sugerir o usufru-
dos profissionais em área; falta de recursos de in- to de determinados “privilégios” por parte dos
fraestrutura e equipamentos para determinados indígenas em um modelo de atenção à saúde que
procedimentos e ações operados pelos DSEIs, tal pressupõe a “equidade” na assistência prestada.
como é possível antever pelos dados anterior- Do ponto de vista indígena, entretanto, trata-se
mente apresentados. cada vez mais de salvaguardar politicamente es-
Também tem precedido outro ponto con- sa noção, dado que seria por meio da “atenção
siderado fundamental para a consolidação dos diferenciada” que a especificidade e a própria
princípios que regem a criação do Subsistema de manutenção do subsistema de saúde indígena
Atenção à Saúde Indígena: o reconhecimento das poderia ser mantida frente à tendência crescente
práticas terapêuticas indígenas, promovendo, in- do seu pleno abarcamento ao SUS, outorgando-
clusive, a “articulação” destas práticas com aque- lhe a legitimidade necessária para se manter co-
las da biomedicina, assim como a promoção da mo tal; ou seja, a “atenção diferenciada” deveria
capacitação de membros destas populações co- estar também concretizada em todas as instân-
mo técnicos gestores ou profissionais de saúde cias e níveis da assistência terapêutica e da or-
integrados nos seus quadros. ganização dos serviços para a sua prestação, tal
como previsto não só no documento anterior-
mente reproduzido, mas em diversas outras re-
Sobre a “atenção diferenciada”: soluções que compõem o conjunto das diretrizes
breves notas sobre a (não) articulação para a execução da Política Nacional de Atenção
das práticas terapêuticas indígenas à Saúde dos Povos Indígenas.
no Subsistema de Atenção à Saúde Há, portanto, por um lado, um conjunto de
Indígena e ao SUS políticas públicas em saúde fundado sobre um
princípio de acesso universal e unificado, mas
O próprio documento que institui a Política Na- que, no caso das populações indígenas, encon-
cional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas tra-se fundeado na noção (mesmo que impreci-
pressupõe não só o reconhecimento e o respeito sa, e fundamentalmente retórica, por parte dos
aos então chamados “sistemas tradicionais indí- gestores) da “atenção diferenciada”.
genas de saúde” , mas também a “promoção” da Por outro lado, há uma demanda indígena
articulação destes sistemas em todos os níveis da para o acesso efetivo aos serviços de atenção em
atenção a ser prestada: “Com o objetivo de ga- saúde que, por sua vez, passa a ser articulada ao
rantir o acesso à atenção de média e alta comple- campo da suas próprias práxis terapêutica, am-
xidade, deverão ser definidos procedimentos de plamente ancoradas nos chamados “complexos
referência, contrarreferência e incentivo a unida- xamânicos”, tal como documentado em diversas
des de saúde pela oferta de serviços diferenciados e distintas áreas etnográficas 13,15,16,17. Entretan-
com influência sobre o processo de recuperação to, as próprias características gestoras do mo-
e cura dos pacientes indígenas (como os relati- delo assistencial para as populações indígenas
vos a restrições/prescrições alimentares, acom- parecem levar muito mais a uma “normatização
panhamento por parentes e/ou intérprete, visita inclusiva”, que mascara uma desigualdade real
de terapeutas tradicionais, instalação de redes, ao ignorar, inclusive, o modo pelo qual grupos
entre outros) quando considerados necessários ou sociedades distintos apreendem o que lhes é
pelos próprios usuários e negociados com o pres- transmitido em termos das suas próprias cate-
tador de serviços” 5 (p. 15, grifos nossos). gorias ou “lógicas culturais” que, supostamente,
Projetos localizados desenvolvidos por meio deveriam lhes ser agregados, sem que, ao mes-
do Projeto Vigisus II/FUNASA procuraram fa- mo tempo, se produza efetivamente ações em
vorecer projetos e experiências para promover saúde tal como as comunidades indígenas as
a articulação entre determinadas práticas de demandam.

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Tem-se aqui o principal desafio para as polí- serviços de saúde em geral: a sua funcionalida-
ticas públicas em saúde para o atendimento às de e capacidade assistencial adequadas para su-
populações indígenas, para além daqueles que prir as demandas dessas populações.
são característicos da própria estruturação dos

Resumen Agradecimentos

El objetivo de este texto es analizar la política de la Agradeço não só ao convite de James Welch para parti-
salud para los pueblos indígenas en Brasil, teniendo cipar do painel Saúde e Povos Indígenas no Brasil: Desa-
como referencia la Constitución Federal de 1988 y sus fios Nacionais e Insights Locais durante o 10o Congresso
consecuencias sobre servicios de salud para estas po- Brasileiro de Saúde Coletiva, realizado na Universidade
blaciones. Sobre tres principios pivotará el análisis: las Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), de 14 a 18 de
directrices, marcadas por los conceptos de “autonomía” novembro de 2012, mas também a oportunidade de
y de “control social”, pero que se traducen, de cierta ma- participar deste Fórum para o qual a sua colaboração
nera, en la organización de las formas de representaci- foi igualmente valiosa.
ón y de participación indígenas en el plan de las políti-
cas públicas del Estado; la presuposición de la “atenci-
ón diferenciada” en la construcción de un modelo asis-
tencial inclusivo, pero operacionalmente normativo; y,
finalmente, la relación entre el modelo propuesto y las
prácticas terapéuticas indígenas.

Salud de Poblaciones Indígenas; Política de Salud;


Políticas Públicas

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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 30(4):860-866, abr, 2014

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