Você está na página 1de 32

e-book

2
É a energia ativa do próprio Deus que constitui o pro-
tótipo do trabalho (...) o trabalho corresponde à ordem
divina das coisas. Às obras de Deus correspondem as
obras dos homens. O primeiro homem foi colocado no
jardim do Éden para cultivá-lo e guardá-lo. O trabalho
é a atribuição normal prescrita para o homem pelo
Criador. É por meio do trabalho que Deus associa o
homem à sua obra criadora. É o sinal pelo qual Deus
atesta que o homem é seu colaborador. O trabalho
faz, pois, parte das disposições da sabedoria divina.
Toda a criação trabalha. A ociosidade é condenada. O
trabalho é ordem expressa de Deus ao homem. Desta
forma, pois, o trabalho do homem é bom, enquanto for
a resposta a esta ordem e se inspirar na obra de Deus.
[Herrade Mehl-Koehnlein]

1
2
O OCIDENTE, A BÍBLIA E O TR ABALHO
O trabalho ocupa lugar de destaque na Bíblia Sa-
grada. O Deus da Bíblia é um Deus trabalhador: “Meu
Pai continua trabalhando até hoje, e eu também estou
trabalhando”, disse Jesus [João 5:17].
A visão negativa a respeito do trabalho não consta da
matriz original da tradição judaico-cristã. A cultura
ocidental associa trabalho com castigo ou maldição.
Isso se deve a um equívoco na leitura do Gênesis. Ge-
ralmente, o ponto de partida para a compreensão da
perspectiva judaico-cristã a respeito do trabalho é a
declaração feita por Deus a Adão:
Visto que você deu ouvidos à sua mulher e comeu
do fruto da árvore da qual eu lhe ordenara que não co-
messe, maldita é a terra por sua causa; com sofrimen-
to você se alimentará dela todos os dias da sua vida.
Ela lhe dará espinhos e ervas daninhas, e você
terá que alimentar-se das plantas do campo.
Com o suor do seu rosto você comerá o seu
pão, até que volte à terra, visto que dela
foi tirado; porque você é pó e ao pó voltará. 
[Gênesis 3:17-19]

Mas a verdade é que o trabalho aparece na Bíblia


Sagrada muito antes dessa maldição sobre Adão. A
começar da própria atividade criadora de Deus, o tra-

3
balho é uma realidade presente na vida no paraíso.
Adão e Eva recebem a delegação de administrar toda
a criação de Deus, o que a teologia chama de Mandato
Cultural:
Então disse Deus: Façamos o homem à nossa
imagem, conforme a nossa semelhança. Domine
ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, so-
bre os animais grandes de toda a terra e sobre todos
os pequenos animais que se movem rente ao chão.
Criou Deus o homem à sua imagem, à ima-
gem de Deus o criou; homem e mulher os criou.
Deus os abençoou, e lhes disse: “Sejam férteis e
multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra!
Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do
céu e sobre todos os animais que se movem pela terra”. 
[Gênesis 1:26-28]

Mas a verdade é que Adão deu nome a todos os ani-


mais, e isso certamente implica muito mais do que
identificar com etiqueta cada bicho que passava ou
simplesmente decidir como chamaria cada um deles.
Na cultura judaica, o nome identifica o caráter e de-
fine um destino, ou, se preferir, um design – desígnio,
propósito. Isso significa que o trabalho de dar nome aos
animais pode ter implicado uma espécie de catalogação
por espécie, ou no mínimo, um estudo dos animais

4
para definir a maneira como o ser humano deveria se
relacionar com cada uma das espécies. Exagerando um
pouco, podemos dizer que Adão teria sido o precur-
sor do que hoje entendemos como zoologia e biologia.
Charles Darwin bem pode ter se inspirado em seu pai
ancestral para sair em busca da origem das espécies.
Disse também Deus: “Encham-se as águas de seres
vivos, e sobre a terra voem aves sob o firmamento do céu”.
Assim Deus criou os grandes animais aquáticos e os
demais seres vivos que povoam as águas, de acor-
do com as suas espécies; e todas as aves, de acordo
com as suas espécies. E Deus viu que ficou bom.
Então Deus os abençoou, dizendo: “Sejam fér-
teis e multipliquem-se! Encham as águas dos
mares! E multipliquem-se as aves na terra”.
Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o quinto dia.
E disse Deus: “Produza a terra seres vivos de acor-
do com as suas espécies: rebanhos domésticos,
animais selvagens e os demais seres vivos da terra,
cada um de acordo com a sua espécie”. E assim foi.
Deus fez os animais selvagens de acordo com as suas
espécies, os rebanhos domésticos de acordo com as
suas espécies, e os demais seres vivos da terra de
acordo com as suas espécies. E Deus viu que ficou bom. 
[Gênesis 1:20-25]

5
Depois que formou da terra todos os animais do
campo e todas as aves do céu, o Senhor Deus os trou-
xe ao homem para ver como este lhes chamaria; e o
nome que o homem desse a cada ser vivo, esse seria
o seu nome. 
[Gênesis 2:19]

O primeiro casal, Adão e Eva, recebeu a tarefa de


cultivar e cuidar do Jardim do Éden.
O Senhor Deus colocou o homem no jar-
dim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo. 
[Gênesis 2:15]

Isso é suficiente para perceber que o trabalho não é


experiência posterior ao chamado pecado original ou
à maldição de Deus ao homem e à mulher. Trabalho
não é castigo. Mas pode ser penoso. Uma coisa não
está necessariamente ligada à outra.
Somado a esse equívoco hermenêutico, existe tam-
bém o debate a respeito da etimologia da palavra tra-
balho. Tripalium (do latim, literalmente, três paus) era
primeiramente um instrumento usado pelos agriculto-
res para bater o trigo e também para rasgar e esfiapar
espigas de milho. Muitos dicionários, entretanto, iden-
tificam o tripalium apenas como instrumento romano
de tortura no qual eram supliciados os escravos. Essa

6
é uma possível origem da palavra trabalhador, que em
um primeiro momento seria o carrasco. Trabalhar,
isto é, no latim tripaliare significava torturar alguém
no tripalium.

O JA R D I M , A T E R R A
A M A L D I Ç OA DA E O T R A B A L H O
O melhor entendimento da narrativa do Gênesis
vai concluir que trabalhar é cooperar com Deus para
colocar ordem no caos. O caos é o mundo pós rebelião,
isto é, o mundo que tem origem com o chamado pecado
original de Adão.
Adão e Eva estavam inicialmente no jardim a leste
do Éden, identificado como paraíso. Mas depois apa-
recem numa terra amaldiçoada, que produz espinhos
e ervas daninhas, em vez de flores e frutos. O caos é o
que caracteriza o ambiente desértico fora do paraíso.
O caos é próprio de uma terra amaldiçoada.
O Gênesis deixa claro que a nova situação do pri-
meiro casal se deve a uma transgressão.
E o Senhor Deus ordenou ao homem: “Coma livre-
mente de qualquer árvore do jardim, mas não coma
da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque
no dia em que dela comer, certamente você morrerá”. 
[Gênesis 2:16-17]

7
Ora, a serpente era o mais astuto de todos os ani-
mais selvagens que o Senhor Deus tinha feito. E ela
perguntou à mulher: “Foi isto mesmo que Deus disse:
‘Não comam de nenhum fruto das árvores do jardim’? “
Respondeu a mulher à serpente: “Podemos comer do
fruto das árvores do jardim, mas Deus disse: ‘Não
comam do fruto da árvore que está no meio do jar-
dim, nem toquem nele; do contrário vocês morrerão’ “.
Disse a serpente à mulher: “Certamente não morrerão!
Deus sabe que, no dia em que dele come-
rem, seus olhos se abrirão, e vocês serão
como Deus, conhecedores do bem e do mal”.
Quando a mulher viu que a árvore parecia agradável ao
paladar, era atraente aos olhos e, além disso, desejável
para dela se obter discernimento, tomou do seu fruto,
comeu-o e o deu a seu marido, que comeu também.
Os olhos dos dois se abriram, e perceberam que estavam
nus; então juntaram folhas de figueira para cobrir-se.
Ouvindo o homem e sua mulher os passos do
Senhor Deus que andava pelo jardim quando
soprava a brisa do dia, esconderam-se da pre-
sença do Senhor Deus entre as árvores do jardim.
Mas o Senhor Deus chamou o ho-
mem , p e r g unta nd o: “O nd e e s tá v o cê? “
E ele respondeu: “Ouvi teus passos no jardim e fiquei
com medo, porque estava nu; por isso me escondi”.

8
E Deus perguntou: “Quem lhe disse que você estava nu?
Você comeu do fruto da árvore da qual lhe proibi comer? “
Disse o homem: “Foi a mulher que me deste por com-
panheira que me deu do fruto da árvore, e eu comi”.
O S e n h o r D e u s p e r g unto u e ntã o à mu-
lher: “Que foi que você fez?”. Respondeu a
mulher: “A serpente me enganou, e eu comi”.
Então o Senhor Deus declarou à serpente: “Já que
você fez isso, maldita é você entre todos os rebanhos
domésticos e entre todos os animais selvagens! Sobre
o seu ventre você rastejará, e pó comerá todos os dias
da sua vida. Porei inimizade entre você e a mulher,
entre a sua descendência e o descendente dela; este
lhe ferirá a cabeça, e você lhe ferirá o calcanhar”.
À mulher, Ele declarou: “Multiplicarei gran-
demente o seu sofrimento na gravidez; com
sofrimento você dará à luz filhos. Seu dese-
jo será para o seu marido, e ele a dominará”.
E ao homem declarou: “Visto que você deu ou-
vidos à sua mulher e comeu do fruto da árvore
da qual eu lhe ordenara que não comesse, mal-
dita é a terra por sua causa; com sofrimento
você se alimentará dela todos os dias da sua vida.
Ela lhe dará espinhos e ervas daninhas, e você terá que
alimentar-se das plantas do campo. Com o suor do seu
rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra, vis-

9
to que dela foi tirado; porque você é pó e ao pó voltará”.
Ad ã o d e u à s ua mul her o nome d e Eva ,
pois ela seria mãe de toda a humanidade.
O Senhor Deus fez roupas de pele e
c o m e l a s v e s t i u A d ã o e s u a m u l h e r.
Então disse o Senhor Deus: “Agora o homem se
tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal.
Não se deve, pois, permitir que ele também tome do
fruto da árvore da vida e o coma, e viva para sempre”.
Por isso o Senhor Deus o mandou embora do Jar-
dim do Éden para cultivar o solo do qual fora tirado.
Depois de expulsar o homem, colocou a leste do Jar-
dim do Éden querubins e uma espada flamejante que
se movia, guardando o caminho para a árvore da vida. 
[Gênesis 3:1-24]

Geralmente se compreende o pecado do primeiro


casal como transgressão moral: desobedecer um man-
damento ou contrariar uma regra de comportamento
estabelecidos por Deus. Mas a questão não é mera-
mente moral. Como a teologia e a filosofia dizem, o
pecado é de dimensão ontológica, isto é, da natureza
e constituição do ser. Mais precisamente, o pecado
do primeiro casal, que se estende à toda a raça – cada
homem é Adão de sua própria alma (Russel Shedd), é a
tentativa de existir fora de Deus, como ser autônomo

10
e auto-suficiente. A melhor síntese do que chamamos
pecado original que resultou na expulsão do primeiro
casal do paraíso pode ser encontrada nas palavras de
C. S. Lewis:
A partir do momento em que você tem um “eu”,
surge a possibilidade de colocá-lo em primeiro lugar,
de querer ser o centro – de querer, na verdade, ser
Deus. Foi esse o pecado de Satanás; e esse também o
pecado que ele ensinou à raça humana. Algumas pes-
soas pensam que a queda do homem está relacionada
ao sexo, mas isso é um erro (o livro de Gênesis na
verdade sugere que a depravação da nossa natureza
sexual foi resultado da queda, e não sua causa). O
que Satanás colocou na cabeça dos nossos ancestrais
mais remotos foi a idéia de que eles poderiam ser
“como deuses” – que poderiam depender de si mes-
mos como se tivessem sido seus próprios criadores.
“Sejam seus próprios mestres”, dizia ele, “inventem o
tipo de felicidade que vocês desejam para si mesmos,
fora de Deus”. E foi dessa tentativa desesperada que
surgiu praticamente tudo o que se relaciona ao que
chamamos de história humana: dinheiro, pobreza,
ambições, guerras, prostituição, classes, impérios,
escravidão. A longa e terrível história do homem à
procura de algo diferente de Deus para lhe trazer
felicidade.

11
Expulso do paraíso, em rebelião contra Deus, o Cria-
dor, o ser humano está não apenas em um ambiente
hostil, como também a mercê das bestas feras e de todos
os animais selvagens. O ser humano que volta as costas
para Deus fica de frente para a Serpente. Mais do que
isso, fica ele também serpentizado. No Gênesis se diz
que homem e mulher estavam nus e não se envergo-
nhavam [2.25]. Mas também diz que depois de comer
da árvore do conhecimento do bem e do mal, tiveram
vergonha de sua nudez [3.7]. Na verdade, a Bíblia está
falando de dois tipos de nudez. Uma, a da integridade.
A outra, a da astúcia da serpente, que é descrita como
astuta [3.1]. A palavra nudez e astúcia são da mesma
raíz: arum, arumin. O primeiro casal que dá ouvidos à
serpente astuta, arum, se torna arumim. A imagem de
deus é substituída pela imagem da serpente. Agora, a
matriz da identidade do ser humano é não mais apenas
a imago Dei [Gênesis 1.26,27], mas também a imagem
da serpente. O mundo não é mais identificado com um
paraíso, ou o que os gregos chamavam de cosmos. Antes,
cuidado pelo ser humano em parceria com Deus, o mun-
do era um todo harmônico de equilíbrio e beleza. Agora,
usurpado pelo ser humano que se associa à serpente,
o mundo é um caos, e, conforme a linguagem do Novo
Testamento, está sob o poder do Maligno [1João 5.19],
que é o deus deste mundo [2Coríntios 4.4].

12
Trabalhar é, portanto, cooperar com Deus para colocar
ordem no caos. Outra forma de dizer isso é afirmar que
trabalhar é cooperar com Deus para que venha o Reino
de Deus, isto é, para que a vontade de Deus seja feita
na terra como é feita no céu [Mateus 6.9,10]. O Reino
de Deus é equivalente ao jardim, de onde o homem foi
expulso. O jardim é o mundo sob o comando de Deus.
Toda vez que um ambiente, uma relação, uma atividade
são submetidos a Deus, o caos começa a entrar em
ordem, isto é, o jardim dá os seus sinais.
Haverá um dia quando o caos será transformado em
jardim. Nesse dia, o Reino de Deus, que já foi inaugu-
rado, estará consumado. Enquanto o Reino de Deus
não vem em plenitude, nós trabalhamos para que ele
seja sinalizado ao nosso redor. Enquanto o mundo todo
não é transformado em um grande e único jardim, nós
construímos alguns jardins no mundo.

O R E I N O, A I G R E JA E O M U N D O
O Reino de Deus é o domínio de Deus sobre todas as di-
mensões de toda a criação. O Jardim do Éden é o símbolo
do Reino, onde as relações entre Deus e os seres humanos
- o ser humano e o restante da criação, e o ser humano e
seu próximo - vivem a harmonia que resulta em justiça,
paz e alegria. Expulso do Jardim (o mundo conforme
Deus), o homem está no mundo (sistema humano).

13
O conceito bíblico de mundo é tríplice.
• universo natural, o “mundo criação”: Do Senhor
é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que
nele vivem [Salmos 24:1];
• a totalidade dos seres humanos, o “mundo hu-
manidade”: Porque Deus tanto amou o mundo que
deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele
crer não pereça, mas tenha a vida eterna [João 3:16];
• o sistema organizado em oposição à vontade
de Deus, o “mundo sistema”: Não se amoldem
ao padrão deste mundo, mas transformem-se pela
renovação da sua mente, para que sejam capazes de
experimentar e comprovar a boa, agradável e per-
feita vontade de Deus [Romanos 12:2]; Não amem o
mundo nem o que nele há. Se alguém amar o mundo,
o amor do Pai não está nele. Pois tudo o que há no
mundo — a cobiça da carne, a cobiça dos olhos e a
ostentação dos bens — não provêm do Pai, mas do
mundo [1 João 2:15-16].

A Igreja é a parte do “mundo humanidade”, que ha-


bita o “mundo criação”, mas não está submetida – não
pertence - ao “mundo sistema”, pois a maneira como
se organiza em termos de valores, relações e padrões
de justiça está sujeita ao Reino de Deus – domínio de
Deus. A tarefa da Igreja é sabotar o “mundo sistema”,

14
sinalizando o Reino de Deus para o restante do “mundo
humanidade”. Em outras palavras: cooperar com Deus
para colocar ordem no caos.

OS SINAIS DO REINO DE DEUS


A tarefa da Igreja é sabotar o “mundo sistema”,
cuidando do “mundo criação” e sinalizando o Reino
de Deus para o restante do “mundo humanidade”.
Jesus inaugurou o Reino de Deus na história [Marcos
1:14,15; Lucas 11:20], mas o Reino será consumado
na eternidade [Mateus 26:29; 1Coríntios 15:24-28],
pois em sua plenitude o Reino de Deus não é deste
mundo [João 18:36]. Isso significa duas coisas. A
primeira é que a experiência do Reino de Deus é
uma possibilidade histórico–social, mas também que
sua plenitude é uma realidade inclusive espiritual
e atemporal.
Nas palavras de Robinson Cavalcanti, “a Igreja deve
manifestar aqui e agora, como anúncio profético, a
maior densidade possível do Reino que será consumado
ali e além” – o novo céu e a nova terra [Apocalipse 21:1].
Em outras palavras, o mundo–humanidade saberá da
existência do Reino eterno quando este Reino eterno
mostrar os seus sinais na história.
Os sinais do Reino de Deus foram manifestos no
ministério terreno de Jesus e podem ser resumidos

15
em três expressões: salvação – o relacionamento com
Deus; libertação – a destruição das obras dos poderes
do mal e do Maligno; e restauração – a retomada do
projeto original de Deus. A Igreja é herdeira da missão
terrena de Jesus [João 17:18; 21:20] e deve protagonizar
os mesmos sinais, sendo ela mesma o maior sinal do
Reino de Deus [Mateus 5:13-16; Efésios 3:10].

S U O R D O R O S T O, C A N S AÇ O E D E S GA S T E
Expulso do paraíso o homem vive em uma terra
amaldiçoada que produz espinhos e ervas daninhas,
o que explica porque o trabalho é acompanhado de
fadiga e suor do rosto.
Estes espinhos e ervas daninhas podem simbolizar
muitas coisas. Por exemplo, as demandas e exigências
do mercado, do cliente, do patrão, e até mesmo da
própria consciência de um profissional responsável.
Podem apontar também para as dificuldades nos re-
lacionamentos pessoais, a competitividade e a injus-
tiças no ambiente de trabalho. E também podem ser
figuras do mal incrustado no próprio coração humano,
que gera toda sorte de injustiças e conflitos presentes
tanto nos contextos mais afetivos, como a família,
quanto nos espaços de convivência da sociedade e
do ambiente de trabalho, chegando aos choques de
civilizações e guerras entre as nações.

16
Todos os ambientes, relacionamentos e atividades
contrárias ao caráter e propósitos de Deus podem ser
considerados terras amaldiçoadas, cheias de espinhos
e ervas daninhas. Todas as vezes que o ser humano
estiver inserido em tais contextos experimentará
fadiga, cansaço, desgaste e sofrimento inerentes ao
esforço para promover a ordem no caos.

JÁ E A I N DA N ÃO
Como já dissemos, a Igreja deve manifestar aqui e
agora a maior densidade possível do Reino de Deus
que será consumado ali e além. Quando falamos em
maior densidade possível, admitimos que jamais
conseguiremos expressar a totalidade do Reino de
Deus na história.
Isso nos coloca diante do “princípio do Já e Ainda
não”, que implica três posturas distintas. John Stott
sugere que há os “otimistas iludidos”, que acreditam
que tudo quanto existe no Reino de Deus está dispo-
nível hoje, e nesse caso, para aqueles que tiverem fé
suficiente haverá pouca diferença entre o céu e a terra.
Do outro lado da calçada estão os “pessimistas sombrios”
que acreditam que nada está disponível e vivem angus-
tiados à espera do céu, onde, aí sim, tudo será resolvido.
A melhor postura é a dos “realistas engajados”, que
sabem das limitações das possibilidades do Reino de

17
Deus na história, mas, animados pela utopia e es-
perança do futuro, buscam com todas as forças ex-
perimentar e manifestar aqui e agora os “primeiros
frutos” deste Reino.

T R A B A L H O E A D O R AÇ ÃO
A atividade profissional é um ato de adoração – todo
trabalho deve ser um serviço a Deus. A palavra grega
mais comum para designar o serviço a Deus é liturgia, que
geralmente associamos à ordem de uma cerimônia religio-
sa. A palavra liturgia foi usada no Novo Testamento com
pelo menos três significados diferentes e complementares.
Liturgia é o serviço de uma pessoa para outra, como a
ajuda financeira que os cristãos da Ásia enviaram aos
cristãos de Jerusalém [Romanos 15:25,26], ou a oferta
que Epafrodito levou de Filipos para o apóstolo Paulo
na prisão em Roma [Filipenses 4:18]. Liturgia é também
o serviço religioso, como as atividades dos pastores e
profetas de Antioquia [Atos 13:1-3], o ministério apostó-
lico de Paulo aos gentios [Romanos 15:15,16]. Finalmente,
liturgia é o serviço público de uma autoridade civil, como
o ato de governar e julgar [Romanos 13.1-7].
Liturgia é um ato que beneficia pessoas e é feito por
ordenação divina ou como expressão de adoração a
Deus. Esta é a razão porque relacionamos a atividade
profissional como um ato de adoração.

18
A G R A N D E N O V I DA D E
A grande novidade é a redenção do trabalho. Existem
pelo menos 5 razões para crermos assim:
• O trabalho é parte integrante do caráter de Deus:
Deus trabalha, Deus é trabalhador, e o Filho de
Deus também;
• O trabalho tem origem em Deus: foi Deus quem
delegou o cuidado de sua criação ao ser humano;
• O trabalho é a maneira como nos identificamos
com Deus, como nos tornamos co-participantes
de sua atividade criativa e produtiva;
• O trabalho é a principal maneira como servimos
a Deus no mundo;
• Todo e qualquer trabalho feito em harmonia com
o caráter de Deus e que promove o útil e o belo
em favor das pessoas pode e deve ser conside-
rado um ato de adoração a Deus.

Essas afirmações sugerem que podemos e devemos


redimir o trabalho de sua dimensão de fadiga, cansaço
e desgaste, isto é, esvaziar a experiência de trabalhar
de qualquer associação com castigo e maldição. Parece
claro que a Bíblia e a teologia revelam dois grandes
segredos a esse respeito.

19
T R A B A L H A R PA R A D E U S
Para redimir o trabalho você precisa trabalhar
para Deus.
Escravos, obedeçam em tudo a seus senhores ter-
renos, não somente para agradar os homens quando
eles estão observando, mas com sinceridade de co-
ração, pelo fato de vocês temerem ao Senhor.
Tudo o que fizerem, façam de todo o coração, como
para o Senhor, e não para os homens, sabendo que
receberão do Senhor a recompensa da herança. É a
Cristo, o Senhor, que vocês estão servindo.
[Colossenses 3:22-24]

# 1
A expressão “é a Cristo, o Senhor, que vocês estão
servindo” significa pelo menos três coisas. A primeira
é que o que você está fazendo deve atender aos interes-
ses e propósitos de Deus, isto é, deve ser uma forma de
cooperar com Deus para colocar ordem no caos. Seu
trabalho é a maneira como você contribui para que
esse mundo se organize de maneira útil em benefício
do maior número possível de pessoas. Pense em algo
necessário para que o mundo funcione, algo que as
pessoas realmente precisam que seja feito para que
suas legítimas necessidades sejam satisfeitas e suas
vidas sejam afetadas em menores e cada vez menores

20
proporções de sofrimento: isso é trabalhar para Deus,
pois trabalhar para as pessoas é trabalhar para Deus.
Servir pessoas é servir a Cristo.

# 2
O segundo significado é que em última instância é
a Cristo a quem você deve se reportar. Em outras e
simples palavras, seu verdadeiro chefe é Cristo. Isso
significa também duas coisas: seu padrão de qualidade
no serviço, e sua integridade na maneira como você
faz o seu trabalho. Sabendo que tudo quanto você faz
tem “Cristo como cliente”, evidentemente, você não
vai fazer de qualquer jeito, e muito menos vai entregar
qualquer coisa.

# 3
Finalmente, mas não menos importante, apenas
quem trabalha para Deus consegue transformar
caos em cosmos, sendo verdade o oposto. O jardim
se transforma em terra amaldiçoada não por causa
de um castigo de Deus, mas por causa da postura do
homem em viver como se Deus não existisse. Os males
do mundo se explicam pelo pecado do homem. Como
disse C. S. Lewis, a história humana marcada pela
pobreza e pela injustiça, resulta da ação do homem
em sua tentativa desesperada de inventar a felicidade

21
nos seus próprios termos, vivendo e existindo como
se Deus não existisse. O homem egocêntrico promove
o caos. Quem trabalha para Cristo constrói jardins.

T R A B A L H A R N O SH A B AT
Para redimir o trabalho de sua dimensão de fadiga,
cansaço e desgaste, isto é, esvaziar a experiência de
trabalhar de qualquer associação com castigo e mal-
dição, você precisa trabalhar no shabat.
Mais uma vez, você deve fazer o caminho inverso ao
que foi feito pelo primeiro casal, nossos pais ancestrais
Adão e Eva. Eles quiseram construir o mundo à sua
imagem e semelhança, e acabaram transformando o
jardim em uma terra amaldiçoada. Transformaram
o cosmos em caos. Para transformar caos em cosmos
precisamos voltar a trabalhar para Deus.
Adão e Eva também acreditaram que seriam capa-
zes de construir o mundo com suas próprias mãos,
suas próprias forças, como se fossem auto-suficientes,
plenos em si mesmos, e abdicaram de qualquer inter-
ferência de Deus. O trabalho se tornou penoso, e eles
experimentaram não apenas o cansaço e a fadiga, mas
também e principalmente o desgaste. Viver passou a
ser sinônimo de uma luta sem trégua, e desde então
a vida deixou de ser encarada como dádiva divina e
passou a se sustentar no esforço humano.

22
O shabat é uma tradição milenar judaica. Desde a
Lei de Moisés, consta dos Dez Mandamentos.
Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo.
Trabalharás seis dias e neles farás todos os teus
trabalhos, mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao
Senhor, teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum,
nem tu, nem teus filhos ou filhas, nem teus servos
ou servas, nem teus animais, nem os estrangeiros
que morarem em tuas cidades.
Pois em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o
mar e tudo o que neles existe, mas no sétimo dia
descansou. Portanto, o Senhor o abençoou.
[Êxodo 20:8-11]

Original e literalmente, guardar o sábado indica


o descanso ao final de um ciclo semanal de tra-
balho produtivo, seguindo o exemplo de Deus que
descansou ao sétimo dia da criação. Mas o Novo
Testamento ensina que o shabat é uma metáfora
do céu, o verdadeiro e definitivo lugar de descanso.
Considerando que céu não é sinônimo de ociosida-
de, e muito menos que Deus deixou de trabalhar,
parece que shabat e trabalho não são experiências
antagônicas ou mutuamente excludentes, como se
você tivesse que escolher entre trabalhar ou guardar
o sábado.

23
O shabat pode ser compreendido muito mais como
uma postura em relação a Deus e à vida, e tam-
bém em relação ao trabalho, do que uma pausa nas
atividades. Dia de folga não é o mesmo que dia de
descanso. Muitas pessoas folgam sem descansar, e
outras tantas trabalham sem se cansar. A diferença
está na atitude interior.
Aqueles que acreditam que o pão sobre a mesa é
uma conquista meritória humana, trabalham sem
parar, e como Atlas, carregam o mundo nas costas.
Os que acreditam que o pão de cada dia é dádiva di-
vina trabalham livres da ansiedade e do stress que
caracteriza os que, consciente ou inconscientemente,
querem ocupar o lugar de Deus.
Se não for o Senhor o construtor da casa, será inútil
trabalhar na construção. Se não é o Senhor que vigia
a cidade, será inútil a sentinela montar guarda.
Será inútil levantar cedo e dormir tarde, traba-
lhando arduamente por alimento. O Senhor concede
o sono àqueles a quem ama.
[Salmos 127:1-2]

Portanto eu lhes digo: não se preocupem com suas


próprias vidas, quanto ao que comer ou beber; nem
com seus próprios corpos, quanto ao que vestir. Não
é a vida mais importante do que a comida, e o corpo

24
mais importante do que a roupa? Observem as aves
do céu: não semeiam nem colhem nem armazenam
em celeiros; contudo, o Pai celestial as alimenta. Não
têm vocês muito mais valor do que elas? Quem de vocês,
por mais que se preocupe, pode acrescentar uma hora
que seja à sua vida? Por que vocês se preocupam com
roupas? Vejam como crescem os lírios do campo. Eles
não trabalham nem tecem. Contudo, eu lhes digo que
nem Salomão, em todo o seu esplendor, vestiu-se como
um deles. Se Deus veste assim a erva do campo, que hoje
existe e amanhã é lançada ao fogo, não vestirá muito
mais a vocês, homens de pequena fé? Portanto, não se
preocupem, dizendo: “Que vamos comer?” ou “que va-
mos beber?” ou “que vamos vestir?”. Pois os pagãos é que
correm atrás dessas coisas; mas o Pai celestial sabe que
vocês precisam delas. Busquem, pois, em primeiro lugar
o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas
lhes serão acrescentadas. Portanto, não se preocupem
com o amanhã, pois o amanhã se preocupará consigo
mesmo. Basta a cada dia o seu próprio mal.
[Mateus 6:25-34]

Servir a Deus cansa, mas não desgasta. Trabalhar


para Deus implica suor do rosto. Mas está longe de
ser uma experiência parecida com o que entendemos
como castigo e maldição.

25
E M T R I N TA SEG U N D O S
Deus criou um jardim e convidou o ser humano para
viver nele
O ser humano colocou Deus para fora e transformou
o jardim em um deserto
O jardim é obra das mãos de Deus
O deserto é obra das mãos dos homens
O jardim era um cosmos: lugar de abundância e
beleza
O deserto é um caos: lugar de injustiça e pobreza
O jardim era lugar de flores e frutos
O deserto é lugar de espinhos e ervas daninhas
No jardim, o ser humano trabalhava para cuidar
e cultivar
No deserto, o ser humano trabalha para sobreviver
No jardim, o trabalho era cansativo, mas não era
penoso
No deserto, o trabalho é extenuante e desgastante
No jardim, trabalhar era cooperar com Deus
No deserto, trabalhar é rivalizar/competir com Deus
No jardim, o ser humano trabalha para Deus
No deserto, o ser humano trabalha para si mesmo
No jardim, o ser humano desfruta coletivamente de
tudo quanto é belo e bom
No deserto, o ser humano acumula egoisticamente
o belo e o bom

26
Mas é possível plantar e cultivar jardins no deserto
O deserto e a terra ressequida se regozijarão; o
ermo exultará e florescerá como a tulipa; irromperá
em flores, mostrará grande regozijo e cantará de ale-
gria. A glória do Líbano lhe será dada, como também
o resplendor do Carmelo e de Sarom; verão a glória
do Senhor, o resplendor do nosso Deus.
Fortaleçam as mãos cansadas, firmem os joelhos
vacilantes; digam aos desanimados de coração:
“Sejam fortes, não temam! Seu Deus virá, virá com
vingança; com divina retribuição virá para salvá-los”.
Então se abrirão os olhos dos cegos e se destaparão
os ouvidos dos surdos. Então os coxos saltarão como
o cervo, e a língua do mudo cantará de alegria. Águas
irromperão no ermo e riachos no deserto. A areia
abrasadora se tornará um lago; a terra seca, fontes
borbulhantes. Nos antros onde outrora havia chacais,
crescerão a relva, o junco e o papiro.
E ali haverá uma grande estrada, um caminho que
será chamado Caminho de Santidade. Os impuros
não passarão por ele; servirá apenas aos que são
do Caminho; os insensatos não o tomarão. Ali não
haverá leão algum, e nenhum animal feroz passará
por ele; não se acharão ali. Só os redimidos andarão
por ele, e os que o Senhor resgatou voltarão. Entrarão
em Sião com cantos de alegria; duradoura alegria

27
coroará suas cabeças. Júbilo e alegria se apoderarão
deles, e a tristeza e o suspiro fugirão. 
[Isaías 35:1-10]

© 2012 Ed René K iv itz

28
29
www.fcprofissionais.com.br
www.twitter.com/forumcristao
www.facebook.com/forumcristao
fcp@ibab.com.br

30

Você também pode gostar